Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1359/21.1YRLSB-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: UNIÃO ESTÁVEL
ESCRITURA PÚBLICA
ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1-A escritura pública declaratória de União Estável na medida em que produz efeitos na ordem jurídica quanto ao reconhecimento e declaração da união estável, integra-se no conceito de decisão sobre direitos privados proferida por órgão administrativo competente segundo a ordem estrangeira de que emana que assim se integra no preceito do artº 978 nº1 do C.P.C., necessitando de revisão, para produzir efeitos em Portugal. 
(Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
E…o, com residência habitual na Avenida …..o, Brasil, CP: 22631-051, de nacionalidade brasileira, portador do passaporte nº GA308114 e S…, com residência habitual na Avenida…., Rio de Janeiro, Brasil, CP: 22631-051, de nacionalidade brasileira, portadora do passaporte nº GA… vieram requerer a confirmação da escritura pública declaratória de união estável, lavrada no livro 2895, folhas 143/144, ato 044 de 06/11/2008, realizada no 21º Ofício de Notas da Capital do Rio de Janeiro, mediante a qual foi reconhecida a união de facto de E… e S…. desde 1991.
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Cumprido o disposto no 982º, nº1, do Código de Processo Civil, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser recusada a revisão por o acto em si não conter qualquer decisão a rever, uma vez que o notário se limita a atestar o que lhe declaram os requerentes sem acrescentar qualquer actividade decisória ainda que meramente homologatória.
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Os requerentes vieram pugnar pela procedência da requerida revisão.
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O Tribunal é competente e não ocorrem nulidades, exceções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.
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QUESTÃO A DECIDIR
A única questão a decidir consiste em verificar se estão demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação de escritura estrangeira declaratória de União Estável.
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FACTUALIDADE PROVADA
Encontra-se documentalmente provado nos autos que:
1-Em 06/11/2008, os requerentes compareceram perante o Tabelião do 21º Ofício de Notas da Capital do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, da República Federativa do Brasil, e lavraram escritura púbica no livro 2895, folhas 143/144, ato 044, na qual declararam que “vivem em união estável como se casados fossem há mais de dezassete (17) anos”.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Os requisitos necessários à confirmação de sentença estrangeira estão previstos no art.º 980.º do Código de Processo Civil.
Nos termos deste preceito legal, para que a sentença seja confirmada é necessário:
«a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português
Relativamente às condições indicadas nas alíneas a) e f), o art.º 984º determina que o tribunal verifique oficiosamente se as mesmas ocorrem, negando ainda a confirmação se dos autos se concluir que não estão preenchidos os requisitos das demais alíneas.
A al. a) respeita à autenticidade do documento de que conste a sentença e à inteligência da decisão; a al. f) à compatibilidade do seu conteúdo com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Estamos, assim, perante uma actividade de controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito.
Com efeito, nos termos do Artigo 983º, nº 1, do Código de Processo Civil: «O pedido só poder ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º.», determinando o Artigo 984º do mesmo diploma legal que que «O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito
Consoante se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.2.2006, Oliveira Barros, 05B4168, o requerente está dispensado de fazer prova direta e positiva dos requisitos das alíneas b) a e) do Artigo 980º. Se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a falta dos mesmos, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não. A prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerar-se preenchidos.
No que respeita ao requisito da alínea a), o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão que se pretende seja objecto de revisão e reconhecimento na ordem interna.
No que tange ao requisito da alínea f) (ordem pública internacional do Estado Português), “O que releva, para o efeito, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.” (Ac. da Relação de Coimbra de 3.3.2009, Arcanjo Rodrigues, 237/07, LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol., p. 584 e segs., vol. III, p.368 e ss.), MARQUES DOS SANTOS, Aspetos do novo Código de Processo Civil, "Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras", p. 140).»
Volvendo ao caso em apreço, foi junta a escritura pública declaratória de reconhecimento de sociedade conjugal e união estável, lavrada perante entidade administrativa com competência para o efeito, segundo a lei brasileira.
Com efeito, dispõe o artº 1723 do C.C. Brasileiro que “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Por sua vez nos termos do disposto no artº 226 §3, da Constituição Federal, “ Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, objecto de regulamentação pela LEI Nº 9.278, DE 10 DE MAIO DE 1996.
Ora, conforme se refere no Ac. do S.T.J. de 25/06/2013, Proc. nº 623/12.5YRLSB.S1, “A decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do art. 1094.º, n.º 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal. (…) Na realidade, aquilo que releva para a ordem jurídica portuguesa é essencialmente o conteúdo do acto, isto é, o modo como se regulam os interesses privados.”
Nestes termos, está em causa uma decisão sobre direitos privados, provinda do órgão competente que assim se integra no preceito do artº 978 nº1 do C.P.C., necessitando de revisão, para produzir efeitos em Portugal.  
Não desconhecemos decisões desta mesma relação e do STJ que tem recusado a revisão das escrituras de reconhecimento de União Estável.[1]
No entanto, louvamo-nos nos Acs. desta Relação de 24 de Outubro de 2019, proferido no processo 2403/19.8YRLSB.L1-2 (Pedro Martins) e desta secção, em que a ora relatora foi 2ª adjunta, proferido em 21/11/19, proc. nº 1899/19.2 YRLSB, de que aqui transcrevemos parte “A questão é assim a de saber qual o alcance desta intervenção da autoridade pública e, bem assim, se essa intervenção pode ser assimilada ao conceito de decisão. Na expressão do acórdão desta Relação de 24 de Outubro de 2019, na senda de arestos anteriores do Supremo Tribunal de Justiça, trata-se de saber se a intervenção constitui um mero acto de verificação ou se tem natureza performativa.
Diga-se que se entende que essa natureza performativa pode decorrer de o acto do oficial público alterar a realidade jurídica em si mesma – constituir a relação jurídica até aí inexistente – ou alterar os efeitos jurídicos da situação fáctica.
No caso, a intervenção do oficial público, do Notário, não é constitutiva da união de facto, não declara a união de facto ao mesmo título a que o oficial público declara o casamento ou o divórcio (quando o não seja por escritura pública). No primeiro caso, a união estável existe antes da intervenção do oficial público, não se constitui por esta intervenção. No segundo caso, a situação é constituída pela intervenção, o acto tem virtualidade de modificação da realidade: o casamento cessa pela declaração de divórcio.
Ou seja, o que importa é averiguar quais os efeitos da intervenção do oficial público na ordem jurídica em que essa mesma intervenção está prevista: os efeitos são de mera recepção das declarações e avaliação formal da capacidade de quem as emite ou têm repercussão externa, constituindo um plus face à mera declaração. Sendo que esse plus não pode residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público.
Ora, no caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público envolve mais do que a força probatória acrescida, uma vez que autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação.
Do mesmo modo quanto à intervenção do oficial público na escritura de divórcio consensual, uma vez que nenhuma decisão se encontra envolvida, como bem o sublinha o acórdão desta Relação de 24 de Outubro de 2019, no passo que a respeito transcrevemos e a que aderimos.
Em suma, a evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada.
Esta a fronteira a estabelecer para a admissibilidade da revisão, ultrapassada com está a da decisão judicial em sentido estrito e, bem assim, a da decisão de oficial público não tribunal.
(…)
A união estável é um facto e não um acto jurídico. A intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico brasileiro é constitutiva, no sentido de produzir efeitos na ordem jurídica, nomeadamente o declarativo da verificação da situação de união estável.
Concluímos assim que a jurisprudência cunhada pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto às escrituras de divórcio consensual implica o seu alargamento às escrituras declaratórias de união estável”
Secundando este entendimento que era já o nosso, conclui-se que esta é passível e carece de revisão para produzir efeitos no nosso país e para que neste se reconheça que os requerentes vivem em união estável, equiparada nos seus efeitos à união de factos entre os requerentes. 
Por outro lado, não se oferecem quaisquer dúvidas quer quanto à autenticidade, quer quanto ao conteúdo da referida escritura, sendo a revisão intentada por ambos os requerentes.
A referida escritura/sentença não é violadora da ordem pública internacional do Estado Português.
Verificam-se assim preenchidos todos os requisitos consagrados no art. 980º do Código de Processo Civil.
Por último, não há lugar ao registo da decisão em causa, uma vez que a união estável, à semelhança da nossa união de facto, não se inclui nas decisões objecto de registo, cfr. o disposto nos artºs 69 e 78 do CRC.
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DECISÃO
 Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar procedente o pedido e confirmar a escritura pública declaratória de união estável, lavrada no livro 2895, folhas 143/144, ato 044 de 06/11/2008, realizada no 21º Ofício de Notas da Capital do Rio de Janeiro, mediante a qual foi reconhecida a união de facto de E… e S… desde 1991.
Custas pelos Requerentes (cf. Artigo 14º-A, alínea b) do RCP).
Valor da causa: 30.000,01
                                              
Lisboa, 08/07/21
Cristina Neves
Nuno Lopes Ribeiro
Ana Paula Carvalho

[1] De que são exemplos os recentes Acs. do STJ de 21/03/2019, proc. 559/18.6YRLSB.S1 e de 28/02/2019, proc. 106/18.0YRCBR.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.