Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3730/14.6YYLSB-B.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: CREDOR RECLAMANTE
EXEQUENTE
DESISTÊNCIA DA INSTÂNCIA EXECUTIVA
RENOVAÇÃO DA EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Tendo o primitivo exequente desistido da instância executiva, em caso de renovação da instância a pedido de um credor reclamante, nos termos do art. 850º, n.º 2, do CPC, pode aquele reclamar o seu crédito relativamente ao bem sobre o qual incide a sua garantia.
Decisão Texto Parcial: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.



Relatório:


I. Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, que Banco..., S.A. moveu a Rui... e Outros – visando o pagamento das quantias de €32.720,26, €1.858,81 e €505,27, estando as duas primeiras garantidas por hipoteca - veio o Instituto de Segurança Social, LP. reclamar a verificação e graduação de um crédito no montante global de € 2.591,91 e respectivos juros vincendos desde sobre o capital em dívida desde Julho de 2014 e até integral pagamento, referente a contribuições para a segurança social, não pagas pelo identificado Reclamado.

A fls. 10 a 12 foi proferida sentença de graduação de créditos, datada de 1/06/2015.

Posteriormente veio Banco C…, S.A. reclamar a verificação e graduação de um crédito no montante global de € 15.804,98, garantido por penhora posterior, sobre o bem penhorado nestes autos, e levada a efeito no âmbito do processo de execução que corre termos na Instância Central de Setúbal, Secção de Execução, J2 com o n° 2934/14.6T8STB que foi sustada em virtude da penhora anterior sobre o imóvel levada a efeito na execução de que estes autos são apenso.

Entretanto, a 3/07/2015 o exequente Banco..., SA veio nos autos de execução requerer a “desistência da instância face à regularização das responsabilidades”.

Declarada extinta a execução, veio o Instituto de Segurança Social, LP. requerer o prosseguimento da mesma para pagamento do crédito reclamado.

Por sentença proferida dia 5/07/2016 foram graduados os créditos reclamados pelo Instituto de Segurança Social, LP. E pelo Banco Cofidis, S.A. (fls. 33/34).

No dia 11/08/2016 veio o Banco... reclamar os seus créditos e requerer a reforma da sentença, alegando que:
I Nota Prévia
1º -A ora Credora intentou acção executiva, da qual o incidente de reclamação de créditos é apenso, em 10 Abril de 2014, tendo desistido da instância em 03 de Julho de 2015.
2º  -Não obstante, a Credora Reclamante - Instituto da Segurança Social, I.P. - requereu a renovação da execução extinta, para efectiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito.
3º -Ora, só após ser notificada da Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, em 12 de Julho de 2016 é que o ora Credor Reclamante tomou conhecimento de que a acção executiva tinha prosseguido.
4º -Nestes termos, a outrora Exequente, vem agora, enquanto Credora Hipotecária, apresentar a sua reclamação de créditos, por forma a assegurar a sua garantia numa eventual venda do imóvel.

II)Dos CONTRATOS DE MÚTUO COM HIPOTECA E FIANÇA:
5.º -No dia 22 de Junho de 1999, no exercício da sua actividade bancária, a ora Reclamante celebrou com os aqui Reclamados dois contratos de mútuo com hipoteca e fiança, aos quais foram atribuídos os na 0000.10819967541 - para aquisição de habitação própria e permanente - e nº 0000.10012927563, conforme Docs. N.º 1 e Nº 2 que ora se juntam e se consideram integralmente reproduzidos e provados para todos os efeitos legais.
6º -Para garantia do regular cumprimento das responsabilidades assumidas, nos termos dos citados contratos, foram constituídas hipotecas sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número 306 da freguesia de Pinhal Novo, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 6417°.
7º- Encontrando-se, actualmente em dívida as seguintes quantias: Contrato N° 1- 0000.10819967541:
CAPITAL: € 26.568,75
JUROS CALCULADOS ENTRE A DATA DE INCUMPRIMENTO (22.06.2016) E A DATA PRESENTE À TAXA DE JURO LEGAL: € 142,67
Contrato N° 2 - 0000.10012927563:
CAPITAL: € 1.836,85
8º -Por tudo o acima exposto, a Reclamante actualmente é credora do montante total do valor de € 28.548,27 (vinte e oito mil quinhentos e quarenta e oito euros e vinte e sete cêntimos) quantia que, nos termos do artigo 788° do Código de Processo Civil, ora se
reclama. A esta quantia acrescem os juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
9º -A Reclamante é titular de um direito real de garantia registado a seu favor sobre o bem imóvel penhorado nos termos dos presentes autos, qualidade que lhe confere legitimidade para reclamar os seus créditos, nos termos e para os efeitos do artigo 788.º, nº 1 do Código de Processo Civil.
10º -Pelo exposto, tendo em conta os elementos carreados para os autos, bem como os meios de prova agora juntos. o ora Credor requer a V. Exa. se digne reformar a Douta Sentença de forma a que o créditos ora Reclamados sejam verificados e graduados com a prioridade que lhes cabe.

Nestes termos e nos demais de Direito o BANCO..., S.A., requer a V. Exa. se digne:
a)- Admitir liminarmente a presente Reclamação; e cumulativamente
b)- Reformar a Sentença de forma que os seus créditos ora reclamados sejam verificados e graduados no lugar que lhes competir.

Após foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Banco..., SA., veio reclamar o seu crédito.
Sucede que este crédito corresponde ao crédito que motivou a instauração da acção executiva, relativamente à qual foi apresentada a desistência da instância.
O exequente que desistiu da instância executiva perde o direito de obter, na execução, o pagamento do seu crédito, mesmo que ela venha a prosseguir'.
Face ao exposto, indefere-se a reclamação de créditos.
Custas pelo reclamante.
Notifique”.

Não se conformando com o decidido, a reclamante Banco…, SA interpôs o presente recurso de apelação, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
I. Recorrente é credor com duas hipotecas registadas a seu favor.
II. Com base em títulos exequíveis propôs uma acção executiva e requereu a penhora do imóvel objecto de hipoteca.
III. No âmbito desta acção e após a citação de credores, veio o Credor Segurança Social reclamar os seus créditos.
IV. Posteriormente, foi proferida uma primeira Sentença de Graduação e Verificação de Créditos, em que o crédito do Recorrente ficou graduado em segundo lugar após as custas.
V. O Recorrente desistiu da instância, por regularização dos valores em incumprimento.
VI. O Credor Segurança Social requereu a prossecução da acção.
VII. O Recorrente nunca foi notificado de que a instância iria prosseguir.
VIII. Se o Recorrente soubesse que o Credor pretendia prosseguir com a acção nunca teria desistido desta, tendo em conta que poderia vir a perder a sua garantia, uma vez que a dívida vincenda se mantém, apesar do acordo celebrado.
IX. Prosseguindo a presente execução a impulso da Segurança Social, o aqui Recorrente, por ter desistido da instância, deixou de ser parte no processo, pelo que nada impede a reclamação de créditos espontânea, uma vez que, tendo deixado de ser parte no processo, também não foi, em momento algum citado enquanto credor.
X. Até à presente data não foi proferido qualquer Despacho nos autos principais que admita a prossecução da acção pelo Credor Segurança Social e opere a substituição processual do Exequente.
XI. Foi proferida uma segunda Sentença de Verificação e Graduação de Créditos já modificada, em que os créditos do Recorrente não foram considerados, nem graduados.
XII. Perante estes factos, o Apelante, que mantém o direito à satisfação do seu crédito vincendo e é titular de uma garantia real, reclamou espontaneamente os seus créditos, nos termos legais do artigo 788.°, nº 1 e nº 3 do Código de Processo Civil.
XIII. Em 12.07.2016 foi proferido o Despacho objecto do presente recurso que indeferiu a Reclamação de Créditos do Apelante, impedindo-o de fazer valer os seus direitos.
XIV. A Reclamação de Créditos é o único instrumento processual que, neste momento, permite ao Recorrente fazer valer os seus direitos, uma vez que poderá perder as suas garantias reais em sede de venda executiva.
XV. Até porque, a ocorrer tal venda, caducarão todos os ónus e encargos, nos termos do artigo 824° do Código civil, incluindo a hipoteca do aqui Recorrente.
XVI. E esta situação é contrária a tudo o que se pretende assegurar através da constituição de uma garantia real - no caso, a hipoteca.
XVII. Salvo devido respeito, foi incorrectamente apreciada pelo Tribunal a quo a desistência por parte do Apelante.
XVIII. A desistência foi unicamente da instância e não do pedido.
XIX. A desistência da instância apenas extingue a acção em curso, sem colocar em causa o direito que se pretendia fazer valer.
XX. Nunca está em causa a extinção do direito material subjacente à propositura de uma acção, mantendo sempre a possibilidade de efectivar o seu direito através dos meios judiciais.
XXI. Foi, também, desvalorizado o direito real de garantia que a Apelante mantém e a necessidade de o assegurar.
XXII. Prosseguindo a execução a impulso de outro credor, apesar de o Recorrente ter desistido da instância, deve ser-lhe admitida a possibilidade de fazer valer os seus créditos, tanto mais que, do ponto de vista material a dívida se mantém, embora em quantitativo diverso do que foi inicialmente o pedido exequendo.
XXIII. Pelo que, também neste aspecto, o despacho de que se recorre não faz uma correcta aplicação da lei: a dívida exequenda não é a mesma que foi reclamada porque, entretanto, foi reestruturada.
XXIV. O Tribunal recorrido vedou, através do Despacho sub judice, a possibilidade do Recorrente exercer o seu direito de garantia, que poderá ser extinto através da venda judicial.
XXV. No entendimento do Apelante o Tribunal a quo valorou erradamente os factos ora expostos e extraiu uma solução contrária àquela que é imposta pelo direito substantivo, nomeadamente pelo espírito normativo que preside ao instituto dos direito reais de garantia em particular da hipoteca, ou seja, permitir que o credor seja pago pelo valor de certas coisas imóveis com preferência pelos demais credores.
XXVI. Assim, impõe-se a revogação do Despacho recorrido, no sentido de admitir a Reclamação de Créditos do Recorrente e, subsequente, reforma da Sentença de Verificação e Graduação de Créditos de modo a reconhecer e graduar o crédito do Apelante.
Face ao exposto, entende-se que deve ser dado provimento ao Recurso, revogando e substituindo a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por uma que admita a Reclamação de Créditos do Recorrente e possibilite a reforma da Sentença de Verificação e Graduação de Créditos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***

II. Os factos a considerar são os que constam do relatório do presente acórdão.
***
             
III. O objecto do recurso resume-se a saber se, tendo o primitivo exequente desistido da instância executiva, pode reclamar o seu crédito após a renovação da execução a pedido de um credor reclamante.
***

IV. O Direito:
A questão essencial a decidir consiste em saber se, tendo o exequente desistido da instância executiva, renovando-se esta a pedido de um credor reclamante, nos termos do art. 850º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPC, pode aquele ser admitido a intervir como credor reclamante em relação ao bem penhorado, sobre o qual incidem duas hipotecas registadas a seu favor.

Dispõe a citada disposição legal que:
2- Também o credor reclamante, cujo crédito esteja vencido e haja reclamado para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, no prazo de 10 dias contados da notificação da extinção da execução, a renovação desta para efectiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito.
3- O requerimento faz prosseguir a execução, mas somente quanto aos bens sobre que incida a garantia real invocada pelo requerente, que assume a posição de exequente.
4- Não se repetem as citações e aproveita-se tudo o que tiver sido processado relativamente aos bens em que prossegue a execução, mas os outros credores e o executado são notificados do requerimento.

Daqui decorre que, apresentado o requerimento do credor reclamante, este assume a posição de exequente e a acção executiva prossegue limitadamente aos bens sobre que incida a garantia real invocada pelo requerente.

Trata-se de uma excepção ao princípio de que a acção executiva só funciona em benefício do exequente.

A solução legal assim consagrada filia-se na circunstância do(s) credor(es) poder(em) instaurar de imediato uma acção executiva para cobrança do(s) seu(s) crédito(s), o que conduziria à inevitável repetição de actos já praticados no processo onde assumiu(iram) a qualidade de credor(es) reclamante(s). Por assim ser, e em homenagem aos princípios da racionalidade e economia de meios, permite-se o aproveitamento deste processo.

Ora, no caso em apreciação, o primitivo exequente, Banco..., SA, desistiu da instância, em face da regularização das responsabilidades, tendo a execução se renovado a pedido do credor reclamante Instituto de Segurança Social, IP.

Veio então o primitivo exequente, agora na qualidade de credor reclamante, deduzir reclamação de créditos tendo por base o prédio penhorado, sobre o qual incidem duas hipotecas registadas a seu favor.

Essa reclamação foi liminarmente indeferida por o crédito reclamado corresponder “ao crédito que motivou a instauração da acção executiva, relativamente à qual foi apresentada a desistência da instância” e por se ter entendido que tendo o exequente desistido “da instância executiva perde o direito de obter, na execução, o pagamento do seu crédito, mesmo que ela venha a prosseguir”.

A seguir-se o entendimento assim perfilhado na decisão recorrida, o bem penhorado será vendido na execução sem que o credor hipotecário Banco... tenha a oportunidade de nela intervir, dando-se pagamento pelo produto da venda unicamente ao Instituto de Segurança Social, IP e ao credor Banco Cofidis SA, com exclusão daquele.

A ser assim, como se frisou no Ac. STJ de 3/06/1982 (BMJ 318, pag. 388 e segs.), “a desistência da instância implicaria a extinção do próprio direito de crédito que através do processo executivo se pretendeu fazer valer” o que conflitua com todos os princípios de direito e faz “coincidir as desistências do pedido e da instância, quanto aos seus efeitos civis, ao arrepio do preceituado nos artigos 293º e 295º do CPC” (actuais arts. 279º e 285º,  do NCPC).

Violar-se-ia ainda o disposto no art.º 601.º do Código Civil, nos termos do qual o património do devedor constitui a garantia geral de todos os credores, posto que, conforme prescreve o n.º 2 do art.º 824.º do CC, os bens penhorados são vendidos livres e desonerados, caducando aqueles direitos com o acto da venda.

Deve, pois, interpretar-se o art. 850º do CPC de modo diverso, admitindo-se a intervir na execução o reclamante Banco..., SA.

Como refere Lebre de Freitas, Acção executiva, Depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, pag. 360, a interpretação que fez vencimento no citado acórdão do STJ “é a mais conforme com o sentido presumível da vontade do exequente ao desistir (cfr. arts. 236 CC e 337 CC), pois, sendo ele um credor privilegiado, normalmente não teria desistido se tivesse previsto que pelo mecanismo da renovação da execução, poderia acabar por perder a sua garantia (art. 824º-2 CC)”.

Procede, por isso, a apelação, reconhecendo-se o direito do apelante intervir na execução como credor reclamante, relativamente ao bem sobre o qual incide a sua garantia (hipoteca), prosseguindo a reclamação deduzida os seus termos.

Sumário:
Tendo o primitivo exequente desistido da instância executiva, em caso de renovação da instância a pedido de um credor reclamante, nos termos do art. 850º, n.º 2, do CPC, pode aquele reclamar o seu crédito relativamente ao bem sobre o qual incide a sua garantia.
***

V.Pelo exposto, decide-se:
a.-Julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, reconhecendo-se ao apelante Banco... SA o direito de intervir na execução como credor reclamante, relativamente ao bem sobre o qual incide a sua garantia (hipoteca), devendo a reclamação deduzida prosseguir os seus termos;
b.-Sem custas nesta instância;
c.-Notifique.


Lisboa, 24 de Abril de 2018

(Manuel Ribeiro Marques - Relator)
(Pedro Brighton - 1º Adjunto)
(Teresa Sousa Henriques - 2ª Adjunta)
Decisão Texto Integral: