Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10441/2006-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
RENÚNCIA
REGISTO PREDIAL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
RESOLUÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A renúncia à reserva de propriedade não está na disponibilidade do exequente
II- Permiti-la ao exequente seria permitir uma alteração de estipulação contratual segundo a qual se constituiu reserva de propriedade a favor do alienante ( no caso, a favor do mutuante) unilateral e arbitrária
III- Ferir-se-ia, assim, a expectativa do adquirente adquirir o seu pleno direito de propriedade sem o titular do registo proceder à resolução do contrato.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes desta 7 ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- RELATÓRIO

Banco […]S A, instaurou contra Paula [] e Graça […] execução de sentença, seguindo a forma sumária, pedindo que as executadas sejam condenados solidariamente a pagarem-lhe quantia certa que liquidou, nomeando à penhora, entre outros bens, o veículo automóvel melhor identificado nos autos.

Foi então ordenada a penhora requerida e efectivada e documentada pelo auto policial datado de 20/5/02.

Sequencialmente, a exequente juntou aos autos a nota do registo automóvel onde se encontra inscrita a seu favor a reserva de propriedade da viatura, na data de 25/7/2000, e, após, registada a penhora também a favor da exequente, com data de 21/6/2004, requerendo assim que se proceda à convocação de credores, de acordo com o disposto no artº 864 do CPC.
   
 O Sr. Juiz proferiu então o despacho que consta certificado nos autos, determinando, em síntese, que o exequente requeira o que houver por conveniente, dada a incompatibilidade da existente reserva de propriedade e da penhora.
 
O exequente informa que renuncia à reserva de propriedade e reitera  o requerido cumprimento do disposto no artº864 do CPC.

O Sr.Juiz não acolheu o solicitado, face à manutenção da situação do registo, e o exequente interpôs recurso da decisão.

Inconformado com o julgado o exequente pugna pelo agravo causado, devendo, no seu entender, e no almejado provimento do recurso, substituir-se o despacho recorrido por outro que prossiga a tramitação dos autos, porquanto, ao nomear o veículo à penhora renunciou inequivocamente à reserva de propriedade, citando jurisprudência acolhedora de tal entendimento.

Das suas razões transcrevemos as conclusões de recurso :
1. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula […] EG, penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo.
2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz  a quo competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente
3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se deve agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada.
5. Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da divida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao  “domínio” sobre o bem - pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia à recorrida -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.
6. Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá, que deveria a exequente - titular da reserva de propriedade - ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento.
7. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5º, nº 1, alínea b) e 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7º e 119º do Código do registo Predial e artigos 408º, 409º, nº 1, 601º e 879º, alínea a), todos do Código Civil.

Termos em que, se deve julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento dos autos.
 
A recorrida optou  pelo silêncio  e não apresentou contra-alegações.


Admitido como de agravo, o Sr. Juiz decidiu-se pela subida do recurso de imediato, em separado, e com efeito meramente devolutivo.

Seguiu-se sustentação da decisão recorrenda, e remetidos os autos a este Tribunal, verificados os pressupostos da sua intervenção, e cumpridos os vistos legais, é mister apreciar e decidir.  

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para o julgamento do objecto do recurso, recolhe-se dos autos e está assente a seguinte factualidade:
a) Na sequência da celebração de um contrato de mútuo entre o ora exequente e a executada Paula com destino à aquisição da viatura automóvel da marca […] matrícula […] EG, e o incumprimento daquela, foi instaurada acção declarativa de condenação destinado a obter o pagamento das quantias não liquidadas ao Banco Mais, julgada procedente por sentença transitada ora dada à execução nos autos a que o agravo diz respeito;
b) A penhora da viatura foi efectivada em 20/5/2002;
c) Do registo relativo ao veículo em questão constam (considerando a data da certificação em 18/7/2002) as seguintes inscrições: propriedade registada em 25/7/2000 a favor de Paula […]; reserva de propriedade a favor do Banco […] registada na mesma data; penhora registada em 19/7/2002 a favor do Banco […], e sujeitos passivo a 1ªexecutada, e com referência aos autos de execução de sentença em referência.      
     
 III- O DIREITO APLICÁVEL

Delimitado o objecto do recurso pelo  teor das conclusões do agravante , cumpre a este Tribunal apreciar se :
A acção executiva proposta poderá prosseguir constando do registo automóvel da viatura penhorada, inscrição a seu favor de  reserva de propriedade, sem que, anteriormente, o seu titular e exequente, faça prova do registo da renúncia ao direito de reserva de propriedade?      

É do conhecimento no meio forense da comarca de Lisboa que a questão suscitada à apreciação deste tribunal de recurso vem sendo insistentemente colocada pela mão da recorrente às diversas instâncias, dado o elevado número de pleitos pendentes para a cobrança dos seus créditos.

Neste momento, sendo embora abundante a jurisprudência que podemos encontrar a este propósito, reconhecemos que a almejada uniformidade ainda não foi alcançada, continuando, na verdade, a questão a dividir o intérprete (cf. a enunciação do tribunal recorrido e do recorrente de diversos arestos em sentido oposto, e a simples consulta na base de dados www.dgsi.pt).    

A dicotomia surge entre aqueles que, sustentam que penhorado um bem sobre o qual está registada a reserva de propriedade a favor do exequente, deverá a execução ser suspensa até que aquele comprove o cancelamento desse registo, e aqueles outros, que defendem que em tal circunstância, se basta a declarada intenção do exequente de preferir a penhora em detrimento da reserva de propriedade.

Assim, e até que, o Supremo Tribunal de Justiça possa ser chamado na inexcedível tarefa de uniformização, cumpre escalpelizar cada uma das argumentações jurídicas que se desenham no tema.  

Ajuizando o caso concreto dos autos.

A penhora está decretada e efectivada, e nessa medida, por forma a respeitar o princípio do caso julgado formal, cremos que, a concluir-se pela incompatibilidade entre aquele direito de garantia/penhora e, o outro /reserva de propriedade, o caminho adequado foi o seguido pelo Sr.Juiz, convidando o exequente a esclarecer a situação desta dualidade.    

Das razões do recorrente.

A reserva de propriedade tem como função económica garantir o crédito -preço ao vendedor – artº409 do CCivil.  

Verificada como vem de ver-se, o que está em juízo não é a situação de um comprador de veículo relapso, mas outrossim, um mutuário inadimplente, estranhando-se, pois, a inserção no contrato de mútuo da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante.

E, de ficção em ficção jurídica, uma vez que decorre da economia destes contratos de crédito ao consumo, em geral, que o mutuante/financiador é quem paga o preço ao vendedor do bem assim adquirido pelo mutuário, desde logo surge a dificuldade de aplicação do regime legal da reserva de propriedade.

Ora, as partes, não extravasando os limites legais da liberdade de estipulação contratual-artº405, nº1 do CCivil, dispõem das relações jurídicas que vivenciam, de modo a atingirem os interesses que em constante mutação se apresentam.

Com efeito, hoje em dia quem vende o carro não dá crédito ao comprador, surgindo um outro agente económico para desempenhar esse papel numa relação agora triangular, constitui uma realidade quotidiana de imediata observação!

Surpreende-se, portanto, o denominado binómio na ciência jurídica, normatividade e a factualidade, o ser e o dever-ser.

A primeira “ corresponde à legalidade intrínseca pela qual se afirma a coerência, a persistência e a autonomia do sistema vivo; a factualidade aos fenómenos do meio-exterior que actuam sobre o dito meio interior e o obrigam a uma resposta e a adaptação” (1).  

O certo é que, mercê disso, ou de outro factor, a reserva de propriedade foi registada pelo Sr. Conservador do Registo Automóvel a favor do financiador e tem que ser considerada em todas as suas implicações no tecido normativo, mormente, a salvaguarda dos interesses de todos os intervenientes contratuais, e até de terceiros, cuja fé-pública no registo é tutelado por lei.  

E, designadamente, ter-se-á, então, de concluir que, perante a “venda “ efectuada com reserva de propriedade, a nomeação à penhora do bem não envolve pelo reservatário tácita abdicação ou renúncia a esse reservado domínio – artº805 e 808 do CCivil.

Enveredando tanto pela qualificação doutrinária segundo a qual, a reserva de propriedade constitui um verdadeiro direito real de garantia, ou, mera cláusula compromissória de garantia executiva de um direito substantivo (2) , parece inequívoco, de jure constituto , que quanto ao adquirente do bem, sobre o qual incide encargo de reserva de propriedade a favor de outrem, não se opera a transferência da propriedade plena, que aparece dependente de uma condição.    

Completando o raciocínio, e salvo melhor entendimento, se o veículo não era “integralmente “ da executada, então, não deveria, à partida, ter sido penhorado em obediência ao princípio, segundo o qual,  pelas dívidas apenas responde o património do devedor, ínsito nos artº601 do CCivil e artº821, nº1 do CPC, sendo que o executado não é proprietário pleno da viatura, mas, mero detentor da mesma.

Em judiciosa contra–argumentação, alega o recorrente que, ao optar pela penhora em detrimento do domínio conferido pela reserva apenas está a exercer uma das faculdades que a estipulação contratual o legitima, qual seja a de, em caso de incumprimento do mutuário, decidiu-se pelo pagamento coercivo da quantia em dívida e, não , pela satisfação da dívida através da recuperação do veículo.  

A resposta é negativa, em nosso entender, seguindo de perto, ademais, a jurisprudência que apesar de dividida como acima dito, evidencia-se já como maioritária (3) no sentido da não contemplação de tal simultaneidade de registos inscritos.

Pela incoerência sobredita, e, de sobremaneira, porque a reserva de propriedade que foi pensada no âmbito da liberdade de estipulação de um contrato de funcionalidade económica mais ampla do aquela que o recorrente ora invoca, e nessa medida, a renúncia não deverá considerar – se inteiramente livre, sob pena de se subverter a expectativa do executado, e o comprador, adquirir o seu pleno direito de propriedade, assente que está que ficou acordado o diferimento contratual de um dos efeitos do contrato.

Com efeito, admitir a renúncia à reserva de propriedade, é proporcionar ao exequente um direito que à partida, e não obstante a especialidade de não ter sido ele o vendedor, ele não detém, por constituir uma alteração unilateral e arbitrária dos termos do contrato.

Buscando no contrato de compra e venda a explicitação da matéria da reserva de propriedade, diz a este propósito o Prof.Raúl Ventura que a renúncia da mesma não está na disponibilidade do exequente (4).

No limite, a manutenção em simultâneo nos autos, dos registo de reserva de propriedade e, de penhora a favor do recorrente, poderia, a todo o tempo, e até à venda do veículo, levá-lo a reconsiderar a preferência pelo ressarcimento através da resolução e consequente reivindicação da viatura sob reserva, desistindo, por exemplo, da execução, álea, a que o devedor ficaria sujeito e o princípio do equilíbrio das prestações e do convencionado não respeitaria.  

Mas, diz ainda o recorrente que, deveria então o tribunal, caso não aceitasse a situação, ter dado cumprimento ao disposto no artº119, nº1 do CRP (ex. vi art. 7 e 29 do DL 54/75).

Tal normativo, como é sabido, tem em vista obter a harmonização das situações de facto com as inscrições registais, e no caso não se verifica qualquer discrepância entre ambas as realidades.

De todo em todo, estamos em crer que, reportando o citado inciso 1º a registos provisórios, não é de aplicar aos autos, dado que a penhora registada a favor do exequente está certificada como registo definitivo.

Por último, será que o desiderato é ultrapassável, como defende o recorrente, dando-se oportuno cumprimento ao estabelecido no artº 888 do CPC (versão do DL 329 A/95 aplicável aos autos) ex. vi artº824 do CCivil?

Debalde, pois, entende-se que, também, este caminho não é de aplicar à situação versada.      

Senão vejamos.

Estabelecem aqueles preceitos que à venda em execução deverá seguir-se o cancelamento dos registos (na versão anterior ordenada pelo tribunal, agora promovida pelo agente da execução) dos direitos reais que caducam face à compra realizada livre de ónus e encargos.

Assim, sendo o registo de reserva de propriedade anterior ao registo da penhora, e considerando aquele como um direito real de gozo, a sua anterioridade impediria à luz do disposto no artº824, nº2 do CCivil o pretendido cancelamento.

Ponderando, pois, as razões expostas, encontrando-se a penhora realizada e registada a favor do reservatário, e ambos os registos em vigor, a execução para satisfação da quantia exequenda através da venda do veículo penhorado, apenas deverá prosseguir após a junção do registo da renúncia daquela outra garantia da obrigação, que não se compadece com a mera declaração nos autos produzida pelo exequente.

E , não se diga, como  o afirma o exequente, da desnecessidade desta prova pois  é ao exequente que compete o impulso dos autos , “… além de que  poderá levantar dúvidas no Conservador a quem cabe o referido cancelamento, sobre a real efectivação dessa renúncia, não deve ser o eventual comprador judicial do veículo penhorado a ser onerado com esse encargo de cancelamento, mas deve ser o exequente quem deve remover esses obstáculos, independentemente de saber a quem é atribuída a responsabilidade do pagamento dos respectivos encargos.”. (5)

Resumindo para concluir, a decisão não violou qualquer dos normativos apontados, atenta a motivação exposta, e em consequência, a tramitação da venda do veículo penhorado apenas deverá prosseguir na circunstância de ser junta aos autos nota do cancelamento do registo de reserva de propriedade que o exequente detém a seu favor.

IV – DECISÃO            

Pelo exposto, decidem os juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao agravo, mantendo o despacho recorrido.

As custas ficam a cargo da agravante.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2007

Isabel Salgado
Roque Nogueira  
Pimentel Marcos



_____________________________
1.-Baptista Machado in Introdução ao Discruso Legitimidador, pag.251,1983

2.-Oliveira ascensão in Direitos Reais , pag.315 /6, 1978

3.-Entre outros o AC. STJ de 13/1/05 in www.dgsi.pt

4.-Raúl Ventura in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, pag.613/4.

5.-Ac.STJ de 18/5/06 in www.dgsi.pt