Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1084/14.0GCALM-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: ERRO DE JULGAMENTO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ANTECEDENTES CRIMINAIS
REGISTO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I- Quando o tribunal fundou a sua convicção valorando um CRC que junto aos autos não respeitava ao arguido julgado praticou um erro de julgamento e não um erro notório na apreciação da prova.

II- Esse mesmo documento não espelha o passado criminal do arguido em julgamento, antes pertence a outra pessoa (foi erradamente junto aos autos), razão pela qual não podia ter servido para a formação da convicção do tribunal relativamente à matéria que reporta uma condenação por tráfico de estupefacientes ao arguido efectivamente julgado.

III- E, por outro lado existe uma omissão de matéria de facto relativa ao passado criminal do arguido julgado, sem a qual o tribunal não poderia ter escolhido e fixado a pena aplicada.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO.


No processo sumário supra identificado do 3º. Juízo de Competência Criminal de Almada, foi julgado o arguido M…..F…, identificado nos autos, a fls. 26, tendo sido condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal p.p. pelo artigo 3º, nº. 1 e 2 do Dec.Lei 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (fls. 28 dos autos).

Não se conformando com a decisão, o Mº.Pº. interpôs recurso, conforme motivação constante de fls. 31 a 34 dos autos, formulando em conclusão, o que a seguir se transcreve[1] :

1. O arguido foi condenado na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5€ pela prática de crime de condução de veículo sem habilitação legal.

2. Na determinação da medida concreta da pena do arguido foi valorado o CRC de pessoa diversa no qual estava averbado antecedente criminal pela prática de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, pelo que existe erro notório na apreciação da prova.

3. Após a prolação de sentença apurou-se que o arguido não tinha antecedentes criminais, importando a pena concretamente aplicada ter em atenção tal circunstância e, por isso, ser inferior ao determinado.

Nestes termos a douta sentença recorrida deverá ser substituida por outro que valore o verdadeiro CRC do arguido e determine pena inferior atenta a ausência de antecedentes criminais por parte daquele.

Porém, Vossas Excelências, não deixarão de fazer a habitual JUSTIÇA!

**

          Também o arguido M…F… veio interpôr recurso da sentença, juntando a motivação que consta de fls.39 a 41 dos autos, onde conclui:[2]

1. Por sentença, o Tribunal “a quo” condenou o arguido, aqui recorrente pela prática do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art°. 3°, n°s. 1 e 2 do Dec.Lei 2/98, de 03/1 na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00 Euros, perfazendo o montante de 500,00 € e custas do processo.

2. Certamente por lapso, na apreciação e valoração da prova documental para a escolha concreta da medida da pena, o M.Juiz “a quo” teve em conta elementos respeitantes a pessoa diversa da do arguido.

3. Na verdade, nessa apreciação e ponderação, erradamente, foram tidos em conta os elementos constantes do Registo Criminal (fls. 12 a 14 dos autos) de Vitor Emanuel Cardoso Rodrigues e não do Registo Criminal do arguido, aqui recorrente, o qual consta de fls. 30 dos autos.

4. Tratou-se, pois, no que nos parece óbvio, de erro notório por parte do Tribunal “a quo” quando fez a apreciação e ponderação da prova documental, com direta implicação na escolha concreta da medida da pena, pelo que a mesma se revela ser excessiva (cfr. Art°. 410º, n°2, al. e) do CPP).

5. Face à confissão por parte do arguido dos factos constantes da acusação, tal não deixa de implicar a sua condenação.

6. Porém, tendo em conta as circunstâncias e elementos constantes dos autos, e ao que designadamente se estabelece nos art°s.70°, 71°, 72° do Cód. Penal, a pena de 100 dias de multa aplicada ao arguido revela-se excessiva, por desrespeito de tais disposições, devendo a mesma ser substituida por outra de menor gravidade.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença proferida no Tribunal a quo, substituindo a pena aplicada ao arguido por outra de menor gravidade.

Como sempre, V.Exas farão a costumada JUSTIÇA.

Respondeu o Mº.Pº. como consta de fls. 47 e 48 destes autos, reportando-se à fundamentação que verteu no seu recurso, concluindo pela procedência do recurso e revogação da sentença recorrida.        

Neste Tribunal o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer sobre os recursos no sentido da existência de erro/vício da sentença na apreciação da prova ao ter considerado passado criminal que o arguido não tem.
          
          Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.

II- MOTIVAÇÃO.

É jurisprudência constante e pacífica (p. ex. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal).

 No caso em análise, o objecto, em ambos os recursos, é idêntico e reconduz-se à questão de o Tribunal ter valorado erradamente um documento de prova-CRC- que não diz respeito à pessoa julgada.

Assim, o Tribunal deu como provado que consta do CRC do arguido, uma condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, numa pena de prisão suspensa, facto este cuja convicção fundou no documento que se encontrava nos autos, a fls.12, 13 e 14, certificado de Registo Criminal de pessoa diversa da que constituída arguida nos autos, foi efectivamente a julgada.

Já após a prolação da sentença foi junto o CRC de fls. 30, do arguido M….F…, do qual consta não ter o arguido antecedentes criminais registados.

Ambos os recorrentes alegam a verificação do erro notório na apreciação da prova, com assento na alínea c) do artigo 410 nº. 2, do C.P.P., muito embora impugnem a matéria de facto na parte que toca ao passado criminal do arguido, argumentando que a mesma se fundou em prova errada, (documento alheio ao processo) não podendo, por isso conduzir à decisão proferida.

Vejamos.

O vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).   

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).        

             Portanto, o erro notório é um vício que ocorre quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da própria decisão, resultantes do próprio texto, verificáveis da sua simples leitura, mas não do julgamento.

Como se diz no Acórdão proferido pelo STJ no Proc. n.º 103/09 -3.ª Secção Raul Borges (relator) Fernando Fróis--- 15/7/2009(dgsi.pt)

“Esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.” “O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.”-

       No caso vertente não existe discrepância entre o texto e as provas valoradas e, muito embora se conheça a posição do S.T.,J. de que é exemplo o Ac. de 14/3/2007 proferido no Proc. n.º 617/07 - 3.ª Secção Santos Cabral (relator) Maia Costa Pires da Graça Oliveira Mendes (tem voto de vencido, por entender não enfermar o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova): “ É entendimento consolidado deste STJ o de que o erro notório na apreciação da prova existe quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta que se deram como provados factos que para a generalidade dos cidadãos se apresente como evidente que não poderiam ter ocorrido, ou são contraditados por documentos que façam prova plena e não tenham sido arguidos de falsos; ou, no aspecto negativo, que, nessas circunstâncias, tenham sido afastados factos que o não deviam ser. O cerne do conceito consiste na evidência, na notoriedade do erro, facilmente captável por qualquer pessoa de média inteligência, sem necessidade de particular exame de raciocínio mental.

IV - Estamos pois, in casu, perante um erro que assume as características da notoriedade em função do art. 410.º do CPP, com as consequências a que alude o art. 426.º do CPP.”

No caso que nos ocupa a situação afigura-se-nos algo diversa daquela a que se refere a citação acabada de expôr; não cremos que se possa considerar o erro/vício da prova, pois do texto da decisão não é possível verificar da existência de factos que de forma patente não podiam ter ocorrido ou que sejam contraditados por documento que faça prova plena dos mesmos. Ou seja, o que a sentença mostra são factos provados compatíveis com o documento em que se fundou essa convicção. O que está errada é a convicção do Tribunal de que esses factos são relativos ao julgamento do arguido, quando na realidade nada têm que ver com ele, mas com um outro cidadão que não é sequer arguido nos autos e que, portanto não foi julgado.

Assim, esse mesmo documento não espelha o passado criminal do arguido em julgamento, antes pertence a outra pessoa (foi erradamente junto aos autos), razão pela qual não podia ter servido para a formação da convicção do tribunal relativamente à matéria que reporta uma condenação por tráfico de estupefacientes ao arguido efectivamente julgado.

        Ora, é precisamente esta matéria, estes factos: “consta do CRC do arguido uma condenação pela prática do crime de tráfico em que foi condenado em pena de prisão suspensa” (matéria documentada no registo da gravação da prova) que os recorrentes impugnam por não se ter feito prova dos mesmos em relação ao arguido julgado, ou seja, com base naquela prova documental constante dos autos, nunca o tribunal poderia dar como provado que o arguido M….F…. já fora condenado em pena de prisão suspensa pela prática de um crime de tráfico. Essa prova- documento de CRC- não podia ser sequer atendida por não dizer respeito ao arguido em julgamento.

Impugnam assim e, de forma correcta na nossa perspectiva, a matéria de facto no particular ponto do passado criminal do arguido M….

Sendo certo que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (Ac. STJ de 10.01.2007).

Assim, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal de Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo Tribunal de 1.ª instância, se se patentear que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está desancorada face às provas recolhidas.

Ora, no caso, este facto de que o arguido M…F… já tinha registo de uma condenação por crime de tráfico de estupefacientes não ficou provado à míngua da respectiva prova documental à data da sentença e, por outro lado os factos dados como provados, erradamente imputando ao próprio arguido um passado criminal que não era seu, serviram para a fundamentação da aplicação e escolha da pena aplicada ao arguido, conduzindo assim a uma errada decisão.

O erro ocorreu assim em momento anterior à produção do texto no qual foi vertida a realidade histórica, sendo portanto um erro de julgamento.

Há assim que considerar que os factos provados quanto à existência de uma condenação por crime de tráfico registada no CRC do arguido M….foram incorrectamente dados como provados, devendo por isso ser tidos como não provados ou mesmo inexistentes por inócuos para a decisão em causa.

E, por outro lado existe uma omissão de matéria de facto relativa ao passado criminal do arguido julgado, sem a qual o tribunal não poderia ter escolhido e fixado a pena aplicada, pois muito embora se verifique a junção aos autos do verdadeiro CRC do arguido julgado, este documento é posterior à prolação da sentença e, daí que não pudesse ser considerado na mesma.

Estamos, a nosso ver, ainda perante uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. Necessitará assim, a matéria de facto de ser completada, nos termos expostos.

Ora, assim se entendendo, da verificação do erro de julgamento que conduz ainda à existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do nº. 2 do artigo 410 do C.P.P. forçoso é concluir que não pode este Tribunal colmatar as aludidas deficiências, pelo que se tem de ordenar o reenvio a que se reporta o artigo 426-1 do C.P.P. para novo julgamento com vista ao apuramento dos factos referidos (art.º 426º, n.º 1 e 431º, do CPP).

III. DECISÃO.

Nestes termos, acordam os Juízes da 9ª Secção Criminal desta Relação de Lisboa em:

- Retirar da matéria fáctica os factos relativos ao passado criminal do arguido, dados como provados na sentença;

- Ordenar, nos termos dos arts. 426º n.º 1, parte final, e 426º-A, todos do Cód. Proc. Penal, o reenvio parcial do processo para novo julgamento restrito às concretas questões anteriormente especificadas, sem prejuízo da nova sentença a proferir dever suprir todas as invalidades assinaladas.

*

Sem tributação.

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)

Lisboa, 20/11/2014

                                                                       

Relator

Maria do Carmo Ferreira

Adjunto

Cristina Branco

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[1] Na ausência do respectivo suporte informático procedemos ao scanner da referida peça.

[2] Na ausência do respectivo suporte informático procedemos ao scanner da referida peça.