Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4681/2006-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
RENÚNCIA
TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O exequente comprova a renúncia à reserva de propriedade mediante a junção da competente certidão do registo automóvel, ónus que o exequente deve cumprir, espelhando-se deste modo a real situação do bem, nomeadamente perante terceiros, não bastando uma mera declaração verbal de renúncia de factos sujeitos a registo.
II- Não há fundamento para o cancelamento oficioso de registo e, por isso, mostra-se correcta a decisão proferida, notificando o exequente para proceder ao cancelamento da reserva de propriedade que incide sobre o veículo e que se mostra registada a favor do exequente.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

B. […] SA, exequente/agravante nos autos de execução para pagamento de quantia certa, com processo sumário, instaurada contra António […] e  Maria […] nomeou à penhora, entre outros bens, o veículo automóvel […]

Após a efectivação de tal penhora e perante a certidão de ónus e encargos incidentes sobre o veículo, o Sr. Juiz de 1ª Instância determinou a notificação da exequente para proceder ao cancelamento da reserva de propriedade que incidia sobre aquele veículo, e que se encontra registada a seu favor.

É deste despacho que a Agravante/exequente interpôs recurso, recebido como de agravo, pedindo a respectiva revogação e substituição por outro que ordene o prosseguimento dos autos, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:

I. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula […] penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo.

2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome da ora recorrente que é necessário que esta requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz a quo competência para proceder a tal notificação à exequente, ora recorrente.

3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824° do Código Civil e 888° do Código de processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.

4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se deve agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119° do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada

5. Tendo o ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da divida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao "domínio" sobre o bem - pois desde o inicio afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119° do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.

6. Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá, que deveria a exequente - titular da reserva de propriedade - ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento.

7. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888° do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5°, nº 1, alínea b) e 29° do Decreto-Lei n° 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7° e I l9° do Código do registo Predial e artigos 408°, 409°, n° 1, 601° e 879°, alínea a), todos do Código Civil.

Conclui, assim, pela procedência do recurso com a consequente revogação do despacho recorrido e pela sua substituição por outro que determine o prosseguimento dos autos.

Os Agravados não apresentaram contra alegações.



II. FACTOS PROVADOS

1. No âmbito de acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo sumário, a Exequente/Agravante nomeou à penhora o veículo automóvel de marca […];

2. Este veículo veio a ser objecto de penhora e a Agravante efectuou o competente registo de tal penhora junto da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa;

3. Na certidão de ónus e encargos respeitante a tal veículo está registada reserva de propriedade a favor da ora Agravante;

4. No dia 14 de Novembro de 2005 o Sr. Juiz de 1ª Instância proferiu o seguinte despacho: “Verifica-se, pois, que sobre o veículo penhorado incide reserva de propriedade.  Assim, e antes de mais, notifique o exequente para juntar aos autos documento comprovativo do cancelamento da aludida reserva”.

5. O Agravante não efectuou o cancelamento da reserva de propriedade.



III. FUNDAMENTAÇÃO

A questão submetida a este Tribunal circunscreve-se apenas a saber se foi ou não feito agravo ao exequente ao decidir-se que a execução não deveria prosseguir sem que o mesmo procedesse ao cancelamento da reserva de propriedade que incide sobre o bem penhorado e que se encontra registada a favor do exequente, com data anterior à do registo da penhora.
 
Como ponto prévio apenas se quer frisar que não se procede à análise da legalidade ou não da constituição da reserva de propriedade a favor do exequente (terceiro em relação ao contrato de compra e venda do veículo), na qualidade de financiador da aquisição do bem (que não o vendedor do mesmo), por não se inserir no âmbito dos poderes de cognição do presente recurso.

Assim, e no que ao presente caso importa analisar, cumpre ter presente que, após pedido de penhora do veículo identificado nos autos, por parte da Exequente/Agravante, o Tribunal ordenou essa mesma penhora e, efectuada a mesma, só mais tarde, com a junção da certidão de ónus e encargos referente ao mesmo veículo é que se constatou que sobre o mesmo incidia, desde data anterior à do registo da penhora, registo de reserva de propriedade a favor da exequente, ora agravante.

A constatação de tal facto implica, desde logo, que se conclua que o veículo automóvel em consideração, embora fisicamente na posse dos executados, e sendo propriedade dos mesmos, está “reservado” à exequente, até ao cumprimento integral da obrigação decorrente do negócio entre ambos celebrado, no caso, o mútuo.  

Esclarecida que se encontra a questão da propriedade do veículo, não faz qualquer sentido determinar o cumprimento do art. 119º do Código do Registo Predial, conforme sugerido pela agravante, uma vez que tal preceito se destina às situações em que tal questão permanece em aberto.

Para que a execução possa prosseguir em casos como aquele que se encontra em apreciação, é necessário que o exequente (proprietário do bem) prescinda da respectiva reserva de propriedade, sendo certo que é sobre o mesmo, enquanto beneficiário de tal reserva, que compete proceder à renúncia e comprovação de tal facto no processo, através de junção da competente certidão do registo automóvel. Trata-se, pois, de um ónus que o exequente deve cumprir.

Acresce que, quer a anterioridade do registo, quer o facto do mesmo incidir a favor do exequente, determina que só o próprio possa desonerar esse mesmo bem da reserva de propriedade em consideração, assumindo a respectiva renúncia em termos registais, de forma a espelhar a real situação do bem, nomeadamente perante terceiros, que só pelo registo se podem defender.

Por outro lado, não basta ao exequente, como é do seu conhecimento pela actividade que exerce, dizer no processo que renuncia à reserva de propriedade, uma vez que quer a inscrição, quer o cancelamento de tal facto se encontram sujeitos a registo que, conforme já acima se deixou expresso, só pelo próprio pode ser efectuado – art. 824º/2 do Código Civil e art. 5º/1/b/f do DL 54/75, de 12 de Fevereiro.

Assim, é necessário que o bem esteja desonerado para que o Tribunal possa ordenar o cumprimento do art. 864º do Código do Processo Civil e a subsequente venda no âmbito da acção executiva – arts. 824º e 888º do CPC.

Entende-se, ainda, dever deixar claro que toda a situação em apreciação foi criada e fomentada pela própria exequente: primeiro ocultando ao Tribunal o facto do bem indicado como sendo dos executados não se encontrar livre; depois, com a sua conduta de não proceder ao cancelamento da reserva que incide sobre o bem e registada a seu favor, entendendo que tal dever incumbe ao Tribunal, quer quanto às diligências de cancelamento, quer quanto aos custos que envolvem tal operação, comportamento esse de duvidosa lealdade processual.

A exequente é uma instituição de prestígio, com larga experiência no mercado e na área dos contratos como aquele que subjaz à presente execução e da vasta jurisprudência que sobre este assunto vem sendo proferida, uma vez que é ela própria que a submete à apreciação dos Tribunais Superiores, sabendo, assim, que a reserva de propriedade não constitui uma garantia real coberta pelos arts. 824º do Código Civil e 888º do Código do Processo Civil, destinados aos direitos reais de garantia e aos demais direitos reais, que não tenham registo anterior ao registo da penhora.

Sendo o registo da reserva de propriedade em causa anterior ao registo da penhora, e constituindo aquela não mais do que uma condição suspensiva aposta ao direito de propriedade dos executados, não há fundamento para o cancelamento oficioso de tal reserva, por parte do Tribunal (neste sentido, entre outros, Ac. da Rel. De Lisboa, de 14.Deze.2004, em www.dgsi.pt/jtrl.9857/2004-7).

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela agravante.

Lisboa, 27 de Junho de 2006

   (Dina Monteiro)
(Luís Espírito Santo)
(Isabel Salgado)