Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6119/16.9T8FNC-A.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Tendo o juiz da causa:
1.º - Dispensado a convocação de audiência prévia, com base no pressuposto, que anunciou, de que o processo continuaria, proferindo-se despacho saneador stricto sensu, dispensando-se o despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova, e realizando-se audiência final, em data a designar;
2.º - Proporcionado contraditório quanto à necessidade e âmbito da prova pericial requerida pelo embargante, tendo concluído, após debate entre as partes, por despacho, que a prova pericial era “indispensável à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, ordenando a sua realização a fim de que o senhor perito se pronunciasse acerca de determinada matéria tida por controvertida e que haveria que apurar…
II – …Viola o caso julgado formal fixado por essas decisões o juiz, novo titular do processo, que decide, antes da realização da ordenada prova pericial e da audiência final, proferir saneador-sentença, decidindo de imediato de mérito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 07.02.2017, na ação de execução para pagamento de quantia certa contra eles movida por Banco (…), S.A. (posteriormente substituído pela cessionária P, Lda), (…) Sociedade Imobiliária, Lda e Ricardo (…), deduziram oposição à execução.
Alegaram, em síntese, a inexequibilidade dos títulos executivos quanto aos juros computados, a ineptidão do requerimento executivo, o preenchimento abusivo das livranças dadas à execução, a titularidade de direito de indemnização, por parte dos executados, contra o credor, emergente de responsabilidade pré-contratual, que se transmitira contra o exequente, e a compensar com o crédito do exequente.
Concluíram pela absolvição, ainda que parcial, da instância, e bem assim pela absolvição dos executados do pedido, suspendendo-se, entretanto, a execução.
Juntaram documentos e requerimento de prova, nele incluindo prova testemunhal e pedido de prova pericial.
Admitidos liminarmente os embargos, o exequente apresentou contestação, na qual pugnou pela total improcedência dos embargos e consequente prossecução da execução.
Juntou documentos e rol de testemunhas.
Em 06.11.2017 foram proferidos os seguintes despachos:
Refª 1945166:
O artigo 733.º n.º 1, alínea c), do NCPC estatui que este “só suspende o prosseguimento da execução se: (…) c) Tiver sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução”.
Neste caso, encontram-se preenchidos os requisitos de suspensão da instância sem necessidade de prestação de caução, durante a pendência dos presentes embargos.
Foi expressamente impugnada a liquidez e a exigibilidade dos títulos executivos dados à execução (cfr. sobretudo capítulos D) e F) do requerimento inicial).
Como resulta dos contratos de financiamento juntos ao requerimento executivo, bem como do próprio teor deste, os créditos subjacentes às livranças, encontram-se garantidos por numerosas e valiosas hipotecas sobre diversos bens imóveis que poderão servirão para cobrir todo o seu (suposto) quantitativo.
Na consideração do valor dos (alegados) créditos exequendos que incumbiria garantir através da putativa caução, sempre haverá de “descontar” os valores correspondentes aos alegados contra-créditos dos Executados, nos termos da compensação invocada no requerimento inicial.
Face ao supra-exposto, defere-se a suspensão do prosseguimento da execução.
Notifique os I. Mandatários das partes.
Comunique ao Sr. Agente de Execução.
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Refªs 1945166 a 1950052:
- Admite-se o Rol de Testemunha dos Embargantes, as quais são “a apresentar” e “a notificar” conforme rol apresentado (art. 507º/2,1ªe2ªpartes, do Código de Processo Civil – NCPC, com a redação introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26.6);
- Admite-se os meios de prova documentais juntos com o requerimento inicial dos Embargantes;
- Defere-se as declarações de parte pelos Embargantes à matéria indicada (art.466º do NCPC);
- Defere-se os depoimentos de parte dos Srs. Administradores da Embargada à matéria indicada (arts. 452º ss. do NCPC);
- Quanto à Perícia requerida e com o objeto indicado, ordena-se a Notificação do I. Mandatário da Embargada para em dez dias se pronunciar acerca da necessidade de realização dessa mesma Perícia e do objeto proposto pelos Embargantes;
- Notifique os I. Mandatários das partes.
Refªs 2110408 / 2112330:
- Admite-se o Rol das 10 (DEZ) primeiras testemunhas indicadas pela Embargada as quais são “a notificar”, todas, e a inquirir por teleconferência as residentes fora desta comarca (arts. 507º/2,2ªparte, e 502º/1, ambos do NCPC), considerando-se não escritos os nomes das testemunhas que no rol ultrapassem o número legal (testemunhas nrs. 11 a 14) - cfr. artigo 511º/1,1ªparte,3, do NCPC;
- Admite-se os meios de prova documentais juntos com a contestação da Embargada;
- Notifique os I. Mandatários das partes.
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Findos os articulados, sem prejuízo do disposto no artigo 590º do NCPC, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo pode, após a audição das partes, determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos do nº 1 do artigo 6º e do artigo 547º ambos do NCPC.
Uma vez que as partes já indicaram prova, determina-se a adequação do processo ao fim que se visa atingir, do seguinte modo:
A) Dispensa-se a realização de audiência prévia;
B) Dispensa-se a elaboração do despacho previsto no artigo 596º, nº 1, do NCPC;
C) Proferir-se-á despacho saneador stricto sensu;
D) Designar-se-á data para a realização da audiência de julgamento.
Notifique-se as partes para, querendo, se pronunciarem, com a advertência de que, se nada declararem, se entenderá que nada têm a opor à adequação formal ora decidida.
O exequente-embargado veio pronunciar-se, nomeadamente, acerca da necessidade da perícia requerida pelos embargantes e sobre o seu objeto, pugnando pela sua impertinência, inutilidade e caráter dilatório.
Os executados-embargantes pronunciaram-se acerca desta resposta do exequente, reiterando a necessidade e pertinência da perícia requerida.
Em 29.01.2018 foram proferidos os seguintes despachos:
Refªs 2400591 / 2425009:
- Por se afigurar indispensável à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, ordena-se a realização de Perícia requerida pelos Embargantes/Executados, a qual terá como objeto as alegações vertidas nos artigos 384.º a 396.º do Requerimento Inicial sob a Refª 1945166; o Sr. Perito a nomear terá de recorrer aos necessários pedidos de esclarecimento às partes envolvidas, bem como à análise da documentação resultante das negociações juntas aos autos e de qualquer outra que se entenda necessária; a Perícia terá por objeto, designadamente, as seguintes questões:
A) Qual a rentabilidade expectável do projeto de “exploração” económica do imóvel da Rua do Carmo, identificado no Requerimento Inicial sob a Refª 1945166, nos termos da proposta negocial apresentada pelo “Grupo Accor”?;
B) Qual a rentabilidade expectável do projeto de “exploração” económica do “Café Relógio” e da “Estalagem Relógio”, identificados no Requerimento Inicial sob a Refª 1945166?;
- Ordena-se à Secção que indique pessoa idónea, com formação na área económico financeira e de entre os Srs. Peritos da Lista Oficial, para proceder à realização da Perícia ora ordenada, com início apenas após o pagamento antecipado dos respetivos encargos pelas partes Requerentes (os ora Embargantes/Executados) e com término no final do prazo que o Sr. Perito, logo após a sua nomeação e intimado para tal na Notificação da sua nomeação, reputar como razoável e adequado mas com posterior e imediato assentimento deste Tribunal; mais terá o Sr. Perito (ordem a constar também da posterior Notificação da sua nomeação) de juntar ao futuro Relatório Pericial o respetivo compromisso de honra por escrito;
- Notifique os I. Mandatários das partes;
- Notifique o Sr. Agente de Execução.
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Refªs 1945166 e 44705271 / 2400591 e 2425009:
- Atento o requerido pela Embargada/Exequente sob a cit. Refª 2400591, dá-se sem efeito o que nessa parte se decidiu por Despacho sob a cit. Refª 44705271 e Admite-se, como parte integrante do Rol de Testemunhas da mesma Embargada/Exequente, as testemunhas que no rol ultrapassam o número legal (testemunhas nrs. 11 a 14), as quais são “a notificar” e a inquirir por teleconferência se residentes fora desta comarca - cfr. artigo 511º/4, ex vi do art. 551º/1, ambos do NCPC;
- Atento o ora informado e requerido pela Embargada/Exequente e pelos Embargantes/Executados sob as cits. Refªs 2400591 e 2425009, respetivamente, dá-se sem efeito o que nessa parte se decidiu por Despacho sob a cit. Refª 44705271, i.e., indefere-se a prestação de depoimentos de parte pelos Drs. MÁRIO (…) e JOSÉ (…) (não são administradores mas sim Diretores da Embargada/Exequente), mas, por sua vez, defere-se a sua inquirição na qualidade de Testemunhas arroladas pelos Embargantes/Executados, apesar de ultrapassarem o número legal previsto no art. 511º/1,1ªparte, do NCPC, uma vez que, de acordo com o princípio de igualdade de tratamento processual relativamente à Embargada/Exequente, se decide aplicar também o disposto no art. 511º/4 ex vi do art. 551º/1, ambos do cit. NCPC; 
- As ora testemunhas Drs. MÁRIO (…) e JOSÉ (…) são “a notificar” no domicílio profissional da Embargada/Exequente e a inquirir por teleconferência (arts. 507º/2,2ªparte, e 502º/1,2ªparte,2, ambos do NCPC);
- Notifique os I. Mandatários das partes.”
Em 18.9.2019, após ser aberta conclusão no processo por ordem verbal, o Sr. juiz a quo, após indicar ser o novo titular do processo, expressou o entendimento de que o processo se encontrava em condições de ser decidido, pelo que proferiu saneador-sentença, em que julgou os embargos improcedentes e determinou o prosseguimento da execução.
Os embargantes apelaram da sentença, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem por objecto o despacho saneador-sentença proferido nos autos em 18/9/2019, que determinou a improcedência do incidente de embargos de executado.
II. Tendo sido determinada, por despacho proferido em 6/11/2017, a suspensão da instância no processo de execução, com dispensa de prestação de caução, ao abrigo do artigo 733.º n.º 1, alínea c), do CPC, deverá essa suspensão manter-se em virtude da interposição do presente recurso, que tem efeito suspensivo, até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao incidente de embargos de executado.
III. O Tribunal a quo criou nos Recorrentes a convicção legítima de que iria submeter a causa a julgamento, aí produzindo as pertinentes provas com vista à apreciação das pretensões deduzidas na petição inicial à luz dos factos e do enquadramento jurídico que as fundamentam.
IV. Essa convicção legítima fundou-se, primeiro, do despacho proferido em 6/11/2017, no qual o Tribunal a quo dispensou a realização de audiência prévia; “adequou” o “processo ao fim que se visa atingir” estabelecendo que iria proferir “despacho saneador stricto sensu” e agendar “data para a realização da audiência de julgamento”; pressupôs a admissibilidade processual da compensação de créditos, tal como fora deduzida na petição inicial; e admitiu a prova documental, testemunhal, por declarações de parte e por depoimento de parte tal como requeridas pelos Recorrentes.
V. E, segundo, no despacho proferido pelo Tribunal a quo em 29/1/2019, no qual consignou que a perícia requerida na petição inicial é “indispensável à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa”, fixando o seu objecto e ordenando aos Recorrentes o pagamento das respectivas custas com vista à efectivação da diligência.
VI. Os Recorrentes, assentes nas expectativas criadas pelo Tribunal, procederam ao pagamento prévio das custas devidas e aguardaram a nomeação de perito idóneo que realizasse a perícia requerida.
VII. A decisão recorrida, ao apreciar o mérito da causa na fase de saneamento, preterindo a produção da prova anteriormente admitida e dispensando a realização de audiência de julgamento, constitui um desrespeito pelas referidas expectativas legítimas que o Tribunal a quo anteriormente criada nos Recorrentes.
VIII. Por conseguinte, a decisão impugnada incorre numa frontal violação do disposto no artigo 8.º do CPC, bem como infringe o princípio do processo equitativo previsto no artigo 20.º n.º 4 da CRP, ficando ferida de nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 195.º do CPC – o que se requer seja declarado, para todos os efeitos.
IX. Uma eventual interpretação das disposições conjugadas do artigo 595.º n.º 1, alínea b), e artigo 8.º do CPC, no sentido de ser admissível ao Tribunal o proferimento de despacho saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, após ter estabelecido em actos processuais anteriores, tanto de forma expressa como implícita, que iria proferir despacho saneador stricto sensu seguindo o processo para fase de discussão e julgamento para aí ser produzida a pertinente prova e apreciado o mérito da causa, é manifestamente inconstitucional, violação do princípio do processo equitativo previsto no artigo 20.º n.º 4 da CRP – o que desde já se invoca para todos os efeitos.
Sem prescindir do que fica exposto, e admitindo por mera hipótese que o mesmo não venha a proceder:
X. Ao proferir o despacho saneador-sentença ora impugnado sem antes convocar audiência prévia para aí facultar às partes a discussão de facto e de direito, o Tribunal a quo infringiu a norma imperativa prevista no artigo 591.º n.º 1, alínea b), do CPC, e dessa forma prejudicou a justa decisão da causa, inquinando a decisão recorrida com a sanção de nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º do CPC.
Sem prejuízo do exposto, e na mera hipótese de a questão que antecede não vir a proceder, sempre se considere o seguinte:
XI. Os Recorrentes expuseram um conjunto de factos, secundados por exaustivo enquadramento jurídico, de molde a fundamentar o seu direito sobre a Exequente, bem como a actuação abusiva desta aquando do preenchimento das livranças, nas regras da culpa in contrahendo e da responsabilidade civil contratual, previstas respectivamente nos artigos 227.º, 562.º e segs, e 798.º e segs. do Código Civil.
XII. O Tribunal a quo, ao supor que os Recorrentes não invocaram fundamentos de facto e de Direito que tornassem, ainda que em abstracto, plausível uma decisão de procedência dos seus pedidos, desconsiderou, pura e simplesmente, o enquadramento jurídico-factual inscrito na petição inicial.
XIII. O despacho saneador-sentença ora impugnado não assenta numa demonstrada certeza de que, face a teor da petição inicial, não haveria outra solução plausível para o pleito senão a improcedência, mas antes se baseia num prognóstico hipotético de as pretensões dos recorrentes não virem a proceder.
XIV. A sentença recorrida incorreu, assim, numa violação do principal requisito para a apreciação do mérito da causa em despacho saneador – o de que todas as soluções plausíveis para a demanda redundem na sua improcedência sem necessidade de mais provas – e desse modo influiu decisivamente na justa composição do litígio, pelo que deve a mesma ser declarada nula, nos termos conjugados do disposto nos artigos 195.º e 595.º n.º 1, alínea a), do CPC – o que se requer.
Ainda que assim não se entenda, o que se concebe sem conceder, sempre se tenha em conta o seguinte:
XV. O Tribunal a quo declarou inadmissível a invocação de compensação de créditos pelos Recorrentes, a pretexto de o seu contra-crédito não se encontrar reconhecido por decisão judicial anterior; mas, ao não submeter previamente ao contraditório das partes a sua intenção de equacionar essa questão, proferiu uma “decisão-surpresa” ilegal, em contravenção ao disposto no artigo 3.º n.º 3 do CPC, em termos de comprometer a justa apreciação e decisão da causa, sendo a mesma cominada com nulidade nos termos do artigo 195.º do CPC – a qual se requer seja declarada.
Ainda que não vingue o entendimento supra exposto, o que se admite apenas por dever de patrocínio, sempre haverá que considerar o seguinte:
XVI. A decisão recorrida omitiu a devida apreciação da questão da inexequibilidade dos títulos executivos por falta de explanação do cálculo dos juros aí computados, nos termos do artigo 713.º do CPC, apesar de regularmente suscitada na petição inicial, assim incorrendo numa ilegal omissão de pronúncia, cominável com nulidade nos termos do artigo 615.º n.º 1, alínea d), do CPC, a qual desde já se invoca para os efeitos do n.º 4 desse preceito.
Para o caso de não procederem as questões, de índole processual, acima suscitada, sempre haverá que relevar os manifestos erros de julgamento de que padece a decisão recorrida, senão vejamos:
XVII. O Exequente tinha um ónus de alegar, no requerimento de execução, os principais elementos da relação material/causal subjacente às livranças exequendas, nos termos do artigo 724.º n.º 1 alínea e) do CPC considerando que os atributos de abstracção e autonomia das livranças não se aplicam, neste caso, aos Executados, por os mesmos se situarem no âmbito das relações imediatas.
XVIII. Por conseguinte, deveria o Exequente ter discriminado, no requerimento de execução, o cálculo dos avultados juros de mora ínsitos em cada uma das quatro livranças exequendas, ou pelo menos especificado o critério de determinação dos mesmos – sem embargo do ónus que então assistiria aos Recorrentes de impugnar o eventual método de cálculo adoptado e demonstrar o preenchimento abusivo das livranças exequendas nesse ponto.
XIX. A decisão recorrida carece, também neste ponto de fundamentos válidos, incorrendo em manifesto erro de julgamento, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que declare inepto e, consequentemente, nulo o requerimento inicial e todos os seus termos posteriores, nos termos dos artigos 724.º n.º 1, alíneas e) e h), e 186.º n.º 1, alínea a), do CPC.
XX. A compensação de créditos, tal como prevista no artigo 847.º do Código Civil, pressupõe que os direitos em confronto sejam judicialmente exigíveis – no sentido de não lhes ser oponível qualquer excepção peremptória – mas não condiciona essa exigibilidade ao prévio reconhecimento desses direitos por decisão judicial ou à sua cobertura por outro título executivo.
XXI. O incidente de embargos de executado, em especial relativamente a títulos executivos extrajudiciais, traduz-se numa faculdade de contraditório concedida aos Executados com uma amplitude e abrangência análoga à de uma contestação em sede de processo declarativo, conforme decorre do disposto no artigo 731.º do CPC, aí sendo admissível a invocação irrestrita de todos os meios de defesa ao dispor daqueles.
XXII. A dedução da excepção extintiva de compensação de créditos, em sede de embargos de executado deverá ser admitida, também, de forma ampla e irrestrita, de modo a viabilizar a defesa dos Executados; carecendo de fundamento legal e dogmático a tese de que tal invocação depende de prévio reconhecimento judicial do direito em questão.
XXIII. O Tribunal a quo laborou em evidente erro de julgamento ao entender que a invocação de compensação de créditos, em sede de embargos de executado – ou em qualquer outro contexto – depende do prévio reconhecimento, por decisão judicial, do “crédito compensante”, devendo ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que declara a plena admissibilidade processual da compensação de créditos, tal como ficou enquadrada na petição inicial.
XXIV. Uma interpretação do disposto nos artigos 847.º n.º 1, alínea a), do Código Civil e do artigo 731.º do CPC que postule uma restrição da faculdade de invocação de compensação de créditos, pelo Executado em sede de embargos de executado, condicionando-a ao prévio reconhecimento judicial do contracrédito, traduziria uma restrição desproporcional e inadmissível do direito ao contraditório, radicando numa violação inconstitucional do princípio do processo equitativo e da igualdade processual, nos termos conjugados do disposto nos artigos 18.º n.º 2 e 20.º n.º 4 da CRP – o que se invoca desde já para todos os efeitos.
Face ao exposto, requer-se a V.ª Ex.ª se digne admitir e julgar procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente:
i) declarar a nulidade da decisão recorrida, em virtude da procedência dos vícios processuais enquadrados; ou, caso assim não se entenda, o que se concebe sem conceder,
ii) revogar a decisão recorrida com fundamento em manifesto erro de julgamento, substituindo-a por outra que:
a) consigne a ineptidão do requerimento de execução, declarando nulo todo o processado posterior; ou, na hipótese de não proceder esse entendimento, que não se aceita,
b) determine a plena admissibilidade da excepção peremptória de compensação de créditos invocada na petição inicial, e o prosseguimento dos autos tendo em vista a apreciação da mesma e dos demais pedidos aí formulados em sede de audiência de julgamento.
A embargada contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
1. O recurso interposto pelos Executados da decisão que julgou os embargos improcedentes e determinou o prosseguimento da execução, não tem efeito suspensivo, mas sim devolutivo, nos termos do disposto no artº 647º nº 1 CPC.
2. Os Recorrentes interpuseram recurso apenas da matéria de Direito e não da matéria de facto – 640º CPC (a contrario).
3. A matéria dada como provada é suficiente para o proferimento da decisão de mérito, sendo a restante matéria de facto irrelevante para a decisão, pelo que seria inútil prosseguir com diligências de prova de matéria que, ainda que hipotéticamente viesse a demonstrar-se, não teria qualquer efeito útil nos autos. A apreciação de matéria irrelevante pelo Tribunal redundaria numa actividade judicial despicienda, desnecessária e inútil.
4. Nesta fase, o Tribunal está, pois, em condições de proceder à apreciação imediata do mérito da causa o que é legalmente admissível. Se não o fizesse e mantivesse os autos em diligências de prova, não proferindo sentença, estaria a praticar actos inúteis. E, nos termos do artº 130º CPC, não é lícito realizar no processo actos inúteis.
5. O princípio da limitação dos actos é um dos corolários do princípio da economia processual, orientador do dever de julgamento: embora o Juiz deva resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, não deverá apreciar aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras – 130º e 608º nº 2 CPC.
6. Contrariamente ao alegado pelos Recorrentes, a decisão recorrida em nada beliscou o dever de boa fé processual (artº 8º CPC) o qual vincula as partes na sua actuação processual e não a actividade de interpretação normativa do Juiz.
7. E o despacho proferido nos autos em 6.11.2017 não constitui caso julgado, (podendo ser modificado pela sentença) pois é o conteúdo dos articulados que delimita o âmbito de cognição do Tribunal.
8. Também não assiste razão aos Recorrentes, ao alegarem a existência de preterição ilegal de audiência prévia, que não se verifica:
- De facto, por despacho de 6.11.2017 foi dispensada a realização de audiência prévia, não tendo qualquer das partes deduzido oposição à sua dispensa. Estando provados os factos relevantes para a decisão da causa, o Juiz podia e devia, no uso do poder de gestão, simplificação agilização processual, proferir a decisão sem necessidade de audiência prévia que havia sido dispensada – artº 6º e 547º CPC.
- E, nos termos dos artºs 593º nº 2-a), 591º nº 1-d) e 595º nº 1-b) CPC, sempre estaríamos perante a possibilidade de dispensa de audiência prévia.
9. A decisão recorrida também em nada beliscou o disposto no artº 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa pois estamos perante um processo judicial de natureza executiva no qual o Juiz observou o corolário do princípio constitucionalmente consagrado, ao assegurar o direito à obtenção de decisão em prazo razoável.
10. E, também contrariamente ao alegado pelos Recorrentes, a decisão recorrida não constitui “decisão-surpresa”, não violando o disposto no artº 3º nº 3 CPC.
11. Como questão prévia, há que referir que se existisse a hipotética nulidade alegada (de invocada preterição do contraditório) que não se aceita, esta nunca seria da sentença:
- pelo que teria que ser arguida no prazo de 10 dias desde o conhecimento (nos termos dos artºs 195º, 199º nº 1 e 149º CPC), o que não sucedeu.
- Apenas de um posterior despacho que apreciasse a ora alegada nulidade, e se reunidos os requisitos do artº 630º CPC, poderiam os Embargantes recorrer.
- Aliás, os Recorrentes, em 2.10.2019 juntaram aos autos um requerimento, após terem sido notificados da sentença, no qual não invocaram qualquer nulidade.
12. Apenas as nulidades de uma sentença, identificadas no artº 615º nº 1 CPC podem ser arguidas em sede de recurso.
13. Como se referiu, a sentença recorrida não constitui “decisão-surpresa”. A proibição de “decisões-surpresa” não obriga o Juiz a informar as partes da sua opinião legal, antes de elaborar a sentença.
14. Pelo contrário, o Juiz tem o dever de indagar do Direito (iura novit curia) sem que esteja limitado à alegação de Direito feita pelas partes – artº 5º nº 3 CPC.
15. O Tribunal não está limitado ao Direito alegado pelas partes, estando apenas limitado aos factos, causa de pedir e pedidos trazidos pelas mesmas. Os Executados não recorreram da decisão quanto à matéria de facto dada como provada pelo que, o Tribunal está em condições de lhe aplicar o Direito.
16. Não se pode falar de “surpresa” quando a decisão de Direito pode ser conhecida como viável/possível, face à abundante Jurisprudência existente. E, nos presentes autos, sempre estaríamos perante uma situação de “manifesta desnecessidade”, prevista no artº 3º nº 3 CPC.
17. Contrariamente ao invocado pelos Recorrentes, não se verificou pois qualquer violação do princípio do contraditório, o qual não se reporta às normas e interpretação que o Juiz julga dever aplicar e tem que ser harmonizado com o princípio da economia processual e proibição de actos inúteis.
18. A sentença recorrida também não padece da alegada omissão de pronuncia pois pronunciou-se expressamente quanto à questão da invocada inexequibilidade dos títulos executivos, no seu capítulo “B.1”.
19. Estamos perante uma acção executiva cambiária, observando as livranças exequendas (títulos de crédito dados como provados – docs 2, 4, 6, 8 juntos ao requerimento de execução) os pressupostos que a Lei Uniforme de Letras e Livranças exige e faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular. São assim títulos executivos previstos no artº 703º CPC, munidos da inerente exequibilidade.
20. A sentença recorrida também não incorre em qualquer erro de julgamento por considerar não se verificar a invocada ineptidão do requerimento executivo pois este observa todos os requisitos previstos no artº 724º nº 1 CPC e, por despacho de 10.11.2016 proferido nos autos de execução, foi admitido liminarmente, não tendo sequer o Tribunal tido necessidade de convidar o Exequente a suprir eventuais irregularidades, nos termos do artº 726º nº 4 CPC.
21. Sem prejuízo da preclusão processual desta questão (186º, 198º nº 1 CPC), trata-se de um requerimento inicial de uma execução cambiária, tendo sido indicados os valores das livranças, suas datas de emissão e vencimento, o valor e taxa de juros moratórios e indicação da data início e fim da sua contagem, indicação do valor do imposto de selo sobre capital e sobre juros e indicação dos cálculos aritméticos do valor titulado, não padecendo pois de qualquer ineptidão.
22. Nos termos do artº 342º nº 2 e 378º do Código Civil, o ónus da alegação de factos e prova do alegado preenchimento abusivo (que não se verifica nos presentes autos), impenderia sobre os obrigados cambiários, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente dos títulos de crédito.
23. A invocada excepção de compensação de créditos hipoteticamente emergentes de uma alegada culpa in contrahendo e responsabilidade civil, postas em causa pelo Exequente (não só quanto à sua existência como quanto aos sujeitos), não é compatível com a natureza do processo executivo.
24. De facto, o Embargado BST, na contestação de embargos:
- Por um lado, não reconheceu e impugnou a existência do alegado “acordo” com o BANIF;
- Por outro lado alegou que mesmo que hipoteticamente existisse, na esfera jurídica do BANIF, alguma obrigação de celebrar “acordo”, essa obrigação não se teria transmitido ao Exequente BST (tendo junto decisão judicial nesse sentido, transitada em julgado e proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito da providência cautelar movida pelos Executados à Exequente, nº 4235/16.6T8FNC, Instancia Central de Lisboa, 1ª Secção Cível-J 20 e Tribunal Constitucional (Decisão Sumária 318/2017Proc. nº 459/17, 2ª Secção TC).
25. A compensação apenas pode ser exercida no âmbito de um apenso de Oposição à Execução como facto extintivo da obrigação exequenda, tendo o “crédito compensante” que ser exigível em juízo e não inutilizado por excepções. Não pode ser controvertido e litigioso pois a reconvenção não é admissível em processo executivo – artº 732º nº 2 e 266º nº 1 CPC.
26. É que a acção executiva existe para efectivar/realizar direitos e não para os “declarar” – artº 10º nº 4 CPC.
27. Sendo controvertido o alegado “crédito compensante” (não só quanto à sua existência como quanto aos sujeitos), este não preenche os requisitos cumulativos impostos pelo artº 847º CC para a compensação.
28. De facto, não se encontra desde logo preenchido o requisito de ser “judicialmente exigível”, não podendo, em consequência, ser admitida a compensação peticionada pelos Executados por inverificação dos requisitos cumulativamente impostos pelo artº 847º CC.
29. Se assim não se entendesse, estar-se-ia a pôr em causa o princípio da igualdade das partes, concedendo privilégios inadequados aos Executados e pôr-se-ia em causa a natureza do processo executivo.
Termos em que deve manter-se a sentença recorrida, com as legais consequências.
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. O Sr. juiz a quo pronunciou-se pela inexistência das nulidades imputadas à decisão recorrida.
O relator confirmou a admissibilidade do recurso, a forma de subida e o efeito fixados.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões objeto deste recurso são as seguintes: nulidades da decisão recorrida; erros de julgamento quanto à ineptidão do requerimento executivo e quanto à compensação de créditos.
Primeira questão (nulidades da decisão recorrida)
O circunstancialismo de facto a ponderar na apreciação desta matéria é o que consta no Relatório supra.
O Direito
O presente recurso reporta-se a oposição a execução, ou seja, um procedimento de reação à execução que, a ter seguimento, assume a forma do processo comum declarativo, sujeito aos termos e regras previstas nos artigos 552.º e seguintes do CPC (art.º 732.º n.º 2 do CPC).
No processo comum declarativo, finda a fase dos articulados, e proferido despacho pré-saneador, ou não havendo lugar a ele (art.º 590.º do CPC), nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação (como é o caso destes autos), haverá, em regra, lugar a audiência prévia (artigos 597.º e 591.º do CPC).
As finalidades principais da audiência prévia, cumulativas ou alternativas, são a tentativa de conciliação das partes, discussão sobre as exceções dilatórias, discussão de mérito, discussão para delimitação dos termos do litígio, completamento dos articulados deficientes, prolação do despacho saneador, determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processual, despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova e a programação da audiência final (art.º 591.º do CPC).
De entre essas finalidades, avultam, no quadro deste recurso, as que estão previstas nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC:
Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (alínea b));
Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º” (alínea d)).
Pese embora a enunciação da realização da audiência prévia como regra, a lei estipula a sua não realização nas ações não contestadas em que a revelia seja inoperante (alínea a) do n.º 1 do art.º 592.º) e quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados (alínea b) do n.º 1 do art.º 592.º). Além disso, a audiência prévia poderá ser dispensada pelo juiz nos casos em que, embora o processo deva prosseguir, a audiência apenas teria como finalidade a prolação de despacho saneador (em que não se decida pelo fim do processo), a determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processual e/ou a prolação de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova (vide art.º 593.º n.º 1 do CPC).
Destas normas resulta que se, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito (neste sentido, vide Lebre de Freitas, A ação declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, Gestlegal, páginas 200 e 201; Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2018, 2.ª edição, reimpressão, Almedina, pág. 322 e pág. 323, nota 740). Tal convocação importa a vários títulos, conforme pondera Paulo Pimenta, na obra supra citada (página 262): “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…). Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”
Assim, a não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC). Tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 – “ouvidas as partes” – e 3.º n.º 3 do CPC; neste sentido, vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, volume I, 2014, 2.ª edição, Almedina, pág. 536).
Sendo certo que a dispensa de audiência prévia em casos em que ela era obrigatória constituirá nulidade, nos termos previstos no art.º 195.º do CPC (neste sentido se decidiu, em acórdão relatado pelo ora relator em 09.10.2014, processo 2164/12.1TVLSB.L1-2 – idem, Paulo Pimenta, obra citada, nota 728, pp. 319 e 320).
In casu, o juiz do tribunal a quo dispensou a convocação de audiência prévia. Mas fê-lo com base em pressupostos que deixou bem claros, por despacho proferido em 06.11.2017: o processo continuaria, proferindo-se despacho saneador stricto sensu, dispensando-se o despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova, e realizando-se audiência final, em data a designar. E proporcionou contraditório quanto à necessidade e âmbito da prova pericial requerida pelos embargantes, tendo concluído, após debate entre as partes, por despacho proferido em 29.01.2018, que a prova pericial era “indispensável à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, ordenando a sua realização a fim de que o senhor perito se pronunciasse acerca das seguintes questões:
A) Qual a rentabilidade expectável do projeto de “exploração” económica do imóvel da Rua do Carmo, identificado no Requerimento Inicial sob a Refª 1945166, nos termos da proposta negocial apresentada pelo “Grupo Accor”?;
B) Qual a rentabilidade expectável do projeto de “exploração” económica do “Café Relógio” e da “Estalagem Relógio”, identificados no Requerimento Inicial sob a Refª 1945166?.
Isto é, ficou assente nos autos que havia matéria controvertida que haveria de apurar, que parte dela seria submetida a prova pericial e oportunamente se designaria data para a audiência final.
Ora, traçada que ficou a sequência processual a seguir, a sua modificação só seria admissível se algum facto superveniente relevante o justificasse. E seguramente que a mera alteração do juiz titular do processo não figura entre esses casos possíveis.
De acordo com a regra geral do art.º 195.º n.º 1 do CPC, constituem irregularidades suscetíveis de integrar invalidade processual a prática de um ato que a lei não admita e a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva. Conforme aduz Lebre de Freitas, à luz da adequação formal determinada pelo juiz, “também a prática ou a omissão dum ato desconforme com a sequência determinada pelo juiz constitui irregularidade suscetível de integrar invalidade processual”, devendo interpretar-se o art.º 195.º-1 extensivamente (Introdução ao processo civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 4.ª edição, Gestlegal, pág. 24, nota 13).
É evidente que o tribunal a quo, ao proceder à mencionada programação de atos processuais, não se vinculou quanto à decisão de fundo a proferir, seja do ponto de vista do direito como da sua fundamentação de facto. Mas vinculou-se quanto ao procedimento adjetivo a seguir, reconhecendo às partes, máxime aos embargantes, o direito à produção de prova pericial, incidente sobre factos alegados pelos embargantes e que o tribunal aceitou deverem ser discutidos, obrigando-se à realização de audiência final.
Neste sentido se formou, nos termos do art.º 620.º n.º 1 do CPC, caso julgado formal. O juiz deverá respeitar as legítimas expetativas das partes que confiaram no conteúdo da sua primeira decisão. O arbítrio decisório é proibido, por força das exigências da segurança jurídica e do processo equitativo (art.º 20.º, n.º 4, da CRP).
Mesmo os despachos de adequação formal, que nos termos do n.º 2 do art.º 620.º do CPC não têm força de caso julgado, só poderão ser alterados se algum facto superveniente o tornar necessário para o bom andamento ou julgamento da causa (neste sentido, Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, novembro de 2018, páginas 5 e 6, consultável em julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/, citado pelos apelantes). Ora, repete-se, a mera mudança de juiz titular não enfileira entre essas circunstâncias excecionais.
Conclui-se, assim, que a decisão recorrida violou o já decidido no processo, nos termos supra referidos, devendo ceder perante os despachos proferidos em 06.11.2017 e 29.01.2018, nos termos do art.º 625.º do CPC.
Note-se que o aqui decidido em nada é contrariado pelo acórdão do STJ, de 04.7.2019, citado pelo tribunal a quo no despacho em que se pronunciou acerca das nulidades arguidas pelos apelantes, na medida em que esse acórdão não se debruçou sobre questão idêntica. Quanto ao acórdão da Relação de Lisboa, datado de 07.4.2016, que o Sr. juiz a quo também cita, não se mostra publicado na base de dados do Igfej.
Nestes termos, a apelação é procedente, ficando prejudicadas as restantes questões suscitadas no recurso.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, anula-se a decisão recorrida e determina-se que os autos prossigam os seus termos, dando seguimento aos despachos proferidos em 06.11.2017 e 29.01.2018.
As custas da apelação são a cargo da apelada, que nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 21.5.2020
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins