Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26441/21.1T8LSB.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA DE PRESTAR TRABALHO
INCAPACIDADE PARA O TRABALHO
DEVER DE OCUPAÇÃO DO TRABALHADOR EM FUNÇÕES COMPATÍVEIS COM O SEU ESTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I. A impossibilidade do trabalhador prestar trabalho será absoluta quando seja total, isto é, quando não esteja em condições de o prestar, sequer em parte, segundo a sua categoria profissional, atendendo à imodificabilidade do objecto do contrato decorrente do princípio geral das obrigações pacta sunt servanda.

II. Não resultando a incapacidade de acidente de trabalho mas de causa natural, o empregador não tem o dever de assegurar ao trabalhador ocupação em funções e condições de trabalho compatíveis com o respectivo estado.

III. Não releva para a qualificação como incapacidade absoluta a externalização pelo empregador dos serviços que o trabalhador realizava, pois que isso não contende com as suas capacidades físicas; embora pudesse eventualmente relevar para a extinção do seu posto de trabalho, o que aquele não invocou para fazer cessar o contrato de trabalho.


(Elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


I–Relatório.


AAA instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra BBB, pedindo que a ré fosse condenada:
- no reconhecimento da nulidade da caducidade do contrato de trabalho celebrado com a ré;
- no reconhecimento da ilicitude do despedimento da autora, efectuado a 10-10-2021, por inexistência de motivos que fundamentem tal caducidade e, consequentemente, aquela condenada a:
a)-reintegrá-la ao serviço, nas mesmas funções ou reconvertendo-a para a categoria de Ajudante de Acção Directa, eventualmente substituída pela indemnização de antiguidade, calculada em € 10.026,76, sem prejuízo da que vier a fluir a final, conforme a sua posterior opção;
b)-pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde 30 dias antes da propositura da acção até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude de despedimento, deduzidas as importâncias a que se refere o art.º 390.º, n.º 2, CT, a apurar em liquidação;
c)-pagar-lhe € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais;
d)-pagar-lhe a quantia de € 154,80, a título de formação profissional;
e)-acrescido de juros de mora devidos desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.

Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.

Para tal notificada, a ré contestou, refutando o alegado pela autora.

Proferido despacho saneador, foi julgada a instância válida e regular, fixado o objecto do processo e dispensada a fixação dos temas de prova, admitidas as provas arroladas pelas partes e reafirmada a data previamente designada para realização da audiência de julgamento.

Realizada a audiência de julgamento, o Mm.º Juiz proferiu a sentença, na qual julgou a acção parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:
A.–condenou a ré a pagar à autora, a título de formação profissional não ministrada, o valor total de € 154,80 e sobre esta quantia devidos juros, à taxa legal, contados desde a data de citação;
B.–absolveu a ré do demais peticionado pela autora.

Inconformada, a autora interpôs recurso, pedindo que a sentença proferida seja revogada apenas quanto à matéria constante do recurso, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"I)–O presente recurso vem interposto da decisão que julgou a acção parcialmente provada, condenando a ré a pagar à autora, a título de formação profissional não ministrada, o valor total de € 154,80 (cento e cinquenta e quatro euros e oitenta cêntimos), sobre esta quantia são devidos juros, à taxa legal, contados desde a data de citação e absolveu a ré do demais peticionado pela autora.
II)–A referida decisão, com o devido respeito, não fez a correcta subsunção dos factos dados como provados ao Direito, nomeadamente não teve em conta a ausência da verificação do disposto na alínea b) do artigo 343.º do C.T.
III)–Sem que se verifique a existência de documento médico idóneo, emitido por quem de direito, a sustentar tal impossibilidade.
IV)–A caducidade do CT com fundamento na impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de a autora prestar o seu trabalho é suportada em fichas de aptidão médica, no âmbito da medicina do trabalho, do período de 2016 a 2021.
V)–As fichas de aptidão estabelecem recomendações que em nada indicam que a trabalhadora não está apta para o trabalho, e mantêm essas mesmas recomendações ao longo de 6 anos, sem alterações dignas de nota.
VI)–De 2016 a 2021 não resulta da matéria provada que a autora tenha tido períodos de ausência ao serviço por incapacidade para o trabalho, vulgo baixa médica.
VII)–A autora não requereu, junto da Segurança Social, a avaliação médica com base na informação obtida na Segurança Social de que não poderia fazê-lo. É consabido que tal avaliação só tem lugar após períodos significativos na situação de incapacidade para o trabalho, situação essa que não se verificou.
VIII)–Na verdade, como resulta dos factos provados, ao longo da relação laboral e mais especificamente no período de 2016 a 2021, a autora sempre desempenhou tarefas inerentes ao escopo da sua categoria profissional.
IX)–Em 2021 não surgiu nenhum facto novo, relativamente ao estado de saúde da autora, que possa fundamentar a decisão da ré de fazer caducar o seu contrato de trabalho ao abrigo da alínea b) do artigo 343.º do C.T.
X)–O apoio de colegas no desempenho das tarefas mais exigentes do ponto de vista físico, é recorrente em qualquer entidade empregadora.
XI)–Em momento anterior à decisão de fazer caducar o contrato de trabalho por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva da autora prestar o seu trabalho, a ré pretendeu cessar o contrato de trabalho da autora por extinção do posto de trabalho, conjuntamente com o de outras duas trabalhadoras.
XII)–Das três trabalhadoras abrangidas pela extinção do posto de trabalho, apenas a autora não foi reconvertida, apesar do compromisso assumido pela ré de reconverter a autora para a categoria profissional de Auxiliar de Acção Médica (AAD).
XII)–A partir da recusa da autora em aceitar a extinção do seu posto de trabalho, a ré impediu-a de realizar as suas tarefas habituais no interior das instalações, e ordenou-lhe a limpeza do espaço exterior.
XIV)–Para uma trabalhadora que a ré considera não estar apta para o serviço de limpeza no interior das instalações, impedindo-a de continuar a desempenhar as suas tarefas habituais ao mesmo tempo que lhe atribui tarefas de limpeza do espaço exterior, o propósito da ré não pode ser outro que não o de humilhar a autora, levando-a a aceitar o despedimento.
XV)–Razão pela qual, também neste segmento do aresto discordamos da decisão do tribunal a quo por considerarmos que da matéria de facto provada se conclui que o comportamento da ré consubstancia assédio laboral, nos termos do artigo 29.º do C.T., com a agravante da autora ser dirigente sindical".

Contra-alegou a ré, pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da sentença recorrida.

Admitido o recurso na 1.ª Instância e remetido a esta Relação, foram os autos com vista ao Ministério Público,[1] tendo a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta sido do parecer que se resume:
"(…)
Ora, se não restam dúvidas quanto à presença de uma impossibilidade «superveniente» e «definitiva», parece subsistir a dúvida quanto ao factor «absoluta», no que respeita à interpretação e aplicação do art.º 343.º b) do C. do Trabalho.
A recorrente movimentava-se e era fisicamente capaz de executar algumas das tarefas inerentes à sua actividade e, efectivamente, executava-as. Se o fazia com proficiência, ou se incumpria os seus deveres funcionais, constitui questão diversa, a encarar em sede de eventual justa causa de despedimento. No caso, não há que analisar a verificação de justa causa, uma vez que não chegou a existir processo disciplinar, o que sempre tornaria o despedimento ilícito.
Nesta perspectiva, admite-se que o recurso possa merecer provimento, embora não com as consequências sustentadas no plano da verificação de assédio (que não nos parece provado)".

Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.

Colhidos os vistos,[2] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, sem prejuízo embora de se dever atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[3] Assim, importa saber se:
  • o contrato de trabalho celebrado entre as partes não caducou por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva da apelante prestar o seu trabalho mas por despedimento da mesma.

***
IIFundamentos.

1.-Factos julgados provados:
"1.-Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do 'Contrato de Trabalho a Termo Incerto' datado de 01-7-2014, bem como o seu Aditamento datado de 01-7-2015 (documento n.º 1 da PI, a fls. 9 verso a 11, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
2.-A 01-7-2014, a autora AAA começou a trabalhar sob a autoridade e direcção da ré.
3.-Nos referidos contrato e Aditamento consta que a autora tinha a categoria profissional de trabalhadora auxiliar.
4.-Ultimamente, auferia a remuneração salarial mensal de base € 670,00/mês, acrescida de € 21,50 de diuturnidade (cfr. documento n.º 2 da PI, a fls. 11 verso, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
5.-A autora prestava o seu trabalho na sede da ré, em Lisboa, na freguesia de Campolide (cfr. documento n.º 1 da PI).
6.-A autora trabalhava em regime de turnos, das 8:00 horas às 16:00 horas, das 9:00 horas às 17:00 horas e das 11:00 horas às 19:00 horas.
7.-A autora é associada do CESP - Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP) desde o ano de 2018.
8.-A autora foi eleita para os corpos gerentes do CESP a 07-4-2021 (cfr. documento n.º 3 da PI, a fls. 12, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
9.-Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da carta dirigida pela ré à autora e datada de 18-10-2021 (documento n.º 4 junto com a PI, cuja versão integral consta de fls. 50 e 50 verso e que aqui se considera integralmente reproduzido), da qual se passam a transcrever os seguintes excertos:
'(…) Assunto: Caducidade do contrato de trabalho por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de a trabalhadora prestar o seu trabalho.
(…) no decurso da relação laboral, e devido a doença natural, constata-se que V. Exa. ficou com uma incapacidade definitiva, superveniente e absoluta, de prestar a sua actividade laboral à entidade empregadora, verificando-se, em simultâneo, a impossibilidade, por parte da entidade empregadora, de lhe proporcionar outra actividade compatível com o seu estado de saúde, dada a inexistência objectiva de posto de trabalho cujas funções a desempenhar sejam adequadas ao seu estado de saúde.
Actualmente, V. Exa. encontra-se a desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de 'Trabalhadora Auxiliar de Serviços Gerais', tendo-lhe sido atribuídos os chamados trabalhos melhorados, atendendo às limitações físicas que tem vindo a apresentar desde 2016.
De acordo com o disposto no Contrato Colectivo de Trabalho, a categoria profissional de 'Trabalhadora Auxiliar de Serviços Gerais', que compreende as seguintes funções:
- Proceder à limpeza e arrumação das instalações;
- Assegurar o transporte de alimentos e outros;
- Servir refeições em refeitórios;
Desempenhar funções de estafeta e proceder à distribuição da correspondência e valores por protocolo;
Efectuar o transporte de cadáveres;

Desempenhar outras tarefas não específicas que se enquadrem no âmbito da sua categoria profissional e não excedam o nível de indiferenciação em que esta se integra.

Sucede, porém, que V. Exa. encontra-se, desde finais de Outubro/ início de Novembro de 2016, a não conseguir desempenhar as tarefas supra elencadas, na essencialidade das funções a que se obrigou segundo a sua categoria profissional, nem mesmo em regime de trabalhos melhorados, em virtude da declaração e relatórios médicos, emitidos em 21 de Outubro de 2016, no seguimento de consulta externa no Hospital … dos quais resulta, em síntese, que 'por motivos de saúde, não deve fazer esforços físicos de grande intensidade'.

Sendo que as limitações físicas de que V. Exa. padece mantêm-se até hoje, e foram inclusivamente atestadas por fichas de aptidão para o trabalho emitidos em momentos posteriores ao período de 2016, designadamente em 23 de Janeiro de 2019, 23 de Dezembro de 2020 e 3 de Setembro de 2021, donde se retira que V. Exa. está apenas 'apta condicionalmente' para o exercício das suas funções actuais, e que devem ser evitadas tarefas 'com elevação/ manipulação de cargas de 5 kg e com inclinação/ rotação do tronco'.

Donde resulta claro que a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva está alicerçada em mais do que uma ficha de aptidão, em relatórios médicos, num auxílio contínuo na prestação de trabalho, uma vez que a situação desde 2016 se mostra irreversível e não temporária, onde um simples balde de água para limpeza do chão e respectiva limpeza do mesmo, ou a simples de janelas não tarefas passíveis de serem prestadas por V. Exas.

Ora, desde 2016 que a essencialidade das funções não é exercida por parte de V. Exa., sendo que, até à data de 20 de Setembro de 2021, esse exercício acontecia com o auxílio das outras colegas, tal era a impossibilidade que se veio a mostrar ao longo do tempo, previsivelmente irreversível e não meramente temporária.

Significando que, desde 2016, E. Exa. não consegue desempenhar as funções da V/categoria profissional de forma independente e autónoma, sem colocar em risco a sua saúde, segurança e bem-estar, no seio laboral.'.

10.-Desde 19-10-2021 que a autora não mais desenvolveu actividade para a ré.

11.-Juntamente com a carta acima citada no ponto 9, a ré apresentou 'Ficha de Aptidão para o Trabalho', relativas aos anos de 2019 a 2021 e declaração médica datada de 21-10-2016, sendo que o teor de tais documentos aqui se considera integralmente reproduzido, com e para todos os efeitos (documentos n.os 5, 6, 7, 8, 9 da PI, cujas versões legíveis consta, respectivamente, de fls. 42, 43, 44, 14 verso, e fls. 45), e dos quais se destacam os seguintes excertos:

a.-Ficha de Aptidão para o Trabalho datada de 23-01-2019, redigida e assinada pelo Médico do Trabalho Sr. Dr. … (documento n.º 5 da PI, a fls. 42, e documento n.º 1 da contestação, a fls. 33 verso, cujo teor de ambos os documentos aqui se considera integralmente reproduzido): '(…) Identificação de factores de risco profissional: [as seguintes menções encontram-se manuscritas:] sim. risco postural, carga trabalho físico, transporte manual de cargas;
Resultado de aptidão para a função proposta ou actual (…) Apto condicionalmente.

(…) Recomendações (…) outras: Não deverá fazer transporte manual de cargas superiores a 5 kg. Deverá evitar posição ortostostática por longos períodos. Regressa dentro de 60 dias. (…)'.

b.-Ficha de Aptidão para o Trabalho datada de 23-12-2020, redigida e assinada pelo Médico do Trabalho Sr. Dr. … (doc. 6 da PI, a fls. 43): '(…) Identificação de factores de risco profissional: sim. ambiente térmico, outros agentes físicos, outros agentes psicossociais ou organizacionais, movimentação manual de cargas, posições incorrectas, esforços e/ou movimentos extremados, outros agentes da actividade de trabalho, queda de materiais ou objectos, utilização de equipamentos de trabalho, outros agentes, risco postural (trabalho essencialmente em pé/movimentação de cargas animadas: idosos)./ Riscos biológicos, risco mecânico, risco químico, riscos psicossociais, condução defensiva, exposição a poeiras, cheiros e vapores. (…)
Resultado de aptidão para a função proposta ou actual (…) Apto condicionalmente.

(…) Recomendações (…) outras: Não deverá fazer transporte manual de cargas superiores a 5 kg. Deverá evitar posição ortostostática por longos períodos. Deverá fazer dieta de acordo com plano prescrito. (…)'

c.-Ficha de Aptidão para o Trabalho datada de 3-9-2021, cuja Médica do Trabalho signatária foi a Sra. Dra. … (doc. 7 da PI, a fls. 44): '(…) Identificação de factores de risco profissional: sim. ambiente térmico, outros agentes físicos, outros agentes psicossociais ou organizacionais, movimentação manual de cargas, posições incorrectas, esforços e/ou movimentos extremados, outros agentes da actividade de trabalho, queda de materiais ou objectos, utilização de equipamentos de trabalho, outros agentes, risco postural (trabalho essencialmente em pé/movimentação de cargas animadas: idosos)./ Riscos biológicos, risco mecânico, risco químico, riscos psicossociais, condução defensiva, exposição a poeiras, cheiros e vapores. (…)

Resultado de aptidão para a função proposta ou actual (…) Apto condicionalmente.

(…)Recomendações (…) outras: Evitar tarefas com elevação/manipulação de cargas mais de 5 kg e com inclinação/rotação do tronco. (…)'.

d.-Ficha de Aptidão para o Trabalho datada de 23-01-2019, redigida e assinada pelo Médico do Trabalho Sr. Dr. … (doc. 9 da PI, a fls. 45): '(…)

Identificação de factores de risco profissional: não. (…)

Resultado de aptidão para a função proposta ou actual (…) Apto condicionalmente.

(…) Recomendações (…) outras: Não deverá fazer transporte manual de cargas superiores a 5 kg. Deverá evitar posição ortostostática por longos períodos. Regressa dentro de 60 dias. (…)'.

12.-Mais se provou (artigo 72.º, n.º 1, parte final, do CPT): No que respeita à Ficha de Aptidão para o Trabalho de 2019, acima citada no ponto 11. a), há que ter em consideração o seguinte aspecto: no mês de Janeiro de 2019 a empresa ... procedeu à desmaterialização dos processos, nomeadamente através da instalação de sistema informático, o qual, por sua vez, passou a processar tais fichas de aptidão. Uma vez impressa tal Ficha de Aptidão, o respectivo Médico signatário - Sr. Dr. … - notou que a  mesma se encontrava incompleta no que respeita à rubrica 'Identificação de factores de risco profissional', pelo que o mesmo Médico determinou que tal ficha fosse completada por forma manuscrita.

13.-Para além da autora, existiam mais duas trabalhadoras, do quadro da ré, com a categoria profissional de auxiliar de serviços gerais.

14.-No mês de Julho de 2021, a ré apresentou à autora e a … proposta de cessação do contrato de trabalho, que ambas não aceitaram.

15.-No âmbito do acima indicado no ponto anterior, a ré referiu a necessidade de extinguir postos de trabalho.

16.-Tal situação determinou que o Cesp – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal solicitasse a intervenção da DGERT – Direcção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho.

17.-Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da acta da reunião realizada a 3-8-2021 no âmbito da Dgert (cfr. documento n.º 11 da PI, fls. 16 a 18), do qual se destacam os seguintes excertos:
'(…) Declarou a Associação que a … externalizou, há anos, os serviços de cozinha assim como o serviço de bar também foi externalizado e está agora, a Instituição, a tentar externalizar os serviços de limpeza. Esta externalização prende-se com a necessidade de assegurar a sustentabilidade da … sendo indispensável uma reestruturação financeira da instituição.

Por outro lado, com o aumento do número de utentes a residir no lar (…), verifica-se a necessidade de um maior número de trabalhadoras para desempenhar a função de Ajudantes de Acção Directa.

Desta forma, há a possibilidade de reconverter estas trabalhadoras passando estas a deter a categoria de Ajudante de acção Directa (AAD), caso não sejam aceites as propostas de extinção do posto de trabalho. (…)

Contudo, a resposta das trabalhadoras à hipótese colocada foi de que não teriam interesse em desempenhar estas funções, quer por motivos pessoais, quer por motivos de saúde, dado os horários de trabalho a que o desempenho desta função obriga.

(…)

A … questionou o … sobre a existência, ou não, de limitações da parte da trabalhadora … para assegurar as funções de AAD nos moldes em que estas estão a sê-lo actualmente.

Em resposta à … o Sindicato declarou que não existirem quaisquer limitações da parte da trabalhadora para o desempenho das funções de AAD.

Face a esta informação a Instituição assegurou então que esta trabalhadora será reconvertida para o desempenho de funções de AAD, mantendo-se, desta forma, ao serviço na Instituição.

(…)'.

18.-A partir de Setembro de 2021, a ré determinou que a autora passasse a desempenhar funções exclusivamente no exterior do edifício, tendo como tarefas: limpeza do pátio; arrumar a oficina; e remoção de folhas e galhos anteriormente cortados.

19.-No âmbito do acima exposto no ponto anterior, o Presidente da Direcção da ré assinou o documento junto na PI com o n.º 12, a fls. 19, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido e do qual se destaca o seguinte:
'À Trabalhadora Auxiliar (Serviços Gerais), AAA
Na sequência do seu pedido de ser informada por escrito, entrego PMP, este documento com o seguinte teor:
Desde 1 de Setembro de 2021, que a … tem um contrato com uma empresa para  higienização e limpeza das suas instalações.
Por esse facto, as suas funções ficaram e até resolução definitiva do assunto à limpeza no exterior do edifício dentro do recinto pertencente à Instituição.
Hoje e como estava sentada a 'distraída' com o telemóvel, aliás situação recorrente, informei-a para proceder à limpeza da zona do parqueamento.
Prontamente informou que não o fazia e posteriormente solicitou com a presença da Directora Técnica que o fizesse por escrito.
Lisboa, 6 de Outubro de 2021. (…)'.

20.-Duas outras trabalhadoras auxiliares de serviços gerais pertencentes ao quadro de pessoal da ré, uma […] foi reconvertida em ajudante de acção directa e a outra [….] ficou encarregue da arrumação da roupa, distribuição de toalhas e fazer camas.

21.-As dificuldades físicas indicadas em 2016 e também reflectidas no documento n.º 8 da PI (fls. 14 verso e acima referido no ponto 11), ou seja 'Para os devidos efeitos se declara que AAA, por motivos de saúde, não deve fazer esforços físicos de grande intensidade', mantiveram-se até à data de cessação do contrato de trabalho.

22.-Já nessa altura a ré atribuiu trabalhos melhorados à autora.

23.-Perante a evolução do estado de saúde da autora – expressos nas Fichas de Aptidão acima citadas – a autora passou a contar com o auxílio da colega …, no que respeita a limpezas, subida de escadas, escadotes ou bancos.

24.-A autora não se mostrava apta ao desempenho de tarefas que implicassem mais esforço; tendo-lhe sido confiada tarefas como limpeza de pó de áreas e superfícies que não exigissem grande esforço.

25.-À data da celebração do contrato de trabalho em apreço (1-7-2014), a ré funcionava como Lar de Idosos e como Centro Dia.

26.-A intenção da ré em contratar os serviços de limpeza de uma empresa especializada surgiu desde logo no ano de 2018, na sequência de as suas instalações terem sido atingidas por um surto de sarna, que foi muito difícil de controlar e exterminar, tendo durado mais de um ano.

27.-A exterminação do referido surto só ocorreu através do recurso à contratação dos serviços de limpeza da referida empresa especializada.

28.-Com a pandemia gerada pela COVID-19, a necessidade de recorrer a serviços profissionais de limpeza agravou-se.

29.-A pandemia levou ao encerramento do Centro Dia.

30.-As instalações da ré passaram a funcionar exclusivamente como lar.

31.-A ré procedeu à contratação de serviços externos especializados de limpeza.

32.-As propostas apresentadas pela ré à autora tinham por base as necessidades operacionais da mesma ré.

33.-Na decorrência das diligências de tentativa de reconversão da autora na categoria de AAD, a ré solicitou que a mesma autora fosse a consulta médica.

34.-Tal consulta teve lugar no dia 03-9-2021, no âmbito da qual foi emitida a Ficha de Aptidão para o Trabalho acima citada em 11. c).

35.-Com vista a reunir toda a informação clínica acerca do estado da autora, a ré procurou, junto da Segurança Social, que fosse agendada uma avaliação por Junta Médica para a mesma trabalhadora.

36.-Dá-se aqui por integralmente reproduzida, com e para todos os efeitos, as comunicações electrónicas estabelecidas entre a ré e o Instituto da Segurança Social, IP. em Setembro de 2021 (documento n.º 3 junto com a contestação, fls. 35 e 35 verso).

37.-A 7-9-2021, a ré interpelou a autora, convocando-a para requerer, junto da Segurança Social, a dita avaliação.

38.-A autora recusou.

39.-A limpeza da oficina das instalações da ré – acima referida no ponto 18 – não implicou que a autora tivesse que pegar ou transportar cargas superiores a 5 kg.

40.-No controlo da entrada e da saída de pessoas e viaturas das instalações a autora encontrava-se em regra sentada num banco; tais tarefas ocupassem pouco mais do que 2 a 3 horas do horário de trabalho da autora.

41.-A autora chegou a recusar-se assistir as trabalhadoras ajudantes de acção directa, na hora das refeições, dizendo que não era capaz de 'dar comida à boca de outras pessoas'.

42.-Desde sempre a ré possibilitou condições para que a autora desenvolvesse a actividade sindical dentro das instalações.

43.-Assim que solicitado, foi-lhe logo atribuído mais do que um placard, onde a autora podia afixar todo o tipo de panfletos e brochuras relacionadas com o CESP.

44.-Foi-lhe sempre concedida a realização de plenários na garagem da ré, local onde são realizadas todas as reuniões desta mesma Associação.

45.-A autora optou que o dia sindical fosse seguido às folgas, ao que a ré anuiu.

46.-Enquanto dirigente sindical, a autora tinha direito a 40 horas mensais para o exercício da actividade sindical".

2.O direito.
Vejamos então a questão atrás enunciada, a qual, recorde-se, consistia em saber se o contrato de trabalho celebrado entre as partes não caducou por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva da definitiva da apelante prestar o seu trabalho mas por despedimento da mesma.

Tendo em conta a factualidade assente não restam dúvidas de que, como refere a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, "quanto à presença de uma impossibilidade «superveniente» e «definitiva», parece subsistir a dúvida quanto ao factor «absoluta», no que respeita à interpretação e aplicação do art.º 343.º b) do C. do Trabalho".

Conforme enfatizou a Relação de Lisboa, no acórdão de 27-05-2015, no processo n.º 16/14.0TTVFX.L1-4, " impossibilidade (…) será absoluta quando seja total, isto é, quando o trabalhador ou a entidade empregadora não estejam em condições de, respectivamente, prestar ou receber sequer parte do trabalho" e no de 13-01-2016, no processo n.º 497/15.4T8PDL.L1-4, como aquele publicado em http://www.dgsi.pt, "a impossibilidade (…) é absoluta, em regra, quando o trabalhador não possa prestar o trabalho a que se obrigou segundo a sua categoria profissional, atendendo à imodificabilidade do objecto do contrato decorrente do princípio geral das obrigações pacta sunt servanda (art.º 406.º, n.º 1 do CC)". O que alinha com Diogo Vaz Marecos, no Código do Trabalho, Comentado, 2020, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, página 841, na afirmação de que "aquilo que interessa é determinar se o trabalhador se encontra em condições de executar a prestação a que se obrigou, tal como é definida através da categoria profissional e não outra que se encontra fora do programa contratual e cuja execução pressupões a alteração desse programa, ou seja, a modificação do contrato de trabalho".

Por outro lado e uma vez que no caso sub iudice a incapacidade da apelante (que é consensualmente superveniente e definitiva) não terá resultado de acidente de trabalho mas de causa natural,[4] o empregador não tem o dever de assegurar ao trabalhador ocupação em funções e condições de trabalho compatíveis com o respectivo estado.[5]

Para concluir da impossibilidade absoluta da apelante trabalhar a sentença recorrida afirmou o seguinte:
"Resulta provado que a ré tem confiado, cada vez mais ao longo do tempo, serviços de limpeza a empresa especializada (pontos 17, 26, 28 e 31 dos factos provados).
Por sua vez, … e … foram reconvertidas, ou seja deixaram de ter como funções a limpeza do lar da ré (ponto 20 dos factos provados).
Face às limitações físicas da autora (pontos 11, 21 e 23 dos factos provados), a mesma deixou de poder contar com a ajuda das referidas trabalhadoras.
De igual modo, mas noutra perspectiva, as tarefas que podem ser confiadas à autora, ou seja tarefas que não impliquem, nomeadamente, o transporte manual de cargas acima de 5 quilogramas, a movimentação de pessoas e a subida e a descida de cargas, não conseguem ocupar parte substancial das oito horas de trabalho diário da mesma autora.
Face ao exposto, a factualidade provada é efectivamente subsumível na impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva da autora prestar o seu trabalho".

No que concerne ao primeiro argumento da fundamentação, deve dizer-se que não relevará para efeitos da qualificação da incapacidade da apelante como absoluta, pois que a externalização que a apelada vem fazendo dos serviços de limpeza foi uma opção da apelada que em nada colide com a possibilidade física daquela exercer as correspondentes funções (relevará noutro aspecto que adiante se tratará); poderia eventualmente relevar para efeitos da cessação do contrato por extinção do seu posto de trabalho, é certo, mas não sendo disso que trata o processo não se justifica sequer equacionar se efectivamente seria esse o caso (ou seja, se estariam reunidos os pressupostos legais para tal efeito).

Já o segundo argumento é mais consistente, pois que efectivamente resulta dos factos 11, 21 e 23 que entre Janeiro de 2019 e Setembro de 2021 o estado de saúde da apelante era "de aptidão para a função proposta ou actual (…) Apto condicionalmente", que as razões para não "fazer esforços físicos de grande intensidade', mantiveram-se até à data de cessação do contrato de trabalho" e "perante a evolução do estado de saúde da autora (…) passou a contar com o auxílio da colega …, no que respeita a limpezas, subida de escadas, escadotes ou bancos"; todavia não nos dizem que se encontrava absolutamente incapacitada para exercer essas funções. Pelo contrário, afirmam até que era relativamente capaz para isso (que de resto realizou, como resulta dos factos provados n.os 18, 24 e 39), ainda que com a condicionalidade apontada: não "fazer esforços físicos de grande intensidade". E repare-se que os factos não afirmam que a apelante só poderia realizar as tarefas se ou quando ajudada pela colega …, mas sim que perante o seu estado passou a contar com o auxílio desta, o que é algo de substancialmente diferente (a declaração da apelada de que a apelante perdera autonomia para isso consta efectivamente do facto provado n.º 9, mas é apenas isso, ou seja, a afirmação feita por aquela ‒ em carta escrita a 18-10-2021 ‒ de que tal ocorrera e não que correspondesse à realidade).

Por fim, o terceiro argumento avançado na sentença não altera este modo de ver as coisas.

Com efeito, ali se refere que "as tarefas que podem ser confiadas à autora, ou seja tarefas que não impliquem, nomeadamente, o transporte manual de cargas acima de 5 quilogramas, a movimentação de pessoas e a subida e a descida de cargas, não conseguem ocupar parte substancial das oito horas de trabalho diário da mesma autora" e isso em parte é verdade pois que resulta dos factos julgados provados nos n.os 11.a, 11.b, 11.c e 11.d que aquela "não deverá fazer transporte manual de cargas superiores a 5 kg" e 40 que "no controlo da entrada e da saída de pessoas e viaturas das instalações a autora encontrava-se em regra sentada num banco; tais tarefas ocupassem pouco mais do que 2 a 3 horas do horário de trabalho da autora"; porém, nem esses nem os demais julgados provados nos dizem qual o número de horas necessário para a apelante realizar as tarefas remanescentes na apelada compatíveis com a sua categoria profissional (elencadas no facto provado n.º 9) para depois se concluir (ou não) que não era suficiente para preencher o que faltava para completar o seu horário de trabalho (ou seja, 5 horas, tendo em conta as 2 a 3 horas já gastas nos termos atrás referidos e que o seu período normal de trabalho era de 8 horas, como se vê do facto julgado provado n.º 6). No que sempre se teria que ter em conta que o estado de saúde da apelante remontava a 2016 (facto provado n.º 21) e que a externalização dos serviços de limpeza pela apenas surgiu em 2018 (facto provado n.º 26), pelo que seria abusivo pretender prevalecer-se disso em seu benefício.

Assim sendo, importa desde logo concluir que a apelada não provou que a apelante se encontrava absolutamente incapacitada para o trabalho e que por isso o contrato de trabalho que as unia caducara, sendo certo que o ónus da prova corria por sua conta uma vez que se trata de facto constitutivo do direito que invocou, em consonância com o estatuído pelos art.os 340.º, alínea a) e 343.º, alínea b) do Código do Trabalho e 342.º, n.º 1 do Código Civil;[6] e por via disso a declaração que lhe fez por carta de 18-10-2021 segundo a qual "vimos pela presente comunicar, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 3432 do Código do Trabalho, a cessação do contrato de trabalho celebrado com V. Exa., a 1 de Julho de 2015, o qual cessará no dia 19 de Outubro de 2021" (facto provado n.º 9, por referência ao documento n.º 4 junto com a petição inicial aí referido) correspondeu a um despedimento ilícito por violação do estatuído no art.º 381.º, alínea c) do Código do Trabalho.[7]

Ora, a este propósito o Código do Trabalho estabelece, no n.º 1 do art.º 389.º que "sendo o despedimento declarado ilícito, o empregador é condenado: a) A indemnizar o trabalhador por todos os danos causados, patrimoniais e não patrimoniais; b) Na reintegração do trabalhador no mesmo estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, salvo nos casos previstos nos artigos 391.º e 392.º" e no n.º 1 do art.º 390.º que "sem prejuízo da indemnização prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, o trabalhador tem direito a receber as retribuições que deixar de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento".

Assim sendo, podemos desde já dizer que a apelação deve em parte proceder e, em consequência disso, a sentença ser revogada e a apelada condenada:
- no reconhecimento da nulidade da caducidade do contrato de trabalho celebrado com a ré;
- no reconhecimento da ilicitude do despedimento da autora, efectuado a 10-10-2021, por inexistência de motivos que fundamentem tal caducidade e, consequentemente, aquela condenada a:
  • reintegrá-la ao serviço, nas mesmas funções (ou reconvertendo-a para a categoria de Ajudante de Acção Directa, uma vez que nisso a apelante concorda);
  • pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde 30 dias antes da propositura da acção até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude de despedimento, deduzidas as importâncias a que se refere o art.º 390.º, n.º 2, CT, a apurar em liquidação; e
  • juros de mora sobre cada uma dessas quantias, à taxa legal de 4%, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento (atendendo aos termos em que foi peticionado).[8]

No que concerne ao pedido da condenação da apelada a pagar à apelante a quantia de € 154,80, a título de formação profissional, já o mesmo foi afirmado na sentença recorrida, que nessa parte transitou em julgado pois que nenhuma das partes a impugnou nesse segmento e por isso não é objecto da apelação.

Já o mesmo se não pode dizer relativamente ao pedido da apelada ser condenada a pagar à apelante € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, pois que sobre isso a sentença pronunciou-se e julgou-o improcedente, dele absolvendo a apelada, mas a apelante discorda como se vê das conclusões XI a XV.

Sobre esta questão a sentença disse o seguinte:
"Peticiona a autora uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 2.500,00.

O critério concedido pelo legislador no seu artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil (CC), procede ao enquadramento dos danos não patrimoniais que são indemnizáveis. Dele resulta que tais danos, para serem indemnizáveis têm de ter a gravidade suficiente para merecer a tutela do Direito, e deste modo se excluindo, por exemplo, o simples incómodo que a prática do facto tenha causado.

Assim sendo, importa 'apenas' aferir se os bens ofendidos têm um carácter imaterial, merecedor da tutela do direito. E o Código Civil confere um auxílio neste particular, nos artigos 70.º e seguintes. O n.º 1 deste normativo preceitua a regra geral, relativamente à protecção dos direitos de personalidade, ao estatuir que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

Ora, não foi apurada factualidade que possa ser equacionada como danos não patrimoniais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 496.º do CC".

Todavia, a apelante configurou a sua pretensão nos art.os 51.º a 56.º da petição inicial afirmando naquele que "o comportamento da R. consubstancia assédio laboral, nos termos do artigo 29.º do C.T., com a agravante da A. ser dirigente sindical" e no último que isso era "razão pela qual deve indemnizar a A., nos termos do disposto no artigo 28.º do C.T., por danos não patrimoniais, no montante não inferior a € 2 500,00".

Para fundamentar o assédio de que se disse vítima, a apelante alegou o que consta do art.º 52.º da petição inicial, a saber, que "de três trabalhadoras em iguais circunstâncias, a R. tratou a A. de forma discriminatória, não a reconvertendo para outra categoria e funções, apesar de ter assumido esse compromisso em reunião com a DGERT, exigindo-lhe que fizesse trabalho de jardineiro e de porteiro, com o objectivo de criar um ambiente hostil, humilhante, desestabilizador e intimidativo e, finalmente, fazendo caducar o seu contrato de trabalho sem qualquer fundamento".[9]

Todavia, a apelante não alegou qualquer facto que servisse de fundamento para as alegadas "iguais circunstâncias" com essas trabalhadoras, a não ser, é certo, a categoria profissional partilhada por todas elas (art.º 21.º da petição inicial), o que em tudo o caso sempre se mostraria insuficiente para caracterizar a pretensa discriminação (por exemplo, não alegou qual a sua antiguidade na empresa, o seu estado de saúde, o valor da retribuição delas, etc.); sendo certo que também não foi convidada a aperfeiçoar a petição inicial e agora já o não poderá ser.[10]

Assim sendo as coisas, apesar da sentença não ter proferido decisão acerca das consequências daí resultantes para a apelante,[11] a verdade é que sempre os factos provados se mostram insuficientes para se constituírem como causa de pedir do pretenso direito da apelante a ser indemnizada e, portanto, levará a que nesta parte se negue sem mais a apelação e confirme a sentença apelada; e isto sem que se justifique determinar, nos termos do art.º 662.º do Código de Processo Civil, a ampliação da matéria de facto relativamente àqueles factos invocados e sobre os quais não foi proferido julgamento pois que por si só e mesmo que se provassem seriam insuficientes para alterar o curso da decisão (ou seja, seria um acto inútil e por isso proibido no processo, ex vi do estatuído pelo art.º 130.º do Código de Processo Civil).

Assim e em resumo, a apelação deve proceder, mas apenas nos termos anteriormente referidos, pelo que, em consequência, a sentença deve ser revogada e apelada ser assim condenada:
- no reconhecimento da nulidade da caducidade do contrato de trabalho celebrado com a ré;
- no reconhecimento da ilicitude do despedimento da autora, efectuado a 10-10-2021, por inexistência de motivos que fundamentem tal caducidade e, consequentemente, aquela condenada a:
  • reintegrá-la ao serviço, nas mesmas funções (ou reconvertendo-a para a categoria de Ajudante de Acção Directa, uma vez que nisso a apelante concorda);
  • pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde 30 dias antes da propositura da acção até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude de despedimento, deduzidas as importâncias a que se refere o art.º 390.º, n.º 2, CT, a apurar em liquidação; e
  • juros de mora sobre cada uma dessas quantias, à taxa legal de 4%, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento (atendendo aos termos em que foi peticionado).[12]

***
IIIDecisão.
Termos em que se acorda conceder parcial provimento à apelação e, em consequência, em parte revogar a sentença e:
a)-condenar também a apelada:
i.- no reconhecimento da nulidade da caducidade do contrato de trabalho celebrado com a ré;
ii.-no reconhecimento da ilicitude do despedimento da autora, efectuado a 10-10-2021, por inexistência de motivos que fundamentem tal caducidade, devendo a mesma:
  • reintegrá-la ao serviço, nas mesmas funções (ou se o entender reconvertê-la para a categoria de Ajudante de Acção Directa, uma vez que nisso a apelante concorda);
  • pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde 30 dias antes da propositura da acção até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude de despedimento, deduzidas as importâncias a que se refere o art.º 390.º, n.º 2, CT, a apurar em liquidação; e
  • juros de mora sobre cada uma dessas quantias, à taxa legal de 4%, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento (atendendo aos termos em que foi peticionado)

b)-no mais, confirmar a sentença recorrida.

Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).


***


Lisboa, 01-02-2023.


(António José Alves Duarte)
(Maria José Costa Pinto)
(Manuela Bento Fialho)


[1]Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
[2]Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[3]Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[4]Facto provado n.º 9.
[5]Acórdão da Relação do Porto, de 13-05-2019, no processo n.º 3600/17.9T8VFR.P1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[6]Acórdão da Relação de Évora, de 26-03-2015, no processo n.º 512/13.6TTBRR.E1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[7]Neste sentido, vd. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-10-2013, no processo n.º 1104/10.7TTCBR.C1.S1, da Relação do Porto, de 14-07-2010, no processo n.º 289/09.0TTGDM.P1 e de 21-01-2019, no processo n.º 836/18.6T8AVR.P1 e da Relação de Coimbra, de 04-11-2011, no processo n.º 443/10.1TTLRA.C1, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[8]Art.os 559.º, n.º 1, 804.º, n.os 1 e 805.º, n.º 2, alínea b) e 806.º, n.os 1 e 2 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril.
[9]Nos restantes artigos (53.º a 55.º) alegou os danos que considerou terem sido causados.
[10]Art.os 590.º, n.os 2, alínea b) e 4, 593.º, n.º 1, alínea c) e 597.º do Código de Processo Civil.
[11]Nos referidos art.os 53.º a 55.º da petição inicial.
[12]Art.os 559.º, n.º 1, 804.º, n.os 1 e 805.º, n.º 2, alínea b) e 806.º, n.os 1 e 2 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril.