Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1155/15.5T8LSB.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: NULIDADE DE NEGOCIO JURIDICIO
BENS SUJEITOS A REGISTO
TERCEIROS DE BOA-FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -A norma do nº 1 do artigo 291º do Código Civil consagra um desvio do princípio geral sobre nulidade ou anulabilidade expresso no artigo 289º, quando esteja em causa a restituição de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo.
-Esta solução original do nosso ordenamento jurídico, no âmbito da oponibilidade da nulidade e anulabilidade, representa um claro compromisso entre os interesses que fundamentam a invalidade dos negócios jurídicos, por um lado, e os interesses legítimos de terceiros e do tráfico jurídico, por outro.
-Foi devido à protecção desses interesses legítimos de terceiros e ao tráfico jurídico que, à declaração de nulidade ou anulabilidade de certo negócio, podem opor-se, sob certas condições, terceiros adquirentes de boa fé.
-A aplicação da norma contida no artigo 291º do Código Civil pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; (ii) aquisição onerosa; (iii) por um terceiro de boa fé; (iv) registo da aquisição a favor do terceiro; e (v) anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da acção de nulidade ou de anulação.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO :


Banco ..., SA  intentou contra V..., A..., e O..., acção com processo comum, pedindo que a autora seja declarada a titular do direito de propriedade do veículo automóvel ...-...-..., ordenado o registo de aquisição a favor da autora, assim como o cancelamento das inscrições registrais que existam a favor dos réus, devendo estes ser condenados a restituir o veículo à autora.

Em síntese, alegou que, no exercício da sua actividade, em 08.11.2010, comprou o veículo matrícula ...-...-..., marca Toyota, para ser objecto de um contrato de aluguer (ALD) ao réu V..., o que aconteceu em 03.11.2010. Por lapso foi inscrita registralmente a favor do réu V... o direito de propriedade do automóvel.
Entretanto, antes de a autora percepcionar o erro, enquanto o locatário foi cumprindo, este aproveitando-se da situação, vendeu aquele veículo ao réu A..., que efectuou o registo de propriedade em 01.09.2014. Posteriormente, o réu A... vendeu o veículo à ré O..., que efectuou o registo de propriedade em 11.11.2014. Sendo a autora a legítima proprietária do veículo, são nulos os actos de transmissão de propriedade a favor dos réus A... e O...

Contestou a ré O..., dizendo, em síntese, que comprou a viatura em 11.11.2014 à sociedade TX4, Ldª, e o registo de propriedade indicava como titular o réu A..., tendo o respectivo registo a data de 01.09.2014. Ao adquirir a viatura a ré desconhecia o vício do negócio alegado pela autora. Agiu sempre de boa fé, pois a TX4, Ldª é um stand de automóveis e os seus representantes e o réu A... nada informaram a ré relativamente aos factos alegados pela autora.
Pugna pela absolvição do pedido.

Contestou o réu A... dizendo, em síntese, que desconhece a relação entre a autora e o réu V..., que tomou como boa a posição deste emergente do registo automóvel, como já o tinha feito a Administração Fiscal, que antes penhorara o veículo em execução fiscal contra aquele, e à margem da autora. Comprou a viatura ao réu V..., de boa fé, tendo procedido à alteração da propriedade no dia 01.09.2014. O réu efectuou o registo de propriedade previamente ao registo da presente acção, que ocorreu há muito mais de três anos após a data de 25.11.2010, data em que o veículo foi registado em nome do réu V....
Pugna pela improcedência da acção.

Foi proferida SENTENÇA que julgou improcedente a acção e absolveu os réus dos pedidos.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu a autora, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª-Não existiu qualquer negócio através do qual o réu V... tenha adquirido o veículo em causa.
2ª-O primeiro negócio nulo foi o negócio de aquisição a favor do réu A..., ocorrido em Agosto de 2014.
3ª-A boa fé da ré O... não é relevante, pois a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (nº 2 do artº 291º do Código Civil).
4ª-Em qualquer caso, o negócio a que se refere o nº 2 do artº 291º do Código Civil não é o primeiro negócio nulo ou anulável, quando haja outro ou outros negócios posteriores que sejam também nulos por decorrência da nulidade do primeiro, mas sim o negócio realizado em último lugar (que ocorreu em Novembro de 2015).
5ª-A acção foi proposta em Janeiro de 2015 e registada em 20/01/2015, antes de decorridos três anos sobre as datas de conclusão dos dois últimos negócios referentes ao veículo em causa.
6ª-Não poderia, pois, ser reconhecida a protecção à ré O... decorrente do regime estabelecido no nº 2 do artº 291º do Código Civil.

VII-Foram, pois, erradamente interpretadas e aplicadas as normas dos nºs 1 e 2 do artº 291º do Código Civil, o que impediu que a acção fosse julgada procedente, como seria de Direito.

A ré O... contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-FUNDAMENTAÇÃO:

A)Fundamentação de facto.
Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

A)Em Outubro de 2010, no exercício da sua actividade, a autora acordou com o réu V..., adquirir para si o veículo matrícula ...-...-..., marca Toyota, para, tendo o mesmo por objecto, estabelecer com aquele um contrato de aluguer do dito bem.
B)Em 03.11.2010 a autora adquiriu o direito de propriedade do veículo ...-...-..., marca Toyota, a Caetano Auto, SA, e pagou o respectivo preço de € 18.364,64.
C)E então, autora e réu A... acordaram, o primeiro como locador, e o segundo como locatário, o aluguer do veículo matrícula ...-...-..., marca Toyota, pelo prazo de 61 meses, sendo os alugueres mensais, o primeiro no valor de € 3.672,93, e os demais sessenta, todos iguais no valor de € 223,47, estabelecendo-se designadamente (Cláusula 9ª das Condições Gerais) que no final do contrato pelo decurso do prazo com cumprimento pelo locatário, este tem o direito de adquirir o bem por preço então fixado, e depois o veículo foi entregue ao réu V....
D)Com data de 25.11.2010, por erro da autora no processamento da documentação referente à sua compra a C... SA, referida em C), do veículo matrícula ...-...-..., marca Toyota, a inscrição registral deste facto aquisitivo foi feita a favor do réu V....
E)O réu V... pagou as prestações de aluguer até à nº 36 (vencimento em 15.10.2013), não o fazendo relativamente às prestações posteriores.
F)Em 12.11.2013, no âmbito de execução fiscal contra o réu V..., foi feita a penhora do veículo matrícula ...-...-..., marca Toyota, incluindo a inscrição registral respectiva, para garantia do pagamento do valor que lhe foi atribuído de € 8.045,18, sendo a quantia exequenda liquidada em € 52.531,97, a qual caducou por pagamento da dívida exequenda em meados de 2014.
G)Em 24.03.14, a autora declarou ao réu V... a resolução do contrato de aluguer do veículo, exigindo-lhe a restituição imediata deste.
H)Em Agosto de 2014, o réu V... como vendedor e o réu A... como comprador, acordaram a compra e venda do veículo Toyota matrícula ...-...-..., livre de ónus e encargos, sendo o veículo entregue ao réu A..., aquisição levada ao registo em 01.09.2014,
I)Em 11.11.2014, através da mediação de stand de automóveis, o réu A... como vendedor, e a O... como comprador, acordaram a compra e venda do veículo Toyota matrícula ...-...-..., livre de ónus e encargos, pelo preço de € 10.500,00, preço pago em parte da ordem de metade por entrega de outro veículo em retoma, e então o veículo foi entregue à ré O....
J)Em Novembro de 2014 quando negociou/adquiriu ao réu A... (através de stand) o direito de propriedade do veículo matrícula ...-...-..., marca Toyota, a ré O... não tinha razões, informações, documentos, preço, para ter dúvidas, de que o réu V... tivesse sido dono do veículo, e que o réu A... o fosse então, como constava de inscrições registrais anterior e a então em vigor.
L)Em 20.01.2015 verificou-se o registo desta acção.
M)Em 19.02.2015 (data da sua citação) a detenção pela ré O... do veículo matrícula ...-...-..., marca Toyota.

B)Fundamentação de direito.

A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, consiste em saber se o nº 2 do artigo 291º do Código Civil é aplicável apenas ao negócio realizado em último lugar, que ocorreu em 11 de Novembro de 2014 em relação à ré O... e ao negócio realizado com o réu A..., que ocorreu em 01.09.2014.
Alega a autora, ora apelante, que não existiu qualquer negócio através do qual o réu V... tenha adquirido o veículo em causa. Por isso, ainda segunda a tese da apelante, o primeiro negócio de aquisição nulo foi o do ré A... que correu em Setembro de 2014. Daqui conclui que a acção foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio, sendo irrelevante a boa-fé da apelada O..., para efeitos do disposto nos nºs 2 e 3 do artº 291º do Código Civil. Mais alega que o negócio a que se refere o nº 2 do artº 291º do Código Civil, não é o primeiro negócio nulo ou anulável, quando haja outros posteriores que também sejam nulos em consequência da nulidade do primeiro, mas sim o negócio realizado em último lugar.

A douta sentença considerou nulo o primeiro negócio e, por isso, foi este que desencadeou uma cadeia de negócios considerados nulos.

Cumpre decidir.

Importa apreciar a questão da inoponibilidade da invalidade do negócio jurídico a terceiros, nomeadamente aos apelados, ao abrigo do disposto no artº 291º nº 1 do Código Civil.

Dispõe o nº 1 do artigo 291º do Código Civil que “a declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio”.

Esta norma representa uma importante excepção ao efeito da retroactividade, decorrente da declaração de nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, consagrado no artigo 289º nº 1 do Código Civil. Ou seja, no dizer de Pires de Lima e Antunes Varela[1], “consagra-se um desvio do princípio geral sobre nulidade ou anulabilidade expresso no artigo 289º, quando esteja em causa a restituição de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo”.

Esta solução original do nosso ordenamento jurídico, no âmbito da oponibilidade da nulidade e anulabilidade, representa um claro compromisso entre os interesses que fundamentam a invalidade dos negócios jurídicos, por um lado, e os interesses legítimos de terceiros e do tráfico jurídico, por outro. Foi devido à protecção desses interesses legítimos de terceiros e ao tráfico jurídico que, à declaração de nulidade ou anulabilidade de certo negócio, podem opor-se, sob certas condições, terceiros adquirentes de boa fé[2].
Preceitua o nº 2 do mesmo artigo 291º que “ os direitos de terceiro, não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio”.

E o nº 3 prescreve que “é considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”

Anotando este nº 2, ensinam aqueles autores o seguinte: “ Em harmonia com a regra geral está o disposto no nº 2, pois não se reconhecem os direitos de terceiro constituídos sobre as coisas a restituir, mesmo que haja registo de aquisição anterior ao registo da acção de nulidade ou de anulação, se esta for proposta e registada dentro do prazo de três anos. Decorrido este prazo, são protegidas as aquisições a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção”.

A aplicação da norma contida no artigo 291º do Código Civil pressupõe a verificação dos seguintes requisitos:
(i)declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo;
(ii)aquisição onerosa;
(iii)por um terceiro de boa fé;
(iv)registo da aquisição a favor do terceiro e
(v)anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da acção de nulidade ou de anulação.

Ainda que verificados estes requisitos, a protecção do terceiro não funcionará se outra for a causa de invalidade, que não a falta de titularidade do alienante, e se a acção for proposta ou registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (artº 291º nº 2), sendo o prazo de caducidade que começa a contar a partir da data da celebração do primeiro negócio inválido, que dá origem à cadeia.

Assim, o negócio gerador da nulidade sequencial é o primeiro, ou seja, o da venda do veículo ao réu V..., contando-se o prazo de três anos a que se refere o nº 2 do artigo 291º desde a conclusão de tal negócio, em 25.11.2010.

Efectivamente, porque não foram produzidas pela autora, ora apelante, as declarações correspondentes à transmissão para o réu V... do direito de propriedade do veículo ...-...-..., (Alínea D) da Fundamentação de facto) é nula a inscrição registral da respectiva aquisição por aquele em 25.11.2010, pois se trata de uma venda de bens alheios, a lei comina tal negócio com a nulidade, nos termos do art. 892º do Código Civil.

Assim, o prazo de três anos contados da conclusão do primeiro negócio, nos termos do nº 2 do artigo 291º do Código Civil, há muito que se encontra verificado, pois a acção foi registada em 20.01.2015.

Deste modo, os réus A... e O... encontram-se na posição de terceiros de boa fé, tendo registado a sua aquisição com base num registo anterior a favor do transmitente, pelo que se pode concluir pela constituição legítima do direito de propriedade do réu A... e, posteriormente, da ré O... sobre o veículo.

Assim, consolidou-se na esfera jurídica da ré O... o direito de propriedade do referido veículo, merecendo a improcedência as conclusões das alegações de recurso interposto pela apelante.

EM CONCLUSÃO:

-A norma do nº 1 do artigo 291º do Código Civil consagra um desvio do princípio geral sobre nulidade ou anulabilidade expresso no artigo 289º, quando esteja em causa a restituição de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo.
-Esta solução original do nosso ordenamento jurídico, no âmbito da oponibilidade da nulidade e anulabilidade, representa um claro compromisso entre os interesses que fundamentam a invalidade dos negócios jurídicos, por um lado, e os interesses legítimos de terceiros e do tráfico jurídico, por outro.
-Foi devido à protecção desses interesses legítimos de terceiros e ao tráfico jurídico que, à declaração de nulidade ou anulabilidade de certo negócio, podem opor-se, sob certas condições, terceiros adquirentes de boa fé.
-A aplicação da norma contida no artigo 291º do Código Civil pressupõe a verificação dos seguintes requisitos:
(i)declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo;
(ii)aquisição onerosa;
(iii)por um terceiro de boa fé;
(iv)registo da aquisição a favor do terceiro e
(v)anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da acção de nulidade ou de anulação.

III-DECISÃO:
Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa, 26/1/2017



Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais 
Octávia Viegas



[1][1]Código Civil Anotado, Vol I, 3º Edição Revista e Actualizada, 1982, pág. 265, em anotação ao artigo 291º.
[2][2]Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, 2005, por A. Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto págs. 626/7, e Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas, IV, 1969, págs. 45 a 50.

Decisão Texto Integral: