Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
25.459/15.8T8SNT-A.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: SUPRIMENTOS
CONTABILIDADE DA SOCIEDADE COMERCIAL
DISSIPAÇÃO DE ACTIVOS DA SOCIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE E TOTALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO DE AMPLIAÇÃO
Sumário: I - A inscrição na contabilidade de uma sociedade comercial, como créditos de sócios a título de suprimentos, de capitais abonados à sociedade por terceiros não sócios, configura uma ficção contabilística em fraude à lei, que afasta a presunção de veracidade e de boa-fé de que gozam a contabilidade ou escrita de uma sociedade, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal (art.º 75.º, n.º 1, da LGT).

II - A constituição fictícia de créditos de sócios, destinada a dissipar activos da sociedade a favor de terceiros, seus administradores de facto, preenche as condutas tipificadas no artigo 186.º, n.º 2, alíneas b), d) e f), do CIRE

III - As normas dos artigos 186º, n.º 2 e 189º, n.º 2, al. c) do CIRE não violam os princípios da proporcionalidade e da proibição de indefesa, consagrados nos artigos 18º, n.º 2 e 20.º, n.º 4, da CRP, não enfermando, por isso, de inconstitucionalidade material.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório:

11. A sociedade D..., Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais em 04-05-2016, transitada em julgado em 06-06-2016.
Foi realizada assembleia de credores de apreciação do relatório aludida no artigo 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (Doravante CIRE).
A Credora M…, S.A., veio requerer a abertura de Incidente Pleno de Qualificação da Insolvência e a sua qualificação como culposa, propondo que sejam afectados pela qualificação da insolvência as sócias-gerentes CARMEN… e CARLA … e os seus pais, ex-sócios e gerentes de facto da Devedora, ILDA… e MANUEL.
Alega, em síntese, que entre 10-11-20012 e 10-11-2015, sendo esta a data do início do processo de insolvência, a sociedade Devedora efectuou uma transacção em litígio judicial em que era Autora, tendo actuado em seu nome e representação a requerida Ilda .., com base numa cessão de créditos da devedora à referida Ilda…que não teve qualquer contrapartida para a Devedora, actuando unicamente com o intuito de fazerem desaparecer parte substancial do património da Insolvente, transferindo-o para a esfera patrimonial da mãe das sócias-gerentes, desse modo se subtraindo ao pagamento à Credora M… e beneficiando a referida Ilda …, que continua a receber as prestações a que o Réu em tal acção se obrigou a pagar. Para tanto, as requeridas falsificaram a contabilidade da Insolvente, e falsificaram um contrato de cessão de créditos através do qual a Insolvente cedeu à mãe das sócias-gerentes (ex-gerente da Insolvente) um crédito litigioso sobre terceiros, que fizeram seu (das gerentes e seus pais), crédito que devia integrar a massa insolvente.
Conclui, requerendo:
A) A abertura de incidente de qualificação de insolvência, para qualificação da insolvência como culposa, sendo afectadas as seguintes pessoas:
a. A ora Insolvente;
b. A sócia-gerente da Insolvente Carmen…;
c. A sócia-gerente da Insolvente Carla…;
d. A ex-gerente da Insolvente, e mãe das sócias-gerentes, Ilda…;
e. O ex-gerente da Insolvente, e pai das sócias-gerentes, Manuel ….
B) A condenação solidária das duas sócias-gerentes (Carmen… e Carla …) e dos dois ex-gerentes e pais das atuais sócias-gerentes Ilda... e Manuel…) no pagamento aos credores dos créditos reconhecidos nos autos, até ao limite dos seus patrimónios, nos termos do art.º 189º, nº 2, al. e) e nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a saber:
a. Instituto da Segurança Social IP - €1.209,63:
b. M…, SA - €363.463,80.
C) Subsidiariamente a este último pedido, caso não seja possível fixar o valor em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, serem os supra referidos afectados, condenados nos mesmos termos, mas em montante a liquidar em execução de sentença, sendo desde já fixados os critérios a utilizar para a sua quantificação.
D) Mais, deve ser decretada a inibição para o exercício do comércio e a inibição para a administração de patrimónios alheios dos afectados, bem como ser decretada a inibição para ocupar qualquer cargo de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo prazo máximo, que é de 10 anos, procedendo-se ao competente registo, tudo com as legais consequências.
E) Mais se requer, a notificação do Digno Magistrado do Ministério Público junto a este Tribunal, para os competentes efeitos legais, em particular, para efeitos de defesa da legalidade e combate ao crime.
1.2. Por despacho de 05/09/2016 (ref.ª Citius 101463054), foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
1.3. O Exmo. Senhor Administrador da Insolvência (doravante AI) emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, propondo que sejam por esta afectados, as gerentes de direito CARMEN … e CARLA … e os gerentes de facto ILDA … e MANUEL ...
Mais requereu: “que as duas sócias e gerentes e os dois ex-gerentes sejam condenados solidariamente no pagamento aos credores dos créditos reconhecidos nos autos, até ao limite dos seus patrimónios, nos termos do Art.º 189º, nº 2, al. e) e nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a saber:
a. Instituto da Segurança Social IP - €1.209,63 (mil duzentos e nove euros e sessenta e três cêntimos);
b. Marcascais – Sociedade Concessionária da Marina de Cascais, SA - € 363.463,80 (trezentos e sessenta e três mil, quatrocentos e sessenta e três euros e oitenta cêntimos).
Que os afectados pela qualificação da insolvência sejam condenados a pagar a integralidade dos créditos sobre a massa, de acordo com o regime do Art.º 189º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que constitui um caso especial de solidariedade na dívida, fazendo com que os afectados fiquem solidariamente devedores de todos os créditos sobre a massa, num mecanismo semelhante a uma desconsideração de personalidade jurídica.
Que os afectados pela qualificação da insolvência, caso tenham recebido alguma prestação no âmbito do acordo de transacção celebrado no processo …/… sejam condenados a devolvê-lo à presente massa insolvente.
Subsidiariamente,
Que os referidos afectados sejam condenados, nos mesmos termos, mas em montante a liquidar em execução de sentença, caso não seja possível fixar o valor em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, mas sendo desde já fixados os critérios a utilizar para a sua quantificação.
(…) que seja decretada a inibição para o exercício do comércio e a inibição para a administração de patrimónios alheios, bem como ser decretada a inibição para ocupar qualquer cargo de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo prazo máximo, que é de 10 anos, procedendo-se ao competente registo.
1.4. O Ministério Público emitiu parecer no mesmo sentido que o AI, referindo terem sido violadas as alíneas b), d) e f) do nº 2 do art.º 186º do CIRE.
1.5. Foi ordenada a notificação da Insolvente e a citação dos requeridos indicados como propostos afectados pela qualificação da insolvência como culposa, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 188º, n.º 6, do CIRE.

1.6. Os Requeridos deduziram oposição na qual argumentam, em substância: ao contrário do alegado, a Requerida ILDA …foi sócia da sociedade Insolvente, realizou suprimentos para fazer face ao custo das obras de adaptação das lojas e aquisição de equipamento e mobiliário necessários ao início e desenvolvimento da actividade de restauração da Insolvente, nas lojas da Marina de Cascais, atendendo a que a Sociedade estava a iniciar a sua actividade e ainda não tinha receitas; sempre constou da contabilidade da Insolvente o registo de suprimentos a favor da referida sócia, designadamente nos anos de 2011 e 2012;  os documentos contabilísticos estão elaborados correctamente, de acordo com as boas técnicas contabilísticas c imposições legais; a cessão do crédito detido pela Insolvente a favor da requerida Ilda … destinou-se a evitar custos inerentes à pendência do processo n.º …/… daqueles autos, optando-se, em alternativa à desistência da referida acção, pela cedência do crédito à Requerida ILDA …, para que esta pudesse prosseguir os seus termos, liquidando-se desse modo, um crédito substancial que esta detinha sobre a Insolvente (€ 277.211,00); e que na data da celebração do contrato de cessão de créditos (2 de Janeiro de 2013) a sociedade Insolvente não tinha quaisquer obrigações vencidas não pagas, com excepção do crédito reclamado pela requerente M…, S.A., pelo que não se encontrava em qualquer situação que a obrigasse a apresentar-se à insolvência.
Termos em que concluem que o contrato de cessão de créditos em causa não foi o que criou, nem sequer agravou, a situação da Insolvente, que muito menos se pode considerar que a insolvência é culposa e resultou de qualquer actuação dolosa ou com culpa grave dos requeridos, pugnando, a final, pela qualificação como furtuita da insolvência.
1.7. Em 10/03/2017 foi proferido despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova (Ref.ª Citius 105259734).
1.8. Foi realizada audiência de discussão e julgamento com inteiro respeito pelo legal formalismo, conforme resulta das respectivas atas.

1.9. Na sequência, em 02/03/2018 (ref.ª Citius 110779789), foi proferida a sentença que julgou procedente o incidente, no seguintes termos:
«A) Qualifico como culposa a insolvência de D…, Lda., e em consequência:
B) Declaro afectados pela qualificação: as gerentes de direito CARMEM … e CARLA … e os gerentes de facto ILDA … e MANUEL…
C) Declaro CARMEM …, CARLA…, ILDA… e MANUEL…, proibidos, pelo período de cinco anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
D) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por CARMEM…, CARLA…, ILDA… e MANUEL…;
E) Condeno CARMEM…, CARLA…, ILDA… e MANUEL… a indemnizar os credores da sociedade D…, LDA. no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, a efectuar em liquidação de sentença.
F) Quanto ao mais vão os requeridos absolvidos, por não se tratar matéria do âmbito do presente incidente de qualificação da insolvência.
*
Custas do incidente pelos afectados pela qualificação – art. 303º do CIRE.
Valor: o dos autos principais».

1.10. Não se conformando com esta decisão, dela apelaram os Requeridos formulando, no final das suas alegações, as seguintes Conclusões, que se reproduzem:
«1ª – O Tribunal não apreciou corretamente a prova produzida;
2ª - Os factos inseridos no Facto Provado 1. foram incorretamente fixados;
3ª - Tendo em consideração a escritura pública de constituição de sociedade junta como Doc. n.º 1 com a oposição e a certidão da matrícula da sociedade completa junta como Doc. n.º 2 com a oposição resulta inquestionavelmente provado que a Sociedade Insolvente foi constituída em 14/06/1999, tendo desde logo como sócios iniciais Ilda…, Manuel…, Carla… e Carmen.;
4ª - Os referidos documentos são autênticos e não foram arguidos de falsos ou sequer impugnados;
5ª - Em virtude dos referidos documentos com força probatória plena os Factos Provados 1. e 1.1 devem ser alterados, passando em conformidade a ter a seguinte redação:
“1. A insolvente foi constituída em 14-06-1999, com a designação Ilda …, Lda. 1.1. Tinha como sócios:
1.1.1. ILDA..;
1.1.2. MANUEL…;
1.1.3. CARMEN …; e
1.1.4. CARLA….
1.2. Como gerentes:
1.2.9. ILDA…;
1.2.10. MANUEL…;
1.2.11. CARMEN…; e
1.2.12. CARLA…”
6ª - Contrariamente ao que consta do Facto Provado 7., mostram-se registados nos documentos contabilísticos da sociedade Insolvente suprimentos efetuados pelos sócios, designadamente pela sócia Ilda…;
7ª – Tal registo figura nomeadamente nos Balancetes Gerais da Sociedade dos anos de 2011 e 2012, mostrando-se inscritos na conta 25/253211 os suprimentos efetuados pela Requerida Ilda … no montante de € 277.211,00, os quais foram juntos como Docs n.ºs 3 e 4 com a Oposição e não foram arguidos de falsos nem impugnados;
8ª - Igualmente encontram-se registados nos Balanços (modelo para ME – Micro- Empresa) referentes àqueles anos juntos como Docs. n.os 5 e 6 com a Oposição e, bem assim, na Prestação de Contas Individual (IES) desses mesmos anos juntos pela Requerente do Incidente como Docs n.os 6 e 7 e, como Docs. n.os 1 e 2 com o Parecer do Senhor Administrador;
9ª - Assim, contrariamente ao que consta do Facto em apreço e da respectiva Motivação, os suprimentos dos sócios, nomeadamente da Requerida Ilda, mostram-se registados na contabilidade da Devedora, estando inscritos nos documentos contabilísticos, incluindo aqueles que foram juntos pelo Senhor Administrador;
10ª – O que de resto foi plenamente confirmado pela prova testemunhal produzida, nomeadamente pelo último TOC da sociedade, a testemunha Sérgio … (aos minutos 00:03:26 a 00:04:46 do depoimento prestado por esta testemunha na sessão de julgamento de 16-05-2017) e pela Técnica de Contabilidade que inicialmente acompanhou e elaborou a contabilidade da Insolvente, a testemunha Maria … (aos minutos 00:02:04 a 00:03:33 do respetivo depoimento prestado na sessão de julgamento de 16-05-2007);
11ª – Em face da prova documental e testemunhal, o Facto Provado 7. deve ser alterado, passando a ter a seguinte redação: - Nas contas da Insolvente mostram-se inscritos os suprimentos feitos pelos sócios, designadamente pela sócia Ilda …, no montante de € 277.211,00;
12ª – A prova produzida aponta claramente no sentido de que a referida sócia, a Requerida Ilda … efetuou suprimentos à sociedade;
13ª – Desde logo, os registos contabilísticos da sociedade gozam da presunção de verdade e de boa fé;
14ª – Para além disso, os documentos (extratos bancários e cópias de transferências) juntos com o requerimento dos Requeridos com a referência Citius 10022990 (sendo que os originais desses documentos foram juntos na Sessão de Julgamento realizada no dia 22-06-2017, por a cópia de alguns desses documentos junta eletronicamente se mostrar ilegível) e o Ofício da Autoridade Tributária, junto aos autos com a referência Citius 10939781, evidenciam claramente a realização de tais suprimentos;
15ª – O que foi plenamente comprovado pelo depoimento da Técnica de Contabilidade Maria … (aos minutos 00:03:08 a 00:07:35 do depoimento prestado na sessão de julgamento de 16-05-2017);
16ª – Em face da prova documental e testemunhal produzida deve dar-se por provado o seguinte Facto: A sócia Ilda … efetuou suprimentos à sociedade;
17ª – A prova produzida de modo algum permite dar por provado o Facto n.º8, ou seja, que as Requeridas Ilda e Carmen “agiram com o propósito de retirar da insolvente o seu único ativo”;
18ª – Nomeadamente não é isso que se pode retirar dos depoimentos prestados pelos Requeridos Carmen (aos minutos 00:15:59 a 00:16:42 e 00:01:59 a 00:02:29 da sessão de julgamento de 09-05-2017), Carla (aos minutos 00:09:38 a 00:09:56 da sessão de julgamento de 09-05-2017), Ilda (aos minutos 00:05:04 a 00:06:07 da sessão de julgamento de 09-05-2017) e Manuel (aos minutos 00:14:00 a 00:15:45 da sessão de julgamento de 09-05-2017), nos quais o Tribunal assenta a sua convicção para dar por provado o Facto 8.,
19ª – Consequentemente, por falta de prova que o sustente, o Facto Provado 8. Deve ser eliminado;
20ª – A decisão recorrida revela desacerto na subsunção dos factos e na aplicação do direito;
21ª – Na Sentença recorrida não são identificadas as causas da insolvência da Devedora nem especificado o período temporal em que tal situação se verificou;
22ª - Em face dessa omissão, têm que se ter por boas as causas indicadas pelo Senhor Administrador nos autos principais, concretamente as apontadas no seu Relatório elaborado nos termos e para os efeitos do art.º 155º do CIRE, ou seja, que “a situação de insolvência deve-se à falta de clientes, e consequente falta de rendimentos que suportassem as despesas da empresa, o que levou ao seu encerramento” e ainda porque “o espaço onde laborava foi entregue ao senhorio”;
23ª – Portanto, de acordo com o parecer do Senhor Administrador, confirmado pela restante prova, a insolvência não foi criada por qualquer atuação que concretamente esteja em causa nos presentes autos de qualificação de insolvência ou sequer agravada por essa mesma atuação;
24ª - A Sentença recorrida também não estabelece qualquer nexo de causalidade entre a situação de insolvência e atuação, com dolo ou culpa grave, da Devedora ou dos seus Administradores;
25ª - A Sentença recorrida também não identifica o momento em que o ato considerado relevante nos presentes autos – a cessão do crédito litigioso a favor da Requerida Ilda … – foi praticado;
26ª - Em consonância, aliás, com a Matéria de Facto fixada pelo Tribunal que considerou como Facto Não Provado a data em que o escrito referido em 2.3 foi redigido e assinado;
27ª - A ser assim, não resultando provada a data em que tal ato teria sido praticado, o Tribunal ficou impossibilitado de concluir se foi ou não praticado dentro do período relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa;
28ª - A cedência de um crédito litigioso da Devedora a favor da Requerida Ilda … – único facto concreto que o Tribunal deu por provado – não preenche a previsão legal da alínea d) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE;
29ª – O que sucedeu, conforme ficou demonstrado nos autos, foi a cedência de um crédito litigioso de montante incerto e que corria o risco de se tornar incobrável em troca de um débito da Sociedade à Requerida Ilda …, resultante de suprimentos efetuados por esta à sociedade, de montante muito superior àquele crédito;
30ª – Não houve assim qualquer disposição de bens em proveito pessoal ou de terceiros, sendo que, de resto, o significado (jurídico ou corrente) de “dispor de bens” não consente que nele se inclua, por si só, os casos de venda ou dação em pagamento de bens ou direitos, conforme aliás tem entendido a Jurisprudência em casos semelhantes;
31ª – Tanto mais que, aquando da cessão do crédito, a Insolvente já não se encontrava em atividade;
32ª – Não ficando assim demonstrado que, se tal cessão não tivesse ocorrido, ficaria impedida a situação de insolvência;
33ª – Ao ter-se cedido um crédito (litigioso, de montante incerto e de difícil cobrança) para pagamento de um débito, de montante superior, não se pode entender que se fez desse crédito uso contrário ao interesse do Devedor;
34ª – Sendo aliás utilizado tal crédito em condições muito vantajosas para a Devedora;
35ª – Nessa medida, a atuação em causa no presente Incidente também não preenche a hipótese prevista na alínea f) do n.º 2 do art. 186º do CIRE;
36ª – De resto, o Julgador não pode limitar-se a aplicar sem mais, como mero autómato, a presunção estabelecida em tal norma;
37ª - Não ficando preso às malhas da Lei e aos factos apresentados pelas partes, devendo proceder à apreciação crítica da situação, de modo a permitir-lhe a correta subsunção dos Factos ao Direito;
38ª – O Tribunal recorrido incorre numa petição de princípio, dando por suposto o que se pretende precisamente demonstrar, ao considerar que “os Requeridos não poderiam deixar de saber tal (i.e. da situação em que a sociedade se encontrava) tanto que atuaram como resultou assente”;
39ª – Para se dar por verificada a presunção decorrente da al. a) do n.º 3 do art. 186º do CIRE, sempre se teria que demonstrar a existência do nexo de causalidade entre a conduta omissiva dos administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência;
40ª – A Jurisprudência tem afirmado claramente que se torna necessária demonstração de que foi a essa omissão que criou ou agravou a situação de insolvência, não bastando a mera constatação desse comportamento omissivo;
41ª – Portanto, não estando demonstrado o nexo de causalidade no sentido que foi a não apresentação à insolvência que criou ou agravou a situação, estava vedado ao Tribunal dar por presumida a culpa grave do Devedor e, reflexamente, dos administradores de direito ou de facto, nos termos da al. a) do n.º 3 do art. 386º do CIRE;
42ª – A mera qualidade de gerentes de direito não permite, por si só e automaticamente, a afetação desses administradores em virtude da qualificação culposa da insolvência;
43ª – Em virtude da conjugação das normas do art. 186º n.º 1 e 189º n.º 2 al. a) do CIRE, o Juiz deve identificar em concreto quais as pessoas, nomeadamente de entre os administradores de direito, que considera afetadas, fixando o respetivo grau de culpa;
44ª – Logo, nem todos os administradores de direto são automaticamente afectados pela qualificação culposa da insolvência, devendo o Juiz apreciar em concreto a atuação de cada um desses administradores de direito, para aferir se algum deles teve uma atuação dolosa ou com culpa grave que tenha contribuído ou agravado a situação de insolvência do Devedor;
45ª – Em suma, só se provando atos concretos que tenham sido praticados, com dolo ou culpa grave por algum dos administradores, é que se permitirá a sua afetação;
46ª – No caso sub judice, ficou provado que as Requeridas Carmen e Carla, apesar de nomeadas como gerentes, nunca exerceram na Insolvente funções de gerência;
47ª – Desse modo, não resultando provados quaisquer atos de gerência praticados por essas Requeridas, não deveriam ter sido afetadas pela qualificação culposa da insolvência;
48ª - Acresce que a presunção decorrente do n.º 2 do art.º 186º do CIRE é tão somente no sentido de se considerar culposa a insolvência do Devedor, sempre que se verifica alguma das situações previstas nas alíneas dessa norma;
49ª – Porém, tal presunção não permite que daí novamente se presuma outro facto desconhecido, qual seja o dolo ou culpa grave de todos ou algum dos administradores do Devedor;
50ª – A interpretar-se as normas dos arts. 186º n.º 2 e 189º n.º 2 al. a) do CIRE no sentido de estabelecerem uma presunção inilidível quanto à culpa de todos os administradores do Devedor, sofrem tais normas de inconstitucionalidade;
51ª – Tal interpretação equivale a não consentir um juízo casuístico por parte do Julgador para efeitos de qualificação da insolvência e afetação dos administradores da sociedade Devedora;
52ª – Estando em causa conceitos indeterminados em muitas das situações contempladas no art.º 186º n.º 2 do CIRE, a afetação dos administradores dependerá de uma valoração judicial autónoma do significado normativo da conduta em causa e não de uma mera aplicação automática;
53ª – Só desse modo o direito de defesa do visado poderá ser respeitado;
54ª – A concluir-se automaticamente pela insolvência culposa nos casos previstos no n.º 2 do art. 186º do CIRE, com a consequência também automática de se considerar necessariamente afetados os administradores do devedor, imputando-lhes automaticamente uma atuação dolosa ou com culpa grave – apenas e só por se ter considerado preenchida alguma das hipóteses previstas no n.º 2 da citada norma – a interpretação de tais artigos revelar-se-á ferida de inconstitucionalidade;
55ª – Numa situação em que os visados se vêem confrontados com uma situação que implica para si consequências e sanções pesadas e limitadoras (ou até mesmo castradoras) de direitos fundamentais, nada pode justificar que o processo seja estruturado de modo a coarctar-lhes o direito de defesa;
56ª – A interpretação e aplicação de tais normas em sentido contrário ao que vem sendo defendido, tal como sucede na Sentença recorrida, afigura-se violadora do art.º 20º n.º 4 da CRP;
57ª – A presunção decorrente do exercício da administração de facto decorrente da gerência ou administração de direito é uma mera presunção judicial, que pode ser afastada por prova documental ou qualquer outra, bastando mesmo a mera contraprova;
58ª - No caso dos autos, ficou afastada a referida presunção judicial, ao dar-se por provado que as gerentes de direito, as Requeridas Carmen e Carla, nunca exerceram na Insolvente funções de gerente;
59ª – Sendo assim, ficaram provadas as causas de exclusão da responsabilidade dos administradores de direito da Devedora;
60ª – Para além disso, nada nos autos ficou concretamente provado acerca da atuação da Requerida Carla;
61ª – Assim, em relação a si nada permite concluir por uma atuação dolosa ou com culpa grave;
62ª – Impondo-se, por isso, a não afetação da Requerida;
63ª – Igualmente, em relação ao Requerido Manuel …, não ficou provada qualquer atuação que, em concreto, pudesse ter criado ou agravado a situação de insolvência da Devedora;
64ª – De resto, relativamente a este Requerido não foi provado ou sequer alegado qualquer ato concreto que tivesse praticado;
65ª – Sendo assim, em relação a si, não ficou provada qualquer atuação que pudesse configurar ou integrar as hipóteses previstas nas alíneas do n.º 2 do art. 186º do CIRE;
66ª – Os factos que o Tribunal considerou provados não consentem a afectação indiferenciada e generalizada dos Requeridos, aplicando a todos igual sanção e determinando as mesmas consequências para cada um deles;
67ª – Sendo que a Sentença Recorrida não fixou o respetivo grau de culpa das pessoas consideradas afetadas pela qualificação;
68ª – Em consequência, desrespeitou o disposto no art.º 189º n.º 2 al. a) in fine, o que impõe, por si só, a revogação da Sentença recorrida;
69ª – O Tribunal condenou indistintamente todos os Requeridos em igual período de inibição, como se todos tivessem praticado em bloco os mesmos factos e com o mesmo grau de culpa;
70ª – Sendo assim, não tomou em consideração o efetivo grau de participação e de culpa de cada um dos Requeridos nos factos em causa, revelando-se por isso incorreta a ponderação acerca do período de inibição fixado;
71ª – O Tribunal também não tomou em consideração o grau de decisão, autonomia e de responsabilidade na vida da sociedade insolvente, para fixar adequada e proporcionalmente o período de inibição estabelecido para cada um dos Requeridos;
72ª – Finalmente, no estabelecimento da duração da inibição, não foram também tomadas em consideração a gravidade da conduta e o nexo de causalidade desta com a causa da situação de insolvência;
73ª – Por tudo pois, a Sentença recorrida evidencia falta de correta e criteriosa ponderação na definição do período de inibição fixado aos Requeridos;
74ª – O qual, de qualquer forma, se afigura manifestamente excessivo;
75ª - O Tribunal recorrido não poderia ter condenado os Requeridos a indemnizar os credores da sociedade Devedora, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, a efetuar em liquidação de Sentença, sem ter definido os critérios a utilizar para a sua quantificação;
76ª – Caso o Tribunal tivesse tomado em consideração os factos alegados pelos Requeridos na Oposição, a decisão teria de ser necessariamente outra;
77ª – Os Requeridos alegaram diversos factos – sobre os quais fizeram prova – que por si só demonstravam que não tinham conhecimento de que a sociedade se encontrasse em situação de insolvência nem que, ao ter sido celebrado o contrato de cessão de créditos, isso iria retirar da Insolvente o seu único ativo;
78ª – Estão nesse caso, designadamente os factos alegados nos arts. 83º a 99º, 37º a 66º e 135º a 14º da Oposição, os quais foram desconsiderados indevidamente pelo Tribunal;
79ª - Consequentemente, ao menos deverá determinar-se a anulação do Julgamento, com vista ao apuramento e fixação de tais factos;
80ª – Decidindo como decidiu, o Tribunal violou designadamente as normas dos artigos 186º, n.º 1, n.º 2 als. d) e f) e n.º 3 al. a) e art. 189º n.º 2 al. a) e n.º 4 do CIRE; arts. 350º e 351º do CC; art. 75º da LGT; e art. 20º n.º 4 da CRP.
Termos em que, com os mais que resultarão do douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a douta Sentença recorrida, como é de Justiça.

1.11. A Requerente M…, S.A, apresentou contra-alegações, com pedido de ampliação do objecto do recurso, em que concluiu pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por entender ter sido feita uma correcta análise da prova produzida, e, em qualquer caso, pela improcedência do presente recurso de Apelação, e por via dela, pela manutenção da decisão em crise.
A título subsidiário, para o caso de se entender ser de alterar a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo – no sentido de considerar que, à data da constituição da sociedade Insolvente, os Recorrentes Ilda … e Manuel … também eram sócios da mesma – requereu, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 636.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que se dê igualmente como provada a data em que os mesmos perderam essa qualidade – o que resulta da prova junta aos autos – acrescentando-se um novo ponto aos factos dados como provados com o seguinte teor: “Ilda … e Manuel … deixaram de ser sócios da sociedade Insolvente por cessão de quotas registada em 22.12.2000

1.12. Corridos que foram os vistos legais, cumpre decidir.

II – Âmbito do recurso – Questões a decidir:
1. De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[1]-[2].
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
Questão Prévia: Da desconformidade entre a decisão da matéria de facto e os Temas da Prova enunciados;

1.ª - Saber se houve erro na apreciação dos meios de prova que imponha a alteração da decisão da matéria de facto julgada provada e não provada, mais concretamente:
(i) Se os Factos Provados sob os pontos 1., 1.1. e 1.2. devem ser alterados, passando estes a ter a seguinte redacção:
[“1. A insolvente foi constituída em 14-06-1999, com a designação Ilda …Filhas, Lda.
1.1. Tinha como sócios:
1.1.1. ILDA …;
1.1.2. MANUEL…;
1.1.3. CARMEN …; e
1.1.4. CARLA ….
1.2. Como gerentes:
1.2.9. ILDA …;
1.2.10. MANUEL…;
1.2.11. CARMEN …; e
1.2.12. CARLA …”];

(ii) Se deve aditar-se aos Factos Provados a perda da qualidade de sócios dos Recorrentes Ilda … e Manuel … e a data em que tal ocorreu, conforme pedido de ampliação do âmbito do recurso deduzido pela Recorrida;

(iii) Se o Facto Provado sob o ponto 7. deve ser alterado, passando este a ter a seguinte redacção:
Nas contas da Insolvente mostram-se inscritos os suprimentos feitos pelos sócios, designadamente pela sócia Ilda …, no montante de € 277.211,00”;

(iv) Se deve ser aditado o seguinte Facto Provado à decisão da matéria de facto, eliminando-se a línea a) dos Factos Não Provados:
A sócia Ilda … efectuou suprimentos à sociedade”.
(v) Se deve ser eliminado o Facto Provado sob o n.º 8.

2.ª Saber se a sentença recorrida, ao qualificar a insolvência como culposa, decidiu erroneamente o objecto do litígio, por errada subsunção dos factos ao direito e incorrecta aplicação do direito, nos seguintes termos
a) Da falta de verificação dos pressupostos exigidos para a qualificação da insolvência como culposa;
b) Não preenchimento dos factos-índice previstos nas alíneas d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE;
c) Não preenchimento da previsão da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE;
d) Indevida afectação dos meros administradores de direito;
f) Ilisão da presunção da responsabilidade dos administradores de direito;
g) Indevida afectação dos Requeridos Carla … e Manuel…;
h) Condenação indiferenciada dos Requeridos;
i) Indevida condenação dos Requeridos a indemnizar os credores da Insolvente.
j) Desconsideração de factos relevantes alegados na Oposição.
*
III Fundamentação:
A) Motivação de Facto:
A 1ª Instância deu como provados e não provados os seguintes factos[3]:
A.1) Factos provados:
«1. A insolvente foi constituída em 29-06-1999, com a designação Ilda… e Filhas, Lda..
1.1. Tinha como sócios:
1.1.1. CARMEM …; e
1.1.2. CARLA ….
1.2. Como gerentes:
1.2.1. ILDA …;
1.2.2. MANUEL …;
1.2.3. CARMEM …; e
1.2.4. CARLA ….
1.3. E sede na Marina de …, …
1.4. Em 27-02-2009 ILDA … e MANUEL …renunciaram à gerência.
1.5. Em 15-07-2011, a insolvente alterou a sua sede para Rua …,  …, Cascais.
1.6. Em 12-08-2014, a insolvente alterou a sua designação para D…, LDA.
1.7. CARMEM … e CARLA … nunca exerceram na insolvente funções de gerência, as quais eram levadas a cabo pelos sócios ILDA … e MANUEL …;
1.8. Em 01-07-2015, a insolvente alterou a sua sede para na Marina de ...
2. No Proc. n.º …/…, que correu os seus termos pela Instância Central Cível de Cascais, Juiz …, deste Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste:
2.1. A insolvente, aí A., demandou G…e outros, por falta de pagamento de rendas da cessão de exploração de estabelecimento comercial que lhes havia feito.
2.2. Os RR. em tais autos contestaram 20-10-2012.
2.3. Por escrito a que foi aposta a data de 02-01-2013, a insolvente, representada no acto pela sua sócia gerente CARMEM … e ILDA …, declararam:
2.3.1. A primeira que cedia à segunda os créditos que detinha sobre os RR. do referido processo, no valor de €130.967,74 acrescida das retribuições mensais vincendas no montante de €9.252,67, desde Outubro de 2012 e juros de mora vincendos até efectivo e integrar pagamento.
2.3.2. A segunda que, em contrapartida dá por pagos os suprimentos por si realizados à primeira, no montante de €277.211,00.
2.4. Por sentença de 07-11-2014, foi a requerida ILDA … habilitada como cessionária para prosseguir a acção no lugar da A., aqui insolvente.
2.5. Em 12-04-2016, ILDA …, como A., transaccionou com os RR. acerca do objecto do litígio, tendo a A. acordado reduzir o pedido para €100.000,00, dos quais os RR. se confessaram devedores e se obrigaram a pagar de modo faseado, o que foi homologado por sentença.
2.6. Os RR. estão a pagar a ILDA … o valor resultante da transacção, estando já paga a quantia de €20.000,00, e estando a ser paga a quantia mensal de €5.000,00.
3. No Proc. n.º …/…, foi deduzida pela insolvente contra a requerente, na qual foi proferida sentença, em 22-02-2012, na qual, quanto ao que aqui releva:
3.1. Proferida sentença em 22-02-2012:
3.1.1. Foi a R. condenada:
3.1.1.1. Na redução do preço, sem IVA, acordado no contrato celebrado no dia 17-04-1997, na quantia em euros correspondente a Esc.7.666,500$00, e na redução do preço do contrato celebrado em 29-03-2000, na quantia em euros correspondente a Esc.4.646.085$00.
3.1.1.2. No pagamento à A. da indemnização que se apurar em execução de sentença pelos prejuízos sofridos.
3.1.2. Foi condenada a A. em sede de reconvenção:
3.1.2.1. A pagar à R. as taxas previstas no art. 21º do contrato de concessão e nos contrato, desde 01-01-2000 até ao presente, segundo os montantes que se apurarem em execução de sentença, quantia acrescida de juros à taxa legal, desde a sua fixação até pagamento;
3.1.2.2. Condena-se a A. a pagar à R. as quantias de rendas, acrescidas de juros de mora à taxa legal, sobre cada renda mensal, com início decorridos 15 da data da factura, e juros de mora sobre tal quantia contados desde a data da notificação para contestar o pedido reconvencional, à mesma taxa e até pagamento.
3.2. Na sequência de recurso proferido de tal decisão, pelo TRL foi proferido acórdão, em 23-05-2013, no qual, quanto ao que aqui releva, se decidiu:
3.2.1. Julgar improcedente o recurso de agravo da R. (aqui requerente);
3.2.2. Julgar improcedente o recurso de apelação da A. (aqui insolvente);
3.2.3. Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação da R. (aqui requerente):
3.2.3.1. Condenando-a a R. a pagar à A. os montantes dos prejuízos sofridos por esta em termos de diminuição de clientes, devido ao mau escoamento de águas em dias de chuva mais intensa – até à segunda metade de 2003 – e à deficiente limpeza dos espaços públicos da Marina – até finais de 2002 – a liquidar em execução de sentença.
3.2.3.2. Condenando a A. a pagar à R. das taxas tal como peticionado, acrescidas de juros de mora contados desde a data da notificação da contestação e até integral pagamento.
3.3. Na sequência de recurso proferido de tal decisão pelo STJ, foi proferido acórdão, em 23-01-2014, transitado em julgado em 10-02-2014, no qual foi a insolvente condenada a pagar à requerente a quantia de €226.982,99, acrescida de juros de mora.
3.4. Foi interposto recurso de uniformização de jurisprudência, tendo sido o mesmo rejeitado.
4. Nos autos principais, iniciados em 11-11-2015, a Requerente peticionou a insolvência da Requerida DENURA…, LDA, anteriormente denominada Ilda …& Filhas, Lda., a qual veio a ser declarada insolvente por sentença proferida em 04-05-2016, transitada em julgado em 06-06-2016.
5. Os requeridos ILDA …e MANUEL … são pais das requeridas CARMEM  … e CARLA …
6. Aquando da cessão de direito litigioso pela insolvente a ILDA …, a sociedade não tinha qualquer fonte de rendimentos, que não as rendas, da loja … Marina de …s, que estavam por pagar, nem tinha qualquer tipo de actividade.
7. Nas contas da insolvente não se mostram inscritos quaisquer suprimentos feitos por sócios, designadamente pela sócia ILDA ....
8. A requerida ILDA … e CARMEM … na qualidade de legal representante da insolvente, ao celebrarem a cessão de crédito litigioso, da segunda para a primeira, agiram com o propósito de retirar da insolvente o seu único activo, o crédito sobre os arrendatários da loja … da Marina de ….
A.2. Factos não provados:
a. Que tenha havido suprimentos da sócia ILDA ….
b. Que o escrito referido em 2.3. tenha sido redigido e assinado em 02-01-2013.».
B) - Motivação de Direito:

1. Questão Prévia: Da alegada desconformidade entre a decisão da matéria de facto e os Temas da Prova enunciados:
Os Requeridos, ora Recorrentes, no intróito das suas alegações e como questão prévia invocam que o Tribunal a quo não fixou a matéria de facto dada como provada por referência aos temas de prova previamente enunciados, designadamente ao tema da prova elencado sob a alínea g) [“Se à data da celebração do contrato de cessão de crédito litigioso a devedora já se encontrava em situação de insolvência”].
É sabido que a Reforma do Processo Civil implementada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, trouxe um novo paradigma nomeadamente no que respeita à fase da “condensação do processo”.
Foi abandonada a anterior dicotomia “factos assentes/base instrutória”, tributária da velha “especificação/questionário”, instituída pelo Dec.-Lei n.º 21 694, de 29 de Set. 1932, (cf. art.º 15.º deste diploma), que definia a vinculação temática do processo, quer na fase da instrução, quer no julgamento da matéria de facto. Essa forma de organização da audiência de julgamento e de produção de prova foi completamente alterada, substituindo-se os anteriores factos assentes e base instrutória pela identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova (art.º 596.º do CPC), os quais devem ser formulados de maneira genérica e/ou conclusiva, cabendo depois ao Tribunal dar como provados ou não provados os concretos factos que se inferem dessa mesma formulação genérica.
Os temas da prova mais não são de que a vertente normativa ou jurídica dos factos principais integrantes da causa de pedir, por isso mesmo factos sintetizados ou complexos correspondentes aos diversos requisitos que a lei faz depender a procedência da pretensão deduzida ou o efeito jurídico que se visa obter com a excepção invocada.

Como se ponderou no acórdão desta Relação, proferido em de 23-04-2015, no âmbito do processo n.º 185/14.9TBRGR.L1-2, acessível em www.dgsi.pt. ., citado pela Recorrida na sua resposta ao recurso:
“(…)
2. É hoje admissível que a enunciação dos Temas da Prova prevista no n.º 1 do artigo 596º do nCPC assuma um carácter genérico e por vezes aparentemente conclusivo - ao invés do que sucedia com a Base Instrutória elaborada, nos termos do artigo 511º do aCPC – encontrando-se apenas balizada pelos limites decorrentes da causa de pedir e das excepções invocadas na lide.
3. A decisão da matéria de facto não deverá, todavia, conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, impondo o artigo 607º do nCPC, no seu n.º 4, que na sentença o julgador declare provados ou não provados os factos e não os temas da prova.
4. Perante uma enunciação conclusiva dos temas da prova, cabe ao julgador, na fase de julgamento, considerar provada ou não a concreta matéria de facto a que eles se reportam. (…)».
A presente questão prévia é aflorada pelos Recorrentes para concluírem que a sentença recorrida ao fixar a matéria de facto sem respeito pelos temas da prova enunciados, nomeadamente no que se refere à transcrita alínea g), omitiu factos com manifesta relevância para se aferir do preenchimento ou não dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa.
Não obstante, os Recorrentes não retiraram qualquer pretensão ou efeito prático da invocada “questão prévia”.
A dita “questão prévia”, tal como se deduz claramente do n.º 6 do intróito das alegações dos Recorrentes, visa apenas afirmar a existência de erro de julgamento, por errada subsunção dos factos ao direito e incorrecta aplicação do direito.
A ser assim, a invocada “questão prévia” ou mais precisamente o tema mais lato que encerra da verificarão ou não dos pressupostos legais da qualificação da insolvência como culposa serão tratados infra em sede de apreciação da impugnação de direito, após apreciação da impugnação decisão da matéria de facto.

2. Da questão de saber se houve erro na apreciação dos meios de prova que imponha a alteração da decisão da matéria de facto, na parte impugnada pelos Recorrentes:
1.1. Antes de mais, importa delimitar o âmbito da intervenção da Relação quando está em causa apreciar da valoração probatória feita pelo tribunal de primeira instância.
Em primeiro lugar porque essa análise só deve ser efectuada com referência àqueles factos que assumem relevância para a decisão do mérito da causa, ponderando as várias soluções plausíveis da questão de direito, quer na perspectiva da acção, quer da defesa. Considerando que o tribunal está vinculado a providenciar pelo andamento regular e célere do processo, recusando o que for impertinente e dilatório – artigo 6º, n.º 1, do CPC –, nenhum sentido ou utilidade teria efectuar uma análise crítica sobre o mérito da valoração da prova feita pela primeira instância, quando a impugnação do julgamento de facto recaia sobre factos que não tem qualquer potencialidade de influenciar o sentido da decisão (factos essenciais, instrumentais ou complementares, conforme o art.º 5º). Acrescente-se que a afirmação serve para as hipóteses de exclusão/eliminação de factos dados como assentes pelo tribunal a quo, como também para as hipóteses de inclusão de factos a que, indevidamente, o tribunal não atendeu e até nas situações de simples alteração dos termos em que determinado circunstancialismo é dado como provado[4].
Depois, porque está em causa exclusivamente o apuramento de matéria de facto e não de matéria de direito. Admitindo-se o “melindre da distinção”[5] temos, no entanto, por seguro que meras conclusões ou apreciações valorativas, não se enquadram na definição (naturalística) de facto, como o “acontecimento ou circunstância do mundo exterior ou da vida íntima do homem, pertencente ao passado ou ao presente, concretamente definido no tempo e no espaço e como tal apresentando as características de objecto”[6], cabendo nesta “categoria” (factos processualmente relevantes), não apenas “os eventos reais, as ocorrências verificadas”, como ainda “as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos), que são, em bom rigor, não meros factos, mas verdadeiros juízos de facto”[7].
Em suma, as enunciações constantes dos articulados das partes que se reconduzem a meros juízos conclusivos e de direito, a afirmações genéricas, vagas e abstractas que não se reconduzem a factos - só estes importam -, não devem ser incluídas no acervo fáctico probatório, acrescentando-se que, quando o são, indevidamente, têm as mesmas que ser desconsideradas, isto é, impõe-se que (oficiosamente) se considerem as mesmas como juridicamente irrelevantes – não escritas, na terminologia da anterior lei processual civil (art.º 646º, n.º 4, do CPC/61).
Dito isto, passemos à apreciação do recurso interposto pelos Recorrentes, na parte em que incide sobre a matéria de facto, ponderando a matéria que especificamente pretendem que se dê ou não como assente, com a consequente correcção e ampliação da factualidade tida por provada e não provada, bem como os elementos de prova concretamente indicados, nomeadamente documental e depoimentos prestados em audiência, quer pelas partes e pelas testemunhas (AI incluído), a cuja audição integral se procedeu.
1.a) Dos Factos provados 1, 1.1. e 1.2. e da ampliação do âmbito do recurso (aditar à matéria de Facto a perda da qualidade de sócios dos Recorrentes Ilda … e Manuel …. e a data em que tal ocorreu):
Os Recorrentes pretendem a alteração dos Factos Provados sob os pontos 1., 1.1. e 1.2. por considerarem - e bem - que foram incorrectamente fixados pelo Tribunal a quo, na medida em que se mostram em desarmonia com prova documental autêntica carreada para os autos, designadamente com o teor da certidão da escritura pública de constituição da sociedade Insolvente e da respectiva certidão completa de matrícula junta com a sua Oposição, como Docs. n.ºs 1 e 2, respectivamente.
Nos Factos Provados ora em análise o Tribunal a quo deu por provado o seguinte:
«1. A insolvente foi constituída em 29-06-1999, com a designação Ilda … e Filhas, Lda.
Tinha como sócios:
1.1.1.CARMEN …; e
1.1.2. CARLA ….
1.2. Como gerentes:
1.2.1. ILDA …;
1.2.2. MANUEL …;
1.2.3. CARMEN …; e
1.2.4. CARLA …».
Para o efeito, o julgador considerou a certidão de matrícula relativa à sociedade Insolvente junta com o Requerimento Inicial como Doc. 1.
Todavia, tal certidão mostra-se incompleta, como resulta claramente do confronto com o teor das certidões juntas com a Oposição, como Docs. 1 e 2, conforme, aliás, os Requeridos, ora Recorrentes, já haviam alertado nesta peça processual.
Efectivamente, analisando teor do Doc. n.º 2 da Oposição, verifica-se que, à data da constituição da sociedade Insolvente - registada em 29-06-1999, os Recorrentes Ilda …e Manuel … eram efectivamente sócios da sociedade.
No entanto, dessa mesma certidão comercial da sociedade Insolvente decorre igualmente que os Recorrentes Ilda … e Manuel … transmitiram as suas quotas, respectivamente, às Recorrentes Carla … e Carmen … o que foi averbado ao registo comercial em 22-12-2000.
O registo da aquisição e da perda da qualidade de sócios da sociedade Insolvente constituem factos de extrema relevância para o apuramento da verdade e boa decisão da causa, ma medida em que está em causa apurar se foram ou não prestados suprimentos pelos mesmos à referida sociedade.
- Neste contexto e porque os referidos documentos autênticos fazem prova plena dos factos neles testados (artigos 369.º e 371.º do CC), a impugnação terá de proceder quanto aos Factos Provados em análise, que serão alterados no sentido de se considerar que, à data da constituição da sociedade Insolvente os Recorrentes Ilda … e Manuel …também eram sócios da mesma.
- Atendendo a tal alteração a introduzir à decisão da matéria de facto e porque a data da perda dessa qualidade constitui facto de extrema relevância para a decisão da causa, atender-se-á igualmente ao pedido de ampliação do âmbito do recurso deduzido pela Recorrida e dar-se-á igualmente como provada a perda da qualidade de sócios dos Recorrentes Ilda … e Manuel … e à data em que a mesma ocorreu, acrescentando-se um novo ponto aos factos dados como provados.
Por conseguinte, decide-se julgar procedente a impugnação dos Factos Provados 1., 1.1. e 1.2 e o pedido de ampliação do âmbito do recurso deduzido pela Recorrida e, em consequência:
(i) Procede-se à alteração dos Factos Provados sob os pontos 1, 1.1. e 1.2., que passam a ter a seguinte redacção:
«1. A insolvente foi constituída em 14-06-1999, com a designação Ilda …e Filhas, Lda.
1.1. Tinha como sócios:
1.1.1. ILDA…;
1.1.2. MANUEL ...;
1.1.3. CARMEN …; e
1.1.4. CARLA ….
1.2. Como gerentes:
1.2.1. ILDA …;
1.2.2. MANUEL …;
1.2.3. CARMEN …; e
1.2.4. CARLA …»;

(ii) Adita-se aos Factos Provados o ponto 1.9. com o seguinte teor:
«Ilda … e Manuel … deixaram de ser sócios da sociedade Insolvente, por cessão de quotas registada em 22-12-2000, a favor, respectivamente, das filhas Carla …e Carmen …».

1.b) Do Facto Provado 7 e da consideração como provado do Facto Não Provado sob a alínea a), eliminando-se este:
O Tribunal a quo deu por provado no Facto 7. que “Nas contas da insolvente não se mostram inscritos quaisquer suprimentos feitos por sócios, designadamente pela sócia ILDA …
Ao expressar a motivação deste Facto, o Tribunal a quo referiu o seguinte:
 “No que concerne ao ponto 7. o Tribunal ponderou a documentação contabilística junta aos autos pelo Sr. Administrador da Insolvência com o seu parecer”.
Os Recorrentes insurgem-se contra este Facto por entenderem que a 1.ª Instância não analisou correctamente tal documentação, já que, conforme leitura que faz da mesma, sempre constou da contabilidade da sociedade Insolvente o registo de suprimentos a favor dos sócios, nomeadamente a favor de Recorrente Ilda …, sendo que tal registo figura nos documentos contabilísticos da referida sociedade juntos aos autos, incluindo aqueles que foram apresentados pelo AI com o seu parecer.

Ora, analisada a referida documentação, constata-se, efectivamente, que nos anos de 2011 e 2012 consta da contabilidade da Insolvente o registo, como “suprimentos”, de créditos a favor de Ilda …, no montante de € 277.211,00, os quais correspondem ao Saldo Credor da conta 25/253211 dos Balancetes Gerais da Sociedade desses anos, juntos pelos Recorrentes com a sua Oposição e em sede de audiência de julgamento, como Docs. n.ºs 3 e 4 (cf. fls. 26-verso a 31 e 271 a 337), créditos esses que também se encontram registados englobadamente na conta “Outros passivos correntes”, quer dos Balanços (modelo para ME – Micro-Empresas) referentes aos mencionados anos, juntos pelos Requeridos com a sua Oposição como Docs. n.ºs 5 e 6 (fls. 31 verso e 32) – quer dos Docs. n.ºs 6 e 7 (Prestação de Contas Individual – IES – de 2011 e 2012) juntos pela Requerente (cf. fls. 26 a 67) com o Incidente de Qualificação de Insolvência, quer ainda dos Docs. n.os 1 e 2 (Prestação de Contas Individual – IES – de 2011 e 2012) juntos pelo Senhor Administrador de Insolvência (fls. 130 verso a 187).
Dessa documentação resulta que o valor global de € 378.511,62 registado na conta “Outros passivos correntes”, quer no Balanço de 2011 – junto pelos Requeridos/recorrentes com a sua Oposição como Doc. nº 5 – quer na Prestação de Contas Individual (IES) referente a 2011– junto como Doc. n.º 6 pela Requerente com o Incidente de Qualificação de Insolvência e como Doc. n.º 1 junto com o parecer do Senhor Administrador – inclui o valor de créditos registados como “suprimentos” dos Recorrentes Ilda … e Manuel …, correspondentes às contas 25/253211 e 25/253212 “Financiamentos Obtidos/Ilda…” e “Financiamentos Obtidos/Manuel…”, respectivamente no valor de € 277 211,00 e € 99 628,76, acrescido do Saldo Credor da conta 12/12101 - “Depósitos à Ordem/ BPI” no valor de € 1 671,86 – (277 211,00 + € 99 628,76 + € 1 671,86 = € 378.511,62).
Do mesmo passo, o valor global de € 503.776,34 registado na conta “Outros passivos correntes”, quer no Balanço de 2012 – junto pelos Requeridos com a Oposição como Doc. n.º 6 – quer na Prestação de Contas Individual (IES) referente ao ano de 2012 – junto como Doc. n.º 7 pela Requerente com o Incidente de Qualificação de Insolvência e como Doc. n.º 2 junto com o parecer do AI inclui o valor de créditos registados como “suprimentos” de Ilda … e Manuel …, correspondentes às contas 25/253211 e 25/253212 “Financiamentos Obtidos/Ilda …” e “Financiamentos Obtidos/Manuel …”, respectivamente no valor de € 277 211,00 e € 105 713,53, acrescido do Saldo Credor da conta 12/12101- “Depósitos à Ordem/BPI” no valor de € 1 681,74, da conta 26 “Accionistas/Sócios” no valor de € 119 020,07, da conta 127/127881006 – “Outras contas a receber e pagar/PASECO” no valor de € 150,00 – (€ 277 211,00 + € 105 713,53 + € 1 681,74 + € 119 020,07 + € 150,00 = € 503.776,34).
Nos “Extratos Contabilísticos” juntos aos autos em sede de audiência de julgamento (cf. fls. 267, 269 e 270) também constam lançamentos a crédito e débito, a título de “suprimentos” e de reembolso de “suprimentos” a favor de Ilda …, no período compreendido entre 31-12-2001 e 30-06-2011, sendo que a Conta 255111/Ilda …, segundo tal documentação, apresentava em 31-12-2001 um saldo a favor desta num total de € 408.327,01.
Desconhece-se, no entanto, o saldo da referida conta em 22.Dez.2000, data em que, quer a Recorrente Ilda … quer o seu marido, o Recorrente Manuel …, perderam a qualidade de sócios da Insolvente, na sequência da operada transmissão das suas quotas para as filhas do casal, respectivamente Carla… e Carmen …
E os documentos solicitados ao Serviço de Finanças de Cascais 1 (cf. fls. 378 a 380) e à Direcção de Finanças de Lisboa - Inspecção Tributária (cf. fls. 386 a 427) e por estes Serviços fornecidos aos autos também não permitem tal apuramento.
Não se olvida que nos respectivos depoimentos, quer os Recorrentes Ilda …e Manuel …, quer as suas filhas, as Recorrentes Carmen … e Carla …, declararam que os primeiros fizeram grandes investimentos em obras de infra-estruturas e com a aquisição de equipamentos para a adaptação das lojas … da Marina de Cascais à actividade de hotelaria logo após a aquisição da concessão da exploração de tais espaços comerciais (e do Armazém 23) e antes do início da actividade, ocorrida em 01/07/1999, conforme consta do Procedimento Inspectivo junto de fls. 386 a 427, levado a cabo pelo Serviço de Inspecção Tributária, na sequência do pedido de reembolso de IVA, no montante de Esc.: 20.000.000$00, solicitado pela Insolvente na declaração periódica Modelo A, referente ao 1.º Trimestre de 2000.
Também as declarações das testemunhas Maria …, Técnica de Contabilidade de 1.ª e Sérgio …, Técnico Oficial de Contas responsável pela contabilidade da Insolvente nos exercícios em análise atestam os referidos registos contabilísticos.
É certo que a documentação contabilística que instruiu o referido procedimento inspectivo e que foi aceite como verdadeira pelos Serviços de Inspecção (Extractos contabilísticos de IVA, cópias de diversas facturas de aquisição de bens e serviços e Balancetes Analíticos relativos a Janeiro, Fevereiro e Março de 2000), demonstra a realização, pela sociedade Insolvente, de avultadas despesas com a realização das aludidas obras de infra-estruturas e a aquisição de bens de equipamento. E não é menos verdade que deste acervo documental se retira que a sociedade insolvente foi dotada de capitais para o efeito pelos Recorrentes Ilda … e Manuel …, conforme resulta do Balancete Analítico dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2000 (fls. 403 verso a 409) do qual constam os seguintes lançamentos a crédito, sob a designação de empréstimos: na conta de sócios “2511/Ilda…– Es.: 82.808.224$00”; na conta de sócios “25512/Manuel…– Esc.: 22.548.495$00”, o que perfaz um total de Esc.: 105.356.719$00. Nesse sentido aponta igualmente a circunstância de não haver registo de empréstimos bancários na contabilidade da Insolvente e de esta sociedade ter sido constituída com o capital social de €10.000,00.
Nada foi apurado no que concerne à invocada existência - e em que que medida - dos serodiamente invocados suprimentos no período compreendido entre 29 de Fevereiro de 2000 e 22 de Dezembro de 2000, data em que os Recorrentes Ilda … e Manuel … perderam a qualidade de sócios da Insolvente, período este que releva para efeitos de tratamento das quantias entregues pelos Recorrentes à Insolvente como suprimentos por eles efectuados à referida sociedade. E desconhece-se se nesse período e até 31/12/2001 (ver “Extratos Contabilísticos” de fls. 267, 269 e 270) foram feitos outros empréstimos pelos Recorrentes Ilda … e Manuel … ou mesmo se estes foram ou não reembolsados das quantias abonadas à sociedade Insolvente enquanto sócios, a que título fosse, ou mesmo depois de perderem essa qualidade e até à indicada data de 31/12/2001.
Refira-se, aliás, com pertinência, que o confronto dos Balancetes Analíticos de Fevereiro e Março de 2000, que instruíram o Processo Inspectivo Tributário e constam a fls. 398 verso e segs. dos autos permite concluir que, no que tange ao Recorrente Manuel …, verificou-se uma redução significativa do saldo da conta sócios 255112/Manuel … de Esc.: 90.634.493$00 para Esc.: 22.548.495$00, o que evidencia ter ocorrido, entretanto, um reembolso substancial da dívida da sociedade para com este sócio, reembolso que foi menor no que concerne à sócia Ilda …, pois o saldo da conta de sócios 25511 apenas foi reduzido de 86.042.224$00 para 82.808.224$00.
Naturalmente, os reembolsos foram sendo feitos e tudo aponta nesse sentido, pois o próprio Requerido Manuel … declarou em audiência que o negócio da sociedade correu bem até Novembro de 2011, altura em que o cessionário do espaço, G… (Restaurante G…), deixou de pagar as rendas à Insolvente, situação que se manteve a partir de Fevereiro de 2012, apesar de aquele ter transmitido a exploração para a sociedade Piza …, Lda., o que levou a Insolvente a propor contra aquele a acção n.º …/…, que correu termos no Juízo Central Cível de Cascais – Juiz ….
A Piza…, Lda. denunciou o contrato de exploração com a Insolvente por carta datada de 08/05/2012, com o que se esgotou a única fonte de rendimento desta sociedade.
Até essa altura a Insolvente não tinha quaisquer encargos e ou custos de exploração que não os resultantes de impostos e beneficiou sempre das rendas proporcionadas pela cedência da exploração do espaço comercial (Lojas…).
Foi esse o motivo, aliás, que levou a Insolvente a apresentar declaração de cessação de actividade, para efeitos de IVA, a partir de 30 de Setembro de 2012 (cf. Doc. 14 junto com a Oposição)
O tratamento das quantias disponibilizadas pelos Recorrentes Ilda … e Manuel …. como suprimentos por eles efectuados à sociedade Insolvente implicava necessariamente que estes tivessem a qualidade de sócios e já se viu que estes só mantiveram essa qualidade entre a data da constituição da sociedade (14-06-1999) e a data da transmissão das suas quotas para as filhas Carla …e  Carmen …, respectivamente (22-12-2000).
A qualificação jurídica de um negócio não tem de resultar, como é sabido, do nomem iuris que as partes lhe atribuíram mas antes dos elementos que as manifestações de vontade dos intervenientes na criação e na actuação da situação revelam sobre a sua real natureza.
Ora, apesar de a validade do contrato de suprimento ou de negócio sobre adiantamento de fundos pelo sócio à sociedade não depender de forma especial (n.º 6 do art.º 243.º do CSC), o que se constata é que os autos não evidenciam qualquer situação reveladora de acordo de vontades ou intenções de constituir contratos de suprimento entre a sociedade Insolvente e os Requeridos/Recorrentes.
Não podendo existir, do ponto de vista legal, suprimentos dos Recorrentes Ilda … e Manuel …. à Insolvente, por terem perdido a qualidade de sócios desta sociedade, a partir de 22/12/2000, a conclusão a extrair é que os documentos contabilísticos juntos aos autos enfermam de erros e inexactidões, com o que se mostra ilidida a presunção de veracidade e de boa-fé estabelecida no n.º 1 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Dec.-Lei n.º 398/98, de 17/12, com as alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 30-G/2000, de 29/12 e 83-C/2013, de 31/12.
No entanto, a esta questão voltaremos com maior detalhe quando tratarmos da impugnação de direito.
Por conseguinte, como alega a Recorrida, é juridicamente impossível a existência de suprimentos em 2011 e 2012, quando a alegada sócia (a Recorrente Ilda … já não tinha essa qualidade desde, pelo menos, 22/12/2000.
As contas da Insolvente referentes ao exercício de 2011 foram elaboradas em 2012.
De todo modo, tudo ponderado, e apesar de tais quantias supostamente abonadas pela Recorrente Ilda … à Insolvente não poderem ser qualificadas como “suprimentos” prestadas por esta à sociedade, ganha consistência a afirmação da Recorrida de que contas da Insolvente referentes aos anos de 2011e 2012 não espelham com verdade a realidade no que concerne a supostos empréstimos feitos pela Recorrente Ilda … à Insolvente.
A análise do Extracto Contabilísticos referente à conta sócio 25111/Ilda … junto de fls. 267 e 269 permite concluir que apresenta, à data de 30/06/2011, um saldo a débito montante de €5.750,00 e a análise do Extracto Contabilístico referente à conta sócio 2685111/Ilda … junto de fls. 270 e verso permite concluir que apresenta, à data de 31/12/2010, um saldo a débito montante de €5.250,00.
E tais Extractos Contabilísticos reportam-se ao período compreendido entre 01-01-2001 e 31-12-2011!!
Ora foi no dia 18/09/2012 (cf. artigo 38.º da Oposição e Doc. 9) que a Insolvente decidiu accionar judicialmente G…e Outros para obter o pagamento da quantia em dívida por este, precisamente no ano em que fez constar das suas contas supostos “suprimentos” a favor de pessoas que não eram sócias (os Recorrentes Ilda … e Manuel …).
Tudo indiciando que para criar uma situação em que, caso obtivesse pagamento de G…, pudesse transferir ilicitamente esses proveitos para a Requerida Ilda ….
Em suma, feita a reapreciação global, o reexame crítico e conjugado de toda a prova documental e testemunhal produzida, concluiu-se pela parcial procedência da impugnação em análise e em consequência:
(i) Altera-se a redacção do ponto 7. Dos Factos Provados,  nos termos seguintes:
«7. Nas contas da Insolvente mostram-se inscritas com a designação de “suprimentos” entregas de quantias pela Requerida Ilda … àquela sociedade, sendo que tais financiamentos no exercício de 2011 estavam registados pelo montante de €277.211,00”»
(ii) Adita-se aos Factos Provados o ponto 7.A) com o seguinte teor:
«7.A) A sócia Ilda … financiou a sociedade Insolvente no período compreendido entre 14/06/1999 e 31/02/2000, sendo que nesta data tinha um crédito sobre a sociedade no montante de Esc.: 86.042.224$00, conforme saldo da conta sócios 25511/Ilda Marques».
(iii) Indefere-se a impugnação no que concerne à eliminação da alínea a) dos Factos Não Provados.

1.c) Do Facto Provado sob o ponto 8.:

O Tribunal a quo deu por provado no Facto Provado 8. o seguinte:
A requerida ILDA …, na qualidade de legal representante da insolvente, ao celebrarem a cessão do crédito litigioso, da segunda para a primeira, agiram com o propósito de retirar da insolvente o seu único activo, o crédito sobre os arrendatários da loja 56 da Marina de Cascais.”
Ao expressar a sua motivação, o Tribunal referiu que “(…) formou a sua convicção na ponderação conjunta dos seguintes elementos de prova:
- o depoimento das requeridas “CARMEN …e CARLA…, que explicaram que o objectivo do negócio foi pagar à mãe por ela ter feito empréstimos à insolvente, embora não logrando explicar quando o teria feito e qual o seu valor.
- O depoimento da requerida ILDA …, durante o qual se mostrou insegura, comprometida, fazendo pausas para ponderar no que ia dizer para explicar o negócio, acabando por afirmar que não conseguia explicar a razão do mesmo;
- O depoimento o requerido MANUEL … que não logrou explicar qual o motivo pelo qual fizeram a transmissão do crédito sobre o arrendatário da insolvente para ILDA …;
- O depoimento do TOC Sérgio …, que admitiu que:
- Quando a sociedade insolvente cedeu o seu único crédito à requerida ILDA …já não laborava;
- Tinha como único credor a Requerida e como único Devedor o inquilino da loja nº … da Marina de ….
Já quanto ao motivo da cessão de crédito litigioso, o referido por esta testemunha resulta ilógico.
Refere o mesmo que a cessão foi feita para que se puder encerrar a actividade da sociedade.
Ocorre que, como nos revelam as regras da experiência comum e o normal acontecer, quem pretende cessar a actividade de uma sociedade de duas uma:
- Ou a encerra-a procedendo à sua posterior liquidação, ou seja, ao pagamento aos credores e ao recebimento dos devedores;
- Ou requer a sua insolvência, para que se proceda à liquidação do activo e, na medida do possível, a recuperação do passivo.
Ainda que tivesse havido suprimentos, o que não resultou provado, o certo é que o seu pagamento apenas poderia ser efectuado após o pagamento aos credores, o que no caso não aconteceu.
Daí que se se tenha julgado provado que a insolvente, os seus gerentes e os seus sócios agiram com o propósito de esvaziar o único activo existente. Aliás, nenhum deles, nem o seu TOC logrou dar qualquer explicação quanto aos motivos da cessão de crédito litigioso, o que evidencia que a intenção não pudesse ser outra que não esvaziar a insolvente, fazendo desaparecer o seu único activo, em proveito de uma das sócias ILDA …, com o conhecimento e a anuências dos outros três sócios, incluindo as gerentes”.
Insurgem os Recorrentes contra este segmento da decisão da matéria de facto por entenderem que pela circunstância de as Requeridas, passados vários anos, não terem conseguido explicar o valor e a data dos empréstimos feitos pela mãe à Insolvente, não se pode - de forma alguma - inferir que o propósito da cessão de créditos tenha sido retirar da Insolvente o seu único activo, em prejuízo dos credores e da Insolvente, entre os quais se encontrava a Recorrida Marcascais, que desde 2006 que exige judicialmente da ora Insolvente o pagamento dos seus créditos (reclamados nos presentes autos).
E que assim não podia concluir o Tribunal a quo, ainda para mais se for tido em atenção que, tal como foi dado por provado pelo Tribunal “1.7. CARMEN … e CARLA NEVES … nunca exerceram na insolvente funções de gerência, as quais eram levadas a cabo pelos sócios ILDA … e MANUEL ….”
Argumentam, ainda, que resulta claro dos depoimentos das Requeridas Carmen … e Carla … que o que motivou a cessão de créditos (em causa no facto em apreço) foi o pagamento de uma dívida que a D…, Lda. tinha para com a Requerida Ilda …; que só muito recentemente teria ficado a saber que a D…, Lda. foi declarada insolvente; que o crédito era litigioso, desconhecendo as Requeridas se o mesmo seria reconhecido pelo Tribunal e, mais que isso, se alguma vez viria a ser pago pelo devedor; que só em 12/04/2016 foi celebrada transacção pela qual G… se confessou devedor da quantia de € 100.000,00 e se comprometeu a pagá-la de modo faseado; por fim, argumentam, que os Recorrentes Carmen …, Carla … e Manuel ….deram em audiência uma explicação perfeitamente clara da razão pela qual o crédito em causa foi cedido à Recorrente Ilda …, que a sociedade na altura não tinha condições financeiras para suportar as custas da acção pendente contra G…e Outros e que as alternativas que se colocaram aos Requeridos era a sociedade desistir do processo, com a consequente perda do crédito litigioso que era significativo ou trocar este crédito pela dívida da sociedade à Requerida Ilda …. Em contrapartida, a Requerida Ilda…abdicava dos suprimentos e suportava as despesas com custas judicias e honorários de advogados.
Salvo o devido respeito, entendemos que o conjunto da prova produzida conduz a conclusão diversa em termos de suportar logica e racionalmente a decisão em crise.
Vejamos.
Os Recorrentes discutiam e decidiam sempre em família, entre os quatro, pais e filhas, os negócios da sociedade Insolvente, embora prevalecesse a opinião dos Recorrentes Ilda … e Manuel …, como ficou claríssimo dos respectivos depoimentos, tanto mais que à data da constituição da sociedade as filhas Carmen … e Carla …, eram jovens adolescentes, estudantes, e não tinham qualquer experiência de gestão comercial.
Logo após a declaração da insolvência, em Maio de 2016, o Recorrente Manuel … foi pessoalmente contactado pelo Senhor Administrador da Insolvência, conforme declarado por este em audiência, pelo que que, pelo menos, nessa ocasião ficou sabedor da situação e certamente a transmitiu à mulher e às filhas que desse modo também ficaram inteiradas do sucedido, pois tudo era discutido em família, como os próprios Requeridos asseveraram em audiência.
Como referem no art.º 67º da Oposição e decorre da prova documental, os Recorrentes tinham conhecimento do crédito da Marcascais sobre a ora Insolvente - no montante de € 226.982,99 acrescido de juros - decorrente de acção judicial por si proposta contra esta credora em 25.Set.2006 (proc. 8070/06.1TBSCS).
E tinham conhecimento da exequibilidade de tal crédito desde 22 de Fevereiro de 2012, data da decisão proferida pela 1ª Instância, uma vez que os recursos interpostos foram admitidos com efeito meramente devolutivo (art.º 704.º do CPC).
Tal crédito da M…,S.A. sobre a Insolvente tornou-se certo e exigível desde Fevereiro de 2014, data do trânsito em julgado da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que negou revista ao recurso interposto pela Insolvente de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/05/2013.
Acresce que não obstante ter contra si uma sentença executória desde Fevereiro de 2012, a mesma não foi registada nas contas publicadas da Insolvente, assim como não surge na contabilidade o segmento da sentença em que a Insolvente obteve vencimento de causa (cf. Doc.s 1, 2, 3 e 4 juntos com o Parede do AI).
Por outro lado, não deixa de ser estranho, como bem refere o AI no seu Parecer, que tenha decorrido um hiato temporal tão alargado entre a data aposta (02/01/2013) no contrato de cessão de crédito litigioso celebrado entre a Insolvente, representada no acto pela gerente e Recorrente Carla …, e a Requerida Ilda ….
Esse acordo de cessão de créditos foi celebrado com o acordo e o conhecimento da outra gerente, Carmem …, e do seu pai, o Recorrente Manuel …, como todos os Recorrentes declararam nos respectivos depoimentos.
De tudo se conclui que a Insolvente, através da gerente Carmen … e da sua mãe Ilda …, mas com o acordo e conhecimento da outra gerente, Carla … e do seu pai, Manuel …, celebraram contrato no qual invocaram falsamente que Ilda … era credora da Insolvente por suprimentos.
E tal declaração é falsa, porque, como se viu, a Recorrente Ilda … não era, nem podia ser, credora de suprimentos.
Neste contexto, só se pode inferir que as duas sócias e gerentes – as Recorrentes Carmen … e Carla …. - e os seus pais – os Recorrentes Ilda … e Manuel … - agiram conluiados, com o fim de ocultar ou fazer desaparecer o crédito do processo …/…, de modo a furtarem-se ao pagamento devido aos credores da Insolvente, optando por tudo fazer para não o pagar e para desviar tal crédito a favor da família ….
Indícios desta conduta dissimulada e fraudulenta, são, também, as sucessivas alterações da sede social da Insolvente, a saber:
- A Insolvente começou por ter sede registada na Quinta …, em Cascais (ap.18/990629);
- Depois alterou a sede registada para a Marina de …, …, em Cascais
(ap.25/001222);
- Depois alterou a sede registada para a Rua …, …, em Cascais (ap. 7/20110705, rectificada pela ap.1/20120213), local do domicílio das gerentes, como asseverou Manuel … em audiência;
- Mais tarde alterou a sede registada novamente para a Marina … … (ap.142/20150701).
Ora, como os próprios requeridos alegam, a Marcascais resolveu o contrato por carta de 22 de Abril de 2014 (doc. 20 da Oposição).
Na sequência da resolução, a Marcascais tomou posse das lojas.
Nessa data, a Insolvente tinha sede na Rua …, …, em Cascais.
Sucede que só passado mais de um ano é que a Insolvente e os seus sócios e gerentes decidiram alterar a sede registral de novo para a loja … da Marina …, bem sabendo que não tinham acesso à mesma, nem qualquer direito sobre a mesma.
Obviamente que com este comportamento só pretenderiam furtar-se a citações e notificações judiciais, e outras comunicações postais, num momento em que sabiam eminente a instauração pela Marcascais de uma acção executiva contra a Insolvente ou de eventual pedido de insolvência desta devedora, a qual aliás foi requerida em 10.Nov.2015.
A Insolvente e os Requeridos, manipulam o registo da sede social conforme é mais útil para se furtarem a pagar as dívidas, fazendo-o, segundo o declarado em audiência pelo Recorrente Manuel … a conselho da contabilidade e do auditor!!
Acresce que à data da outorga do contrato de cessão de créditos (admitindo mesmo que em 02/01/2013) a Insolvente, tal como declarado no referido acordo, já não tinha capacidade económica para suportar os custos com o processo …/…, o que implica, necessariamente, que já nessa data a Insolvente, as suas gerentes e os seus pais sabiam da péssima situação económica da Insolvente, que nem tinha sequer capacidade financeira para suportar o referido litígio.
E não desconheciam a existência de um crédito para com a Recorrida M…, S.A., que nessa data já era exequível, tanto assim que ficou claro dos respectivos depoimentos que os gerentes de facto, Ilda … e Manuel … sempre tomaram decisões apoiados no aconselhamento de advogados, auditores e contabilistas, isto sem olvidar que o Recorrente Manuel …era e é um empresário e gerente comercial com vasta experiência, conforme decorreu à saciedade do seu próprio depoimento.
Por conseguinte, bem andou o Tribunal a quo em concluir, como concluiu, que a Insolvente, as suas sócias e gerentes de direito e os gerentes de facto (Ilda … e Manuel …) actuaram com o propósito de esvaziar o único activo existente no património da sociedade. E que nenhum deles, nem o seu TOC, Sérgio…., logrou dar qualquer explicação plausível sequer quanto aos motivos da cessão de crédito litigioso, o que evidencia que a intenção não podia e ser outra que não esvaziar a Insolvente, fazendo desaparecer o seu único activo, em proveito da mãe das sócias e gerentes de direito, Ilda …, e com o conhecimento e a anuência de todos os elementos da família, gerentes de facto e de direito.
- Ante o exposto, a impugnação terá de improceder relativamente ao Facto Provado sob o ponto 8, embora se entenda que a redacção do mesmo deve ser alterada, já que a sua leitura inculca que o crédito foi cedido pela gerente Carmen … e não pela Insolvente, sua representada no acto.
- Ademais, porque alegado, designadamente no artigo 4.º do Requerimento Inicial e demostrado à saciedade pelo conjunto da prova produzida, nos termos referidos, ao abrigo da faculdade prevista no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, entende este Tribunal de recurso aditar à matéria de facto que as duas sócias e gerentes e os seus pais (gerentes de facto) agiram conluiados com o fim de ocultar ou fazer desaparecer o crédito do processo …/…, de modo a obstar ao pagamento devido aos credores da Insolvente (M…, S.A. e Estado).
Pelo exposto, decide-se:
(i) Alterar a redacção do ponto 8. dos Factos Provados que passa a ter o seguinte teor:
«8. A sócia e gerente da D…, Lda., Carmem …, ao dispor, nesta qualidade, do crédito da referida sociedade, cedendo-o à sua mãe, Ilda …, agiu em conluio com esta, com o pai, Manuel … e com a irmã, Carla …»;
(ii) Aditar aos Factos Provados o ponto 9. com o seguinte teor:
«9. Foi propósito firmado de todos, sócias e gerentes da Denura …, Lda.., bem como dos seus ex-sócios e gerentes de facto, Ilda … e Manuel …, ocultar ou fazer desaparecer o crédito litigioso reclamado na acção …/…, de modo a obstar ao pagamento devido aos credores daquela sociedade (M…,S.A e Segurança Social)».

2. Do alegada errada subfunção dos factos ao direito e incorrecta aplicação do direito:
Sustentam os Recorrentes que, ainda que não seja alterada a matéria de facto, conforme peticionado, sempre a decisão recorrida deveria ser revogada ou, ao menos, ser determinada a anulação do julgamento, com vista ao apuramento e fixação de factos, na medida em que o Tribunal aplicou erradamente o Direito.
Vejamos.
2.1. Da invocada falta de verificação dos pressupostos exigidos para a qualificação da insolvência como culposa e do suposto não preenchimento dos factos-índice previstos nas alíneas b), d) e f) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE :
Segundo os Recorrentes, o Tribunal: (a) não identificou as causas determinantes da insolvência; (b) não estabeleceu o nexo de causalidade entre a situação de insolvência e a actuação com dolo ou culpa grave, do devedor ou dos seus administradores; (c) e não concretizou a data dos actos praticados pelo devedor ou seus administradores.
O incidente de qualificação da insolvência encontra-se previsto no Título VIII do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e destina-se a qualificar a insolvência como culposa ou fortuita (art.º 185.º). NO art.º 186.º, a lei define apenas a insolvência culposa, nada prevendo quanto à definição da insolvência fortuita, do que resulta que a insolvência é fortuita quando não é culposa.
Nos termos do n.º 1 do artigo 186.º a insolvência só é culposa quando a situação é criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Serão afectados pela qualificação da insolvência como culposa o devedor (pessoa singular) e os administradores do devedor. Se o devedor for uma pessoa colectiva, os administradores, para efeitos do CIRE, são aqueles a que incumbe a administração ou liquidação da sociedade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social competente para o efeito (art.º 6.º, n.º 1, alínea a); se o devedor for uma pessoa singular, são considerados administradores os seus representantes legais e mandatários com poderes gerais de administração (art.º 6.º, n.º 1, alínea b).
Por disposição expressa da lei, com propósito moralizador e de contenção de práticas menos correctas e de fraude à lei, estão abrangidos não só os administradores de direito, mas também os administradores de facto ou ocultos, muitas vezes, como sucede no caso em apreço, os verdadeiros senão os principais autores materiais do processo decisório conducente à insolvência da empresa.
Por sua vez, de acordo com o art.º 189.º, n.º 2, alínea a), do CIRE, o juiz deve identificar as pessoas afectadas pela qualificação da insolvência, nomeadamente os administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, devendo fixar, sendo caso disso, o respectivo grau de culpa.
Alegam os Recorrentes que o Tribunal a quo não indicou, como devia, por força do estatuído no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE as causas que determinaram ou agravaram a situação de insolvência da Devedora e que tal identificação teria necessariamente que constar dos factos provados.
Os Factos Provados a atender para a questão em análise são os seguintes
«3. No Proc. n.º 8070/06.15TBCSC, foi deduzida pela insolvente contra a requerente, na qual foi proferida sentença, em 22-02-2012, na qual, quanto ao que aqui releva:
3.1. Proferida sentença em 22-02-2012:
3.1.1. Foi a R. condenada:
3.1.1.1. Na redução do preço, sem IVA, acordado no contrato celebrado no dia 17-04-1997, na quantia em euros correspondente a Esc.7.666,500$00, e na redução do preço do contrato celebrado em 29-03-2000, na quantia em euros correspondente a Esc.4.646.085$00.
3.1.1.2. No pagamento à A. da indemnização que se apurar em execução de sentença pelos prejuízos sofridos.
3.1.2. Foi condenada a A. em sede de reconvenção:
3.1.2.1. A pagar à R. as taxas previstas no art. 21º do contrato de concessão e nos contrato, desde 01-01-2000 até ao presente, segundo os montantes que se apurarem em execução de sentença, quantia acrescida de juros à taxa legal, desde a sua fixação até pagamento;
3.1.2.2. Condena-se a A. a pagar à R. as quantias de rendas, acrescidas de juros de mora à taxa legal, sobre cada renda mensal, com início decorridos 15 da data da factura, e juros de mora sobre tal quantia contados desde a data da notificação para contestar o pedido reconvencional, à mesma taxa e até pagamento.
3.2. Na sequência de recurso proferido de tal decisão, pelo TRL foi proferido acórdão, em 23-05-2013, no qual, quanto ao que aqui releva, se decidiu:
3.2.1. Julgar improcedente o recurso de agravo da R. (aqui requerente);
3.2.2. Julgar improcedente o recurso de apelação da A. (aqui insolvente);
3.2.3. Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação da R. (aqui requerente):
3.2.3.1. Condenando-a a R. a pagar à A. os montantes dos prejuízos sofridos por esta em termos de diminuição de clientes, devido ao mau escoamento de águas em dias de chuva mais intensa – até à segunda metade de 2003 – e à deficiente limpeza dos espaços públicos da Marina – até finais de 2002 – a liquidar em execução de sentença.
3.2.3.2. Condenando a A. a pagar à R. das taxas tal como peticionado, acrescidas de juros de mora contados desde a data da notificação da contestação e até integral pagamento.
3.3. Na sequência de recurso proferido de tal decisão pelo STJ, foi proferido acórdão, em 23-01-2014, transitado em julgado em 10-02-2014, no qual foi a insolvente condenada a pagar à requerente a quantia de €226.982,99, acrescida de juros de mora.
3.4. Foi interposto recurso de uniformização de jurisprudência, tendo sido o mesmo rejeitado.
4. Nos autos principais, iniciados em 11-11-2015, a Requerente peticionou a insolvência da Requerida D…, LDA, anteriormente denominada Ilda … , Lda., a qual veio a ser declarada insolvente por sentença proferida em 04-05-2016, transitada em julgado em 06-06-2016.
(…)
6. Aquando da cessão de direito litigioso pela insolvente a ILDA …, a sociedade não tinha qualquer fonte de rendimentos, que não as rendas, da loja... da Marina …, que estavam por pagar, nem tinha qualquer tipo de actividade.
(…)
8. A sócia e gerente da D…, Lda., Carmem …, ao dispor, nesta qualidade, do crédito da referida sociedade, cedendo-o à sua mãe, Ilda …, agiu em conluio com esta, com o pai, Manuel … e com a irmã, Carla …»;
9. Foi propósito firmado de todos, sócias e gerentes da D…, Lda.., bem como dos seus ex-sócios e gerentes de facto, Ilda …e Manuel…, ocultar ou fazer desaparecer o crédito litigioso reclamado na acção …/…, de modo a obstar ao pagamento devido aos credores daquela sociedade (M…, S.A. e Estado)».

A criação ou agravamento da situação de insolvência é uma conclusão de Direito a retirar pelo Tribunal da factualidade dada como provada, isto é, da ponderação dos factos dados como provados e da análise dos conceitos de Direito aplicáveis, nomeadamente o de situação de insolvência.
O Tribunal a quo considerou que a transmissão do crédito litigioso efectuada a favor da Recorrida Ilda … retirou da sociedade D…, Lda. o único activo que esta possuía e que poderia ser imputado ao pagamento aos credores para concluir que foi esse negócio lesivo que levou à situação de insolvência da referida sociedade. Isto porque com tal cedência a sociedade “deixou de ter activo, ficando apenas com dívidas por pagar aos seus credores e sem quaisquer bens que respondessem pelo seu pagamento ou património corpóreo ou incorpóreo”.
O artigo 185.º do CIRE, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 200/2004, de 18/08 e 79/2017, de 30/06 sob a epígrafe «Tipos de insolvência», dispõe:
«A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o n.º 3 do artigo 82.º».
Explicitando, o artigo 186.º, sob a epígrafe «Insolvência culposa», estatui:
«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente».
Conforme se ponderou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18/09/2017, acessível em www.dgsi.pt., “II - Para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Porém, verificada uma das situações do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. III - A previsão legal da alínea d) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando, independentemente disso, é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio ficando aquela, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.”.

O regime da qualificação da insolvência comporta um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis), que facilitam a qualificação como culposa da insolvência de devedor que não seja uma pessoa singular sempre que os seus administradores, tanto de direito como de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos (art.º 186.º, n.ºs 2 e 3).
Para tal, é necessário discriminar os factos previstos no art.º 186.º, sejam os descritos no n.º 2, sejam os descritos no n.º 3, e dentro do primeiro grupo, os descritos nas alíneas h) e j)[[8]].
As alíneas a) a g) do n.º 2 do artigo 186.º correspondem, indiscutivelmente, a presunções absolutas (iuris et de iure) de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência).
Ou seja, a lei institui em cada uma das alíneas a) a g) do no n.º 2 do art.º 186.º uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação da insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário [[9]].
A doutrina e a jurisprudência têm-se questionado sobre o alcance destas presunções, isto é, se também se presume o nexo do nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação da insolvência [[10]].
Como refere MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO [[11]], “No direito espanhol, fonte directa da inspiração do nosso legislador, a doutrina tem considerado que a prática dos factos elencados é suficientemente gravosa para legitimar a presunção de tal nexo de causalidade[12]. Entre nós, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA também defendem que as alíneas do n.º 2, directa ou indirectamente, envolvem efeitos negativos para o património do Insolvente. Pelo contrário, se CARNEIRO DA FRADA concorda com os Autores quanto às als. a) ou g), já quanto às als. d) ou f) tem as suas reservas (pois estão em causa factores fortuitos). Para este Autor, estas soluções legais aparentemente excessivas são determinadas pela necessidade de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis que, de acordo com a experiência, são susceptíveis de ocasionar insolvências e estão intimamente ligadas a ela (prevenção abstracta de um perigo). Por isso o legislador inclui na al. d) a disposição em proveito próprio dos bens do devedor, independentemente da prova do prejuízo daí adveniente[13]”.
Por sua vez, as alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º mais correspondem a ficções legais porquanto a factualidade nelas descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que o n.º 1 do artigo 186.º erige, a par do dolo ou culpa grave, como requisito fundamental da insolvência culposa.
Já no n.º 3 do artigo 186.º consagra-se apenas uma presunção de culpa grave relativamente aos seguintes comportamentos: incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, previsto no art.º 18.º (alínea a); e incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais no prazo legal, de submete-as à devida fiscalização ou de as depositar nas conservatórias do registo comercial (alínea b).
Na doutrina e na jurisprudência também é muito discutido o âmbito objectivo das presunções previstas no n.º 3 do artigo 186.º. Para a maioria da jurisprudência e da doutrina nacionais “o que resulta do art.º 186.º, n.º 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art.º 186.º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta [[14]]”.
Por sua vez, CATARINA SERRA[[15]] defende que deveria entender-se que, sob pena de perder grande parte da sua utilidade, que o n.º 3 do artigo 186.º consagra não meras presunções (relativas) de culpa grave, como vem defendendo grande parte da jurisprudência portuguesa, mas autênticas presunções (relativas) de insolvência culposa.

Nos autos está em causa a imputação aos propostos como afectados pela qualificação da insolvência de condutas integradoras das alíneas b), d) e f) do n.º 2 do art.º 186.º e da alínea a) do n.º 3 do CIRE.
O período relevante a atender, atendendo à data do início do processo de insolvência (10/11/2012), é o decorrido entre 11-11-2012 e 11-11-2015.de culpa na insolvência).
Dos factos provados resulta que, em data não concretamente apurada mas necessariamente anterior a 07/11/2014, data da habilitação da Recorrente Ilda … na posição da Insolvente, no processo n.º …/… (cf. ponto 2.4. dos Factos Provados), ou seja, dentro do período de três anos anterior ao início do processo de insolvência, a Insolvente, por decisão conjunta dos Recorrentes cedeu o principal activo, que consistia no crédito litigioso por falta de pagamento de rendas que tinha para com terceiro a quem havia cedido a exploração do estabelecimento comercial (Loja … na Marina …).
A referida conduta retirou da esfera jurídica da Insolvente o principal bem de que dispunha, numa altura em que já não tinha actividade, a qual suspendera em Setembro de 2012, e consequentemente não auferia quaisquer rendimentos provenientes da exploração ou cedência da exploração das Lojas ….
Restaram, assim, as dívidas por pagar, ao Estado e à Recorrida M…, S.A., sendo que esta já era exequível pelo menos desde Fevereiro de 2012, facto que os Recorrentes não podiam ignorar. E tal dívida, que só de capital ascendia a € 226.982,99 era de valor bem superior ao activo que remanesceu para a Insolvente, após a concretização do referido negócio ruinoso, que era constituído apenas por alguns móveis e equipamentos, de valor inferior aos cerca de €48.000,00 que resulta da análise da contabilidade da Insolvente, considerando o estado de usados e que parte do equipamento foram adquirido em leasing, com também resulta da contabilidade, pelo que a respectiva propriedade ainda nem sequer estava transferida para a locatária.
Ao assim agirem conluiados os Recorrentes não podiam ignorar que não eram devidos suprimentos à Recorrente Ilda …, por não ser sócia da sociedade, assim como estavam cientes que a contabilidade da sociedade não era verdadeira por registar créditos suprimentos a favor desta. Ao actuarem da forma descrita sabiam que estavam a lesar o património da sociedade, agindo com o propósito de obstarem ao pagamento a credores e beneficiarem a família Marques e em especial a Recorrente Ilda ... Decorre da prova produzida que os Recorrentes Ilda …e Manuel … são pessoas com vasta experiência empresarial e que as filhas Carmem … e Carla … têm formação superior, esta última possui Mestrado em Gestão e acumula experiência profissional em empresa financeira.
De tudo o que vem de se expor resulta que o Tribunal a quo estabeleceu os factos-índice determinantes de criação ou agravamento da situação de insolvência e que, como os próprios Recorrentes reconhecem no ponto 106 das alegações de recurso apresentadas, a realização pelos Recorrentes das condutas tipificadas nas alíneas b) [celebração pela Devedora de negócio ruinoso em proveito de pessoa com ela relacionada], c) [disposição de activo da Devedora a favor de terceiro] e f) [fazer do crédito da Devedora uso contrário ao interesse desta, em proveito de terceiro] do artigo 186.º do CIRE dispensa a demonstração do nexo de causalidade entre a referida conduta dos Recorrentes e a criação ou agravamento da situação de insolvência da Insolvente (artigo 186.º, n.º 2, alíneas b), d) e f), do CIRE) e implica, inelutavelmente, a qualificação da Insolvência como culposa.
- Por conseguinte, o recurso improcede relativamente à suposta falta de verificação dos pressupostos exigidos para a qualificação da insolvência como culposa e ao invocado não preenchimento dos factos-índice previstos nas alíneas b), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
               
2.2. Do invocado não preenchimento da previsão da alínea a) do n.º 3 do art.º 186.ºdo CIRE:

2.2.1. O Tribunal a quo, na decisão recorrida, considerou ainda que a insolvência deveria ser considerada como culposa, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, ou seja, por incumprimento do dever de apresentação à insolvência.
Insurgem-se os Recorrentes contra esta decisão, por entenderem que não foi violado qualquer dever de apresentação à insolvência, invocando que o Tribunal a quo não deu como provado qualquer facto que permita concluir em que data é que a sociedade ficou em situação de insolvência nem que os Recorrentes tinham conhecimento dessa mesma situação.
Dos Factos Provados (pontos 2.4., 3. e 6.) e documentos juntos aos autos decorre que à data da transmissão do crédito litigioso – que ocorreu em data incerta mas anterior a 07/11/2014, a Insolvente tinha contra si uma sentença imediatamente exequível, para pagamento de taxas em dívida (vencidas e não pagas) à M…, S.A, em montante superior a € 200,000,00, e que não tinha qualquer fonte de rendimentos, que não as rendas em dívida que compunham o referido crédito litigioso, e bem assim que já não tinha qualquer actividade, sendo que, como alegou e ficou amplamente demostrado, cessara a actividade em Set. de 2012.
O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.
Mas para que possa iniciar-se a liquidação total do património do devedor é absolutamente indispensável que o tribunal emita uma sentença que o declare em estado de insolvência. Quer dizer: a sentença é o único título executivo susceptível de servir de base á execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução.
No entanto, para que seja proferida a sentença de declaração de insolvência, exige a lei que o devedor se encontre em estado de insolvência. Portanto, o primeiro problema que aquela sentença deve resolver é se se verificam as condições e circunstâncias, que, no pensamento da lei, justificam a declaração daquela situação de insolvência.
O tráfego jurídico exige a pontualidade de pagamentos porque cada operador económico, ao mesmo tempo que tem os seus devedores, tem por outro lado os seus credores, de modo que a impontualidade dos seus devedores pode obrigá-lo à impontualidade para com os seus credores, e este efeito reflecte-se na actividade económica, trazendo as mais graves e perversas consequências. A regularidade da vida económica e a salvaguarda das regras de concorrência inerentes e indispensáveis ao funcionamento de uma economia de mercado reclama que cada operador económico cumpra, com pontualidade, os seus compromissos; quando isso não suceda, ocorre uma lesão do tecido económico que deve ser reparada, extirpando-se dele, através da declaração de insolvência, o devedor comprovadamente relapso e promovendo-se liquidação total do seu património em benefício de todos os seus credores A insolvência tem também, na verdade, por finalidade expurgar do mercado as empresas, económica ou financeiramente, inviáveis: Ac. do STJ de 14.11.06, www.dgsi.pt..
O que, portanto, caracteriza, essencialmente, o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos (art.º 3, n.º 1, do CIRE).
O estado de insolvência traduz-se, portanto, numa impotência económica – a impotência para fazer face às obrigações assumidas. Note-se que não é necessário que a impossibilidade do cumprimento diga respeito a todas as obrigações; basta, para que o devedor se considere em estado de insolvência, que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações.
Essa impotência constitui, evidentemente, uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. O devedor pode estar impossibilitado de pagar aos seus credores e, no entanto, ter um activo superior ao passivo. E o inverso também é verdadeiro: o devedor pode, em dado momento, ter um activo inferior ao passivo, mas dispor de crédito, i.e., da possibilidade de mobilizar, por recurso a terceiros, disponibilidades monetárias que lhe permitam os compromissos para com os seus credores, à medida que se vão tornado exigíveis Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 110..
Deficit patrimonial ou insuficiência do activo e impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas não são, portanto, situações absolutamente coincidentes.
É claro que a insuficiência do activo para satisfação do passivo exterioriza, tipicamente, a insolvabilidade do devedor uma vez que a persistência desse deficit patrimonial o impossibilitará, mais tarde ou mais cedo, de satisfazer ou solver, com pontualidade, os seus compromissos.
Apesar disso, a insuficiência do activo e a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, são critérios diferentes e autónomos de caracterização de uma mesma situação: o estado de insolvência do devedor.
O devedor considera-se insolvente quando se mostrar impotente para cumprir as suas obrigações ou quando, tratando-se de pessoas colectivas ou de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado por recurso às normas contabilísticas aplicáveis (art.ºs 3 nº 1 e 2 do CIRE).
O desequilíbrio económico grave do devedor, que tenha a natureza de pessoa meramente jurídica ou de património autónomo, patente na insuficiência, desde que manifesta, do activo para satisfação do passivo, aliada à inexistência de pessoa singular que responda ilimitada e pessoalmente pelas suas dívidas, constitui também fundamento de consideração do devedor no estado de insolvência.
No tocante às pessoas colectivas, género que as sociedades comerciais constituem uma espécie, e aos patrimónios autónomos a impossibilidade de solver as suas obrigações liga-se normalmente à insuficiência do activo. Por isso que se consideram em estado de insolvência quando o activo for inferior ao passivo e não exista pessoa singular que responda, pessoal e ilimitadamente por ele.
Mas esta constatação não autoriza a conclusão de que, por exemplo, as sociedades comerciais só podem ser declaradas insolventes quando o seu passivo seja superior ao activo. No tocante às sociedades comerciais, para manter o exemplo dado, a insuficiência do activo para solver o passivo, soma-se ao outro fundamento ou pressuposto objectivo de declaração da insolvência mencionado: é um fundamento específico, especial – recuperado pelo CIRE - que não exclui o outro fundamento geral, antes lhe acresce O critério da insuficiência do activo não é, na verdade, desconhecido no nosso direito, remontando ao Código das Falências de 1935, aprovado pelo Dec. 25 981, de 26 de Outubro, no qual já era admitido, complementarmente, a par do critério fundamental básico, como causa especial de falência, mas apenas no tocante às sociedades de responsabilidade limitada (art.º 1774 nº 2 do CPC, revogado pelo artº 9 do Dec.-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o CPEREF). Comentando o preceito correspondente do CPC de 1939 – o art.º 1136 § 1º - Alberto dos Reis, depois de citar o Relatório do Código de Falências 1935, Código que entretanto havia sido integrado no Código de Processo Civil, fazia notar que a existência daquele critério não deveria levar à conclusão de que a falência das sociedades daquela espécie só poderia ser decretada quando se desse o caso de o passivo ser superior ao activo e que a doutrina exacta era, antes, a de que se tratava de um fundamento especial, que se somava às outras causas de falência indicadas na lei. Cfr. Processos Especiais, vol. II, Coimbra, 1982, págs. 318. No mesmo sentido se pronunciavam Pedro de Sousa Macedo – Manual de Direito das Falências, vol I., Almedina, Coimbra, 1964, pág. 288 e – de forma crítica - Sá Carneiro – Notas ao Código de Falências, Revista dos Tribunais, Ano 51, pág. 292 e Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 111 - que sublinhava que, não funcionando nas sociedades de responsabilidade limitada, o elemento pessoal, a falência devia fundar-se também na insuficiência do activo. É um pressuposto objectivo de insolvência especial no sentido de que só respeita a espécie particular de devedores e não com o significado de que a estes não é também aplicável o fundamento ou causa geral de declaração daquele estado.
A impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos que caracteriza o estado de insolvência, pode, porém, ser meramente casual, ou fortuita e culposa, lato sensu (artº 185 do CIRE).
A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (art.º 186 nº 1 do CIRE).
No caso, os próprios Recorrentes, na Oposição deduzida no presente incidente, alegam que cederam o crédito porque a sociedade Insolvente não teria como pagar os custos inerentes à continuação do processo judicial em que se discutia o crédito em causa.
Sendo ainda certo que, não obstante as dívidas ainda existentes, os Recorrentes decidiram proceder ao encerramento da actividade da sociedade Insolvente em sede de IVA por a mesma não ter qualquer actividade.
Neste contexto, não há como negar que os Recorrentes sabiam que a sociedade se encontrava em situação de insolvência, não tendo iniciado o correspondente processo.
E mesmo que se entenda que à data da cessão do crédito estavam apenas confrontados com uma situação de insolvência meramente iminente, pois nessa data ainda não tinham sido desapossados pela M…, S.A. da possibilidade de exploração comercial das Lojas …, nem havia decisão definitiva no processo que opunha a Devedora a esta entidade (cedente). Isto porque acompanhamos CARVALHO FERNENDES E JOÃO LABAREDA[[16]] quando sustentam existir mesmo perante a insolvência iminente (art.º 3.º, n.º 4, do CIRE), um dever de o devedor se apresentar à insolvência, se a situação não puder ser ultrapassada. E, no caso, como se viu, a situação não podia ser ultrapassada pois estava bom de ver que a expectável resolução dos contratos de cessão de exploração das Lojas, pretendida por ambas as partes, retiraria à Devedora a fonte de rendimentos respectiva.

2.2.2. No recurso interposto, os Recorrentes pugnam ainda pela não afectação das Recorrentes Carla … e Carmen …pela decisão da insolvência culposa, na medida em que o Tribunal a quo deu como provado que as mesmas nunca exerceram funções de gerência e pela não afectação do Recorrente Manuel …, por não ter ficado provada qualquer actuação deste que, em concreto, pudesse ter criado ou agravado a situação de insolvência.
Mais alegando que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 186.º, n.º 1, e 189.º, n.º 2, alínea a), ambas do CIRE, o facto de as Recorrentes serem apenas gerentes de Direito não as torna automaticamente afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, tendo o Tribunal que ponderar o grau de culpa de cada um dos gerentes para concluir por essa mesma afectação.
Na verdade, o Tribunal a quo foi parco em palavras no que toca à motivação da decisão de afectação dos Recorrentes pela qualificação da insolvência e bem assim quanto ao grau de culpa de cada um deles.
Como quer que seja, é irrelevante para o caso em apreço a circunstância de ter ficado provado que as Recorrentes Carla … e Carmen…, gerentes de direito, nunca exerceram funções de gerência e que estas eram levadas a cabo pelos seus pais, os Recorrentes Ilda … e Manuel … (gerentes de facto – cf. ponto 1.7 do Factos Provados – na medida em que resulta dos Factos Provados sob os pontos 8. e 9. que os Recorrentes, todos os quatro, discutiram a tomaram as decisões em família, actuaram conluiados, em comunhão de propósitos e no interesse da família Marques.
Em suma, nesta caso não se justifica a diferenciação, em termos de culpa, entre administradores de direito e de facto.
Pelo exposto, não deve ser alterada neste aspecto a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

2.2.3. Os Recorrentes mais invocam a inconstitucionalidade das normas dos artigos 186.º, n.º 2, e 189.º, n.º 2, alínea a), do CIRE quando interpretadas no sentido de estabelecerem uma presunção inilidível de culpa de todos os administradores do devedor.
Alegam, por um lado, que o Tribunal a quo interpretou as normas vertidas nos artigos 186.º, n.º 2, e 189.º, n.º 2, alínea a), do CIRE no sentido de que as mesmas estabelecem presunções inilidíveis e que tal interpretação é inconstitucional por violação do princípio da proibição da indefesa.
Ora, a este propósito, já se referiu que a maioria da doutrina e da jurisprudência vai no sentido de que as presunções estabelecidas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE são inilidíveis, o que, aliás, os próprios Recorrentes admitem.
Já se referiu que a lei instituiu no n.º 2 do artigo 186.º uma presunção iuri et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo prova em contrário. A única prova que os propostos poderiam fazer é a de não terem praticado o acto. Ora, da prova produzida e dos respectivos depoimentos unânimes dos Recorrentes o acto lesivo em causa foi praticado por decisão conjunta.

Com efeito, não se pode sustentar, a inconstitucionalidade material do instituto da qualificação da insolvência como culposa nos termos do art.º 186º, nº2 do CIRE bem como da norma do art.º 189º, nº2, al. c) do mesmo diploma, que permite a declaração da inabilitação para o comércio das pessoas afectadas pela insolvência, por violação do princípio da proporcionalidade ou do princípio de indefesa, consagrados nos artigos 18º e 20.º, n.º 4, da CRP, respectivamente.
Estabelece o artigo 204.º da CRP, que “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
A inconstitucionalidade material é o vício que afecta as normas ordinárias que infringem o disposto na Constituição da República Portuguesa e os princípios nela consignados.
Assim e começando pelo art.º 186º, nº 2, diremos, em consonância com a jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, que esta norma não se mostra ferida de inconstitucionalidade material, pois que nada obsta a que o legislador estabeleça presunções iuris et de iure, com as consequentes limitações ao âmbito da prova dos factos que as poderiam infirmar, desde que as mesmas visem atingir um fim legítimo e não se revelem desproporcionadas. E que, alicerçando-se os objectivos por elas prosseguidos em razões de segurança jurídica e de justiça material (evitar a subjectividade inerente a um juízo de censura ético-jurídico e superar as dificuldades de apuramento de todo o circunstancialismo que envolveu a situação de insolvência), o estabelecimento da presunção de culpa em face da verificação dos factos descritos nas várias alíneas do nº 2 do citado art.º 186º revela-se adequado, necessário e razoável como meio de atingir esses objectivos.
Do mesmo modo julgamos ser de afastar a inconstitucionalidade material da norma do nº 2, al. c) do art.º 189º do CIRE, por violação do art.º 18º da CRP.
Senão vejamos.
Estatui o referido artigo que, sendo a insolvência qualificada como culposa, o juiz declara, como principal efeito substantivo dessa qualificação no que respeita à capacidade jurídica, a inibição das pessoas afectadas para o exercício do comércio e para o desempenho de determinados cargos por um período de 2 a 10.
Estabelece o artigo 18º, nº2 da CRP que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Ora resulta do diploma que aprovou o CIRE (Dec.-Lei nº 53/2004, de 18 de Março) que a finalidade do incidente de qualificação da insolvência “reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da empresa ou dos administradores de pessoas colectivas”, com o propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, objectivo que não seria alcançado se, nessas situações, não sobreviessem quaisquer consequências para os responsáveis que hajam contribuído para a insolvência da empresa, pois que "a coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais varados actos prejudiciais para os credores”.
Entre essas consequências penalizadoras para os responsáveis pelas insolvências culposas encontra-se, precisamente, a inibição temporária para o exercício do comércio e desempenho de determinados cargos, a qual visa proteger o interesse dos credores, assumindo um carácter sancionatório predominantemente preventivo.
E ainda que essas medidas possam ser entendidas como restrições ao direito à capacidade civil, a verdade é que as mesmas não são arbitrárias, injustas ou prepotentes, na medida em que justificam-se pela protecção devida aos credores e ao interesse colectivo do regular desenvolvimento da actividade económica e empresarial.
Daí impor-se concluir que a norma do art.º 189º, nº 2, al. c) do CIRE não ofende o princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º, nº 2 da CRP, não se mostrando, por isso, ferida de inconstitucionalidade material.

2.2.4. Da condenação indiferenciada de todos os Requeridos e da incorrecta ponderação e fixação do período de inibição:
O Tribunal a quo aplicou a todos os Requeridos igual sanção, determinando as mesmas consequências para cada um deles.
Argumentam os Recorrentes que a decisão em crise deveria ter fixado o grau de culpa dos Requeridos, nos termos do artigo 189.º, n.º 2, alínea a), do CIRE, e que os factos provados não consentem a condenação indiferenciada e generalizada dos Requeridos.
Não concordamos com este argumento e antes acompanhamos neste segmento a decisão recorrida, pois resultou à saciedade da prova produzida que, apesar das Recorrentes nunca terem exercido a gerência de facto da sociedade insolvente, a verdade é que as decisões relevantes passavam por todos os Recorrentes.
Justifica-se, assim, a condenação indiferenciada e generalizada dos Requeridos.

→ Já que no que concerne à medida da inibição “para o exercício do comércio e a ocupação em geral de cargos sociais” reconhecemos a razão dos Recorrentes, por entendermos que o período de 5 anos fixado é excessivo, por desproporcionado às circunstâncias dos autos, justificando-se antes a aplicação do prazo mínimo de 2 anos previsto na lei, justificando-se esta duração por os factos provados não permitirem qualificar de particularmente censurável a conduta dos Requeridos.
Desta sorte, a sentença em crise será alterada nessa parte.

2.2.5. Da putativa condenação indevida dos Requeridos a indemnizar os credores da sociedade Insolvente:
Entendem os Recorrentes que tal condenação deveria ser diferenciada, por diferenciados serem os graus de culpa dos Requeridos, e que o Tribunal a quo não estabeleceu na sentença em crise os critérios da sua quantificação.
Ora, conforme já se referiu, no caso em apreço justifica-se a condenação de todos os Requeridos nos mesmos e exactos termos e com as mesmas consequências por ser idêntico o grau de culpa de cada um deles, já que o acto lesivo em causa foi decidido em família, por todos e cada um deles, tendo todos actuado de forma conluiada e em comunhão de intentos e propósitos.
Nesta medida, por ser igual o grau de culpa de cada um dos Requeridos, a condenação não poderia ser diferenciada.

2.2.6. Finalmente, alegam os Recorrentes, sem que disso retirem qualquer efeito prático, ainda sob as vestes da impugnação de Direito, que o Tribunal a quo não considerou factos alegados em sede de oposição e dobre os quais foi produzida prova.
No entanto, como bem refere a Recorrida na resposta ao recurso, tal alegação carecia de ser feita em sede de impugnação da matéria de facto e não em sede de impugnação dos fundamentos de Direito. E deveria os Recorrentes ter indicado quais os concretos meios de prova produzida que impunham que o Tribunal a quo tivesse dado determinado facto como provado.
Não o tendo feito, não pode ser atendida esta sua objecção, sendo certo que foi reapreciada toda a prova e esta Relação introduziu à decisão da matéria de facto as alterações que entendeu pertinentes.

3. Assim, e em jeito de conclusão, o recurso procede parcialmente, quer quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, quer relativamente à impugnação dos fundamentos de Direito.
4. Tendo decaído na apelação, ambas as partes são responsáveis, na medida do respectivo decaimento, que se fixa em 90% para os Recorrentes e 10% para a Recorrida – artigo 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e totalmente procedente o pedido de ampliação do âmbito do recurso e, em consequência:
(a) Procede-se à alteração dos Factos Provados sob os pontos 1, 1.1. e 1.2., que passam a ter a seguinte redacção:
«1. A insolvente foi constituída em 14-06-1999, com a designação Ilda …e Filhas, Lda.
1.1. Tinha como sócios:
1.1.1. ILDA…;
1.1.2. MANUEL …;
1.1.3. CARMEN  …; e
1.1.4. CARLA ….
1.2. Como gerentes:
1.2.1. ILDA …;
1.2.2. MANUEL …;
1.2.3. CARMEN …; e
1.2.4. CARLA …»;

(b) Adita-se aos Factos Provados o ponto 1.9. com o seguinte teor:
«Ilda … e Manuel … deixaram de ser sócios da sociedade Insolvente, por cessão de quotas registada em 22-12-2000, a favor, respectivamente, das filhas Carla… e Carmen ».

(c) Altera-se a redacção do ponto 7. Dos Factos Provados, nos termos seguintes:
«7. Nas contas da Insolvente mostram-se inscritas com a designação de “suprimentos” entregas de quantias pela Requerida Ilda ... àquela sociedade, sendo que tais financiamentos no exercício de 2011 estavam registados pelo montante de €277.211,00»
(d) Adita-se aos Factos Provados o ponto 7.A) com o seguinte teor:
«7.A) A sócia Ilda … financiou a sociedade Insolvente no período compreendido entre 14/06/1999 e 31/02/2000, sendo que nesta data tinha um crédito sobre a sociedade no montante de Esc.: 86.042.224$00, conforme saldo da conta sócios 25511/Ilda …s».

(e) Altera-se a redacção do ponto 8. dos Factos Provados que passa a ter o seguinte teor:
«8. A sócia e gerente da D…, Lda., Carmem …, ao dispor, nesta qualidade, do crédito da referida sociedade, cedendo-o à sua mãe, Ilda …, agiu em conluio com esta, com o pai, Manuel … e com a irmã, Carla …»;
(f) Adita-se aos Factos Provados o ponto 9. com o seguinte teor:
«9. Foi propósito firmado de todos, sócias e gerentes da D…, Lda.., bem como dos seus ex-sócios e gerentes de facto, Ilda … e Manuel…, ocultar ou fazer desaparecer o crédito litigioso reclamado na acção …/…, de modo a obstar ao pagamento devido aos credores daquela sociedade (M…, S.A. e Segurança Social)».
(g) Revoga-se a decisão proferida sob VII, alínea C) e, em sua substituição, decide-se declarar os Requeridos Carmem…, Carla…, Ilda… e Manuel…, inibidos, pelo período de 2 (dois) anos para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
(h) No mais, confirma-se a sentença recorrida.
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Custas por ambas as partes, na proporção de 95% para os Recorrentes e de 5% para a Recorrida.
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Registe e notifique
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Lisboa, 20 de Setembro de 2018

Manuel Rodrigues

Ana Paula A. A. Carvalho

Gilberto Jorge

[1] Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4ª edição revista, pág. 109.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-7-2016 (Conselheiro Gonçalves Rocha), processo n.º 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] O facto provado e os factos não provados objecto de impugnação são apresentados em itálico.
[4] Neste sentido vão os Acórdãos da Relação de Coimbra, 25/10/2011, proc.º 1006/10.7TBCVL.C1 (Relator: Henrique Antunes) e de 12/06/2012, proc.º 4541/08.3TBLRA.C1 (Relator: António Beça Pereira), acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 370. Refere ainda o autor que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa”. 
[6]  Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 44.
[7] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pp. 392-393.  
[8] No entanto é sempre necessário o preenchimento do limite temporal dos 3 anos, previsto no n.º 1 do artigo 186.º, ou seja, apenas os actos praticados nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência serão relevantes para efeitos do preenchimento do n.º 2.
[9] Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado,  Almedina, 2017 – 9.ª edição, p. 235-236.
[10] CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 66, II, Lisboa, Setembro de 2006, pp. 692-693.
[11] Cfr. Manual de Direito da Insolvência, 2016 – 6.ª edição, Almedina, p. 131.
[12] Assim, GÁRCIA-GRUCES, José Antonio, Comentario de la Ley Concurrsal (tomo II), org. ROJO, Ángel/BELTRÁN, Emílio, Thomson, 2004, p. 2526.
[13] Obra citada, pp. 696-697.
[14] Luís Menezes Leitão, Direito de Insolvência, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 275. Neste sentido também Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2008, p. 611, nota 8.
[15] Lições de Direito da Insolvência, Almeida, 2018, p. 301,
[16] Código da Insolvência Anotado, anotação ao art.º 3,º, n.º 4 e 5, pp. 84-85.