Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
497/15.4T9BRR.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
DOLO
FALTA OU DEFICIENTE DESCRIÇÃO DOS ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO TIPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Constando da acusação que os arguidos, bem sabendo que a sua conduta lhes estava vedada por lei e era penalmente punida, elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo, agiram de forma livre (o que significa que puderam determinar a sua acção, assim afastando as causas de exclusão da culpa), consciente (ou seja, sendo imputáveis) e voluntária (ou seja, quiseram o facto criminoso – aqui se contendo o elemento volitivo ou emocional do dolo), e não oferecendo dúvidas, que agir de forma voluntária é agir deliberadamente, de propósito, que é o contrário de agir sem querer, involuntariamente ou acidentalmente, não vemos como possa afirmar-se que na acusação proferida nos autos «falta o dolo», sendo inequívoco que o Ministério Público nela imputa aos arguidos o cometimento da infracção a título de dolo directo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos autos com o n.º 497/15.4T9BRR, findo o inquérito, que correu termos na Procuradoria da República da Comarca de Lisboa – DIAP - 3.ª Secção da Moita, o Ministério Público deduziu contra os arguidos …………… e ……………., melhor identificados nos autos, a acusação que constitui fls. 485-487, imputando-lhes a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de infidelidade, p. e p. pelo art. 224.º, n.º 1, do CP.
2. Remetidos os autos à distribuição, pela Senhora Juiz 2 do Juízo Local Criminal do Barreiro foi proferido o despacho a que alude o art. 311.º do CPP, no qual decidiu rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada, nos termos dos arts. 311.º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3, al. b) do CPP.
3. Não se conformando com tal decisão, interpôs o Ministério Público o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Por despacho proferido em 10/05/2021, aqui dado por integralmente reproduzido, o Tribunal a quo rejeitou a acusação pública deduzida nos autos contra os arguidos …………… e ………………., pela prática, em co-autoria material, de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.° do Código Penal, por a considerar nula e manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311°, nºs 2, al. a), e 3, al. b) do Código de Processo Penal.
2. Considerou a Mma. Juiz a quo resultar da leitura do libelo acusatório "uma deficiente descrição dos factos do tipo subjectivo".
3. Salvo o devido respeito, a solução preconizada no referido despacho não pode ser acolhida, desde logo porque a mesma traduz uma incorrecta interpretação do disposto no n° 2, al. a), e n° 3, al. b) do referido artigo 311°, com violação do princípio do acusatório, plasmado no artigo 32º, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, só podendo se dever, em última análise, à equívoca com que o Tribunal a quo encara as finalidades do despacho saneador, previsto no sobredito artigo 311°.
4. Prevê o artigo 311° do Código de Processo Penal o despacho no âmbito do qual o juiz saneia o processo, nomeadamente, através do conhecimento dos pressupostos processuais, do conhecimento de eventuais nulidades e irregularidades e do conhecimento de outras questões prévias ou incidentais, cuja solução deve preceder ao julgamento do processo.
5. No que se refere às nulidades e irregularidades passíveis de ser conhecidas nesse momento processual incluem-se os vícios da acusação decorrentes da violação do disposto no artigo 283°, n° 3, alíneas a) a d) e f) do Código de Processo Penal, bem como a inexistência de factos no libelo acusatório que constituam crime.
6. Ou seja, no despacho saneador, o juiz do julgamento deve apenas controlar os vícios estruturais graves da acusação referidos no citado artigo 311°, n° 3 do Código de Processo Penal, estando inibido, pelo princípio do acusatório, do controlo substantivo da acusação, de modo a evitar a formulação de um pré-juízo sobre o bem fundado da mesma e, com isto, comprometer o seu destino.
7. Salvo melhor entendimento, não foi o que sucedeu no caso dos autos, tendo o Tribunal a quo, com as considerações feitas no despacho ora em crise, para rejeitar a acusação pública deduzida, acima transcritas, extravasado as finalidades do despacho saneador.
8. Efectivamente, resulta da acusação dos autos a narração dos factos objetivos e subjectivos do crime imputado aos arguidos, não se verificando qualquer falta, lacuna ou vazio no que à descrição subjectiva posta em causa no despacho recorrido.
9. O entendimento contrário defendido pelo despacho recorrido, viola o disposto no n° 2, al. a), e n° 3, al. b) do artigo 311° do Código de Processo Penal.
10. Desde logo porque não foram considerados pela Mma. Juiz a quo, pelo menos assim não resulta do despacho recorrido, todos os factos descritos no libelo acusatório e que, salvo melhor opinião, invalidam a alegada falta da descrição do elemento subjectivo. Na verdade,
11. do despacho de acusação consta, além do mais, que: " (...) os arguidos não diligenciaram por justificar/documentar contabilisticamente na Associação as saídas daqueles valores monetários, nem o seu destino, não apresentando contas, como decorria das suas funções; Os arguidos não cuidaram que a ASCVA tivesse a contabilidade organizada, autorizando os levantamentos de montantes sem qualquer correspondência de justificativos; Os arguidos sabiam que tinham sido eleitos como membros da direcção da ASCVA, tendo aceite o exercido dos respectivos cargos, e que no âmbito desse exercício estavam obrigados a administrar os interesses patrimoniais da Associação o que não fizeram; em resultado da conduta dos arguidos resultou para a ASCVA um prejuízo no montante de €54.848,52; actuaram os arguidos com grave violação dos deveres que lhes incumbiam, nomeadamente de apenas utilizar o dinheiro que foi entregue à ASCVA para o financiamento dos projetos a que se destinava, não diligenciando pela fiscalização de que assim sucedia aquando da entrega do dinheiro a terceira pessoa, bem como sabiam que estavam obrigados a manter a contabilidade organizada e a prestar contas, o que não fizeram; Os arguidos actuaram, assim, de forma livre, voluntária e com plena consciência de que tal conduta lhes estava vedada por lei e era penalmente punida."
12. Salvo melhor entendimento, tal como descritos na acusação, os factos imputados aos arguidos concretizam a narração factual do crime de infidelidade em apreço, não resultando evidente que os referidos factos não descrevem o elemento subjectivo do tipo em causa.
13. Além de que, no que à descrição do elemento subjectivo concerne, é necessário e suficiente que da mesma resulte a vontade da prática do acto pelos agentes com o conhecimento de todos os elementos do facto típico criminoso, o que no caso se verifica.
14. Só e apenas quando de forma inequívoca a acusação seja inócua quanto à narração dos factos, é que o Tribunal pode declarar o libelo acusatório manifestamente infundado e rejeitá-lo. Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz, no despacho do artigo 311° do Código de Processo Penal, não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente infundada, porque só em sede de julgamento deve ser ponderado o entendimento a seguir, sob a égide do contraditório.
15. Ao rejeitar a acusação, com fundamento na deficiente descrição dos factos do tipo subjectivo, o Tribunal a quo interpretou erroneamente e violou o disposto no artigo 311°, n°s 2 e 3, al. b) do Código de Processo Penal, pondo em causa o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no artigo 32°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa.
16. Ainda que se entendesse que a narração dos factos se encontra deficitário, o que não é o caso, e por via disso deveria a acusação proferida ser rejeitada, nunca deveria ser determinado o arquivamento imediato dos autos.
17. Nos termos do disposto no art. 283.° n.° 3 do código de Processo penal, a falta de narração dos factos integradores do tipo legal de crime tem como consequência a nulidade da acusação.
18. Dispõe o artigo 122.° n.° 2 do Código de Processo Penal que a verificação da nulidade determina a invalidade do acto e dos que dele dependeram, mas não dos actos anteriores, pelo que o vicio de que a acusação padece não se comunica ao inquérito, mas antes e apenas aos actos subsequentes.
19. Neste sentido decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional n° 246/2017 (Processo n.° 880/2016) ao "não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.°, n. °s 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.°, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes."
20. Assim entendeu o Tribunal Constitucional, na fundamentação do citado acordão: "Na verdade não será isenta de dificuldade uma solução que, perante qualquer erro (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação "não-apta" para conformar o objeto do julgamento, conduza sempre e inexoravelmente à falência do processo penal e à impossibilidade da perseguição criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que, certamente, o legislador ordinário não pretenderia e, acima de tudo, a Constituição não parece impor.
21. "A mera insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (imposta pelo art. °283° 3 b) do CPP), conduzindo à rejeição da acusação, implica a devolução dos autos ao MP para os fins que tiver por convenientes e não a extinção do procedimento criminal." - assim também entendeu a Relação de Évora, em acórdão de 6/3/2012.
22. Nesta senda, o despacho recorrido deveria ter declarado a nulidade da dedução da acusação e, de seguida, porque possível e necessário, ter ordenado a remessa do processo ao ministério público para repetição do acto sem o vício.
23. Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que reconheça a suficiência da acusação e admita a acusação pública deduzida nos autos e designe data para a audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 312° do Código de Processo Penal, devendo o processo seguir os seus ulteriores termos, até final.
24. Ou, sem conceber, caso assim não se entenda, subsidiariamente se determine a devolução do processo ao Ministério Público para repetição do acto, deduzindo nova acusação.
V.ex.as, porém, decidirão conforme for de direito e justiça!»
4. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 529 dos autos.
5. Os arguidos não apresentaram resposta ao recurso.
6. Não foi proferido despacho de sustentação da decisão recorrida.
7. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 534-535, acompanhando o teor da motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, ao qual acrescenta doutas considerações, e pronunciando-se pela sua procedência.
8. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
9. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
A primeira questão que no presente recurso se suscita é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público é manifestamente infundada, por dela não constarem os factos necessários à integração dos elementos típicos do crime imputado, como se considerou no despacho recorrido como fundamento para a sua rejeição.
No caso de se entender haver fundamento legal para rejeitar a acusação, nos termos do art. 311.º, n.º 3, do CPP, importará ainda decidir se, em consequência, devem os autos ser arquivados ou devem ser devolvidos ao Ministério Público.
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2. Da decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição):
«Da rejeição da acusação
O Ministério Público deduziu douto libelo acusatório, sob a forma de processo comum e com a intervenção de tribunal singular, contra os arguidos ……………… e ………………, pela prática, em autoria material, de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.º do Código Penal (cfr. fls. 485 e ss.).
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Na acusação deduzida alega o Ministério Público, em suma, que:
- os arguidos assinaram cheques que permitiram o levantamento das quantias neles apostas e entrega do respectivo valor em numerário ao vice-presidente da ASCVA.
- os arguidos sabiam que o montante de € 54.848,52 lhes tinha sido entregue a título de financiamento publico;
- além disso, os arguido não diligenciaram de justificar/documentar contabilisticamente a saída daqueles valores monetários;
- que em resultado da conduta dos arguido a ASCVA teve um prejuízo no valor de € 54.848,52; e,
- Por fim, que os arguidos actuaram com grave violação dos deveres que lhes incumbiam, nomeadamente de utilizar o dinheiro que foi entregue à ASCVA para financiamento de projectos a que se destinava, não diligenciando pela fiscalização de que assim sucedia aquando a entrega do dinheiro a terceira pessoa, bem como sabiam que estavam obrigados a manter a contabilidade organizada e a prestar contas, o que não fizeram.
Estabelece o artigo 224°, do Código Penal que «1. Quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa
No crime de infidelidade é possível distinguir dois tipos de condutas: - abusar grave e intencionalmente do poder de disposição; - violar grave e intencionalmente os deveres de administração ou de fiscalização.
A conduta ativa ou passiva do agente tem de causar um prejuízo patrimonial ao titular dos interesses que lhe estão confiados. Contudo, para efeitos deste crime, não basta que os interesses patrimoniais sofram um qualquer prejuízo patrimonial, torna-se necessário que o mesmo seja importante. Esta exigência vem limitar o número de situações subsumíveis ao crime de infidelidade. A infidelidade é, portanto, um crime de dano (no que concerne ao grau de lesão do bem jurídico tutelado) e um crime material ou de resultado (no que toca à forma de consumação do ataque ao objeto da conduta).
De acordo com o artigo 224.º do Código Penal, a atuação do agente tem de ser “intencional”, ou seja exigindo-se que o agente represente o facto que preenche o crime de infidelidade, atuando com intenção de o realizar (artigo 14.º, n.º1 do CP). Não existem dúvidas que se encontra afastado o dolo eventual e a negligência.
Quanto ao dolo pode ser directo ou necessário, bastando que o agente tenha a consciência, de que a sua conduta terá por consequência necessária a causação de um prejuízo patrimonial importante para a pessoa cujos interesses patrimoniais tem o dever de zelar. Assim, o termo intenção deve tomar-se no sentido da consciência ou conhecimento da inevitabilidade do resultado e, portanto, desempenha a função prática de exclusão da suficiência do dolo eventual.
Ora, da factualidade vertida na acusação resulta que os arguidos das mais diversas formas violaram de forma grave os deveres que lhes incumbiam na qualidade de presidente e tesoureiro da ASCVA, bem como que em resultado da sua conduta, esta teve um prejuízo patrimonial de € 54.848,52.
No entanto, da leitura da acusação não logramos concluir que os arguidos tenham agido intencionalmente quanto a esse prejuízo patrimonial.
Salvo melhor opinião, o facto de ser invocada a violação grave dos seus deveres, não leva necessariamente a concluir que os agentes tenham tido a consciência de que a sua conduta teria por consequência necessária causar um prejuízo patrimonial à ASCVA e se tenham conformado com esse facto.
Assim, efectivamente falta o dolo.
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Estipula o artigo 283.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, que «A acusação contém, sob pena de nulidade (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)»
Perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32°, n° 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação.
Com importância pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07/03/2018, Relator Orlando Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt que «O comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos. ( ) Como se consignou no acórdão do STJ n.° 1/2015 e, designadamente, no acórdão deste Tribunal da Relação de 13 de setembro de 2017 (proc. n.° 146/16.3 PCCBR.C1, em que o presente relator foi adjunto), o elemento subjetivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objetivos que são imputados ao arguido na acusação do assistente. A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjetivo (…) (e é de deficiente e insuficiente descrição do tipo subjetivo que se trata no caso sub judice e não de omissão integral de descrição do tipo subjetivo), não é susceptível de ser integrada, em julgamento.(…)».
Ora, in casu, verifica-se efectivamente uma deficiente descrição dos factos do tipo subjectivo quando não é descrita factualidade que demonstre a supra referida intencionalidade de causar um prejuízo.
Como se menciona no acórdão de fixação de jurisprudência n.° 1/2015, em caso de falta de descrição na acusação de todos ou de alguns dos elementos subjetivos do crime, «…tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respetivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art.311.°, n.°s 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP não conter a narração dos factos.».
«A consequência da declaração de nulidade da acusação, por violação do disposto no artigo 283°, n° 3, do C. P. Penal, é, não a remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos que tiver por convenientes (como decidiu o despacho recorrido), mas antes o arquivamento dos autos»; RC de 13-1-2016 (540/13.1GBPBL.C1 - Alberto Mira); e da RL de 30-01-2007 (10221/2006 - José Adriano).
Face ao exposto, nos termos do artigo 311.°, n.° 1, 2, al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal, rejeito a acusação, porque nula e manifestamente infundada, e determino o arquivamento dos autos.
Sem custas.»
*
3. Da análise dos fundamentos do recurso
Como acima referimos, a primeira questão suscitada reconduz-se a saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público é manifestamente infundada, por os factos nela descritos não serem suficientes para a integração dos elementos típicos do crime aí imputado ao arguido, como se considerou no despacho recorrido como fundamento para a sua rejeição.
De acordo com o estabelecido no art. 283.º, n.º 1, do CPP, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra aquele.
O n.º 3 do mesmo preceito dispõe que a acusação contém, sob pena de nulidade:
«a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
(…)
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer; (…)»
E do preceituado no art. 311.º, n.º 2, al. a), do CPP resulta que, recebidos os autos no Tribunal, sem que tenha havido lugar a instrução, a acusação deverá ser rejeitada se for de considerar manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito os quatro motivos que podem levar à conclusão de se estar perante acusação manifestamente infundada: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituírem crime.
Este n.º 3 foi aditado pela Lei n.º 59/98, de 25-08, no sentido de reforçar a clareza do modelo acusatório pretendido para o processo penal e explicitar as funções dos vários sujeitos processuais, levando inclusive à caducidade do Assento do STJ n.º 4/93, de 17-02-1993[1], dele decorrendo, para além do mais, que o juiz, quando profere o despacho a que alude o art. 311.º, está impedido de, num papel equivalente ao do Ministério Público, fazer um juízo sobre a suficiência ou insuficiência dos indício que sustentam a acusação.
A propósito, ensina Germano Marques da Silva[2] que, face ao aditamento do n.º 3 do art. 311.º do CPP introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25-08, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art. 283.º, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.
E «O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante», refere Paulo Pinto de Albuquerque[3].
Ou, como se lê no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-03-2009[4], «A alínea d) do n.º 3 apenas consente a rejeição da acusação se os factos que dela constam não constituírem crime, ou seja, se no estrito quadro dos termos em que foi deduzida a acusação se verificar, pela leitura dos factos narrados na acusação, que eles não conformam a prática de crime.»
Deverá ainda ter-se presente que o processo penal português, depois de uma fase de investigação que culmina com a dedução de acusação, tem estrutura acusatória, constitucionalmente consagrada no art. 32.º, n.º 5 da CRP, tendo a acusação a função de definir e fixar o objecto do processo.
Como escreve Germano Marques da Silva[5], uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação. Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao Ministério Público os termos em que deve formular acusação. Por maioria de razão, não poderá o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.
É o que decorre do disposto no art. 287.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3 do CPP: o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente, que consubstancia uma acusação alternativa, caso não obedeça aos requisitos da acusação previstos no art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, deve ser rejeitado e não é susceptível de ser repetido ou de convite à correcção - com as consequências da impossibilidade de exercício da acção penal e do arquivamento do processo (cf. Ac. do TC nº 358/2004 e Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005[6]).
E também do art. 359.º do CPP, que se refere à alteração substancial dos factos já em fase de julgamento: este preceito apenas permite que a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público tenha o valor de denúncia para que ele proceda pelos novos factos se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Se não o forem a consequência será a absolvição[7].
Da estrutura acusatória do processo penal, segundo a qual a actividade do tribunal se encontra delimitada pelo objecto fixado na acusação (princípio da vinculação temática), com vista a salvaguardar as garantias de defesa do arguido (designadamente o princípio do contraditório) que, por essa forma, fica resguardado contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e pode preparar a sua defesa em conformidade com o mesmo, deriva a exigência de que a acusação defina o objecto do processo de uma forma clara e suficientemente rigorosa que permita a organização da defesa.
Necessário se torna, por isso, que na acusação o MP ou (no caso de procedimento por crime particular) o assistente aleguem todos os factos concretos susceptíveis de integrar os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime que entendem ter o arguido preenchido com o seu comportamento, pois que se dele não constarem, a sua posterior adição sempre constituirá uma alteração substancial dos factos (cf. art. 1.º, al. f), do CPP), com as consequências previstas no acima referido art. 359.º do CPP.
E a omissão da narração desses factos, que constitui nulidade da acusação (art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP), deve ser, como vimos, conhecida oficiosamente aquando do saneamento do processo nos termos do art. 311.º do CPP, acarretando a rejeição da peça acusatória, por ser de considerar manifestamente infundada (n.ºs 2, al. a) e 3, als. b) e d), deste preceito).
Será à luz destas considerações que analisaremos a acusação apresentada pelo Ministério Público.
Para melhor apreciação da questão, importará transcrever a factualidade descrita no articulado em causa (que figura a fls. 485-487 dos autos), bem como a imputação criminal indicada:
«1. No período entre 2005 a 2014, os arguidos ………… e …………. exerceram, respectivamente, as funções de Presidente e Tesoureiro da Assistente, a Associação ……………………………….. (doravante ASCVA), com sede no …………………………………………………, Moita.
2. No exercício de tais funções os arguidos geriam a vida da ASCVA, nomeadamente no que respeitava à gestão financeira, sendo responsáveis pelos movimentos das contas da ASCVA.
3. A ASCVA era titular de duas contas bancárias na Caixa Geral de Depósitos, com os números ………………, domiciliada no Balcão da …………………, e ………………….., domiciliada no balcão dos ……………., ………...
4. As referidas contas apenas podiam ser movimentadas pelos dois arguidos, estando os movimentos dependentes da assinatura de ambos.
5. No período referido a ASCVA candidatou-se a dois projectos sociais, celebrados e financiados pelo Estado: o projecto “Vale Prevenir num Vale saudável”, comparticipado pelo IDT – Instituto da Droga e da Toxicodependência, I. P” e o projecto “ACID, comparticipado pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, I.P”.
6. Por conta desses projectos a ASCVA recebeu vários montantes, os quais foram depositados naquelas contas tituladas na CGD.
7. Para financiamentos daqueles projectos foram atribuídos e recebidos pela ASCVA, pelo menos, o montante de €54.848,52.
8. Em momentos não concretamente apurados, mas no período de 2004 a 2014, os dois arguidos, no exercício das funções que lhe estavam atribuídas na ASCVA, assinaram vários cheques, emitidos sobre aquelas contas da ASCVA domiciliadas na Caixa Geral de Depósitos, movimentando, através de levantamentos em numerário, o valor de pelo menos €54.848,52.
9. Os arguidos assinaram os cheques e entregaram à administrativa da ASCVA, ………………., para que procedesse ao levantamento das quantias neles apostas e entrega do respectivo valor em numerário ao vice-presidente da ASCVA, …………………………...
10. Os arguidos sabiam que o montante de €54.848,52 lhes tinha sido confiado a titulo de financiamento publico e se destinava ao financiamento dos projectos da ASCVA, a qual representavam enquanto Presidente e Tesoureiro, respectivamente.
11. Apesar disso os arguidos não diligenciaram por justificar/documentar contabilisticamente na Associação as saídas daqueles valores monetários, nem o seu destino, não apresentando contas, como decorria das suas funções.
12. Os arguidos não cuidaram que a ASCVA tivesse a contabilidade organizada, autorizando os levantamentos de montantes sem qualquer correspondência de justificativos.
13. Os arguidos sabiam que tinham sido eleitos como membros da direcção da ASCVA, tendo aceite o exercício dos respectivos cargos, e que no âmbito desse exercício estavam obrigados a administrar os interesses patrimoniais da Associação o que não fizeram.
14. Em resultado da conduta dos arguidos resultou para a ASCVA um prejuízo no montante de €54.848,52.
15. Actuaram os arguidos com grave violação dos deveres que lhes incumbiam, nomeadamente de apenas utilizar o dinheiro que foi entregue à ASCVA para o financiamento dos projetos a que se destinava, não diligenciando pela fiscalização de que assim sucedia aquando da entrega do dinheiro a terceira pessoa, bem como sabiam que estavam obrigados a manter a contabilidade organizada e a prestar contas, o que não fizeram.
16. Os arguidos actuaram, assim, de forma livre, voluntária e com plena consciência de que tal conduta lhes estava vedada por lei e era penalmente punida.
Pelo exposto praticaram os arguidos, em co-autoria material e na forma consumada, um crime de infidelidade, p. e p. pelo art. 224°, n°1, ambos do Código Penal (…)»
A decisão recorrida decidiu rejeitar tal acusação, por considerar a materialidade nela descrita insuficiente para configurar a prática do imputado crime de infidelidade.
Afirma, em síntese, que, apesar de da factualidade vertida na acusação resultar «que os arguidos das mais diversas formas violaram de foram grave os deveres que lhes incumbiam na qualidade de presidente e tesoureiro da ASCVA, bem como que em resultado da sua conduta, esta teve um prejuízo patrimonial de € 54.848,52», «da leitura da acusação não logramos concluir que os arguidos tenham agido intencionalmente quanto a esse prejuízo patrimonial», pois que «o facto de ser invocada a violação grave dos seus deveres, não leva necessariamente a concluir que os agentes tenham tido a consciência de que a sua conduta teria por consequência necessária causar um prejuízo patrimonial à ASCVA e se tenham conformado com esse facto. Assim, efectivamente, falta o dolo.»
E conclui que se verifica «uma deficiente descrição dos factos do tipo subjectivo quando não é descrita factualidade que demonstre a supra referida intencionalidade de causar um prejuízo», o que impõe a rejeição da acusação por esta ser nula e manifestamente infundada, com o consequente arquivamento dos autos.
Não existindo qualquer divergência relativamente aos elementos típicos do ilícito, que a decisão recorrida descreve suficientemente, contrapõe o recorrente que «não foram considerados pela mm. Juiz a quo (…), todos os factos descritos no libelo acusatório e que, salvo melhor opinião, invalidam a alegada falta da descrição do elemento subjectivo», que «considerando a acusação no seu todo, (…) os factos narrados na acusação são o bastante para identificar o quadro legal aplicável às condutas descritas na acusação dos autos e cuja prática é imputada aos arguidos, quer no seu elemento objectivo quer subjectivo.
Além do mais, e no que à descrição do elemento subjectivo concerne, é necessário e suficiente que da mesma resulte a vontade da prática do acto pelos agentes com o conhecimento de todos os elementos do facto típico criminoso, o que no caso se verifica: "os arguidos sabiam dos deveres a que estavam obrigados", mesmo assim, "os arguidos actuaram com grave violação dos deveres que lhes incumbiam", "os arguidos actuaram de forma livre, voluntaria e com plena consciência que a sua conduta era penalmente punível".»
Vejamos.
«O dolo do tipo consiste no conhecimento e vontade de realização da acção típica. Por isso se distingue um elemento cognitivo ou intelectual do dolo e um elemento volitivo do dolo. (…) O elemento cognitivo ou intelectual do dolo inclui o conhecimento de todas as circunstâncias de facto (rectius, elementos descritivos do tipo) e de direito (rectius, dos elementos normativos do tipo) que constituem o tipo de ilícito objectivo, o que permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética pela preservação ou não do bem jurídico tutelado pela norma.(…) O artigo 14.º define as três diferentes formas que pode assumir o elemento volitivo do dolo de tipo: o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual. O dolo directo consiste na vontade intencional dirigida à realização do facto. O dolo necessário consiste na vontade dirigida à prática do facto, com todas as suas consequências necessárias e indispensáveis. O dolo eventual consiste na conformação do agente com a prática do facto, com as suas consequências possíveis.»[8]
Tal como se explica no AFJ n.º 1/2015[9], também citado no despacho recorrido, «a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).
A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS.
Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).»
Ora, conforme resulta da transcrição acima efectuada, da acusação consta, para além do mais, que os dois arguidos, no exercício das funções que lhe estavam atribuídas na ASCVA, assinaram cheques, emitidos sobre contas da ASCVA domiciliadas na ……………………….., movimentando, através de levantamentos em numerário, o valor de pelo menos €54.848,52; que entregaram esses cheques, por si assinados, à administrativa da ASCVA para que procedesse ao levantamento das quantias neles apostas e entregasse o respectivo valor em numerário ao vice-presidente da ASCVA; que sabiam que o montante de €54.848,52 lhes tinha sido confiado a titulo de financiamento publico e se destinava ao financiamento dos projectos da ASCVA, a qual representavam enquanto Presidente e Tesoureiro, respectivamente; que, apesar disso, não diligenciaram por justificar/documentar contabilisticamente na Associação as saídas daqueles valores monetários, nem o seu destino, não apresentando contas, como decorria das suas funções; que não cuidaram que a ASCVA tivesse a contabilidade organizada, autorizando os levantamentos de montantes sem qualquer correspondência de justificativos; que sabiam que tinham sido eleitos como membros da direcção da ASCVA, tendo aceite o exercício dos respectivos cargos, e que no âmbito desse exercício estavam obrigados a administrar os interesses patrimoniais da Associação o que não fizeram; que, em resultado da sua conduta resultou para a ASCVA um prejuízo no montante de €54.848,52; que os arguidos actuaram com grave violação dos deveres que lhes incumbiam, nomeadamente de apenas utilizar o dinheiro que foi entregue à ASCVA para o financiamento dos projetos a que se destinava, não diligenciando pela fiscalização de que assim sucedia aquando da entrega do dinheiro a terceira pessoa, bem como sabiam que estavam obrigados a manter a contabilidade organizada e a prestar contas, o que não fizeram; e que actuaram, assim, de forma livre, voluntária e com plena consciência de que tal conduta lhes estava vedada por lei e era penalmente punida.
Constando da acusação que os arguidos, bem sabendo que a sua conduta lhes estava vedada por lei e era penalmente punida (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo), agiram de forma livre (o que significa que puderam determinar a sua acção, assim afastando as causas de exclusão da culpa), consciente (ou seja, sendo imputáveis) e voluntária (ou seja, quiseram o facto criminoso – aqui se contendo o elemento volitivo ou emocional do dolo), e não oferecendo dúvidas, salvo o devido respeito, que agir de forma voluntária é agir deliberadamente, de propósito, que é o contrário de agir sem querer, involuntariamente ou acidentalmente (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa), não vemos como possa afirmar-se que na acusação proferida nos autos «falta o dolo», sendo inequívoco que o Ministério Público nela imputa aos arguidos o cometimento da infracção a título de dolo directo.
E, salvo o devido respeito por opinião diversa, os factos narrados na acusação são suficientes para permitir deles extrair a conclusão da previsão, por parte dos arguidos, do resultado danoso como consequência directa ou, pelo menos necessária, dessa sua conduta, pois que, tendo agido como agiram, de forma consciente (o que significa, como vimos, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto), não podiam ter deixado de representar e admitir a verificação do evidente e inevitável prejuízo patrimonial para a ASCVA, no acima mencionado valor, como consequência (pelo menos) necessária do seu comportamento.
Em suma, na acusação vêm narrados factos suficientes para o preenchimento de todos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime aí imputado, na sua forma dolosa, impondo-se concluir que não assiste razão ao despacho recorrido ao considerar a acusação do MP manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 3, al. b), do CPP.
Assim, na procedência do recurso, deverá o despacho posto em crise ser substituído por outro que, não ocorrendo outra circunstância que o impeça, receba a acusação pública e designe data(s) para audiência de discussão e julgamento.
Em face do decidido, fica prejudicada a segunda questão suscitada, que se prendia com o destino dos autos no caso de se entender haver fundamento legal para a rejeição da acusação, nos termos do art. 311.º, n.º 3, do CPP.
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III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em, concedendo provimento ao recurso do Ministério Público, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, não ocorrendo outra circunstância que o impeça, receba a acusação pública e designe data(s) para audiência de discussão e julgamento.
Sem tributação.
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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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Lisboa, 02 de Junho de 2022
Cristina Pego Branco
Filipa Costa Lourenço
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[1] In DR n.º 72, Série I-A, de 26-03-1993 e www.dre.pt, que havia fixado a seguinte jurisprudência: «A alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária.»
[2] Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed., págs. 207-208.
[3] Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, UCE, Lisboa 2009, pág. 790.
[4] Proferido no Proc. n.º 0847462, in www.dgsi.pt.
[5] Ob. cit., pág. 62.
[6] In, respectivamente, www.tribunalconstitucional.pt e www.stj.pt.
[7] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, idem, págs. 913-916.
[8] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, Lisboa, 2008, págs. 89-90, alinhando com a doutrina tradicional, representada pelo Prof. Eduardo Correia, sedo que para outros autores, como o Prof. Figueiredo Dias, o elemento emocional assume autonomia relativamente aos elementos volitivo e intelectual.
[9] Proferido no Proc. nº 17/07.4GBORQ.E2-A.S1-5.ª, em 20-11-2014, e publicado in www.dre.pt, DR, I SÉRIE, n.º 18, de 27-01-2015, e www.dgsi.pt.