Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12989/15.0T8LSB-A.S1.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
TÍTULOS CAMBIÁRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I Nos termos do art.º 91.º n.º1 do CIRE “a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva”.

II Vencida a obrigação do insolvente, o credor tem o direito de acionar a respectiva garantia, ou seja, a realizar o preenchimento dos títulos cambiários que foram subscritos pelos avalistas, ora Apelantes.

III Os avalistas são devedores cambiários pelo que, sendo a obrigação cambiária de natureza formal e abstracta e, portanto, independentemente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações nela expressas, o signatário fica vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA.


IRELATÓRIO:


AJ, MA, JL, AMM, executados na ação executiva para pagamento de quantia certa sob a forma ordinária que lhes foi movida pelo exequente:

BANCO, SA, todos melhor identificados nos autos, deduziram a presente oposição à execução mediante embargos de executado alegando, em suma, a violação dos pactos de preenchimento das livranças dadas à execução e a indeterminabilidade e inexigibilidade das obrigações cambiárias assumidas.
Concluem pedindo a procedência da oposição à execução, com as legais consequências.

Notificada a exequente da oposição à execução mediante embargos de executado, deduzida pelos executados, a mesma apresentou contestação, reiterando os fundamentos da execução.

Conclui pugnando pela improcedência da oposição.

Decorridos todos os trâmites legais, foi realizado o julgamento e seguidamente proferida sentença que julgou os embargos de executado improcedentes e, em consequência, ordenou o prosseguimento da instância executiva.

Inconformados com a sentença, os Executados interpuseram recurso de revista per saltum para o Supremo Tribunal da Justiça, por entenderem verificados os pressupostos previstos no art.º 678.º do CPC.

O recurso foi admitido e os autos remetidos para o Supremo Tribunal de Justiça.
Contudo, por despacho proferido pelo Exmo Juiz Conselheiro Relator, foi julgado inadmissível o recurso “per saltum”, por não estar verificado o pressuposto constante da alínea c) do n.º3 do art.º 678.º do Código de Processo Civil.
E, assim, foi ordenada no mesmo despacho, a baixa do processo a este Tribunal da Relação, para o conhecimento do recurso como apelação.

Cumpre, pois, apreciar e decidir, em conformidade:

Os Apelantes formularam as seguintes conclusões:
1. Ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 678 do CPC, por estarem preenchidos cumulativamente os respectivos pressupostos, requerem os Recorrentes que o recurso interposto suba directamente para o Supremo Tribunal de Justiça;
2. A Recorrida sendo detentora de duas livranças entregues em branco, respectivamente uma entregue em caução de um contrato de crédito em conta corrente e outra entregue em caução de um contrato de empréstimo – Linha PME INVEST VI sob a forma de abertura de crédito, instaurou a presente execução alegando o incumprimento dos contratos que estavam subjacentes às livranças motivado pela declaração de insolvência da devedora principal;
3. Subjacente às duas livranças, estavam os pactos de preenchimento em que os ora recorrentes foram intervenientes e signatários;
4. Não se conformando, os recorrentes deduziram oposição à execução por considerarem não ter sido respeitado os termos acordados na autorização de preenchimento, designadamente a falta de prova documental da relação subjacente quando era exigível, falta de declaração de resolução dos dois contratos, a manutenção do benefício do prazo e a verificação de abuso de direito quanto ao curto período concedido para pagar;
5. Os recorrentes entendem que a prova documental apresentada pela recorrida e exigível para provar o contrato de crédito em conta corrente era manifestamente insuficiente uma vez que o Tribunal a quo assentou a sua convicção em comunicações por carta do banco recorrido e no depoimento dos trabalhadores da mesma;
6. Acontece que, atento o disposto no Decreto-Lei n.º 32765 de 29/04/1943, considerando que o regime aplicável era o do contrato de mútuo por falta de convenção em contrário ou outro regime aplicável, era essencial que as “condições caucionadas” garantidas pela livrança fossem provadas por escrito particular mediante a apresentação do acordo escrito no qual as partes definiram o conteúdo das obrigações, pressuposto que vai ao encontro do dever de informação e do princípio da confiança em que as partes basearam a vontade de negociar;
7. A omissão do escrito particular originou a indeterminabilidade da “obrigação caucionada” que sem fixação do seu conteúdo acabou por colocar numa situação de indefinição quanto aos termos que foram verdadeiramente acordados, colocando a recorrida numa situação de vantagem ao beneficiar de meras comunicações realizadas para fazer prova de uma relação que não foi apenas de facto;
8. A prova documental do negócio subjacente era essencial para definir o incumprimento invocado, sem a qual o Tribunal a quo estava impedido considerar provado que foi “formalizado um acordo escrito”;
9. Tal ónus incumbia à recorrida provar nos termos do art.º 342º CC e art.º 405 CC;
10. Por conseguinte, face a tal situação, só podia ter julgado nulo o negócio, não podendo a recorrida beneficiar do não cumprimento desse ónus; (Cfr. Art.º 280 do CC)
11. Os Recorrentes entendem que, na qualidade de fiadores, são coobrigados nos termos definidos no art.º 782 do CC;
12. Nessa qualidade, os Recorrentes entendem que não perderam o benefício do prazo uma vez que a recorrida não declarou extintos os contratos por incumprimento; (Cfr. Art.º 782 CC)
13. O Tribunal a quo considerou que a declaração de insolvência da sociedade avalizada, ao determinar o vencimento de todas as obrigações, originou o incumprimento das obrigações caucionadas, tendo as cartas da recorrida a comunicar para pagar as livranças já preenchidas o efeito de rescindir;
14. Sucede que o regime disposto no n.º 1 do art.º 91 do CIRE não opera a extinção dos contratos, originando apenas que as obrigações se vençam automaticamente em relação à insolvente, sendo exigível que a detentora das livranças, após a declaração de insolvência, verificando o não cumprimento, declare resolvidos os contratos por incumprimento e interpele os avalistas para pagar;
15. Ora, a prova da resolução dos contratos que legitimaria o preenchimento das livranças nos termos acordados incumbia à recorrida, nos termos do disposto no art.º 342 do CC, em conjugação com o disposto art.º 432 do CC e art.º 436 do CC;
16. Ao exigir o pagamento aos avalistas com fundamento na verificação da declaração de insolvência e no não pagamento do capital, a recorrida exerce o seu direito excedendo manifestamente os limites impostos pela boa - fé na modalidade de venire contra factum proprium; (Cfr. Art.º 334 CC)
17. Tratando-se de contratos sujeitos ao regime de mútuo em que os coobrigados tiveram intervenção, impunha-se que, antecipadamente, a recorrida declarasse resolvidos os contratos para poder obter a restituição do capital e acrescido;
18. É que sem a extinção do vinculo, os contratos acabaram por se manter em vigor como se a recorrida tivesse reconhecido e aceite que não houve incumprimento;
19. As comunicações realizadas pela recorrida não configuraram a resolução por o próprio conteúdo não traduzir de forma clara e objectiva essa intenção;
20. Na falta de prova do incumprimento dos contratos e da sua extinção por resolução, os avalistas não foram colocados na posição de dever cumprir segundo os termos fixados nos contratos;
21. A recorrida vem reclamar os montantes indicados nas livranças excedendo os limites impostos pela Boa - Fé quanto à sua forma uma vez que o faz impondo um sacrifício excessivo e desproporcionado aos ora recorrentes;
22. Com efeito, nas aludidas cartas enviadas aos avalistas, a recorrida interpela os mesmos sem dar a oportunidade de evitar o preenchimento das mesmas “... informamos que procedemos...”;
23. As comunicações são feitas já com as livranças preenchidas, impedindo a eventual negociação, obrigando os avalistas a aceitarem os montantes nelas indicados;
24. Além disso, a recorrida não concedeu sequer um prazo razoável aos avalistas para regularizar;
25. Tendo por referência a data de envio das cartas, a prazo verificado de sete dias ou menos afigura-se não ser suficiente e razoável para poder pagar €290.246,77 e €136.966,35, valores esses que, por já estarem inscritos nas livranças, não podiam sequer ser negociados;
26. Em termos análogos, no âmbito do regime do mútuo, o prazo concedido é de trinta dias; (Cfr. Art.º 1148 do CC)
27. Existe assim um sacrifício excessivo que afecta o equilíbrio contratual e a confiança investida;
28. O Tribunal a quo prescindiu de aceitar esse pressuposto, o que lhe estava vedado por razões de equilíbrio e expectativa assente na confiança contratual, situação que parece censurável à luz dos ditames da boa - fé contratual (Art.º 405 do CC e 334 CC).
29. Pela falta de razoabilidade, não podia ser exigível aos Recorrentes o pagamento das livranças que foram preenchidas sem respeitar a expectativa e confiança contratual depositada pelas partes.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., Exmos. Senhores Juízes Conselheiros, deve ser dado provimento a este recurso, apelando-se assim à razão na procura de uma verdadeira e merecida Justiça.

A Exequente, ora Apelada, veio apresentar contra alegações defendendo a improcedência do recurso e consequente confirmação da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar:

IIOS FACTOS

Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1. O Banco, SA resultou da alteração da denominação de BPI – SGPS, S.A., que, por força da escritura pública lavrada em 19 de Dezembro de 2002, no 4º Cartório Notarial do Porto, incorporou por fusão o Banco SA, o qual já havia resultado da alteração da denominação do Banco F, SA, que por força da escritura pública lavrada em 22 de Maio de 1998, no 4º. Cartório Notarial do Porto, havia integrado por fusão o Banco Borges & Irmão, S.A. e o Banco Fonsecas & Burnay, S.A.

2. O exequente Banco, SA, Sociedade Aberta intentou a ação executiva a que coube o n.º 12989/15.0T8LSB contra os executados AMM, AJ, JL e MA, ora embargantes, apresentando como título executivo duas livranças onde se inscreve o seguinte:
a) no seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança ao Banco, SA ou à sua ordem, a quantia de cento e trinta e seis mil, novecentos e sessenta e seis euros e trinta e cinco cêntimos”, a “importância (em euros)” de 136.966,35 €, com data de “emissão” de 2014-09-19 e de “vencimento” a 2014-10-01 (doc. fls. 33 dos autos de execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido);
b) no seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança ao Banco, SA ou à sua ordem, a quantia de duzentos e noventa mil, duzentos e quarenta e seis euros e setenta e sete cêntimos”, a “importância (em euros)” de 290.246,77 €, com data de “emissão” de 2006-08-28 e de “vencimento” a 2014-10-01 (doc. fls. 34 dos autos de execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido);

3. As livranças referidas em 2. estão subscritas pela sociedade Eco, SA. no local destinado à assinatura dos subscritores (doc. fls. 33 e 34 dos autos de execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
4. As livranças referidas em 2. estão assinadas pelos executados/embargantes nos respetivos versos e sob os dizeres escritos “Bom por aval à firma subscritora” (doc. fls. 33 e 34 dos autos de execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
5. Na data de 26.09.1995 foi formalizado um acordo escrito denominado de “Contrato de Crédito em Conta Corrente” pelo montante de Esc. 30.000.000$00 (correspondente a € 149.639,37), celebrado em 26.09.1995 entre o Banco exequente
(então Banco Fonsecas & Burnay) e a empresa Eco, SA. (doc. n.º 3, junto com o requerimento executivo, cujo teor aqui
se dá por reproduzido).
6. Subjacente à livrança dada à execução no valor de € 136.966,35 está o acordo escrito denominado de “Contrato de Empréstimo – Linha “PME INVESTE VI”, celebrado em 20.09.2010 entre o Banco exequente e a sociedade Eco, SA., através do qual o exequente emprestou àquela sociedade, sob a forma de abertura de crédito, o montante global 375.000,00 € (doc. n.º 7, junto com o requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
7. Os executados/embargantes subscreveram o acordo escrito referido em 6. na qualidade de Avalistas.
8. O acordo escrito referido em 6. foi objeto de uma Adenda em 20.02.2012, também subscrita pelos executados/embargantes (doc. n.º 9, junto com o requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
9. A livrança dada à execução no valor de € 136.966,35 foi entregue em branco ao Banco aqui embargado em caução das responsabilidades emergente do acordo escrito referido em 6..
10. O exequente ficou autorizado pelos executados/embargantes a preencher a livrança dada à execução no valor de € 136.966,35, fixando-lhe a data de emissão e do vencimento, o local de pagamento e indicando, como montante, tudo quanto constitua crédito do Banco, incluindo encargos, logo que o contrato fosse rescindido ao abrigo da Cláusula Décima Terceira.
11. Por sentença proferida em 1.10.2014 foi declarada a insolvência da sociedade Eco, SA., no Processo n.º 161/14.1T8VFX que corre termos na Comarca de Lisboa Norte – V.F. de Vira – Instância Central – Secção de Comércio – J4.
12. A exequente dirigiu a cada um dos executados/embargantes, e estes receberam, uma carta registada com aviso de receção datada de 19.12.2014, através da qual lhes comunica que, tendo-se verificado a declaração de insolvência da empresa Eco, SA. em 01.10.2014, e não tendo sido pagas ao Banco as importâncias a que aquela se obrigou decorrentes do empréstimo concedido, por contrato datado de 26.09.1995 e posteriores aditamentos/
alterações, procedeu ao preenchimento da livrança dada de caução e por eles avalizada, nela incluindo o capital em dívida e respetivos encargos, tudo no valor global de € 290.246,77, tendo fixado o seu vencimento para o dia 01.10.2014, interpelando-os para proceder ao pagamento da referida importância, acrescida dos juros de mora, no montante total de € 293.231,79, concedendo-lhe para o efeito prazo até ao dia 29.12.2014, sob pena de, não sendo paga até à data indicada, o processo ser encaminhado para tribunal, com vista à cobrança judicial.
13. A exequente dirigiu a cada um dos executados/embargantes, e estes receberam, uma carta registada com aviso de receção datada de 19.12.2014, através da qual lhes comunica que, tendo-se verificado a declaração de insolvência da sociedade Eco, SA. em 01.10.2014, e não tendo sido pagas ao Banco as importâncias a que aquela se obrigou decorrentes do contrato de empréstimo LINHA CRED PME INVESTE VI datado de 20.09.2010 e posterior adenda, procedeu ao preenchimento da livrança dada de caução e por eles avalizada, nela incluindo o capital em dívida deduzido do pagamento feito pela Lis, SA., e acrescido dos respetivos encargos, tudo no valor global de € 136.966,35, tendo fixado o seu vencimento para o dia 01.10.2014.
14. Os executados/embargantes AJ, JL e MA faziam parte do Conselho de Administração da sociedade Eco, SA
S.A..
15. O acordo escrito referido em 5. foi objeto de três alterações - em 10.11.2006, em 01.07.2009 e em 14.07.2010, respeitantes nomeadamente ao aumento do limite de crédito que passou para € 350.000,00, à indexação de taxas, ao prazo, à taxa de juro e às comissões de renovação e imobilização.
16. A livrança dada à execução no valor de € 290.246,77 foi entregue em branco ao Banco aqui embargado em caução do acordo escrito referido em 5., alterado em 10.11.2006. no que respeita, além do mais, ao aumento do limite de crédito para € 350.000,00, acompanhada do respetivo Pacto de Preenchimento datado de 28.08.2006, assinado pelos executados/embargantes.
17. O exequente ficou autorizado pelos executados/embargantes a preencher a livrança dada à execução no valor de € 290.246,77 fixando-lhe o vencimento e indicando, como montante, tudo quanto constitua crédito do Banco, logo que houvesse incumprimento de qualquer das obrigações constantes do respetivo acordo escrito.
18. O Pacto de Preenchimento tem data anterior à do aumento de limite de crédito para € 350.000,00, porquanto o mesmo decorreu de negociações para esse efeito, e cujas condições para a concretização do aditamento se verificaram e permitiram a alteração ao Contrato de Crédito em Conta Corrente celebrado em 26.09.1995.
19. As negociações encetadas com vista, entre outras, ao aumento de limite de crédito para € 350.000,00 contemplaram a entrega de nova livrança acompanhada do respetivo Pacto de Preenchimento.
20. A data que consta do Pacto de Preenchimento respeita à data do registo da caução/livrança – 28.08.2006, ou seja, data da entrega ao Banco exequente/embargado da nova livrança para formalização da alteração ao Contrato relativa, entre outras, ao aumento de limite de crédito para € 350.000,00 de 10.11.2006.

Mais refere a 1.ª instância que “não se provaram quaisquer factos contrários aos supra enunciados ou quaisquer outros com relevância para a decisão da causa”.

IIIO DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, as questões a apreciar são as seguintes:

1Questão da insuficiência da prova apresentada para comprovar os contratos de crédito em conta corrente subjacentes à emissão das livranças e nulidade dos mesmos;
2Questão da exigibilidade do crédito reclamado perante os avalistas signatários do pacto de preenchimento após a declaração de insolvência da devedora principal.
3Preenchimento abusivo das livranças e má-fé.


1 Os Apelantes suscitam como primeira questão aquela que se prende com” a prova documental exigível quanto à forma que devia ter revestido o crédito em conta corrente e suas alterações”, defendendo que não terá sido feita prova documental suficiente da celebração do contrato de crédito de conta corrente. Mais alegam que os documentos juntos pela exequente não consubstanciam um “acordo escrito” que traduza as relações entre o banco e o seu cliente, mas tão só uma informação quanto à abertura de um crédito em conta corrente em condições específicas. Mais adiante, os Apelantes reconhecem que “não se exigia que o contrato fosse celebrado por escrito, mas exigia-se sim que o mesmo fosse provado por documento escrito”. Contraditoriamente, os Apelantes dizem logo a seguir que “a forma escrita exigida para este tipo de contrato constituía uma formalidade ad substantiam, que não pode ser substituída por qualquer outra”. E acrescentam que “ a falta de junção do contrato outorgado pelas partes originou a insuficiência de elementos para a determinabilidade do conteúdo da obrigação, designadamente para saber que “obrigação caucionada” não foi cumprida. Mais alega que “ a exequente não juntou prova documental suficiente que comprovasse o conteúdo ou sequer saldo final que resultou da liquidação da conta corrente” E finaliza quanto a esta questão, dizendo que “ a convicção do Tribunal a quo assentou sobre um negócio nulo seja por falta de forma escrita exigível ou pela indeterminabilidade da obrigação causada pela falta de especificação da obrigação caucionada que devia estar definida no documento omisso.”

Do teor das alegações dos Apelantes, parece resultar que os mesmos põem em causa a decisão da matéria de facto que dá como provada a celebração dos contratos mencionados nos pontos 5 e 6 da matéria provada. No seu entender, não foi feita prova suficiente da celebração de tais contratos. Por conseguinte, não deveria considerar-se “provada” tal matéria, é o que se depreende de tal argumentação. Mas tal impugnação da matéria provada não foi feita, por absoluto incumprimento do ónus a que os Apelantes estavam sujeitos por força do art.º 640.º do Código de Processo Cível. Mas por outro lado, nunca poderia ser intenção dos Apelantes impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pois interpuseram recurso de revista da sentença de 1.ª instância, entendendo verificar-se os pressupostos do art.º 678.º do CPC (recurso per saltum). Ora, como resulta da alínea c) do n.º1 do Art.º 678.º do CPC, é pressuposto da interposição do recurso “per saltum” que as partes “suscitem apenas questões de direito”. E foi precisamente com base no facto de o Exmo Senhor Conselheiro Relator ter entendido que no recurso não se suscitavam apenas questões de direito, mas também questões de facto, que o recurso por rejeitado no STJ.

E aqui no Tribunal da Relação não pode ser conhecida a impugnação da matéria de facto, pois que o art.º 640.º do CPC comina com a rejeição o recurso sobre a impugnação da matéria de facto caso o recorrente não especifique, designadamente, “os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados”.

Assim, não se admite o recurso sobre a matéria de facto.

Os Apelantes vêm agora em sede de alegações de recurso invocar a nulidade dos contratos por falta de forma escrita.

Ora, esta questão não foi suscitada nos embargos de executado. Os embargos foram deduzidos com base nos seguintes fundamentos:
Preenchimento abusivo das livranças dadas à execução
Inexigibilidade da dívida
Nulidade da garantia - livrança caução- por indeterminabilidade do objecto

Por conseguinte, na decisão recorrida também não foi abordada tal questão da nulidade dos contratos. Desta só consta uma referência à questão da nulidade da garantia, para concluir que a mesma não se verifica pois “embora o montante da obrigação e a data do seu eventual vencimento não estivesse determinado à data em que as livranças foram assinadas e entregues ao exequente, a obrigação era determinável, nos termos do pacto de preenchimento, pelo que não se verifica qualquer nulidade, designadamente a prevista no art.º 280.º n.º1 do Códi. Civil (indeterminabilidade do objecto da obrigação)”.

Ora, como é jurisprudência pacífica, “o recurso jurisdicional visa modificar a decisão proferida e não criar soluções sobre matéria nova, estando vedado aos tribunais superiores apreciar questões não colocadas nas instâncias inferiores, excepto nas situações em que a lei expressamente determine o contrário, ou naquelas em que a matéria em causa seja de conhecimento oficioso”[1].

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-05-209[2]:
“(…) sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem”.

Em tese, este seria um fundamento para que este Tribunal não apreciasse a questão da nulidade dos contratos com base nos quais foram preenchidas as livranças.

Contudo, sendo a nulidade uma matéria de conhecimento oficioso sempre se poderá colocar a questão de saber se este Tribunal, ainda assim, tratando-se de questão nova, deverá pronunciar-se sobre a mesma.

Cremos que, no caso concreto, não o poderá fazer, visto que para se pronunciar sobre a invocada falta de observância da forma escrita, o Tribunal teria de alterar a decisão sobre a matéria de facto provada. Ora, como supra referido, por falta de observância do ónus a que estavam sujeitos os apelantes, o recurso sobre a matéria de facto teve de ser rejeitado.

Fica, assim, prejudicada a apreciação da questão da nulidade dos contratos por falta de prova da observância da forma escrita, pois que, da matéria provada, resulta precisamente o contrário, ou seja, a existência dos contratos escritos.

2 Colocam os Apelantes a questão de saber se estaria a exequente, portadora das duas livranças, dispensada de comunicar a resolução do “contrato de crédito de conta corrente” e do “contrato de empréstimo linha PME INVEST VI”.

O tribunal a quo considerou que os efeitos da declaração de insolvência, nos termos do disposto no art.º 91.º n.º1 do CIRE, operou a resolução automática dos contratos, bastando à exequente a comunicação aos avalistas da decisão judicial e exigir o montante apurado.

Os Apelantes entendem que a Exequente teria de previamente lhes comunicar a “declaração de extinção” dos contratos.
Quid juris?

Diz o art.º 91.º n.º1 do CIRE que “ a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva”.

Portanto, vencida que está a obrigação do insolvente, o credor tem o direito de acionar a respectiva garantia, ou seja, o preenchimento dos títulos cambiários que foram subscritos pelos avalistas, ora Apelantes. E os avalistas são devedores cambiários.
Repare-se que as letras e livranças são sujeitas a uma disciplina jurídica especial. Esta especialidade sintetiza-se nos seguintes princípios:
a) Incorporação da obrigação no título (a obrigação e o título constituem uma unidade);
b) Literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título)
c) Abstracção da obrigação ( a letra é independente da “causa debendi”)
d)Independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título
e) Autonomia do direito do portador[3].

Geralmente quem assina uma livrança e assume a respectiva obrigação cambiária, não o faz senão porque está já vinculado por efeito duma relação jurídica anterior. Esta é a obrigação causal ou subjacente, também chamada contrato originário ou relação jurídica fundamental. A relação subjacente tanto pode determinar a emissão duma letra, como o endosso ou o aval. Note-se, no entanto, que tudo se passa como se tal obrigação não existisse, tudo se passa como se a obrigação cambiária fosse uma obrigação sem causa. A obrigação cambiária é uma obrigação abstracta.[4]

A obrigação cambiária é de natureza formal e abstracta e, portanto, independentemente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações nela expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título.[5]

É, pois, este o regime jurídico aplicável ao caso em apreço, ou seja o regime jurídico aplicável ao aval e não o regime jurídico da fiança. Tal como foi referido e bem na sentença recorrida, apesar das semelhanças entre o aval e a fiança, “existem diferenças relevantes entre ambos, exactamente decorrentes da natureza cambiária do primeiro.” E especifica algumas dessas diferenças:
“Assim, por exemplo, a fiança tem de ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal (art. 628º do Cód. Civil), enquanto o aval pode ser em branco ou incompleto, resultando da mera assinatura do dador aposta em certo lugar do título (art. 31º da L.U.L.L.), o fiador goza, em regra, do benefício da excussão (art. 638º do Cód. Civil), enquanto o avalista responde, com os outros firmantes do título, solidária e subsidiariamente, perante o portador (art. 47º da L.U.L.L.), o fiador pode contratar especiais condições ou prazo de validade da fiança (art. 631º do Cód. Civil), o que não acontece no aval, e pode requerer a sua liberação em determinados casos legalmente previstos (art. 648º do Cód. Civil), sem que o possa fazer o dador de aval.”

Fica, pois, prejudicada a argumentação dos Apelantes no tocante à aplicabilidade ao caso dos preceitos legais relativos à fiança.

Argumentam ainda os avalistas,/ Apelantes no sentido de que o regime do art.º 91.ºn.º1 do CIRE “não opera a extinção dos contratos, originando apenas que as obrigações se vençam, automaticamente, em relação à insolvente, sendo exigível que a detentora das livranças após a declaração de insolvência, verificando o não cumprimento, declare resolvidos os contratos por incumprimento e interpele os avalistas para pagar”.

Não concordamos com tal argumentação.

Vencida a obrigação, a detentora das livranças tem todo o direito de obter o pagamento da mesma, acionando tais livranças, sendo os respectivos avalistas responsáveis como obrigados cambiários, e por isso, dada a natureza abstracta dessa obrigação, não carece de qualquer declaração de resolução dos contratos subjacentes à subscrição dos títulos.

Tal como se refere na sentença recorrida e bem:
“(…) as obrigações emergentes dos negócios subjacentes à emissão das livranças em branco têm-se por vencidas por força da declaração de insolvência da subscritora (art. 91º, n.º 1, do CIRE) como consequência da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas (art. 3º, n.º 1, do CIRE), pelo que o exequente procedeu ao preenchimento das livranças, fazendo corresponder a data de vencimento com a data da declaração de insolvência da sociedade subscritora.
De resto, para o exercício do direito de ação do portador é indiferente saber se a livrança foi ou não apresentada a pagamento à subscritora declarada insolvente, podendo a obrigação cambiária ser logo exigida tanto daquela como do respetivo avalista, obrigado que se encontra à semelhança do próprio avalizado (art.s 32º, § 1 e 77º, § 3 da LULL), sendo suficiente a apresentação da sentença declaratória da insolvência (art. 44º, § 6 da LULL).
E na hipótese de o vencimento da obrigação ser ocasionado pela declaração de insolvência da subscritora da livrança, e como o avalista responde solidariamente (art.s 47º, § 1 e 77º da LULL), nada impede que o portador demande separadamente aqueles coobrigados ( art.º 44.º §6.º da LULL)”.

São improcedentes, por conseguinte, as conclusões dos Apelantes relativamente a esta questão.

3 Por fim, entendem os avalistas e ora Apelantes que “ a exequente exerceu o seu direito de forma que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé tendo em conta a razoabilidade e a proporcionalidade do sacrifício face ao resultado pretendido” E isto porque os avalistas foram confrontados com a obrigação de pagar duas livranças no valor global de € 431.606,77, em apenas dez dias.

Também aqui, não podemos sufragar o entendimento dos Apelantes que não podem dizer que foram confrontados, de surpresa, com tal quantia para pagar, em dez dias.

Na, verdade, como decorre da factualidade apurada, as livranças dadas à execução foram subscritas e entregues ao Banco exequente vários anos antes, mais concretamente, uma delas em 2006 e a outra em 2010. Os avalistas que eram membros do Conselho de Administração da sociedade Ecotécnica –Elevação e Tratamento de Águas e Esgotos, sociedade subscritora, não podiam deixar de conhecer a situação que iria levar à declaração de insolvência, e, por consequência, necessariamente, muito antes dessa declaração, teriam de estar cientes das responsabilidades que sobre si impendiam, por força da qualidade de avalistas que haviam assumido.

Conforme estipula o art.º 334.º do CC, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa- fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A apreciação sobre a verificação do abuso de direito depende da avaliação das várias circunstâncias de cada caso concreto. Analisando o caso em apreço não nos parece que o mesmo se enquadre na previsão legal.

Pelo contrário, parece-nos claro que o preenchimento das livranças e interpelação dos avalistas para procederem ao respectivo pagamento constitui o exercício legítimo do direito da Exequente e nunca um exercício abusivo.

Por outro lado, não foram alegados nem provados quaisquer factos que permitam concluir pelo preenchimento abusivo dos títulos de crédito. Ora, nos termos do art.º 342.º do Código Civil, competia aos ora Apelantes o ónus de tal alegação e prova.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso a este propósito.


IIIDECISÃO

Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes.



Lisboa, 25 de Janeiro de 2018



Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal



[1]Vide a título exemplificativo, Acórdão da Relação de Lisboa de 23-02-2017, disponível em www.dgsi.pt, e jurisprudência ali citada.
[2]Processo 160/09.5YFLSB, disponível em www.dgsi.pt
[3]Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 5.ª edição, p.115-116-
[4]Adel Delgado, ob.cit., p.117.
[5]Idem.