Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27/14.5GALNH.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: PENA ACESSÓRIA
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I. Tendo o condenado em inibição de conduzir, antes do trânsito em julgado da decisão, entregue a carta de condução na Secretaria do Tribunal e esta aceitado tal entrega, o tempo em que a carta permaneceu no Tribunal conta para efeitos de execução de tal pena acessória.

II. Sabendo a Secretaria do Tribunal que o Ministério Público tinha interposto recurso da decisão, não devia ter aceitado a carta de condução entregue pelo arguido.

III. O arguido não pode ser prejudicado pelos erros ou omissões dos actos praticados pela Secretaria, (artigo 157º, nº 6 do novo Código de Processo Civil), nem pode cumprir duas vezes a sanção acessória, sob pena de violação do princípio non bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I           Relatório

Nos autos de Processo Comum Singular supra identificado, que correm termos na Comarca de Lisboa Norte, Instância Local da Lourinhã, Secção de Competência Genérica, Juiz 1, a Exma. Juiz titular, a fls. 30 e verso dos referidos autos, mediante requerimento do arguido, proferiu despacho, datado de 03 de Maio de 2016, nos seguintes termos: (transcrição)

«Fls.203:


l. A interposição de recurso pelo Ministério Público em abono do arguido precludiu a exequibilidade da pena acessória, o fizemos ver pelo despacho de fls. 163 e importa conduzir esse efeito (suspensivo) a consequências em todas as ramificações a que importa o sancionamento.

II. Buscar um referente de desconto enquanto o título de condução se achou junto aos autos (sem ao arguido, em momento algum, ter sido exigido) na altura em que a pena não era exequível geraria uma ambivalência insuportável e incompatível com a dogmática de direito penal que aqui importa: caso o arguido fosse surpreendido a conduzir sem título de condução, não se entenderia a pena acessória por desrespeitada (v. g., o arguido não incorreria em crime de violação de proibições, p. p. pelo art. 353.° do CP), precisamente por nesse momento não existir a violação de uma medida penal que importasse a abstenção de condução, por força face da pendência do recurso e do seu efeito.
Mais se diga, caso o arguido não tivesse entregue o título administrativo, não poderia o tribunal, evidentemente, proceder à sua apreensão (art. 500.°/3 do CPP), sendo esta constelação quanto baste para ter por inaplicável qualquer conceptual analógico sobre desconto (art. 80.° do CP) no âmbito do cumprimento da pena acessória in casu, perante a falta de identidade ou adesão entre situações materiais.
Esse desconto teria por justificativa uma entrega do título aos autos e um período por que nos autos permaneceu desprovidos de qualquer âmbito coercivo ou vínculo de proibição de conduzir sobre o arguido, o que em nada se aparenta com o instituto disposto no art. 80.0 do CP (o caso seria o mesmo, v. g., na eventualidade de, perante uma pena de prisão em regime de permanência na habitação - art. 44º do CP -, se admitir por desconto o período por que o arguido se recluiu, voluntariamente, no seu domicílio, enquanto pendia o recurso interposto da sentença condenatória).
É que a sanção criminal de proibição de condução de veículos (art. 69.° do CP) traduz-se num comportamento negativo, na execução de um dever de abstenção de circulação rodoviária em veículos munidos das características antecipadas no tatbestand penal (art. 69.°/2 do CP), sendo instrumental a esse facto negativo, imposto ao condenado, a imobilização do título de condução, que representa nada mais que um factor coercitivo do cumprimento (art. 69.°/3 a 5 do CP).
Apreendido o título de condução, fica mitigada a possibilidade de o arguido obter impunidade pela condução de viaturas que realize durante o período da suspensão: interpelado por acção de fiscalização, a impossibilidade de exibir o título perante o agente é de molde a deixar permeável a sua actuação à detecção pelos órgãos de polícia, ampliando a efectividade da pena acessória aplicada (razão elementar por que se encontra prevista na dimensão adjectiva, quer no Código Penal quer de Processo Penal, enunciando-se uma estatuição procedimental, em ambos os diplomas), mas não constituindo, essa mesma apreensão, a pena em si considerada, está bom de ver.

III. Regressando ao caso dos autos, transitada em julgado a decisão condenatória, emerge a necessidade de execução da pena acessória e, pois que assim é, impõe-se, concluímo-lo sem margem para dúvidas, não apenas o cumprimento, pelo condenado, de um perímetro negativo de proibição de conduzir acobertado por responsabilidade penal (art. 353.° do CP), mas também a aplicação das medidas adjuvantes da sua exequibilidade, que o mesmo é dizer, a apreensão da carta de condução de que o arguido é portador, ex vi art. 69.°/3 do CP.

Nestes termos, uma vez mais, DETERMINO notifique o arguido para, em dez dias, entregar a sua carta de condução na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto de polícia da sua área de residência, sob pena de incorrer em crime de desobediência, p. p. pelo art. 348.°/1, ai. a) do CP(fim de transcrição).

***

           Inconformado o arguido F... veio interpor recurso a fls. 30 a 34 verso dos autos, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)

«1 – O arguido procedeu à entrega da sua carta de condução no dia 31 de Outubro de 2014 e levantou-a no dia 2 de Fevereiro de 2015, antes da decisão transitar em julgado, convicto de e que estava a cumprir a sanção acessória de inibição de conduzir, ainda mais, pelo ato de aceitação da secretaria do tribunal.


2 - O tribunal a Quo deve velar pelo cumprimento da pena acessória e quando for exequível deve levar em conta o tempo da   sanção acessória já cumprido, depois de apreciar a regularidade deste cumprimento como aconteceu nos autos.

3 – Este preceito correspondente ao mesmo princípio das decisões penais condenatárias que só têm força executiva após transitarem em julgado, de acordo com o disposto no artigo 467.º n.º 1 do código Processo Penal.


4  - Ora, nos termos do artigo 80.º n.º 1 do Código Penal também a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas no inteiro cumprimento da pena de prisão.


5 – Não há razão para assim não ser no cumprimento das penas acessórias, uma vez constatado a regularidade no âmbito dos respectivos autos.


6 - A decisão proferida viola, assim, o disposto nos artigos 40.º e 69.º do Código Penal.


7 - O n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil dispõe que “ A interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir de textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada.”


8 – As leis não podem ser vistas apenas para se justificarem a si próprias, mas para regulamentarem e disciplinarem a vida concreta dos cidadãos em sociedade de forma justa e legal, aplicando com rigor as obrigações e deveres, mas sempre com respeito pelo exercício dos direitos, liberdade e garantias.


9 - O cumprimento da sanção acessória antes do trânsito em julgado da sentença, com carta apreendida nos autos, entregue voluntariamente pelo arguido e recebida pela secretaria do tribunal, deve ser tomado em conta na decisão que declarar extinta a pena, para efeitos do artigo 500.º do Código de Processo Penal.


Termos em que, sendo concedido provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, revogado o despacho recorrido proferido em 3 de Maio de 2016, o qual deve ser substituído por outro que leve em  conta  o cumprimento da sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor antes do transito em julgado da sentença, que voluntariamente o arguido já cumpriu, com carta de condução entregue na secretaria do tribunal e que esta manteve junta nos  autos, até decorrer o período em que foi condenado.


FARÃO V.EX.AS  A MAIS LÍDIMA JUSTIÇA!» (fim de transcrição).

***

      A Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo, nos termos constantes de fls. 36 e verso, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)

«A interposição de recurso por parte do Ministério Público, em benefício do arguido, precludiu a exequibilidade das penas, entre as quais se conta a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.

Face a tudo quanto encontra exposto, deve a douta decisão recorrida ser mantida, não se concedendo provimento ao recurso, assim se fazendo JUSTIÇA!» (fim de transcrição)

***

           A Exma. Juiz não deu cumprimento do disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal.

      Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o douto parecer a fls. 42 e 43 dos autos manifestando-se pela procedência do recurso.

         Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta. 

       Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II     Fundamentação

1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.[2]

Da leitura das conclusões do recorrente extrai-se que o mesmo apenas pretende que seja considerada cumprida a sanção acessória de inibição de conduzir por ter entregado, pelo período de inibição estabelecido, a carta de condução na secretaria do Tribunal recorrido após a sua condenação.

Vejamos.

2. Para uma melhor compreensão da questão em discussão nos autos, vejamos a realidade processual que resulta por assente:
a) O arguido por sentença de 27 de outubro de 2014 foi condenado na pena de oitenta (80) dias de multa à taxa diária de €10 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três (3) meses;
b) O arguido não recorreu da decisão e, no dia 31 de Outubro de 2014, procedeu à entrega da carta de condução (fls. 107);
c) No dia 2 de Fevereiro de 2015 o arguido solicitou e foi-lhe devolvida a carta de condução (fls. 122);
d) O Ministério Público interpôs recurso da decisão o qual foi julgado procedente e a decisão transitou em julgado em 5 de Janeiro de 2015;
e) O arguido foi notificado para entregar a carta e, na sequência de tal notificação, requereu que a sanção acessória de inibição de conduzir se considerasse como cumprida.

3. Perante esta factualidade o Tribunal recorrido entendeu, com base na ausência de transito em julgado da decisão em que o arguido tinha sido condenado e, nessa medida, na ausência de exequibilidade da mesma, que o período de tempo em que o arguido entregou voluntariamente a carta de condução, correspondente aos 3 meses em que tinha sido condenado, não pode ser tido em conta, já que ninguém o obrigou a entregar a carta e se fosse apanhado a conduzir não incorria em qualquer sanção.

É indiscutível que a argumentação expendida encontra suporte em normas legais, particularmente as que se reportam à não exequibilidade da decisão, por ausência de trânsito em julgado.

Porém, existem outras dimensões interpretativas que não podem deixar de ser tidas em consideração.

Vejamos.

O arguido foi condenado numa pena com a qual se conformou, uma segunda-feira (27 de outubro de 2014), tendo-lhe sido dito que devia entregar a carta de condução no prazo de 10 dias, sob pena de incorrer num crime de desobediência. Decorridos 3 dias, na sexta-feira seguinte, o arguido desloca-se ao Tribunal e procede à entrega da carta, a qual foi recebida e junta aos autos. Decorrido o prazo de 3 meses e 5 dias, o arguido apresenta-se no Tribunal para levantar a carta, que lhe foi entregue.

Saberia o arguido da existência de recurso? Não sabemos.

O que sabemos é que o Tribunal sabia que havia um recurso pendente e que, nessa medida, a carta deveria estar na posse do arguido e não junta aos autos, por força da inexistência de trânsito em julgado.

Sabendo o Tribunal que a carta estava indevidamente junta, o que fez? Devolveu-a ao arguido? Informou-o que a podia vir levantar?

Sabemos que nada fez, apesar de saber que a proibição de condução só “produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão” (artigo 69º, nº 2 do Código Penal).

Dirão os mais puristas que “a ignorância da lei não aproveita”. Logo, o arguido se não sabia, devia saber.

É verdade. Mas também não é mesmo verdade que a administração tem que ter com os cidadãos um dever de lealdade, boa-fé, e colaboração devendo prestar-lhes informações e esclarecimentos sobre os seus direitos, sempre tendo na base princípios de justiça e razoabilidade devendo “tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa”(artigo 8º do Código de Procedimento Administrativo - DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro).

Não esquecemos que a função jurisdicional é diferente da função administrativa e, que, em relação àquela, existem normas específicas.

Hoje porém o novo Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal, nos seus artigos 7º e 8º consagra preceitos semelhantes em relação aos intervenientes nos processos (cooperação e boa fé processual) e estabelece expressamente que os “erros ou omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem em qualquer caso, prejudicar as partes.” (artigo 157º, nº 6).

Ora, sabendo a secretaria que tinha sido interposto recurso da decisão que condenara o arguido e que, por isso, a carta estava indevidamente entregue, deveria ter informado o arguido e ter-lhe devolvido a carta.

Omitiu pois a secretaria e por arrastamento o Tribunal, um acto que devia ter praticado, pelo qual o arguido não pode ser prejudicado, sob pena de cumprir duas vezes a sanção em que foi condenado.

Ora, o cumprimento ex novo da pena acessória de proibição de conduzir, redundaria numa clara e insuportável violação do princípio non bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, o qual estabelece que “(…) ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Este principio abrange não só o duplo julgamento mas, “(…) pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime»”,[3] isto  é, a duplicação da pena respectiva.

Acresce que o legislador com o procedimento de entrega da carta, nos termos estabelecidos nos artigos 69º, nº 3 do Código Penal e 500º do Código de Processo Penal, apenas pretende o não exercício da condução pelo tempo que durar a proibição e nessa medida executar a sanção. Isso mesmo resulta da interpretação do artigo 69º, nº 6 do Código Penal, que exclui do período de proibição, o período de tempo em que o condenado está privado da liberdade.

Sendo a efectiva execução da proibição decretada o objectivo último do legislador, o mesmo é conseguido com a apreensão efectiva da carta na secretaria do Tribunal, ainda que a decisão não tenha transitado em julgado. [4]

Toda a douta argumentação expendida na decisão recorrida, tendo na base o momento e efeitos do caso julgado (artigos 69º, nº 3 e 467º do Código de Processo Penal), não pode, em nossa modesta opinião, por força do princípio constitucional de no bis in idem, levar a que o condenado suporte uma dupla inibição/proibição, nem o mesmo ser prejudicado por uma omissão da secretaria.

Em resumo e sem necessidade de mais considerandos, por desnecessários, procede o recurso interposto pelo arguido, revogando-se o despacho recorrido o qual deve ser substituído por outro que leve em conta o tempo de proibição de conduzir veículos com motor, que o arguido voluntariamente já cumpriu, com a entrega no processo da carta de condução.

III   Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando-se o despacho recorrido o qual deve ser substituído por outro que leve em conta o tempo de proibição de conduzir veículos com motor, que o arguido voluntariamente já cumpriu, com a entrega no processo da carta de condução.

Sem custas atento o vencimento.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por nove páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 10 de Novembro de 2016

Antero Luís

João Abrunhosa

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[1]   Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.
[2]  Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
[3] Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, pág. 497.
[4]  No sentido de julgar cumprida a decisão, ainda que com fundamentação diversa, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01/07/2015, Proc. 33/14.0GBMGL-A.C1, in www.dgsi.pt