Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
205/15.0PBAMD.L1-3
Relator: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
Descritores: JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
COMPETÊNCIA
PERDA DE BENS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO NÃO RECEBIDO
Sumário: O Juiz de instrução é o garante de direitos liberdades e garantias mesmo sendo o MP o dominus do inquérito. Ou seja, decide mesmo que não seja na linha do MP uma vez que é sua função como juiz decidir e garantir direitos e liberdades.
O MP tem interesse em recorrer quando na verdade haja despachos que afectem a legalidade e o andamento do processo. Antes disso não tem interesse em agir.
Decorrido o prazo dos editais havendo que dar destino ao dinheiro apreendido, devem os autos ir ao JIC que decidirá da entrega ou perdimento do mesmo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão proferida na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Nos presentes autos vem o Ministério Público recorrer do despacho proferido pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal que interveio a requerimento do arguido, determinando que "logo que decorrido o prazo dos editais não havendo então impedimento à eficácia da presunção da titularidade do direito, deve todo o dinheiro apreendido ser devolvido ao arguido".

CONCLUSÕES:
Antes do mais, questionamos a legitimidade da intervenção judicial nesta matéria e neste momento processual.
De facto, os actos da competência do JIC, no âmbito do inquérito, estão bem delimitados pelos artigos 268° e 269° do Código de Processo Penal. No que concerne a bens apreendidos, estabelece o n° 1, alínea e) do primeiro deles que compete ao JIC declarar a sua perda a favor do Estado, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277°, 280° e 282° do mesmo diploma.
Por seu turno, o artigo 178°, n.° 64, apenas permite a modificação ou revogação (pelo JIC) da medida preventiva de apreensão de objectos, que pode ser requerida pelo titular do respectivo bem ou direito que se considere ilegitimamente lesado.
É o art. 186° que fixa o regime que regula a restituição dos objectos apreendidos, sendo ao Ministério Público que, no exercício do seu mandato de titular do inquérito, cabe a decisão sobre a necessidade/ desnecessidade de manter uma apreensão para efeito de prova e, consequentemente, decidir sobre a entrega dos objectos e bens apreendidos.

Introduzido pela Reforma Processual de 98 (Lei n.° 59/98, de 25 de Agosto).
 Semelhante interpretação é acolhida por Paulo Pinto de Albuquerque: «Na fase de inquérito, a autoridade competente para restituir os objectos é o Ministério Público, no exercício das suas funções de direcção do inquérito (...). O juiz de instrução não tem competência para, na fase de inquérito, determinar o levantamento dos objectos apreendidos, mesmo nos casos em que a lei lhe atribui competência para ordenar as apreensões. A decisão do Ministério Público de não restituição de um objecto apreendido pode ser sindicada pelo superior hierárquico, por via da reclamação hierárquica, ou através do incidente de "impugnação judicial", previsto no artigo 178, n.°6. A decisão do Ministério Público de restituição de um objecto apreendido não é passível de sindicância judicial nos termos do artigo 178°, n.° 6 .»
No mesmo sentido, se pronunciaram os Acórdãos da Relação de Lisboa de 9/6/1998 e de 5/12/2005 e da Relação de Guimarães de 12/10/2009 e 20/2/20176.
É o entendimento que também nós perfilhamos por ser o único com apoio na lei, emanando da conjugação de todos os preceitos citados.
Com efeito, se o legislador quisesse consagrar a legitimidade do Juiz de Instrução para decidir quanto ao destino a dar aos objectos após o arquivamento dos autos tê-la-ia expressamente previsto na al. e) do n°1 do art. 268° do CPP. Mas não!

Repare-se que esta alínea estabelece (apenas) como competência do Juiz de Instrução nesta matéria a declaração de perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o M°P° proceder ao arquivamento do inquérito.
Ao ampliar o leque de competências do Juiz de Instrução invocando a alínea f) do art. 268°, o despacho recorrido está a exorbitar a competência que lhe é conferida pelos arts. 268° e 269° do CPP, em especial pela al. e) do n°1 do primeiro dos artigos referidos, que é flagrantemente violada.

Fá-lo, além do mais, escudando-se na necessidade de defender o direito constitucional à propriedade privada.
Esquece, contudo, que não é a decisão sobre a apreensão que lhe está a ser colocada pelo arguido mas sim o destino a dar após o arquivamento a uma quantia monetária que foi apreendida nos autos, e que deve ser decidida em exclusivo pelo M°P°.
A aceitar-se a legitimidade da intervenção judicial nestes termos estar-se-ia a permitir uma intromissão do Juiz em todo e qualquer acto praticado pelo M°P° e a todo o tempo, porque escudada em direitos constitucionalmente consagrados, fazendo tábua rasa das regras de competência material e do princípio da segurança jurídica.
O despacho recorrido enferma, pois, de nulidade insanável prevista na alínea e) do artigo 119°, resultante da violação das regras da competência em razão da matéria.

Sem conceder, e quanto à questão substancial, não podemos concordar com a Mma. Juiz quando afirma que a decisão do M°P° faz recair sobre o arguido o ónus de provar a origem do dinheiro apreendido, quando sobre o mesmo não recai o ónus de provar seja o que for, gozando ainda da presunção prevista no art. 1286° do Código Civil.
De facto, o despacho a quo esqueceu duas realidades distintas quanto às quantias monetárias apreendidas:
Na posse do arguido foram apreendidos apenas 2.470,00€, sendo 1.470,00€ no bolso direito das calças, e 1.000,00€ oculto nos genitais.
Os restantes nove maços de notas, que totalizavam 42.992,05€ foram apreendidos dentro da bagageira de uma viatura que não pertence ao arguido e cuja chave não possuía quando foi detido.

19. Assim sendo, o tratamento dado aos valores monetários mencionados não pode ser igual. Daí que o Ministério Público tenha determinado:
A notificação do arguido para proceder ao levantamento da quantia de 2.470,00€ que lhe foi apreendida, desde que comprove a sua proveniência.
Quanto ao restante valor - 42.992,05€ - a afixação de editais para que eventuais interessados reclamem a sua entrega, desde que comprovem que lhe pertence e a sua proveniência.
20. O que o arguido pretende agora - e que o despacho recorrido lhe permitiu - é fazer accionar uma presunção de propriedade relativamente à totalidade dos bens apreendidos, sendo certo que somente uma parte foi efectivamente apreendida na sua posse.
21. Se em abstracto o argumento da Mma. Juiz é aceitável relativamente aos valores monetários apreendidos na posse do arguido, não o é de todo em relação ao dinheiro encontrado no interior do veículo.

22. A distinção impõe-se em absoluto.
23. O M°P° não está a onerar o arguido com a prova da origem lícita do dinheiro, mas sim a exigir que comprove que o mesmo lhe pertence, sendo certo que não foi encontrado na sua posse nem o mesmo pediu a sua devolução durante mais de 2 anos de inquérito...
24. O arguido não goza de qualquer presunção, sobretudo no que tange aos valores apreendidos dentro do veículo. O art. 1268° do Código Civil não é, pois, aplicável.
25. Em consequência, o despacho recorrido viola o disposto no art. 186°, n°1 do CPP, que determina que os objectos são restituídos a quem de direito, o que não é o caso do arguido.
Deve pois o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a incompetência material do Juiz de Instrução Criminal para apreciar a questão suscitada pelo arguido.
Sem conceder, e caso assim não se entenda, deverá o despacho recorrido ser revogado e determinada a devolução ao arguido apenas da quantia de 2.470,00€ que lhe foi apreendida, sendo que em relação ao restante se mantém o definido pelo M°P°.

Juntou o arguido visado resposta ao recurso nos seguintes termos.
CONCLUSÕES:
Vem o Ministério Público interpor recurso do despacho proferido pela Mma. Juiz de Instrução Criminal.
Questiona a legitimidade da intervenção judicial nesta matéria e neste momento processual, dizendo em suma que:
 a) Ao ampliar o leque de competências do Juiz de Instrução invocando a alínea f) do artigo 268.2, o despacho recorrido está a exorbitar a competência que lhe é conferida pelos artigos 268.° e 269.2do CPP, em especial pela alínea e) do n.2 1 do primeiro dos artigos referidos, que é flagrantemente violada.
b) E que, por isso, o despacho recorrido enferma de nulidade insanável prevista na alínea e) do artigo 119.2, resultante da violação das regras da competência em razão da matéria.
O MP, ora recorrente, ignora que o dinheiro apreendido no âmbito destes autos, já não é necessário para efeito de prova, pois foi proferido despacho de arquivamento dos autos.
O artigo 268º, nº 1, alínea e) do CPP diz-nos que compete exclusivamente ao JIC "declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277. 280.9 e 282.°".
Com a norma do artigo 268.2, n.2 1, alínea e) do CPP, o legislador quis que fosse o JIC a decidir sobre a perda dos bens dos cidadãos a favor do Estado.
Isto porque a questão ali em evidência prende-se com a defesa de direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente garantidos.
Mal se compreenderia que o legislador não quisesse que o JIC tivesse competência para, numa situação de conflito como a dos autos, decidir sobre a restituição ou não do dinheiro ao arguido, que entende ser o seu legítimo possuidor.
O exercício das funções definidoras de direitos compete ao conjunto dos tribunais, e na fase de inquérito ao juiz de instrução, que assegura a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirime os conflitos de interesses públicos e privados (artigo 202.° da CRP e artigo 17.2 do CPP).
9. Foi nesse sentido que o legislador introduziu a alínea f) do n.2 1 do artigo 268,° e alínea f) do n.° 1 do artigo 269.° do CPP.
10. No caso dos autos, está em causa o ato de privação da propriedade de um bem e, por isso, um ato que possa interferir com o direito de propriedade privada, direito constitucionalmente consagrado,
11. Pelo que a decisão sobre a restituição ou não do dinheiro ao arguido é um ato da exclusiva competência do JIC.
12.0 despacho recorrido não enferma da nulidade insanável prevista na alínea e) do artigo 119.9, devendo, antes, ser mantido nos seus precisos termos.
13. Em segundo lugar, entende o MP que "o despacho recorrido viola o disposto no artigo 186.2, n.° 1 do CPP, que determina que os objetos são restituídos a quem de direito, o que não é o caso do arguido."
14. Conforme resulta do despacho que arquivou os autos, ao arguido foi apreendido a quantia de 2.470,00€ 42.992,05€ em dinheiro.
15. Toda a investigação foi direcionada para o arguido, suspeitando-se da prática, por este, do crime de branqueamento de capitais, de onde poderia ter provido o dinheiro apreendido.
16. Nunca se colocou em causa que o dinheiro não pertencesse ao arguido.
17. 0 próprio proprietário do veiculo que o arguido conduzia à data, e onde se encontrava o dinheiro, não reclamou a titularidade do dinheiro apreendido, mas tão só a devolução do veículo.
18. Nenhum indício existe no sentido de que o dinheiro apreendido não seja pertença do arguido.
19. Pelo que, não se visualizam razões para se afastar o funcionamento da presunção legal prevista no artigo 1268.2 do Código Civil,
20. 0 que resulta do facto de toda a quantia monetária apreendida ter sido retirada da posse do arguido.
21. Não se vislumbra que dos autos seja ilidida essa presunção, pois em nenhum momento se alvitra da possibilidade de a quantia apreendida não ser sua.
22. 0 arguido foi investigado pelo crime de branqueamento de capitais e não foi acusado porque não se demonstrou um crime precedente, e não porque não era sua a quantia apreendida.
23. Face todo o exposto, o dinheiro apreendido ao arguido tem necessariamente de lhe ser devolvido, nos termos do disposto no artigo 186.2, n.° 1 do CPP, conjugado com o disposto no artigo 1268.2 do Código Civil.
24. A presunção da titularidade do direito prevista no artigo 1268.° do Código Civil é perfeitamente válida e admissível na nossa ordem jurídica penal, devendo ser apreciada e tida em conta no presente caso concreto.
NESTES TERMOS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE IMPROCEDENTE E, EM CONSEQUENCIA, MANTER-SE A DECISÃO RECORRIDA NOS SEUS PRECISOS TERMOS.

CUMPRE DECIDIR:
Do despacho recorrido resulta:

E... veio requerer a este tribunal que seja ordenada a restituição da totalidade do dinheiro que lhe foi apreendido nos presentes autos de inquérito.
Alegou, para tanto, que por despacho de 21 de junho de 2017 foi determinado o arquivamento dos autos por não terem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime de branqueamento de capitais e de quem foi o seu autor.
 Não obstante o arquivamento dos autos o Ministério Público não ordenou a devolução da totalidade do dinheiro apreendido nos autos ao arguido, corno devia, nos termos do disposto no artigo 186.° n.°1 do CPP em conjugação com o disposto no artigo 1268.° do Código Civil.
O Ministério Público opôs-se à pretensão do arguido promovendo o indeferimento do requerido por falta de fundamento legal para a intervenção do JIC neste domínio e fase processual.
A competência do juiz de instrução durante a fase processual presidida pelo Ministério Público obedece a um quadro de intervenção ocasional - sempre que estejam em causa atos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserva ao juiz - tipificada - artigo 268° do CPP - e provocada - pelo Ministério Público, quando pretenda praticar um ato que carece de decisão judicial, ou por outro sujeito processual ou interveniente com legitimidade para o efeito, a saber, a autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, o arguido ou o assistente ( artigo 268° n.°2 do CPP).
A questão em apreço nos autos não se prende com a competência do Ministério Público para ordenar a restituição dos bens até porque, em face do arquivamento dos autos, o Ministério Público tornou aquela que se apresenta como a decisão acertada, que é a de ordenar a devolução dos bens apreendidos (dinheiro). É, portanto, pacífica a restituição dos bens e a decisão foi tomada pela autoridade judiciária que para tal é competente.
O que está efetivamente em causa é saber se ao arguido assiste o direito de provocar a intervenção do MC face à decisão do Ministério Público de, encerrado o inquérito com o arquivamento dos autos, não lhe restituir o dinheiro que lhe foi apreendido e reclama como seu.
A resposta só pode, em nosso modesto entendimento, ser positiva.
Como refere Paulo Dá Mesquita, o juiz de instrução criminal é exclusivamente competente para praticar, ordenar ou autorizar certos atos processuais singulares que na sua pura objetividade externa se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente garantidos.
Sobre a competência do Juiz de Instrução na fase de inquérito veja-se, ainda o ac TRL de 2409-2015, proc 208/13.9TELSB , disponível em www.dgsi.pt
Ao longo de todo o seu articulado o Código de Processo Penal, estabelece um conjunto de competências do juiz de instrução, deixando nos artigos 268°, n° 1, al. 1) e 269°, n° 1 al. tal como já tinha feito no artigo 17°, uma porta aberta para outras situações de competência não especificadas ao estatuir, "Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução" e " ( ...) quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução", respectivamente. (...) Se o legislador tivesse pretendido que a intervenção do juiz de instrução se cingisse apenas aos casos expressamente previstos na lei, não teria lançado mão de normas em branco em matéria de competência mesmo, ainda que de forma ambígua, nas normas em que especificadamente a consagra como são os artigos 268° e 269° do Código de Processo Penal».
Ora, sob a epígrafe «Direito de Propriedade Privada», prescreve o art. 62.°, n.° 1, da Constituição que "a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição". E o n.° 2 do mesmo preceito ressalva, por sua vez, que "a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização".
A noção de direito de propriedade, em abstrato, designa num primeiro momento "uma relação privada de uma pessoa ou entidade com determinados bens" de que resulta para os demais consociados, num segundo momento ou dimensão, um dever de abstenção ou de não perturbação, uma obrigação universal de respeito. É esta pois — nas duas referidas dimensões — a relação tutelada no art. 62.° CRP face primacialmente aos poderes públicos, integrando o conteúdo básico da garantia constitucional:
o direito de aceder à propriedade (de adquirir bens);
o direito de não ser dela arbitrariamente privado;
e o direito de a transmitir inter vivos ou mortis causa (liberdade contratual e de disposição testamentária) (Ac. do TC n.° 148/05, de 16.03); e, enfim, reconduz-se ainda ao dito conteúdo básico
(iv) o direito de usar e fruir a propriedade, por ser ele indissociável do direito fundamental em causa enquanto direito (também) de liberdade2
O direito de propriedade privada com o conteúdo descrito é um direito que beneficia da tutela constitucional. Portanto, estando em causa nestes autos o ato de privação da propriedade de um bem (o dinheiro que o arguido tinha em seu poder) justifica-se a intervenção do Juiz de Instrução Criminal provocada por quem, na qualidade de arguido, tem para tal legitimidade, a fim de ajuizar se essa privação é arbitrária.
Assim resolvida a questão da competência, vejamos se a recusa em restituir ao arguido todo o dinheiro apreendido nos autos e não só aquele que o mesmo ocultava no bolso das calças e nos genitais tem fundamento legal ou se dele carece caso em que se deve ter por arbitrária.

Com relevo para a decisão a proferir releva a seguinte factualidade:
No dia 4 de Março de 2016, pelas 23H10, uma patrulha da PSP perseguiu o veículo de matrícula 37-..., cujo condutor, à saída do Bairro do Casal da Santa Filomena, na Amadora, desobedeceu ao sinal de paragem, acabando por imobilizá-la na Estrada das Águas Livres e encetando fuga apeada. O individuo veio a ser intercetado e identificado como E....
No bolso direito das calças, o arguido tinha um total de 1.470,00€ e, oculto nos genitais, 1.000,00€ em notas. Dentro da bagageira da viatura foram encontrados nove maços de notas, que totalizavam 42.992,05€.
Quando interrogado especificamente sobre a titularidade e origem do dinheiro o arguido reservou-se ao silêncio.
O veículo que o arguido conduzia pertencia a EG..., pai do arguido.

Os autos prosseguiram tendo por objeto investigar as circunstâncias atinentes à posse da referida quantia monetária e em que medida são tais factos suscetíveis de consubstanciar a prática de crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art. 368°-A do Código Penal.
Encerrado o inquérito o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, nos termos do art. 277°, n°2 do Código de Processo Penal, por considerar que «as diversas diligências de investigação realizadas no âmbito dos presentes autos não permitiram efectivamente a prova ou sequer a indiciação de um facto ilícito típico, precedente, punível e gerador de vantagens igualmente ilícitas. Nem tão-pouco, aliás, da adopção, pelo arguido, de procedimentos de dissimulação desses proventos ilícitos».
Na sequência do arquivamento o Ministério Público notificou o arguido para proceder ao levantamento da quantia de C 2.470,00 que lhe foi apreendida na condição de provar a sua proveniência tendo ordenado a afixação de editais para que eventuais interessados reclamem a entrega do restante valor - 42.992,05, na condição de comprovarem que o dinheiro lhes pertence.
Notificado desta decisão o arguido propôs-se prestar declarações sobre os valores apreendidos.
O Ministério Público procedeu à reabertura do inquérito e à realização de diligências de investigação para além do interrogatório do arguido. Realizadas tais diligências foi proferido novo despacho de arquivamento em que, no que interessa para a decisão a proferir, se conclui:
"(...) Se é verdade que, contrariamente ao que sucedera anteriormente, o arguido declarou expressamente que o dinheiro apreendido lhe pertence, não logrou comprová-lo de modo credível.
Com efeito, não só o arguido não demonstrou que tais valores resultaram da actividade da empresa (cujos elementos contabilísticos e bancários não juntou) como não convence, em face das mais elementares regras da experiência comum, a sua versão para mantido o dinheiro intocável durante 10 anos sem que exercesse qualquer actividade profissional regular e para ter consigo a quantia naquele dia e transportado daquela forma.
Assim, e em conclusão, os elementos agora oferecidos não permitem considerar indiciado que o dinheiro apreendido pertença ao arguido e tenha sido por ele obtido licitamente, caso em que se imporia o levantamento da apreensão e a sua entrega.
Por outro lado, não se justifica o prosseguimento do inquérito pelo crime de branqueamento de capitais, por não se terem alterado os fundamentos do arquivamento proferido a fls. 333-343, cujo conteúdo se dá por reproduzido nessa sede.
Termos em que se determina o arquivamento dos autos e se indefere a entrega ao arguido do dinheiro apreendido"
Inconformado com tal decisão, o arguido suscitou a intervenção hierárquica, sem êxito, por não lhe ter sido reconhecida a legitimidade para tal.
Esgotadas todas as vias, veio o arguido suscitar a intervenção do Juiz de Instrução reclamando a entrega do dinheiro invocando a seu favor a presunção prevista no artigo 1268.° e a inexistência de qualquer ónus que lhe imponha a prova da origem lícita desse dinheiro.

Cumpre decidir.
Pese embora a apreensão ao arguido do dinheiro em causa nestes autos tenha ocorrido em data próxima da sua detenção, a 13 de outubro de 2015, no âmbito do processo 4019/15.5TDLSB na posse de 5.215 gr de heroína, o que teria justificado a incorporação de processos de modo a demonstrar que a quantia monetária apreendida nestes autos seria produto ou vantagem do crime de tráfico, o Ministério Público não equacionou tal hipótese, como reconhece, no prazo previsto no artigo 8.° n.°1 da Lei 5/2002 optando pela investigação nestes autos da prática de crime de branqueamento de capitais, p e p pelo artigo 368.° A do Código Penal.
Encerrado o inquérito concluiu os «autos não permitiram efectivamente a prova ou sequer a indiciação de um facto ilícito típico, precedente, punível e gerador de vantagens igualmente ilícitas. Nem tão-pouco, aliás, da adopção, pelo arguido, de procedimentos de dissimulação desses proventos ilícitos».
Após a reabertura do inquérito e realizadas diligência de prova o Ministério Público concluiu que o arguido não demonstrou que tais valores resultaram da actividade da empresa (cujos elementos contabilísticos e bancários não juntou) como não convence, em face das mais elementares regras da experiência comum, a sua versão para mantido o dinheiro intocável durante 10 anos sem que exercesse qualquer actividade profissional regular e para ter consigo al quantia naquele dia e transportado daquela forma
Não obstante as conclusões a que chegou e as incongruências entre os valores declarados a título de rendimentos e a posse de tão elevada quantia (cfr. declarações de rendimento e informação da segurança social juntas aos autos) o Ministério Público considerou que não se justificava o prosseguimento do inquérito pelo crime de branqueamento de capitais, por não se terem alterado os fundamentos do arquivamento proferido a fls. 333-343 dando por reproduzido o seu conteúdo.
Em suma, os autos foram arquivados, duas vezes, por não ter sido possível encontrar indícios da prática pelo arguido do crime de branqueamento de capitais e, consequentemente, foi ordenada a restituição do dinheiro.
Acontece porém que nessa decisão o Ministério Público faz recair sobre o arguido o ónus de provar a origem desse dinheiro.
Ora, além de sobre arguido não recair o ónus de provar o que quer que seja, goza o mesmo da presunção de inocência bem como da presunção ínsita no artigo 1268.° do Código Civil.
O artigo 1286.° do Código Civil estabelece uma presunção de titularidade do direito fundada na posse, presunção que só cede quando existir registo anterior ao início da posse.
Considerando que era sobre a esfera de disponibilidade fática do arguido que o dinheiro apreendido se encontrava — oculto no seu vestuário e num saco dentro do veículo que se fazia transportar, presume-se que esse dinheiro lhe pertence.

Neste sentido ac TRP de 5-11-2014 Tratando-se de bens móveis não sujeitos a registo cuja proveniência ilícita não ficou demonstrada devem ser restituídos a quem foram apreendidos como seu possuidor não existindo nenhum impedimento à eficácia da presunção da titularidade do direito por parte do seu possuidor, prevista 170 art° 1268° CC.
Destarte, tendo o Ministério Público ordenado a restituição do dinheiro na sequência do arquivamento dos autos, a pessoa a quem o mesmo deve ser entregue é ao arguido por ser quem estava na posse dessas quantias.

Por ser assim, logo que decorrido o prazo dos editais não havendo, então impedimento à eficácia da presunção da titularidade do direito, deve todo o dinheiro apreendido ser restituído ao arguido.
*****
CUMPRE DECIDIR:
Dispõe o artigo 268.º quanto aos actos da competência do juiz de instrução:
1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do n.º 3 do artigo 177.º, do n.º 1 do artigo 180.º e do artigo 181.º;
d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º;
e) Declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.
2 - O juiz pratica os actos referidos no número anterior a requerimento do Ministério Público, da autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente.
3 - O requerimento, quando proveniente do Ministério Público ou de autoridade de polícia criminal, não está sujeito a quaisquer formalidades.
4 - Nos casos referidos nos números anteriores, o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas, com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, dispensando a apresentação dos autos sempre que a não considerar imprescindível.

Ora, desde logo, da leitura do artigo supra transcrito se conclui sem grande dificuldade que o JIC é competente para se pronunciar acerca dos bens perdidos a favor do Estado ou não – 268 nº 1 e) e f) CPP.
O Juiz de instrução é o garante de direitos liberdades e garantias  mesmo sendo o MP o dominus do inquérito. Ou seja, decide mesmo que não seja na linha do MP uma vez que é sua função como juiz decidir e garantir direitos e liberdades.
Terá o MP interesse em agir já, nesta fase dos autos, e face ao despacho de que recorre?
Ao finalizar o seu despacho o Mmº JIC escreve:
“Por ser assim, logo que decorrido o prazo dos editais não havendo, então impedimento à eficácia da presunção da titularidade do direito, deve todo o dinheiro apreendido ser restituído ao arguido.”
Não se compreende a razão do recurso.
Ao recorrente bastava-lhe aguardar o prazo dos editais e, não havendo outras pretensões sobre o dinheiro em causa entregá-lo ao arguido ou declará-lo perdido a favor do Estado. Se findo o prazo dos editais o MP ora recorrente entender ser de declarar o dinheiro perdido a favor do Estado, propõe a perda ao JIC.
 Este e também nos termos do artº 268º e) e f) decidirá, sabendo-se contudo já, qual será a sua decisão.
 Não se vê pois neste momento interesse em agir por parte do MP porque não sabemos o que irá acontecer durante o decurso do prazo dos editais.
Nestes termos

Não se recebe o recurso dada a falta de interesse em agir do recorrente

Sem custas por a elas não haver lugar


Lisboa 11 de Julho de 2018