Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ANTERO LUÍS | ||
Descritores: | PENA ACESSÓRIA INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/10/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIMENTO | ||
Sumário: | I. Tendo o condenado em inibição de conduzir, antes do trânsito em julgado da decisão, entregue a carta de condução na Secretaria do Tribunal e esta aceitado tal entrega, o tempo em que a carta permaneceu no Tribunal conta para efeitos de execução de tal pena acessória. II. Sabendo a Secretaria do Tribunal que o Ministério Público tinha interposto recurso da decisão, não devia ter aceitado a carta de condução entregue pelo arguido. III. O arguido não pode ser prejudicado pelos erros ou omissões dos actos praticados pela Secretaria, (artigo 157º, nº 6 do novo Código de Processo Civil), nem pode cumprir duas vezes a sanção acessória, sob pena de violação do princípio non bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I Relatório
Nos autos de Processo Comum Singular supra identificado, que correm termos na Comarca de Lisboa Norte, Instância Local da Lourinhã, Secção de Competência Genérica, Juiz 1, a Exma. Juiz titular, a fls. 30 e verso dos referidos autos, mediante requerimento do arguido, proferiu despacho, datado de 03 de Maio de 2016, nos seguintes termos: (transcrição) «Fls.203: *** Inconformado o arguido F... veio interpor recurso a fls. 30 a 34 verso dos autos, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)
3 – Este preceito correspondente ao mesmo princípio das decisões penais condenatárias que só têm força executiva após transitarem em julgado, de acordo com o disposto no artigo 467.º n.º 1 do código Processo Penal.
*** A Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo, nos termos constantes de fls. 36 e verso, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)
«A interposição de recurso por parte do Ministério Público, em benefício do arguido, precludiu a exequibilidade das penas, entre as quais se conta a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
Face a tudo quanto encontra exposto, deve a douta decisão recorrida ser mantida, não se concedendo provimento ao recurso, assim se fazendo JUSTIÇA!» (fim de transcrição) *** A Exma. Juiz não deu cumprimento do disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal. Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o douto parecer a fls. 42 e 43 dos autos manifestando-se pela procedência do recurso. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
II Fundamentação 1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.[2] Da leitura das conclusões do recorrente extrai-se que o mesmo apenas pretende que seja considerada cumprida a sanção acessória de inibição de conduzir por ter entregado, pelo período de inibição estabelecido, a carta de condução na secretaria do Tribunal recorrido após a sua condenação. Vejamos. 2. Para uma melhor compreensão da questão em discussão nos autos, vejamos a realidade processual que resulta por assente: 3. Perante esta factualidade o Tribunal recorrido entendeu, com base na ausência de transito em julgado da decisão em que o arguido tinha sido condenado e, nessa medida, na ausência de exequibilidade da mesma, que o período de tempo em que o arguido entregou voluntariamente a carta de condução, correspondente aos 3 meses em que tinha sido condenado, não pode ser tido em conta, já que ninguém o obrigou a entregar a carta e se fosse apanhado a conduzir não incorria em qualquer sanção. É indiscutível que a argumentação expendida encontra suporte em normas legais, particularmente as que se reportam à não exequibilidade da decisão, por ausência de trânsito em julgado. Porém, existem outras dimensões interpretativas que não podem deixar de ser tidas em consideração. Vejamos. O arguido foi condenado numa pena com a qual se conformou, uma segunda-feira (27 de outubro de 2014), tendo-lhe sido dito que devia entregar a carta de condução no prazo de 10 dias, sob pena de incorrer num crime de desobediência. Decorridos 3 dias, na sexta-feira seguinte, o arguido desloca-se ao Tribunal e procede à entrega da carta, a qual foi recebida e junta aos autos. Decorrido o prazo de 3 meses e 5 dias, o arguido apresenta-se no Tribunal para levantar a carta, que lhe foi entregue. Saberia o arguido da existência de recurso? Não sabemos. O que sabemos é que o Tribunal sabia que havia um recurso pendente e que, nessa medida, a carta deveria estar na posse do arguido e não junta aos autos, por força da inexistência de trânsito em julgado. Sabendo o Tribunal que a carta estava indevidamente junta, o que fez? Devolveu-a ao arguido? Informou-o que a podia vir levantar? Sabemos que nada fez, apesar de saber que a proibição de condução só “produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão” (artigo 69º, nº 2 do Código Penal). Dirão os mais puristas que “a ignorância da lei não aproveita”. Logo, o arguido se não sabia, devia saber. É verdade. Mas também não é mesmo verdade que a administração tem que ter com os cidadãos um dever de lealdade, boa-fé, e colaboração devendo prestar-lhes informações e esclarecimentos sobre os seus direitos, sempre tendo na base princípios de justiça e razoabilidade devendo “tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa”(artigo 8º do Código de Procedimento Administrativo - DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro). Não esquecemos que a função jurisdicional é diferente da função administrativa e, que, em relação àquela, existem normas específicas. Hoje porém o novo Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal, nos seus artigos 7º e 8º consagra preceitos semelhantes em relação aos intervenientes nos processos (cooperação e boa fé processual) e estabelece expressamente que os “erros ou omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem em qualquer caso, prejudicar as partes.” (artigo 157º, nº 6). Ora, sabendo a secretaria que tinha sido interposto recurso da decisão que condenara o arguido e que, por isso, a carta estava indevidamente entregue, deveria ter informado o arguido e ter-lhe devolvido a carta. Omitiu pois a secretaria e por arrastamento o Tribunal, um acto que devia ter praticado, pelo qual o arguido não pode ser prejudicado, sob pena de cumprir duas vezes a sanção em que foi condenado. Ora, o cumprimento ex novo da pena acessória de proibição de conduzir, redundaria numa clara e insuportável violação do princípio non bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, o qual estabelece que “(…) ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Este principio abrange não só o duplo julgamento mas, “(…) pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime»”,[3] isto é, a duplicação da pena respectiva. Acresce que o legislador com o procedimento de entrega da carta, nos termos estabelecidos nos artigos 69º, nº 3 do Código Penal e 500º do Código de Processo Penal, apenas pretende o não exercício da condução pelo tempo que durar a proibição e nessa medida executar a sanção. Isso mesmo resulta da interpretação do artigo 69º, nº 6 do Código Penal, que exclui do período de proibição, o período de tempo em que o condenado está privado da liberdade. Sendo a efectiva execução da proibição decretada o objectivo último do legislador, o mesmo é conseguido com a apreensão efectiva da carta na secretaria do Tribunal, ainda que a decisão não tenha transitado em julgado. [4] Toda a douta argumentação expendida na decisão recorrida, tendo na base o momento e efeitos do caso julgado (artigos 69º, nº 3 e 467º do Código de Processo Penal), não pode, em nossa modesta opinião, por força do princípio constitucional de no bis in idem, levar a que o condenado suporte uma dupla inibição/proibição, nem o mesmo ser prejudicado por uma omissão da secretaria.
Em resumo e sem necessidade de mais considerandos, por desnecessários, procede o recurso interposto pelo arguido, revogando-se o despacho recorrido o qual deve ser substituído por outro que leve em conta o tempo de proibição de conduzir veículos com motor, que o arguido voluntariamente já cumpriu, com a entrega no processo da carta de condução.
III Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando-se o despacho recorrido o qual deve ser substituído por outro que leve em conta o tempo de proibição de conduzir veículos com motor, que o arguido voluntariamente já cumpriu, com a entrega no processo da carta de condução.
Sem custas atento o vencimento.
Notifique nos termos legais. (o presente acórdão, integrado por nove páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)
Lisboa, 10 de Novembro de 2016 Antero Luís João Abrunhosa _______________________________________________________ |