Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1874/11.5TTLSB.L2-4
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: SEGURANÇA SOCIAL
INSCRIÇÃO
OMISSÃO
RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I. O Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963, nomeadamente no estabelecido no n.º1, do art.º 17, fazia recair sobre o R. a obrigação de inscrever o A. na caixa sindical de previdência como beneficiário, sendo ela, enquanto entidade empregadora, inscrita como contribuinte.
II. Este diploma consagrou o princípio de que a falta de pagamento não poderia prejudicar o beneficiário [art.º 29.º, n.º 1], mas fazia depender a aplicação desse princípio de duas condições, a saber, da inscrição do trabalhador [art.º 23.º 1] e que a instituição possuísse “elementos comprovativos” da prestação de trabalho de que resulte serem devidas contribuições [art.º 24.º 1. al. a)].
III. Na vigência desse regime não era imposta aos trabalhadores por conta de outrem a obrigação de declaração de actividade, tanto mais que nem sequer podiam proceder à sua própria inscrição, a qual dependia sempre da entidade empregadora.
IV. O Decreto-lei n.º 124/84 introduziu a obrigatoriedade do trabalhador por conta de outrem declarar o início da actividade (art. 3º), consagrando a “co-responsabilidade dos trabalhadores subordinados pela sua inscrição perante a segurança social e pela declaração de vinculação a cada entidade contribuinte”, como meio destinado a “possibilitar um controle mais eficaz das situações de falta de declaração de actividade (..)”.
V. Desde que o trabalhador tivesse feito a declaração e provasse que tinha prestado trabalho por conta de outrem, o art. 11º reconhecia-lhe o “respectivo período como relevante para efeitos de reconhecimento do direito e para cálculo das prestações de segurança social, independentemente do pagamento das contribuições”.
VI. A Lei de Bases da Segurança Social, consagrada pela primeira vez na Lei n.º 24/84, de 14 de Agosto, veio estabelecer no art.º 25.º n.º4, “A falta de declaração ou a falta de pagamento de contribuições relativas aos períodos de exercício de actividade profissional dos trabalhadores por conta de outrem que lhes não seja imputável não prejudica o direito às prestações.”, explicando-se este regime pela corresponsabilização “dos trabalhadores subordinados pela sua inscrição perante a segurança social e pela declaração de vinculação a cada entidade contribuinte”, referida no preâmbulo do DL 124/84, de 18 de Abril, e depois consagrada no art.º 3.º.
VII. O sentido do art.º 25º, n.º 4, da Lei 28/84, de 14 de Agosto é, assim, o de considerar irrelevante a falta de pagamento das contribuições, ou a falta de declaração da entidade patronal, mas desde que o trabalhador tenha cumprido a obrigação imposta pelo art.º 3.º do Dec. Lei 124/84.
VIII. É imputável ao trabalhador por conta de outrem a falta de declaração de actividade, a partir do momento em que a lei lhe impõe essa obrigação, caso em que não lhe é aplicável o regime do art.º 25º, n.º 4,da Lei 24/84.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal do Trabalho de Lisboa, AA, advogado em causa própria, instaurou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo declarativo comum, a qual veio a ser distribuída ao 2º Juízo - 1ª Secção, contra SITE-Sindicato das Indústrias Transformadoras, Energia e Actividades do Ambiente do Centro, Sul e Regiões Autónomas, pedindo a condenação do réu no pagamento de pensão/indemnização vitalícia de €1.400,00 mês x 14 desde 1 de Janeiro de 2011, acrescida de juros de mora, da quantia de €4.700,16 a título de retribuição de férias e subsídio de férias, da quantia de €1,00 a título de compensação por danos patrimoniais e, subsidiariamente, a declaração da validade da resolução do contrato de trabalho e a condenação do réu no pagamento de indemnização de antiguidade.
Alega, no essencial que o réu nunca pagou contribuições para a Segurança Social e por isso as remunerações que recebeu do réu não foram incluídas no cálculo da sua pensão de reforma; o réu não lhe pagou retribuição de férias e subsídio de férias referentes ao ano de 2010 e os factos que determinaram a resolução do contrato de trabalho causaram-lhe danos morais.
Recebida a petição inicial e citada a ré, realizou-se audiência de partes, não se tendo logrado alcançar conciliação.
O Réu, notificado para contestar, apresentou contestação deduzindo defesa por excepção e impugnação.
Excepcionando arguiu a ineptidão da petição inicial. Impugnando, contestou a existência de vínculo laboral com o autor, sustentou a invalidade do contrato de trabalho e impugnou a factualidade
que fundamenta a resolução operada pelo autor.
O autor respondeu pugnando pela improcedência da defesa por excepção.
Findos os articulados foi proferido despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a arguida ineptidão da petição inicial.
Os autos prosseguiram para julgamento, que veio a ser realizado com observância das formalidades legais, culminando com a decisão fixando a matéria de facto provada.
Subsequentemente o Tribunal a quo proferiu sentença, julgando a causa nos termos seguintes:
1. Declaro este tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de condenação do réu no pagamento de pensão/indemnização vitalícia de €1.400,00 mês x 14 e absolvo o réu da instância relativamente a este pedido;
2. Julgo parcialmente procedente a acção e condeno SITE-Sindicato das Indústrias Transformadoras, Energia e Actividades do Ambiente do Centro, Sul e Regiões Autónomas a pagar a AA a quantia de €3.496,08;
3. Absolvo o réu de tudo o mais peticionado pelo autor;
Custas a cargo do autor e réu na proporção dos respectivos decaimento (art.º 446º do CPC).
Registe e notifique, observando o disposto no art.º 76º do CPT».
Insurgiram-se contra a sentença ambas as partes, interpondo os respectivos recursos para este Tribunal da Relação de Lisboa.
O recurso interposto pelo autor foi julgado procedente, julgando-se o Tribunal do Trabalho competente para apreciar o pedido de pensão/indemnização vitalícia de € 1.400,00 mês x 14 desde 1 de Janeiro de 2011 e juros de mora desde o vencimento e, consequentemente, determinando-se que os autos baixassem à 1.ª instância para proferir sentença quanto ao mesmo.
I.2 Os autos baixaram à 1.ª Instância e, dando cumprimento ao determinado por esta relação, o Tribunal a quo proferiu sentença apreciando aquele pedido, vindo a decidir o seguinte:
-«1. Condeno o réu a pagar uma indemnização ao autor (cfr. ponto 6.), cuja quantificação deverá ter lugar no competente incidente de liquidação (arts. 609º, nº 2 do C.P.C., aplicáveis ex vi do art. 1º, nº 2, al. a) do CPT);
2. Julgo parcialmente procedente a acção e condeno SITE-Sindicato das Indústrias Transformadoras, Energia e Actividades do Ambiente do Centro, Sul e Regiões Autónomas a pagar a AA a quantia de €3.496,08;
3. Absolvo o réu de tudo o mais peticionado pelo autor;
Custas a cargo do autor e réu na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 527º do
CPC).
I.3 Inconformada com essa decisão, o Réu apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito próprios. As alegações foram concluídas nos termos seguintes:
(…)
I.4 O Recorrido Autor apresentou contra alegações e interpôs recurso subordinado, finalizando o seu requerimento com as conclusões seguintes:
(…)
I.5 O R. veio responder ao recurso subordinado interposto pelo A, mas sem que tenha sintetizado a sua alegação em conclusões.
I.6 O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se pela manutenção da sentença recorrida.
I.7Foram colhidos os vistos legais.
I.8 Admissibilidade de documento
O A. requereu a junção às suas contra-alegações de documento da segurança social, do qual consta toda a sua carreira contributiva, alegando que apresentação se tornou necessária por virtude de ocorrência posterior, em concreto, pelo facto do Recorrente R., “baseando-se em documento que o Autor juntou e não foi admitido, (..) afirma (3) com base nele que a sua carreira contributiva ao serviço do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio foi apenas de 3 anos, o que não lhe permitia obter por esse serviço qualquer pensão de reforma” [Conclusão 8].
Invoca o A. o A. o n.º3, do art.º 423.º do actual CPC.
Apreciando.
O n.º3, do art.º 423.º rege sobre a admissibilidade de documentos após o limite temporal previsto no n.º2, onde se estabelece “Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final”. Assim, para além daquele limite só são admitidos documentos em duas situações: i) quando a apresentação não tenha sido possível até aquele momento; ii) ou quando a sua apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Mas para além dessa norma, importa ter presente o art.º 425.º, dispondo que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Contudo é necessário ter ainda em conta o disposto no art.º 651.º do CPC, que disciplina sobre a admissibilidade de documentos (n.º1) e de pareceres (n.º2) com as alegações de recurso. Releva aqui o n.º1, nos termos do qual as partes podem juntar documentos com as alegações nos casos excepcionais do art.º 425.º e naqueles em que a junção apenas se revele necessária “em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância”.
Da conjugação destes normativos resulta claro que junção de documento com as alegações de recurso só é possível em dois núcleos de circunstâncias: o primeiro é determinado pela disponibilidade do documento, isto é a superveniência subjectiva (ignorância da existência do documento ou não disponibilidade dele) e objectiva (inexistência de documento cuja formação date de momento posterior àquele até onde poderia ter sido apresentado); e, o segundo pela necessidade do documento mas, note-se, restrita às situações em que a mesma se revele “em virtude do julgamento em 1.ª instância”, isto é, nas palavras do Senhor Conselheiro Abrantes Geraldes, quando o julgamento “se mostre de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo” [Recursos No Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p.184].
Por conseguinte, resta concluir que o fundamento invocado pelo A./recorrido não se enquadra em qualquer uma das situações apontadas e, consequentemente, que o documento não pode ser admitido.
Concluindo, não se admite a junção do documento.
I.9 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento, as questões que se colocam para apreciação consistem em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento na aplicação do direito aos factos, em razão do seguinte:
i) No recurso do Réu: ao julgar procedente o pedido deduzido pelo A., de condenação do R. a pagar-lhe uma indemnização pelos danos causados quando lhe foi fixada pensão de reforma pela segurança social, em razão daquele ter omitido a sua inscrição como beneficiário da segurança social e a entrega, ao longo dos anos, dos descontos contributivos, por ter desconsiderado que o A. “age em manifesto abuso de direito” e, ainda, por não se verificarem todos os pressupostos da responsabilidade civil [Conclusões 17 e segts.]
ii) No recurso subordinado do A: por ter remetido para liquidação em execução de sentença a quantificação da indemnização a ser-lhe paga pelo R..
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal a quo - na primeira sentença – fixou a matéria de facto que se passa a transcrever:
(…)
II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
II.2.1 Recurso do Réu
O Réu insurge-se contra a sentença, por ter julgando procedente o pedido deduzido pelo A., de condenação no pagamento de uma indemnização pelos danos causados quando lhe foi fixada pensão de reforma pela segurança social, em razão daquele ter omitido a sua inscrição como beneficiário da segurança social e a entrega, ao longo dos anos, dos descontos contributivos.
Importa atentar na sentença recorrida, em cuja fundamentação, na parte para aqui relevante, consta o seguinte:
-«(..)
O que está em causa, na presente acção, face ao pedido e respectiva causa de pedir, é, tão só, o pagamento de uma indemnização pelos danos causados ao Autor em virtude de o Réu não ter cumprido essa obrigação contributiva.
A relação jurídica em causa na presente acção, é de direito privado, estabelecida entre duas pessoas privadas e incide sobre um pedido de indemnização, pelo facto do Réu não haver cumprido determinadas disposições legais.
(..)
Como se decidiu no Ac. do STJ, de 2003.02.05 - e do mesmo modo nos Acs. do STJ, 2003.10.29 (proferido na Revista n.º 2468/03 da 4ª Secção), de 2003.06.24 (proferido na Revista n.º 1696/03 da 4ª Secção)
_ a violação da lei em matéria contributiva pode atingir o trabalhador e fazer incorrer a entidade empregadora em responsabilidade civil nos termos dos arts. 483º e ss. do CC, desde que reunidos os demais pressupostos da responsabilidade civil (culpa e nexo de causalidade entre o facto ilícito do cálculo e pagamento por defeito das contribuições e o abaixamento das prestações da Segurança Social percebidas pelo trabalhador).
Assim, decide-se conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida na parte impugnada, e declara-se o Tribunal do Trabalho competente para a apreciação do referido pedido».
Dando cumprimento ao ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa cumpre referir o seguinte, tendo presente os seguintes factos: a) autor e réu celebraram um contrato de trabalho em 15 de Novembro de 1971, que se manteve em execução até 24 de Dezembro de 2010; b) o réu nunca inscreveu o autor na Segurança Social como beneficiário; c) o réu nunca pagou contribuições para a Segurança Social relativas ao autor.
Nos termos do disposto no artº 483º nº 1 do Código Civil “Aquele que, como dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
No caso em apreço o autor baseou o seu pedido de indemnização na culpa do réu por este deliberadamente, durante trinto e nove anos, nunca o ter inscrito como beneficiário da Segurança Social e consequentemente nunca ter pago contribuições para a Segurança Social no que a si diz respeito, provocando-lhe prejuízos avultados no montante da reforma a que teria direito.
Vejamos se, com base nos factos dados como provados, no caso em concreto estão reunidos todos os pressupostos da obrigação de indemnização por factos ilícitos e culposos.
Dispõe o artº 483 nº1 que “ aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Os pressupostos da obrigação de indemnização por factos ilícitos sintetizam-se assim nos seguintes termos: o facto, o dano, a ilicitude, o nexo de causalidade e a imputação do facto ao lesante.
Facto é, em matéria de responsabilidade por factos ilícitos, todo o comportamento do agente que se traduza numa acção ou omissão antijurídicas.
Como pressuposto da responsabilidade civil o dano manifesta-se no somatório de todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos do autor.
O comportamento do agente e causador dos danos tem que ser ilícito, porque contrário a uma norma jurídica, pondo em perigo de lesão ou lesando mesmo, bens jurídicos protegidos pela norma legal.
No caso dos autos e na tese do autor, o réu provocou-lhe danos porque nunca o inscreveu como beneficiário da Segurança Social e consequentemente nunca pagou contribuições para a Segurança Social no que a si diz respeito, violando as disposições do Decreto nº 45266 de 23.09 de 1963, em vigor à data da admissão do autor, bem como nos diplomas que àquele sucederam, que impunham a inscrição do autor como beneficiário da Segurança Social, tanto mais que autor e réu estipularam um contrato de trabalho de admissão ao serviço.
O nexo de causalidade do facto para produzir o evento danoso existe quando entre ambos interfere uma relação de causalidade adequada, por forma a considerar-se que este (o dano) é consequência normal e necessária daquele (o facto).
Apreciemos agora a questão da culpa ou seja, a imputação do facto ao lesante.
A culpa é apreciada na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso – art. 487 n.º 2.
Tendo em atenção que o réu nesta acção é um sindicato é por demais evidente que o mesmo sabia que tendo celebrado de facto um contrato de trabalho com o autor estava obrigado a inscrevê-lo como determina a lei na Segurança Social. Ao não fazê-lo é evidente que sabia que estava a incorrer numa omissão antijurídica grave.
E esta conduta antijurídica dolosa do réu é causa adequada para os danos sofridos pelo autor, isto é, foi este comportamento altamente censurável do réu que causou prejuízos ao autor no montante da reforma a que teria direito (caso o réu tivesse pago, conforme obriga a Lei, as contribuições para a Segurança Social relativas ao autor).
Resulta assim do exposto que estão reunidos todos os pressupostos da obrigação de indemnização a título de culpa efectiva.
De acordo com o disposto no art.º 562 dever-se-á reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
(..)».
II.2.1.1 Argumenta o R., em primeira linha, que o tribunal a quo desconsiderou que o A. “age em manifesto abuso de direito” [conclusões 1 a 16].
O princípio do abuso de direito constitui um expediente técnico, ditado por razões de justiça e equidade, para obstar que a aplicação de um preceito legal, certo e justo em circunstância normais, venha a revelar-se injusto numa situação concreta, em razão das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram. Ocorrerá a figura de abuso “quando um certo direito – em si mesmo válido – seja exercido em temos que ofendam o sentimento de justiça dominante na comunidade social” [Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Atlândida Editora, Coimbra, 1968, pp. 26/27].
O Código Civil consagra este princípio no art.º 334.º, estabelecendo que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Acolhe-se a concepção objectiva do abuso de direito defendida por parte da doutrina, por contraposição à corrente subjectiva defendida por outra parte. O que interessa averiguar não é a intenção do agente titular, isto é, seu ele agiu com o único propósito de prejudicar o lesado, mas antes os dados de facto, o alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública. Como igualmente elucida Almeida Costa, “Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário [Op. Cit., pp. 29].
Porém, como notam Pires de Lima e Antunes Varela, “isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso do direito consagrado no art.º 334.º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito”. Contudo, exige-se um abuso nítido, isto é o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. Por isso mesmo, “os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimaram, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações [Op. cit. pp. 299/300; no mesmo sentido, também Almeida e Costa, Op. cit., pp. 29].
Duas consequências podem resultar de qualquer acto ilegítimo que consubstancie abuso de direito: a obrigação de indemnizar os prejuízos causados por facto ilícito extracontratual; ou, a nulidade nos termos gerais do art.º 294.º.
O abuso de direito, consumado por actuação que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, não é exclusivo do direito substantivo, podendo também resultar no exercício do direito de acção, numa perspectiva da actuação processual, nomeadamente, pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares.
A esse propósito, Menezes Cordeiro escreve o seguinte:
- “O instituto do abuso do direito traduz a aplicação, nas diversas situações jurídicas, do princípio da boa fé.
E o princípio da boa fé equivale à capacidade que o sistema jurídico tem de, mesmo nas decisões mais periféricas, reproduzir os seus valores fundamentais.
A boa fé age através de dois princípios mediantes já expostos: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.
Ambos se concretizam numa constelação de situações típicas, acima ponderadas: desde o venire ao desequilíbrio no exercício”.
E, mais adiante:
As acções judiciais intentadas em grave desequilíbrio de modo a provocar danos máximos a troco de vantagens mínimas, são abusivas: há abuso do direito”.
[Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “in agendo”, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 91/92]
No domínio dos procedimentos cautelares, o Código Processo Civil prevê expressamente a responsabilidade do requerente pelos danos que culposamente causar ao requerido, se a providência for considerada injustificada ou caducar por facto imputável ao requerente, “quando não tenha agido com a prudência normal” [art.º 374º, nº1].
O apelo à “prudência normal” e o sancionamento da violação culposa desse agir com a obrigação de ressarcir os danos causados, traduzem o acolhimento do abuso do direito de acção em consequência da actuação processual, quando esta não for conforme ao agir de boa-fé [Cfr. Acórdão do STJ de 04-11-2008, processo n.º 08A3127, Fonseca Ramos, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj].
Ainda segundo Menezes Cordeiro, a culpa in agendo pressupõe que a acção em que foram praticados os actos danosos se mostre decidida por decisão transitada em julgado.
Para além disso, há que distinguir entre as situações seguintes: improcedência por falta de requisitos para a própria acção; a improcedência por razões de processo ou fundo; e, a procedência com consequências ilícitas. Nas duas primeiras situações, conclui-se que o direito prefigurado pelo direito de acção não existia, o que não significa que o autor não tivesse direito à discussão judicial. Na terceira, há a considerar o direito de acção e o próprio direito de fundo, que fez vencimento.
Em todos aqueles casos, há que conjugar os direitos do autor com o direito de fundo da outra parte, à luz das regras sobre colisão de direitos (art.º 335º do CC), sendo que no caso da procedência da acção, a margem é muito mais curta porque o direito de acção do autor se mostra mais justificado [Op. Cit, pp. 144].
Para sustentar esta linha argumentativa o R. alega, no essencial, o seguinte:
i) tal como provado no facto 27, o A. sempre emitiu recibo como prestador de serviços e sempre cobrou o IVA do R;
ii) que face ao provado no facto 4, “certamente (..) as relações entre as partes sempre se desenvolveram no pressuposto de que o contrato pelo qual se encontravam vinculadas era um contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho”;
iii) o A. é um experiente advogado e, se entendia que existia um contrato de trabalho, seria normal que o tivesse invocado perante os dirigentes do R. o que jamais aconteceu;
iv) assim como seria normal que, por si próprio, tivesse feito a sua inscrição na segurança social, dado saber, pelo menos a partir de 1984, que tinha essa obrigação legal, por tal decorrer do DL 124/84, de 18 de Abril.
Em suma, defende o R. que o A, que é um advogado experiente e necessariamente muito melhor conhecedor da lei e da jurisprudência que a Ré – cujos dirigentes em função do âmbito do sindicato, sempre foram operários – iniciou o seu contrato como prestação de serviços, executou-o como prestação de serviços e jamais pôs em causa a natureza desse contrato, pelo que ao deduzir o pedido de condenação no pagamento de pensão/indemnização vitalícia de €1.400,00 mês x 14 desde 1 de Janeiro de 2011, fundando-se na falta de pagamento das contribuições devidas à segurança social, age em abuso de direito.
Importa começar por repor o rigor dos factos. Com efeito, salvo o devido respeito, o recorrente não só se sustenta em matéria não provada, como para além disso surge a alegar em termos que desconsidera o decidido na primeira sentença e transitado em julgado.
Em primeiro lugar, no facto 27 apenas consta provado que “Após o pagamento das retribuições mensais o A. emitiu recibos verdes”. Logo, não pode sequer extrair-se que o A., desde 15 de Novembro de 1971, data a partir da qual a 1.ª sentença considerou estar demonstrada a existência de um vínculo laboral entre as partes, sempre emitiu recibos verdes; e, muito menos, que sempre cobrou o IVA, tanto mais que este imposto apenas veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394/84, de 26 de Dezembro, com a finalidade de se proceder à harmonização das normas de tributação do consumo, para proceder à uniformização da base tributável do imposto a aplicar em todos os Estados membros da Comunidade Económica Europeia (CEE), actualmente União Europeia (EU).
Em segundo lugar, o facto n.º4 apenas autoriza a concluir que o Ministério das Corporações e Previdência Social, em 7 de Fevereiro de 1973 - mais de um ano depois do início da relação laboral - remeteu ao R. o ofício com o teor reproduzido no facto, informando “que a nomeação do Dr. Monteiro Matias como consultor do Sindicato não pode ser sancionada pelo Ministério”, em razão de ter sido julgado e condenado “por ser membro activo de associação subversiva, do que resultou suspensão dos direitos políticos por quinze anos, ficando assim impedido de exercer advocacia. Como terá decorrido a relação contratual entre o A. e o R. após aquela comunicação do Ministério das Corporações e Previdência Social não resulta esclarecido pelos factos, apenas constando do facto 1.º, que no contrato reduzido a escrito, denominado pelas partes como “Contrato de Trabalho”, as mesmas fizeram deles constar “O presente contrato, que altera todos os anteriores entre os mesmos outorgantes celebrados, teve início em 15/4/1975 e durará por tempo indeterminado, podendo ser alterado por acordo adicional” [cláusula 2.ª]. Mas para além do mais, não pode esquecer-se que na 1.ª sentença, o Tribunal a quo concluiu “pela existência de um vínculo laboral entre autor e réu desde 15 de Novembro até 24 de Dezembro de 2010”, isto é, sem qualquer interrupção.
Em terceiro lugar, nenhum facto autoriza a extrair presunções sobre o que levou o A. a emitir recibos verdes, não fazendo por isso sentido questionar que seria normal ele exibir os contratos de trabalho que celebrou por escrito com o Réu. De resto, como parece evidente, os dirigentes do R. não podiam ignorar a existência dos contratos celebrados por escrito com o A, que livremente intitularam de “Contrato de trabalho”, para além de nele fazerem constar cláusulas típicas de um contrato de trabalho [cfr. factos 1 e 3].
Em quarto lugar, adianta-se já não merecer também acolhimento o argumento de que seria normal que o próprio A. tivesse feito a sua inscrição na segurança social, por saber, pelo menos a partir de 1984, que tinha essa obrigação legal, nos termos do DL 124/84, de 18 de Abril, para a partir dai sustentar o abuso de direito no exercício de acção. Passamos a explicar as razões que sustentam o juízo afirmado.
O Decreto-Lei n.º 124/84, de 18 de Abril, veio “regular as condições em que devem ser feitas perante a segurança social as declarações do exercício de actividade, bem como as condições e consequências da declaração extemporânea do período de actividade profissional perante as instituições de segurança social” [art.º 1.º/1].
Como justificou o legislador no preâmbulo, o diploma visou dar resposta à necessidade de proceder à clarificação das regras até então vigentes, face à frequência de pedidos do “reconhecimento do direito a prestações de segurança social baseado em períodos de trabalho subordinado ou por conta própria, em relação aos quais se não verificou a atempada declaração do exercício de actividade nem o consequente pagamento das correspondentes contribuições”. Na parte final do preâmbulo, elucida-se que o diploma “visa regulamentar de forma mais rigorosa a possibilidade de declaração de períodos de actividade e o consequente pagamento de contribuições com efeitos retroactivos, quer as contribuições estejam ou não prescritas”.
Uma das novas medidas introduzidas consistiu em estabelecer-se a obrigatoriedade do trabalhador por conta de outrem declarar o início da actividade (art. 3º). Essa inovação é justificada no preâmbulo nos termos seguintes: “A consagração da co-responsabilidade dos trabalhadores subordinados pela sua inscrição perante a segurança social e pela declaração de vinculação a cada entidade contribuinte visa possibilitar um controle mais eficaz das situações de falta de declaração de actividade, ao mesmo tempo que permite uma maior exigência por parte das instituições de segurança social para o recebimento das contribuições, quando o mesmo for requerido após o decurso do prazo de prescrição”.
A propósito desta regra, elucida o Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de 28-05-2008 [proc.º 0141/08, Conselheiro SÃO PEDRO, disponível em www.dgsi.pt] o seguinte:
Sempre que o trabalhador tivesse feito essa declaração e provasse que tinha prestado trabalho por conta de outrem, o art. 11º reconhecia o “respectivo período como relevante para efeitos de reconhecimento do direito e para cálculo das prestações de segurança social, independentemente do pagamento das contribuições”. Se não tivesse feito tal declaração, os benefícios dependiam sempre do “pagamento das correspondentes contribuições de acordo com as regras do presente diploma” (art. 4º, 1).
Do exposto decorre que, nos casos em que o trabalhador tivesse provado que efectuou as declarações previstas no n.º 3 era admissível o relevo das remunerações independentemente do pagamento das contribuições – mesmo que até aí não estivesse inscrito. Mas, este regime vigorava daí em diante».
Mais adiante, continuando a debruçar-se sobre o regime estabelecido no DL 124/84, prossegue o aresto observando o seguinte:
-«O Dec. Lei 124/84, de 14 de Abril e, mais tarde, o Dec. Lei 380/89, de 27 de Outubro vieram precisamente regular a maneira de fazer relevar o tempo de trabalho efectivo sobre o qual não tinham sido feitos descontos. Estes diplomas vieram permitir, dentro de certos limites, que todo o tempo de trabalho efectivamente prestado fosse atendido, nos termos que vamos sucintamente expor.
O art. 3.º, nº 1, do Dec. Lei 124/84, de 18-4, diz-nos o seguinte:
“A partir da data da entrada em vigor do presente diploma, os trabalhadores obrigatoriamente abrangidos por qualquer esquema de segurança social devem declarar às instituições de segurança social pelas quais devam ser abrangidos o início do exercício de actividade profissional e de vinculação a uma nova entidade patronal”. Se o trabalhador cumprisse a referida obrigação, tal implicava, nos termos do art. 11º do citado diploma que lhe fosse considerado “o respectivo período de actividade como relevante para efeitos de reconhecimento do direito e para cálculo das prestações de segurança social, independentemente do pagamento das contribuições”.
O art. 4º do mesmo diploma legal determinava as consequências da falta de cumprimento do aludido preceito: “A falta de cumprimento do estabelecido no artigo anterior determina, para os trabalhadores por conta de outrem, a irrelevância, para efeitos de acesso ou de cálculo das prestações de segurança social, dos períodos de actividade profissional não declarados nos casos em que, relativamente aos mesmos, não tenha havido entrada da respectiva folha de remunerações, salvo se se verificar o pagamento das correspondentes contribuições de acordo com as regras do presente diploma”
Para os períodos de tempo a que não fosse aplicável a obrigação a que se refere o citado e transcrito artigo 3º, dizia-nos o art. 12º, n.º 1 do mesmo diploma: “O deferimento de pedidos de pagamento de contribuições relativas a pedidos de pagamento de contribuições relativas a períodos de trabalho a que ainda não fosse aplicável a obrigação estabelecida no art. 3º do presente diploma depende da verificação dos requisitos e da prova de exercício de actividade estabelecidos no art. 9º., n.º 1.”. Esclarecia, depois, o n.º 4 do mesmo preceito que, sendo deferido o pedido de pagamento o “valor a pagar será feito nos termos do art. 10º tratando-se de contribuições já prescritas, e nos termos do art. 6º quando ainda não prescritas”.
Deste modo, no momento entrou em vigor do Dec. Lei 124/84, a falta de pagamento das contribuições de trabalhador não inscrito (sem que o trabalhador tivesse o tempo de inscrição regulamentar e sem que a instituição tivesse os elementos necessários) só tinha relevo no cômputo das prestações se fosse deferido o pedido e efectuado o pagamento das contribuições respectivas, incluindo as prescritas, relativamente às quais havia especialidades no cálculo (art. 12º, n.º 4 e art. 10º)».
Conforme se observa mais adiante no mesmo aresto, o Decreto-Lei 124/84 criou “um regime excepcional com vista a dar relevância aos períodos de tempo prestado anteriormente, sem que tivessem sido feitos descontos para a Segurança Social. Relativamente a tais períodos, permitiu-se o pagamento das contribuições devidas e não pagas tempestivamente (pagamento retroactivo). Mas, em contrapartida, só com esse pagamento, e depois dele, é que os respectivos valores poderiam ser relevantes para cálculo do montante das prestações devidas pela Segurança Social”.
Com o contributo do citado aresto, podemos concluir que o A. bem podia ter beneficiado deste regime excepcional criado pelo DL 124/84, por sua exclusiva iniciativa e acto próprio, de modo fazer relevar, no futuro, o tempo de trabalho efectivo prestado ao R., deste 15 de Novembro de 1971, sobre o qual não tinham sido feitos descontos para a segurança social.
Mas na apreciação deste ponto, isto é, para se saber se o A. actua em abuso de direito, não releva apenas essa conclusão. Na verdade, não há que ter presente que a introdução desse regime excepcional não veio excluir os deveres e responsabilidades das entidades empregadoras no que concerne a inscrição dos trabalhadores na segurança social e pagamento das prestações devidas.
Ora, sendo inquestionável a existência de um contrato de trabalho, que se iniciou a 15 de Novembro de 1971, sobre o R. recaía inequivocamente o dever imposto por lei de ter inscrito o A. na segurança social e, concomitantemente, de proceder aos respectivos descontos, nos termos estabelecidos no Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963, nomeadamente no n.º1, do art.º 17, que dispunha: “Serão inscritos obrigatoriamente nas caixas sindicais de previdência, como beneficiários, os trabalhadores e, como contribuintes, as entidades patronais por aquelas abrangidas nos termos das convenções colectivas ou dos diplomas da sua criação, dos seus estatutos e dos despachos de alargamento de âmbito”.
Por conseguinte, independentemente de ser ou não fundada a pretensão do A., não parece que haja fundamento para sustentar que este, ao deduzi-la, excede “manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art.º 334.º CC).
Por último, também não colhe o argumento de que o A. é advogado e, por isso, melhor conhecedor da lei de que os dirigentes do R. Na verdade, mesmo sem formação em direito não poderiam os dirigentes sindicais ignorar que sobre o R. sindicato, enquanto entidade empregadora de qualquer trabalhador, recaía o dever de os inscrever na segurança social, bem como de proceder à entrega das respectivas contribuições. Mais, se quaisquer dúvidas surgissem sobre a relação jurídica entre R. e A., não pode também esquecer-se que para além deste, o R. tinha ainda contratados os serviços de outros advogados, pelo que sempre teria a possibilidade das esclarecer.
Neste quadro, não vimos que exista fundamento para o R. sustentar que o A, ao demandá-lo e formular o pedido em causa, agiu em abuso de direito. Por outras palavras, inexistem factos que permitam concluir que o A. actuou contrariamente ao princípio da boa-fé, muito menos nos termos exigidos pelo art.º 334.º do CC, ou seja, num abuso nítido, excedendo manifestamente os limites impostos ao seu exercício.
Improcede, pois, esta linha de argumentação do R.
II.2.1.2 Numa segunda linha argumentativa, sustenta o R. que o tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos, ao condená-lo no pagamento de uma indemnização ao autor, por faltarem os pressupostos da responsabilidade civil [Conclusões 17 e segts.]
A responsabilidade civil extracontratual está regulada nos art.ºs 483.º e segts. do CC, compreendendo a responsabilidade por factos ilícitos (art.ºs 483.º e segts); a responsabilidade pelo risco (art.ºs 490.º e segts.); e, a responsabilidade por factos lícitos (cfr. p. ex. art.º 339.º n.º 2).
É pacificamente aceite que para haver responsabilidade por factos ilícitos, com a consequente obrigação de indemnizar, é necessário que se verifiquem os pressupostos seguintes: i)um facto voluntário do agente; ii) ilicitude desse facto; iii) nexo de imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa; iv) a verificação de um dano; v) nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto voluntário do agente, em regra consiste em acção, mas pode consistir em omissão (art.º 486.º).
A ilicitude do facto pode traduzir-se na violação de direitos subjectivos relativos ou absolutos de outrem ou, também, na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Traduzindo-se num juízo de valor emitido pela lei sobre o facto, a ilicitude não tem de ser provada. É matéria que cabe dentro da esfera do conhecimento oficioso do Tribunal [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pp. 474].
A culpa lato sensu é susceptível de abranger o dolo e a culpa stricto sensu ou mera negligência. Agir com culpa significa “actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo” [Pires de Lima e Antunes Varela, Op. cit. pp. 474].
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil). O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do evento em causa, por referência a um agente normal.
O dano pode ser patrimonial ou não patrimonial, conforme seja ou não susceptível de avaliação pecuniária. Assim, verifica-se a existência de um dano quando haja um prejuízo resultante da lesão de um bem, direito ou interesse juridicamente protegido. A existência de um dano é pressuposto essencial da obrigação de indemnização. Não existindo dano não há fundamento para a obrigação de indemnizar e, logo, não tem cabimento falar-se de responsabilidade civil, qualquer que tenha sido a natureza e efeitos da conduta do agente.
Existe nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente do facto ilícito e culposo e o dano sofrido pelo lesado quando possa afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.
No domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito de indemnização reclamado recai sobre quem se arroga nesse direito, de acordo com as regras gerais de repartição do ónus da prova [n.º 1 do art.º 342.º do CC].
A única excepção a esta regra respeita à prova da actuação culposa, mas apenas no caso de haver presunção legal. É o que decorre do disposto no n.º1 do art.º 487.º do CC, onde se dispõe “É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo presunção legal de culpa”.
Enunciados estes princípios gerais, vejamos se assiste razão ao recorrente.
Sustenta-se o recorrente em três fundamentos distintos.
O primeiro consiste na afirmação de não se ter provado que o A. tenha sofrido danos. Na sua perspectiva, é de crer que “tenha beneficiado da referida pensão, como trabalhador independente, nomeadamente em função do trabalho prestado para o Recorrente”, para tanto invocando o conteúdo de documento que o A. juntou com as alegações do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa sobre a declaração de incompetência do Tribunal do Trabalho, dizendo que “Esse documento, que veio a ser rejeitado por extemporaneidade, prova, porém, o contrário daquilo que o Recorrido pretendia provar, uma vez que mostra que a carreira contributiva do Recorrido ao serviço do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio foi de apenas 3 anos (2003 a 2006), o que nunca conferiria direito a qualquer pensão, por não preencher o prazo de garantia legalmente exigido – 15 anos de contribuições para a pensão de velhice – e muito menos conferiria direito a uma pensão no valor de € 919,03. [conclusão 28]. E, que se o Tribunal a quo considerou como não provado “Que o montante da pensão de velhice atribuída ao Recorrido foi calculado atendendo apenas às retribuições auferidas pelo Recorrido ao serviço do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio”, não pode, com base em simples conjetura, concluir que a omissão do Recorrente causou ao Recorrido o dano que este alega [conclusão 29].
Pois bem, quanto à primeira alegação, assentando no teor de um documento que não foi admitido (como o próprio R. reconhece), é evidente que não pode ser acolhida. Portando, salvo o devido respeito, nenhum facto provado autoriza à suposição afirmada pelo R.
No que respeita à segunda, também com o devido respeito, é irrelevante não se ter provado “Que o montante da pensão de velhice atribuída ao Recorrido foi calculado atendendo apenas às retribuições auferidas pelo Recorrido ao serviço do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio”. Na verdade, os factos relevantes são que “[29º] O réu nunca inscreveu o autor na Segurança Social como beneficiário” e [30º] (..)nunca efectuou descontos na retribuição mensal do autor para a Segurança Social”, conjugados com o decidido na 1.º sentença - transitada em julgado – ao concluir “pela existência de um vínculo laboral entre autor e réu desde 15 de Novembro de 1971 até 24 de Dezembro de 2010”.
Melhor explicando, sendo inquestionável a existência de um contrato de trabalho, que se iniciou a 15 de Novembro de 1971 e perdurou ininterruptamente até 24 de Dezembro de 2010, sobre o R. recaía o dever imposto por lei de ter inscrito o A. na segurança social e, concomitantemente, de proceder aos respectivos descontos. Como já se deixou dito, à data do início da relação de trabalho subordinado, esse dever decorria do Decreto-Lei n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963 (artigo 17.º), e manteve-se com as sucessivas alterações introduzidas às leis de base do sistema de segurança social, nomeadamente, pela Leis n.º 24/84, de 14 de Agosto, n.º 27/2000, de 8 de Agosto, n.º 35/2002, de 20 de Dezembro e n.º 4/2007, de 16 de Janeiro.
Nesta última, dispunha o art.º 56.º, com a epígrafe “Obrigações dos contribuintes”, que “Os beneficiários e, no caso de exercício de actividade profissional subordinada, as respectivas entidades empregadoras, são obrigados a contribuir para os regimes de segurança social” [1].
É consabido que o cálculo das pensões de reforma sempre decorreu da verificação de um determinado período temporal contributivo e do valor dos rendimentos do trabalho de toda a carreira contributiva. Com efeito, de acordo com os n.ºs 4 e 5 do artigo 63.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro,
o cálculo das pensões de velhice e de invalidez tem por base os rendimentos de trabalho de toda a carreira contributiva dos beneficiários, revalorizados nos termos definidos na lei, nomeadamente tendo em consideração a evolução da inflação.
Por conseguinte, é lógico concluir que se o R. não cumpriu o dever a que estava legalmente obrigado, necessariamente o cálculo da pensão de reforma do A. foi afectado, isto é, no seu cálculo não foram consideradas as contribuições que deveria ter sido entregues pelo R. e, consequentemente o valor da pensão foi inferior àquele a que ele teria direito desde que tal obrigação tivesse sido observada.
Portanto, não há qualquer dúvida de que houve um dano.
O Réu defende, ainda, que sempre faltaria demostrar o nexo de causalidade entre a omissão do Recorrente e a ocorrência desse dano. Acolhe-se nos argumentos que invocou para defender o alegado abuso de direito, mas indo agora mais longe, como adiante veremos.
Vejamos então.
Não tem apoio nos factos pretender o R. que a relação entre as partes sempre se desenvolveu como um contrato de prestação de serviços, invocando que o contrato de trabalho não pode ser executado na sequência da comunicação do Ministério das Corporações e Previdência Social (facto 4). Parece o R. esquecer o que já foi decidido e transitou em julgado, isto é, que existiu “um vínculo laboral entre autor e réu desde 15 de Novembro de 1971 até 24 de Dezembro de 2010”.
Assim como também não colhe o argumento que apela ao facto do A. ser um experiente advogado, pretendendo que este devia esgrimir o contrato de trabalho perante o R. ou fazer ele próprio a sua inscrição na segurança social. Sempre com o devido respeito, era sobre o R., enquanto entidade empregadora, que recaía a obrigação legal de inscrever o A. na segurança social e de proceder à entrega das respectivas contribuições, não sendo despiciendo relembrar que o R. é uma associação sindical, não podendo por isso ignorar que celebrou um contrato de trabalho com o A. e, logo, que estava vinculada aquela obrigação.
Mas há ainda um outro argumento [conclusões 33.º a 37.ª], podendo até dizer-se, que este é o ponto forte da sua posição. Em suma, invoca o Réu que a Lei de Bases da Segurança Social, logo na sua primeira versão, aprovada pela Lei nº 28/84, de 14 de agosto, estabeleceu, no nº 4 do seu artigo 25º, o seguinte: “A falta de declaração ou a falta de pagamento de contribuições relativas aos períodos de exercício de actividade profissional dos trabalhadores por conta de outrem que lhes não seja imputável não prejudica o direito às prestações., princípio que foi mantido nas subsequentes versões aprovadas pela Lei n.º 17/2000, de 8 de Agosto (art.º 54.º), pela Lei nº 32/2002, de 20 de dezembro (nº 3 do artigo 34º), até à versão atual constante da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro (no nº 4 do seu artigo 61º).
Defende, assim, que se “Se a omissão da inscrição do Recorrido na Segurança Social e/ou a omissão do pagamento de contribuições não lhe são imputáveis, o Recorrido mantém o direito à atribuição e pagamento da pensão pela Segurança Social, o que se traduz na inexistência de dano a reparar pelo Recorrente; se a omissão da inscrição do Recorrido na Segurança Social e/ou a omissão do pagamento de contribuições lhe são imputáveis – o que poderá decorrer do Decreto-Lei nº 124/84 -, então não existe causalidade adequada entre a omissão do Recorrente e o dano alegadamente sofrido pelo recorrido, já que o dano terá decorrido da omissão, pelo Recorrido, do cumprimento das suas próprias obrigações [conclusão 37.ª].
Na apreciação deste argumento recorreremos de novo ao Acórdão do STA, de 28-05-2008, que acompanharemos de perto, adiantando-se já que à luz da doutrina ai sustentada é de reconhecer parcialmente razão ao Réu. Basta atentar no sumário do aludido aresto, na parte que aqui releva, onde se lê o seguinte:
[I] - A falta de declaração ou a falta de pagamento de contribuições relativas aos períodos de exercício de actividade profissional dos trabalhadores por conta de outrem que lhes não seja imputável não prejudica o direito às prestações - art. 25.º, n.º 4 da Lei 28/84, de 14 de Agosto.
[II] - É imputável ao trabalhador por conta de outrem a falta de declaração de actividade, a partir do momento em que a lei lhe impõe essa obrigação, como é o caso do art. 3º, n.º 1, do Dec. Lei 124/84, de 18 de Abril.
Explicando melhor, importa começar por relembrar que à luz do Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963, nomeadamente no estabelecido no n.º1, do art.º 17, recaía sobre o R. a obrigação de inscrever o A. na caixa sindical de previdência como beneficiário, sendo ela, enquanto entidade empregadora, inscrita como contribuinte.
Este diploma consagrou o princípio de que a falta de pagamento não poderia prejudicar o beneficiário. Assim resulta do art.º 29.º, n.º 1, dispondo o seguinte: “A falta de pagamento de contribuições, quando imputável às entidades patronais, não prejudica o direito às prestações por parte dos beneficiários da prestação de trabalho durante o período que respeite àquela falta”.
Porém, fazia depender a aplicação desse princípio de duas condições, a saber, da inscrição do trabalhador [art.º 23.º 1] e que a instituição possuísse “elementos comprovativos” da prestação de trabalho de que resulte serem devidas contribuições [art.º 24.º 1. al. a)].
Significa isto, portanto, que na vigência do Decreto 45266 de 23 de Setembro de 1963, até à entrada em vigor do Dec. Lei 124/84, o autor não tinha direito a que o período de tempo decorrido desde 15 Novembro de 1971, bem como as remunerações auferidas ao serviço do Réu, fossem tomadas em consideração. Sendo certo, note-se, que na vigência daquele regime não era imposta aos trabalhadores por conta de outrem a declaração de actividade, tanto mais que nem sequer podiam proceder à sua própria inscrição, a qual dependia sempre da entidade empregadora.
Só ao abrigo do DL 124/84, sobre o qual nos debruçamos no ponto anterior, poderia alterar-se esta situação, já que veio permitir a sua regularização. Contudo, note-se, não impunha aos trabalhadores que a regularizassem, apenas lhes facultava essa possibilidade. Como elucida ao Acórdão da Relação de Coimbra, de 18-07-2007 [proc.º n.º 639/06.0TTAVR.C1, desembargador GOES PINHEIRO]:
[I] Os trabalhadores relativamente aos quais não feita às instituições de segurança social competentes a necessária declaração de actividade ou os trabalhadores em cujo percurso profissional existam períodos de tempo relativamente aos quais não foi feita tal declaração, estando, em qualquer caso, prescritas as contribuições que lhes corresponderiam, não poderão, em princípio, beneficiar desses períodos de actividade não declarados para o cálculo das prestações de segurança social.
[II] Permite-se, todavia, que assim não aconteça quando a entidade empregadora ou o trabalhador paguem essas contribuições, apesar de prescritas, estando porém a autorização de pagamento dependente da comprovação da actividade profissional por um dos modos previstos no artº 9º, nº 1, do D. L. Nº 124/84, de 18/04.
Mas como também já ficou referido no ponto anterior, o Decreto-lei n.º 124/84 introduziu uma inovação de relevo, estabelecendo a obrigatoriedade do trabalhador por conta de outrem declarar o início da actividade (art. 3º), justificando o legislador “a consagração da co-responsabilidade dos trabalhadores subordinados pela sua inscrição perante a segurança social e pela declaração de vinculação a cada entidade contribuinte”, como meio destinado a “possibilitar um controle mais eficaz das situações de falta de declaração de actividade (..)”.
Assim, desde que o trabalhador tivesse feito a declaração e provasse que tinha prestado trabalho por conta de outrem, o art. 11º reconhecia-lhe o “respectivo período como relevante para efeitos de reconhecimento do direito e para cálculo das prestações de segurança social, independentemente do pagamento das contribuições”. Caso não o tivesse feito, os benefícios dependiam sempre do “pagamento das correspondentes contribuições de acordo com as regras do presente diploma” (art. 4º 1), isto é, da inscrição feita pela entidade empregadora e do pagamento das respectivas contribuições [Cfr. Ac. Acórdão do STA, de 28-05-2008].
Contudo, note-se, este regime passou a vigorar para o futuro, não devendo ser confundido com a possibilidade – e não obrigação - dada aos trabalhadores de regularizarem situações anteriores.
A Lei de Bases da Segurança Social veio a ser consagrada, pela primeira vez, na Lei n.º 24/84, de 14 de Agosto. Estabelecia dois regimes de segurança social: o regime geral e o regime não contributivo (art.º 10.º n.º1).
Nos termos do artigo 18.º, ficavam abrangidos obrigatoriamente no campo de aplicação do regime geral os trabalhadores por conta de outrem e os trabalhadores independentes.
De acordo com o disposto no artigo 19.º 1, o regime geral concretizava-se “através da atribuição de prestações pecuniárias ou em espécie nas eventualidades de doença, maternidade, acidentes de trabalho e doenças profissionais, desemprego, invalidez, velhice, morte, encargos familiares e outros previstos na lei”.
Vindo depois o artigo 20.º estabelecer a obrigatoriedade de inscrição e das entidades empregadoras (n.º1), recaindo sobre estas a responsabilidade “pela inscrição no regime geral dos trabalhadores ao seu serviço” (n.º2).
O art.º 24.º estabelecia a obrigatoriedade dos beneficiários, bem como das respectivas entidades empregadoras, estas quando disso fosse caso, “a contribuir para o financiamento do regime geral”[n.º1], nos termos depois definidos nos n.ºs 2 e 3.
E, o art.º 25.º, com a epígrafe “Condições de atribuição das prestações”, no que aqui importa, dispunha o seguinte: [2] A atribuição das prestações depende normalmente da inscrição e, nas eventualidades em que seja exigido, do decurso de um prazo mínimo de contribuição ou equivalente.[4] A falta de declaração ou a falta de pagamento de contribuições relativas aos períodos de exercício de actividade profissional dos trabalhadores por conta de outrem que lhes não seja imputável não prejudica o direito às prestações.”
Note-se, que embora o n.º 2 faça depender a atribuição das prestações “normalmente da inscrição”, logo de seguida estabelece o n.º4, que esse direito pelo trabalhador por conta de outrem não sai prejudicado em duas situações, em concreto, “a falta de declaração ou falta de pagamento de contribuições”, mas desde que tal não lhe seja imputável.
Vale isto por dizer que caso o empregador não tenha procedido à inscrição do trabalhador, basta que este tenha feito a declaração da prestação da actividade por conta de outrem para não perder o direito às prestações. Ao invés, se o trabalhador também não tiver procedido a esse declaração e tal lhe for imputável, fica prejudicado o seu direito às prestações.
Explica-se este regime pela corresponsabilização “dos trabalhadores subordinados pela sua inscrição perante a segurança social e pela declaração de vinculação a cada entidade contribuinte”, referida no preâmbulo do DL 124/84, de 18 de Abril, e depois consagrada no art.º 3.º, diploma em vigor quando foi publicada a Lei 24/84, de 14 de Agosto.
Aqui chegados, a questão que se coloca é, pois, a de sabe qual o sentido e alcance da expressão “falta de declaração (..) que lhes não seja imputável (aos trabalhadores)”, do n.º4, do art.º 25.º.
Porque melhor não o diremos, passamos a transcrever a conclusão extraída sobre essa precisa questão no Acórdão de Acórdão do STA, de 28-05-2008, em concreto, a seguinte:
Depois de termos analisado o regime que vigorava antes e continuou a vigorar depois da Lei 28/84, podemos dizer com toda a segurança que, quando o art. 25.º, 4, da Lei 28/84, de 14 de Agosto, se refere à falta de declaração está a referir-se à declaração do início da actividade, feita pela entidade patronal, ou pelo próprio trabalhador.
Podemos também dizer que a obrigação de comunicar o exercício da actividade era imposta por lei ao próprio trabalhador, mais concretamente, pelo art. 3.º do Dec. Lei 124/84.
Como o art. 25º, 4, da Lei 28/84, de 14 de Agosto, se refere à falta de declaração que não seja imputável ao trabalhador, podemos concluir que, nos casos em que o trabalhador não desse cumprimento ao disposto no art. 3º do Dec. Lei 124/84, tal falta é-lhe imputável. Sendo assim o mesmo só poderia beneficiar do tempo de serviço e vencimentos realmente auferidos se efectuasse as contribuições em dívida – por força do disposto no art. 4º do Dec. Lei 124/84. Isto para os vencimentos auferidos depois da entrada em vigor do Dec. Lei 124/84; para que as remunerações auferidas anteriormente pudessem ser atendidas era exigível, em qualquer caso, o pagamento das respectivas contribuições (incluindo as prescritas, como vimos).
O sentido do art. 25º, n.º 4, da Lei 28/84, de 14 de Agosto é, assim, o de considerar irrelevante a falta de pagamento das contribuições, ou a falta de declaração da entidade patronal, não incluindo aí os casos em que o trabalhador não tenha cumprido a obrigação que lhe impõe o art. 3.º do Dec. Lei 124/8. Neste último caso a falta de declaração é imputável ao trabalhador e, portanto, não lhe é aplicável o regime do art. 25º, n.º 4. Na verdade não pode deixar de ser imputável ao trabalhador o incumprimento de uma obrigação que lhe é legalmente imposta. Só assim não seria se o trabalhador mostrasse que quis, mas foi impedido de fazer tal declaração – situação que neste caso nem alegada foi».
Revertendo ao caso e aplicando-lhe este entendimento, é forçoso concluir que a partir da entrada em vigor do DL 124/84, de 18 de Abril, o A., tal como os outros trabalhadores em geral, passou a estar corresponsabilizado pela declaração da prestação de actividade por conta de outrem (art.º 3.º).
Acontece, porém, que o A. jamais fez a declaração da actividade.
Assim, tal como entendeu o STA no aresto citado, somos igualmente a concluir que essa omissão não pode deixar de lhe ser imputável, posto tratar-se de uma obrigação legal, sendo certo que nenhum facto foi sequer alegado pelo A. na acção para demonstrar uma qualquer razão que o impedisse de cumprir tal obrigação. Há, pois, uma omissão ilícita.
Mais, no que respeita à culpa, parece-nos forçoso considerar que a mesma está presente em elevado grau, não podendo deixar de relevar o facto do A. ser advogado há longos anos e, logo, seguramente melhor conhecedor da lei do que o normal cidadão, acrescendo que existiam inequívocos indícios no sentido de exigirem que ele tivesse a noção, pelo menos, de que o R. não procedia à entrega de contribuições à segurança social relativamente a si. Na verdade, embora não se saiba precisamente desde quando, o certo é estar provado que o A. emitia recibos verdes após o pagamento das retribuições mensais, como se fosse um trabalhador independente. Não se sabe porque assim agia, mas o certo é que o A. não podia ignorar que estava a agir como trabalhador independente.
O DL 124/84, de 18 de Abril, entrou em vigor no dia 1 do segundo mês posterior ao da sua publicação (art.º 15.º), logo, a 1 de Junho de 1984.
Por conseguinte, a partir dessa data entende-se ser imputável ao A. a falta de declaração da actividade e, consequentemente, essa omissão ilícita e culposa dá causa ao dano que consistiu na redução da pensão por reforma que lhe veio a ser atribuída. Se o A. tivesse cumprido a obrigação legal de declarar a actividade (art.º 3. do DL 124/84), para efeitos de determinação da pensão teria sido irrelevante a falta de pagamento das contribuições e a falta de declaração da entidade patronal (art.º 25.º n.º4, da Lei 24/84) e, logo, não teria ocorrido o dano consistente na redução da pensão de reforma por desconsideração do período contributivo a partir de 1 de Junho de 1984.
Note-se que à luz do regime legal aplicável, bastaria ao A. ter cumprido aquela obrigação para afastar o dano que sofreu ao não lhe ser considerado esse período de actividade e as retribuições auferidas ao serviço do Réu desde 1 de Junho de 1984 até à cessação da relação de trabalho subordinado.
Consequentemente, atenta a gravidade da culpa do A. e as consequências na produção do dano, entende-se ficar excluída a obrigação de indemnização por parte do Réu (art.º 570.º do CC).
Portanto, relativamente a esse período posterior à vigência do DL 124/84, reconhece-se razão ao Recorrente.
Mas já assim não se entende quanto ao período entre 15 de Novembro de 1971 e aquela data, isto é, 1 de Junho de 1984, durante o qual não estabelecia a lei a corresponsabilização do trabalhador pela declaração da actividade por conta de outrem.
Se as contribuições são determinantes para o montante da pensão por reforma e se a falta de declaração da actividade bem como da entrega delas pelo R., que a tal estava legalmente obrigado, gerou um dano, que se traduziu no facto do A. não poder obter uma pensão mais elevada, necessariamente existe o nexo de causalidade entre aquela conduta omissiva e o dano causado. Por último, defende ainda o R. que não se provou que tenha agido com culpa. Acolhe-se, mais uma vez, nos argumentos que invocou para defender o alegado abuso de direito. Por isso mesmo valem aqui as considerações deixadas nesse ponto. Vejamos brevemente.
Não tem apoio nos factos pretender o R. que a relação entre as partes sempre se desenvolveu como um contrato de prestação de serviços, invocando que o contrato de trabalho não pode ser executado na sequência da comunicação do Ministério das Corporações e Previdência Social (facto 4). Parece o R. esquecer o que já foi decidido e transitou em julgado, isto é, que existiu “um vínculo laboral entre autor e réu desde 15 de Novembro de 1971 até 24 de Dezembro de 2010”.
Assim como também não colhe o argumento que apela ao facto do A. ser um experiente advogado, pretendendo que este devia esgrimir o contrato de trabalho perante o R. É verdade que o A. era um experiente advogado e até já se retiraram consequências desse facto, mas relativamente a este período tal não exclui a exclusiva responsabilidade da entidade empregadora, pois era apenas sobre ela que recaía a obrigação legal de inscrever o A. na segurança social e de proceder à entrega das respectivas contribuições, não sendo despiciendo relembrar que estamos perante uma associação sindical, não podendo por isso ignorar que celebrou um contrato de trabalho com o A. e, logo, que estava vinculada ao cumprimento daquela obrigação.
Mostram-se, pois, verificados todo os pressupostos da responsabilidade, ia saber: um facto voluntário do agente, aqui consubstanciado pela omissão de declaração da actividade do A. e entrega das respectivas contribuições; ii) a ilicitude desse facto, na medida em que tal obrigação era imposta por lei ao R., enquanto entidade empregadora; iii) nexo de imputação do facto ao lesante, a título de dolo, pois não podia ignorar ter reduzido a escrito contratos celebrados com o A., em que fizeram expressamente constar a denominação de “contrato de trabalho” e acordaram cláusulas típicas de uma relação de trabalho subordinado e, logo, que sendo entidade empregadora deveria cumprir essa elementar obrigação, tanto mais que o R. é uma associação sindical; iv) a verificação de um dano, traduzida na desconsideração daquele período contributivo, implicando tal um menor valor da pensão de reforma; v) nexo de causalidade entre o facto e o dano, na medida em que este decorre da omissão do Réu, sobre quem recaía exclusivamente a obrigação legal de proceder à declaração da actividade do A. e proceder ao pagamento das contribuições.
Neste mesmo sentido, num caso em que se colocava igualmente a questão de falta entrega pela entidade empregadora das contribuições devidas à segurança social, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 05-02-2003 [processo n.º 02S2673, Conselheiro FERREIRA NETO, disponível em www.dgsi.pt] nos termos seguintes:
-“As contribuições sobre a retribuição-antecedidas obviamente da respectiva liquidação - representam um elemento fundamental do sistema de segurança social mas, do mesmo passo, não deixam de garantir também o direito a um conjunto de prestações, incluindo o respectivo montante, a favor dos trabalhadores (v, nomeadamente, o art. 26º da Lei nº 28/84, de 14.8, hoje substituída pela Lei nº 17/00,de 08.8).
Portanto, a violação da lei nesta área atinge também interesses do A..
Daí a ilicitude e a culpa da Ré, no caso, face à intencionalidade havida.
Os danos e a causalidade entre eles e o facto ilícito resultam claramente do abaixamento das prestações em causa, uma vez que os montantes das contribuições se repercutem naquelas.
Estão, assim, reunidos todos os pressupostos para a efectivação da responsabilidade civil (art. 483 º do C. Civil)».
Como se mencionou, o dano traduz-se na diminuição do valor da pensão por reforma, sendo sabido que esta é paga mensalmente, incluindo subsídio de férias e de Natal. O dano ocorre desde a data em que foi atribuída ao A. a pensão de reforma (1 de Janeiro de 2011) e persistirá enquanto se mantiver esse direito.
Importa relembrar que o A. pediu a condenação do réu no pagamento de pensão/indemnização vitalícia de €1.400,00 mês x 14 desde 1 de Janeiro de 2011, acrescida de juros de mora desde 1 de Janeiro de 2011.
Concluindo, relativamente ao período que vai desde o início da relação de trabalho subordinado, em 15 de Novembro de 1971, até ao início de vigência do DL 124/84, em 1 de Junho de 1984, não estando ainda consagrada a corresponsabilização dos trabalhadores por conta de outrem na declaração de actividade à segurança social, verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil, recaindo sobre o Réu a obrigação de indemnizar o A.
A indemnização será paga em forma de renda mensal (art.º 567.º do CC), sendo esta determinada em razão da diferença entre o valor mensal da pensão por reforma que foi atribuído ao A. e o que poderia ter obtido, caso ao R., enquanto entidade empregadora, tivesse cumprido as obrigações legais decorrentes do Decreto-Lei n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963, procedendo à inscrição conforme estabelecido no n.º1, do art.º 17, bem como à entrega dos devidos descontos contributivos.
Essa diferença é devida desde o momento da atribuição da pensão, mensalmente, e até quando se mantiver o direito do A. ao recebimento da pensão de reforma.
Assim, procede parcialmente esta linha de argumentação do recorrente, cabendo alterar a sentença em consonância com o que deixou exposto.
II.2.2 Recurso Subordinado do A.
O A. discorda da sentença recorrida por ter remetido para liquidação em execução de sentença a quantificação da indemnização a ser-lhe paga pela ré.
O recurso mantém utilidade, pois, como resulta do ponto anterior, manter-se-á o decidido na sentença recorrida relativamente ao período compreendido entre 1 de Novembro de 1971 e 1 de Junho de 1984.
Quanto a esse ponto, consta da fundamentação da sentença o seguinte:
-«(..)
Resulta assim do exposto que estão reunidos todos os pressupostos da obrigação de indemnização a título de culpa efectiva.
De acordo com o disposto no art.º 562 dever-se-á reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Todavia, nos presentes autos não se averiguou o valor exacto dos danos.
Como proceder então para calcular a indemnização devida?
Existem duas opções: ou relegar a sua quantificação no competente incidente de liquidação (cf. Art.º 565º do C.C. e arts. 609º, nº 2 do C.P.C., aplicáveis ex vi do art. 1º, nº 2, al. a) do CPT), ou fixá-la utilizando critérios de equidade (cf. nos termos do disposto no nº 3 do art.º 566º do Código Civil, “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”).
Como optar?
Refere o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.04.2012 que “só deve deixar-se para oportuna liquidação a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora se prove na acção declarativa a sua existência, não existem elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem sequer recorrendo à equidade nos termos da referida disposição legal (artº 566º nº 3 do Código Civil).
Refere, ainda, que “se não for previsível que em oportuna liquidação se obtenha o valor exacto dos danos, deve recorrer-se desde logo à equidade, evitando-se o arrastamento da solução do litígio (cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 4.4.2006, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 33)”.
Continua afirmando que “O recurso ao dispositivo do art.º 661º, nº 2 (cf. actual 609º nº 2), depende do juízo que se formar em face das circunstâncias concretas de cada caso sobre a possibilidade de determinação do valor exacto dos danos. Se esse juízo for afirmativo, será de aplicar o art.º 661°, n.º 2; de contrário, deve aplicar-se o art.º 566°, n.º 3, do Código Civil” (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25,3.2003, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 140).
No caso “sub judice” entendo que é possível apurar o valor concreto dos danos sofridos pelo autor em incidente de liquidação de sentença. Para isso bastará o autor indicar o valor dos seus vencimentos mensais entre Novembro de 1971 a Dezembro de 2010 e depois com base nesses valores solicitar à Segurança Social que calcule o valor da reforma que o autor auferiria se o réu tivesse procedido, durante esse período, aos descontos a que estava obrigado legalmente.
Assim sendo, decido que a indemnização em causa terá de ser quantificada no competente incidente de liquidação (arts. 609º, nº 2 do C.P.C., aplicáveis ex vi do art. 1º, nº 2, al. a) do CPT)».
No entender do A. essa previsão do tribunal a quo é errada, alegando já ter sido dado a conhecer que o recibo de vencimento mais antigo de que o Autor dispõe, é de Dezembro de 2003, não sendo previsível que o R. deles disponha desde a data da admissão do Autor, nem talvez mesmo os recibos dos últimos 15 anos, nem sendo crível que a Segurança Social, a pedido do Autor, se dispusesse a fazer o cálculo da pensão de reforma que o Autor receberia se o recorrente tivesse dado cumprimento à lei.
Nesse pressuposto, crê o Autor “ser inviável fazer o cálculo do valor da reforma a que (..) teria direito, pelo método proposto na sentença, ou por qualquer outro”, para defender a aplicação do n.º3, do art.º 566.º do CC, recorrendo o tribunal à equidade..
Adiantamos já que, na nossa perspectiva, a 1.ª instância decidiu bem ao remeter para liquidação em execução de sentença. E, para além disso, que mesmo com a modificação da sentença, continua a ter validade tal decisão, bem como os fundamentos em que se sustentou.
Resulta do n.º 2, do art.º 609.º, CPC, que se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte em que já seja líquida.
É, pois, pressuposto da remessa para o incidente de liquidação a inexistência de elementos necessários à quantificação em causa.
Cremos que no caso concreto a situação configura-se como incerteza sobre o quantitativo do direito do recorrente A., enquadrável naquele normativo, pois, na linha do que entendeu a 1.ª instância, também se nos afigura não existirem os elementos indispensáveis para, segundo critérios de razoabilidade, fixar o seu quantitativo, mesmo recorrendo à equidade nos termos do n.º3, do art.º 566.º do CC. E, por outro lado, a falta de parte dos recibos de vencimentos, ainda que relativos a um período alargado de tempo, agora restrito a Novembro de 1971 até Maio de 1984, não obsta a que o A. possa indicar, por aproximação, o valor da retribuição que sucessivamente terá auferido em contrapartida da prestação da sua actividade para a Ré. Há valores conhecidos reportados ao início da relação de trabalho subordinado, conforme decorre dos factos provados e, partindo destes, será pelo menos possível ao A. fazer uma estimativa com relativa segurança dos valores que foi recebendo até 1984.
Em todo o caso, mesmo que a prova produzida no incidente de liquidação venha a revelar-se insuficiente, sempre deverá o Tribunal lançar mão do n.º 4 do art.º 360.º, do CPC, completando-a mediante indagação oficiosa - aqui podendo incluir-se a solicitação da colaboração à segurança social-, ou ordenando a realização de prova pericial.
Em suma, seguramente que por esta via se obterá um resultado mais justo e adequado a repor o dano.
Concluindo, improcede o recurso subordinado do A.
IV. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação o seguinte:
I. Não admitir a junção do documento pelo A., condenando-se este no pagamento da taxa de justiça pelo mínimo.
II. Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação do Réu, em consequência alterando-se a sentença, no seu ponto 1, para se condenar o R. a pagar ao A. uma indemnização a quantificar em incidente de liquidação (arts. 609º, nº 2 do C.P.C., aplicáveis ex vi do art.º 1º, nº 2, al. a) do CPT), consistindo a mesma no pagamento do valor mensal nos termos expostos na parte final do ponto II.2.1.2.
III. Julgar improcedente o recurso subordinado do A.

Custas (art.º 527.º 1.º e 2.º doCPC):
i) da acção e do recurso do Réu, na proporção do respectivo decaimento.
ii) do recurso subordinado do A, a cargo deste, atento o decaimento total

Lisboa, 28 de Janeiro de 2015
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes
Maria Celina de J. Nóbrega
Decisão Texto Integral: