Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2578/16.8T8CSC.L1-4
Relator: DURO MATEUS CARDOSO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO DE SERVIÇO DOMÉSTICO
FALTA DE PAGAMENTO DE SALÁRIOS
RESOLUÇÃO
JUSTA CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I- Quando um trabalhador vai de férias no âmbito de uma relação laboral, não existe prestação material de trabalho mas também não existe cessação, sequer de facto, da relação laboral, não tendo qualquer significado a respectiva inação de desempenho laboral.
II- O pagamento do salário constitui o principal ou fundamental sinalagma a que a entidade empregadora está obrigada em resultado da celebração do contrato de trabalho.
III- O salário é, em regra, o único ou determinante interesse do trabalhador na actividade laboral, pelo que o seu não pagamento, mesmo que somente em mora, assume uma relevância de grande monta.
IV- Não é necessário que o trabalhador experimente dificuldades decorrentes da falta de pagamento do salário para que possa resolver o contrato de trabalho com justa causa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I- AAA, intentou na Secção de Trabalho de Cascais a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, CONTRA,
BBB.
II- PEDIU que a acção seja julgada procedente e em consequência a ré condenada a pagar-lhe a quantia total de € 5.670,75, sendo:
a) € 1.747,00 relativamente a serviços de limpeza e de apoio e higiene dos meses de Janeiro a Agosto de 2014;         
b) € 2.580,00 relativamente a subsídios de férias e respectiva retribuição referentes aos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014 e subsídio de Natal referente aos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014;
c) € 483,75 a título de proporcionais do subsídio de Natal referentes aos meses de Janeiro a Setembro de 2015 e proporcionais do subsídio de férias e respectiva retribuição, referentes aos meses de Janeiro a Setembro de 2015; e
d) € 860,00 a título de indemnização pela resolução do contrato com justa causa;
e) Tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal.
III- ALEGOU, em síntese, que:
- Foi admitida ao serviço da ré em meados de 2011 para exercer funções de empregada doméstica, funções que a partir de início de 2012 passou a acumular com outras de apoio à ré, nomeadamente de higiene pessoal, tendo sido acordado que pelas funções de serviços de limpeza a autora auferiria € 6,00/hora e que pelos serviços de apoio e cuidado da ré a autora auferiria € 5,00/hora;
- A partir de Janeiro de 2014 a ré deixou de pagar as retribuições devidas à autora, razão pela qual resolveu o seu contrato com justa causa por comunicação datada de 22-09-2015, recebida pela ré em 24-09-2015;
- Não lhe foram pagos todos os créditos devidos pela cessação do contrato.
IV- A ré foi citada, realizou-se Audiência de Partes em que teve lugar infrutífera tentativa de conciliação, e aquela veio a CONTESTAR, dizendo, no essencial, que:
- Ocorreu a prescrição dos créditos reclamados pela autora;
- A autora não era empregada doméstica mas apenas lhe prestava algumas horas;
- O contrato de trabalho celebrado com estrangeiro obedece à forma escrita:
RESPONDEU a autora defendendo a não ocorrência da prescrição.
V- Foi proferido despacho saneador em que se relegou para final o conhecimento da excepção de prescrição invocada pela ré.
Identificou-se o objecto do litígio e dispensou-se o enunciar dos temas da prova.
Os autos prosseguiram os seus termos e, a final foi, proferida sentença que julgou pela forma seguinte:
“III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a excepção de prescrição invocada pela ré BBB e, em consequência, ao abrigo do disposto no artigo 576.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho, absolve-se a ré dos pedidos contra si deduzidos pela autora AAA.
Custas pela autora – artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho – sem prejuízo do apoio judiciário. Registe e notifique.
Inconformada com a sentença proferida, a ré arguiu nulidades da mesma e dela recorreu (fols. 111 v. a 114 v.), apresentando as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo, ao proferir a douta sentença ora recorrida, errou na apreciação da matéria de facto, nomeadamente no que se refere à determinação da data em que ocorreu a ruptura factual da relação de dependência, errando na apreciação que fez, nomeadamente do depoimento de parte prestado pela A. (depoimento de dia 11.09.2017 – das 14:58:30 às 15:16:55).
B) Bem como errou no que diz respeito à matéria de direito, pois, interpretou, de errada forma, a norma jurídica contida no Art. 337º, nº 1, do Código do Trabalho, violando, assim, a mesma.
C) Deu como provado, o Tribunal a quo – Ponto 5 dos factos provados que “ A autora trabalhou para a ré até 1 de agosto de 2015, data em que entregou as chaves de casa à ré e não mais trabalhou para esta”, fundamentando tal decisão no depoimento de parte da A.
D) Entendeu o Tribunal a quo que, a entrega das chaves por parte da A. consubstanciou o cessar da relação laboral, porém da prova produzida resulta que não foi porque não mais pretendia trabalhar que a A. entregou as chaves, mas apenas porque foi de férias, nos meses de agosto e setembro de 2015, e, como era procedimento habitual, entregou as chaves durante esse período.
E) O depoimento de parte da A. é claro quanto a este tema, não permitindo qualquer dúvida quanto ao facto de que, naquela data e com aquela entrega de chaves não se verificou qualquer cessação ou ruptura da relação laboral, configurando tal ato apenas e tão somente o cumprimento do procedimento habitual quando ocorriam as férias da A.
F) Como bem demonstram as declarações da A.: “Quando é que deixou de trabalhar? Último dia eu vai para casa dela 2 de agosto. Deixar chave e vai pôr férias. Mas nessa altura já tinha intenção de não voltar a trabalhar? Eu não pensar deixar. Eu pensar voltar a trabalhar. Então porque é que deixou as chaves? Porque eu fui pôr férias. Deixar chaves para outra senhora. Eu diz quando acabar férias eu vai voltar. Ela telefonar diz “… tu volta?”, eu diz sim. Porque eu agosto e setembro vai férias.”
G) Errou, pois, o Tribunal a quo ao ter dado como provado que a data da cessação da relação laboral ocorreu a 01.08.2015, Pois a A. nessa data limitou-se a ir de férias, com o assentimento da Ré, e limitou-se a cumprir com os procedimento por esta impostos, entregando as chaves de que dispunha.
H) Estando a A. de férias, como ocorreu, e sendo tal do conhecimento da Ré e tendo tido a concordância da mesma, não pode, nessa data ter ocorrido a rutura da relação de dependência que existia ente as partes, porque a A. ainda era trabalhadora da Ré e a Ré ainda a via como sua trabalhadora. Tanto assim era que a Ré ligou à A. a confirmar a data exata em que terminavam as suas férias, e a A. a informou que voltava no fim de setembro.
I) Errou, igualmente, o Tribunal a quo na interpretação da norma contida no Art. 337º do CT.
J) O Art. 337º do CT fala em cessação do contrato de trabalho e não em qualquer outro conceito para determinar o momento de inicio da contagem do prazo prescricional aí previsto. E, se o legislador pretendesse cristalizar outro momento que não a cessação do vínculo jurídico entre as partes, tê-lo-ia feito, como ocorre noutros trechos do código do trabalho.
K) Este é o único entendimento consentâneo com a letra da lei, elemento de cariz preponderante no momento da interpretação da norma, mas também com a ratio da mesma, pois só assim se cristaliza um momento concreto e facilmente identificável por ambas as partes, sem necessidade de elaborar raciocínio complicados para aferir um momento não devidamente preenchido que é o da “ruptura factual da relação de dependência”. Só este entendimento, e não o defendido pela Tribunal a quo, conferem segurança à partes, nomeadamente ao trabalhador, e acautelam os seus legítimos interesses.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência ser a sentença proferida substituída por outra que julgue improcedente por não provada a prescrição invocada, e condene a Ré integralmente, no pedido formulado pela A., assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!!!!
A ré contra-alegou (fols. 118) defendendo a manutenção integral da sentença recorrida.
Correram os Vistos legais tendo o Digno Procurador-Geral Adjunto do Ministério Público emitido Parecer (fols. 128 a 133), no sentido de ser negado provimento ao recurso.
VI- A matéria de facto considerada provada em 1ª instância, é a seguinte:
1- A autora foi contratada pela ré em meados de 2011 para exercer as actividades inerentes à satisfação das necessidades do agregado familiar, nomeadamente lavagem e tratamento de roupas e limpeza e arrumo da casa, tendo posteriormente passado a desempenhar igualmente funções de apoio à ré, nomeadamente de apoio na higiene pessoal da ré [artigos 1.º, 2.º e 3.º da PETIÇÃO INICIAL].
2- Entre as partes foi acordada a seguinte retribuição: serviços de limpeza: € 6,00 por hora; serviços de apoio e cuidado da ré: € 5,00 por hora [artigo 4.º da PETIÇÃO INICIAL].
3- Em 22-09-2015 a autora enviou à ré a carta cuja cópia faz fls. 9 e 10 dos autos, recebida pela ré em 24-09-2015, comunicando-lhe a resolução do contrato com justa causa, pelos fundamentos que dela constam e aqui se dão por reproduzidos [artigo 7.º da PETIÇÃO INICIAL].
4- Em média a autora trabalhava cerca de 3 horas por semana no desempenho dos serviços de limpeza e 1 hora diária na actividade de apoio na higiene pessoal da ré [artigo 5.º da PETIÇÃO INICIAL].
5- A autora trabalhou para a ré até 1 de Agosto de 2015, data em que entregou as chaves de casa à ré e não mais trabalhou para esta [artigo 2.º da CONTESTAÇÃO (ao articulado de aperfeiçoamento)].
VII- Nos termos dos arts. 635º-4, 637º-2, 639º-1-2, 608º-2 e 663º-2, todos do CPC/2013, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação; os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas pelas partes, salvo se importar conhecê-las oficiosamente.
Tratando-se de recurso a interpor para a Relação, como este pode ter por fundamento só razões de facto ou só razões de direito, ou simultaneamente razões de facto e de direito, assim as conclusões incidirão apenas sobre a matéria de facto ou de direito ou sobre ambas (v. Fernando Amâncio Ferreira, "Manual dos Recursos em Processo Civil", 3ª ed., pag. 148).
Atento o teor das conclusões das alegações apresentadas pelas apelantes, as questões que fundamentalmente se colocam no presente recurso são as seguintes:
A 1ª, se a matéria de facto dada como provada pode ser alterada nos termos pretendidos pela autora.
A 2ª, se não ocorreu a prescrição do direito da autora reclamar as quantias peticionadas nos autos.
A 3ª, em caso de procedência da 2ª questão, se o contrato celebrado entre as partes é um contrato de trabalho, se a autora o resolveu com justa causa e se a autora tem direito aos montantes que peticiona.
VIII- Decidindo.
Quanto à 1ª questão.
Pretende a apelante a reapreciação da prova relativamente a diversa factualidade.
Sobre a impugnação da decisão da matéria de facto dispõe o art.º 640º do CPC/2013, aqui aplicável, no seu n º1: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; 
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
nº 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”
A reapreciação da matéria de facto será feita, consequentemente, em relação aos segmentos das alegações (por referência às respectivas conclusões que mencionem a intenção de reapreciação de pontos concretos da matéria de facto) que respeitem o estatuído no art. 640º do CPC/2013.

Quanto ao facto provado nº 5.
(…).
Assim, é alterada a redacção do facto provado nº 5 que passa a ser a seguinte: ”5- A autora somente prestou, materialmente, trabalho para a ré até ao dia 1/8/2015, data em que entrou de férias, que se prolongaram até dentro do mês de Setembro, e entregou as chaves de casa, como sempre fazia quando ia de férias.”
E adita-se aos factos provado um outro como o nº 6 e a seguinte redacção: ”A autora, quando foi para férias, queria continuar a trabalhar para a ré após as férias que ia gozar se, durante estas, a ré lhe pagasse as quantias remuneratórias em dívida.
                                                  *
Assim, nos termos do art. 662º do CPC, adita-se um novo facto provado com o nº 7 e a seguinte redacção: “A ré não pagou à autora, a título de trabalho prestado entre Janeiro de 2014 e Agosto de 2014, no valor total de € 1.747,00; nem pagou o total de € 2.580,00 a título de férias e de subsídios de Férias e de Natal dos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014; nem pagou o total de € 483,75 a título de proporcionais de subsídios de Natal e de Natal, pela cessação do contrato, tudo considerando-se uma média mensal de € 215,00.”
Quanto à 2ª questão.
A sentença recorrida considerou que se verificou a prescrição dos créditos reclamados pela autora por que se provara que esta trabalhara para a ré até 1/8/2015, data em que entregou as chaves da casa e não mais trabalhou para esta. Concluiu-se assim na sentença recorrida que a relação entre as partes cessou, de facto, no dia 1/8/2015.
Mesmo com a factualidade com que a sentença recorrida trabalhou, e que, como vimos, já foi atrás alterada, a redacção dada ao facto provado nº 5 e a conclusão que ali se tirou são surpreendentes.
Basta atentar na fundamentação da resposta à matéria de facto plasmada na sentença recorrida para se ver que ali se escreveu, tomando-se as declarações de parte da autora AAA como boas, “que prestou a sua actividade para a ré até 1 de Agosto de 2015, data em que entregou as chaves á ré e foi de férias, não tendo mais trabalhado para a ré” (sublinhado e realce nossos).
É que se o Mmº juiz a quo aceitou como boas essas declarações da autora deveria ter consignado como provado que a mesma foi de férias, por esta matéria ter muita relevância. É que só vai de férias quem está ainda em situação de contrato pendente. Se o contrato já cessou não vai de férias, vai dar um passeio, vai descansar, vai procurar um novo emprego, vai fazer qualquer coisa, de férias, seguramente, é que não vai.
Quando se vai de férias no âmbito de uma relação laboral, não existe prestação material de trabalho mas também não existe cessação, sequer de facto, da relação laboral, não tendo qualquer significado a respectiva inação de desempenho laboral.
De qualquer forma, face à nova redacção dada ao facto provado nº 5, ao teor do novo facto provado nº 6 e do facto provado nº 3, não há qualquer dúvida que a relação contratual existente entre autora e ré não cessou a 1/8/2015, só tendo terminado a 24/9/2015 com o recebimento pela ré da carta que a autora lhe enviou comunicando-lhe a rescisão contratual com justa causa.
Tendo-se presente o disposto no art. 337º do CT/2009, o art. 323º-2 do CC e a data da propositura da acção (16/9/2016- fols. 13 v.) é de concluir que os créditos da autora não se encontravam prescritos razão pela qual a sentença recorrida terá de ser revogada.
Quanto à 3ª questão.
A ré colocou em causa nos autos a existência de um contrato de trabalho embora, contraditoriamente, para invocar a prescrição dos créditos da autora tenha chamado em seu amparo o art. 337º do CT/2009, o que é bem demonstrativo da convicção subjacente.
Sem embargo, decorre dos factos provados nºs 1 e 2 que entre a autora e a ré foi celebrado um contrato de trabalho de serviço doméstico, sujeito ao regime especial do DL nº 235/92 de 24/10.
Depois, enigmaticamente, no art. 15º da contestação veio dizer que “O contrato de trabalho celebrado com estrangeiro obedece, entre outras formalidades, à forma escrita”, isto sem indicar quaisquer consequências que retira de tal violação, eventualmente por causa das outras obrigações legais que impedem sobre as entidades empregadoras que dão trabalho a estrangeiros, como decorre do art. 5º do CT/2009.
Porém, a ré não alega, sequer, que a autora é estrangeira e, a sê-lo, de que nacionalidade, de modo a permitir aferir da obrigatoriedade de contrato escrito, atento o disposto no art. 5º-6 do CT/2009.
Pediu a autora o pagamento de diversas quantias remuneratórias que não lhe foram pagas entre Janeiro de 2014 e Agosto de 2014, bem como férias e subsídios de férias e de Natal de 2011, 2012, 2013 e 2014.
Tendo ficado provado que a ré não efectuou tais pagamentos (facto provado nº 7) e sendo o salário a contrapartida obrigacional a que os empregadores estão sujeito pela prestação do trabalho por parte do trabalhador, terá a ré de ser condenada no pagamento do montante de € 4.327,00.
Pela cessação do contrato de trabalho, tem a autora ainda direito aos proporcionais de subsídio de Natal, de férias e de subsídio de férias, num total de € 483,75.
Vejamos agora se a rescisão operada pela autora foi com justa causa.
Estabelece o art. 32º-1 do DL nº 235/92 de 24/10 e dispõem os arts. 394º e 395º do CT/2009, em termos semelhantes aos anteriores arts. 441º e 442ºdo CT/2003 e art 34º do Dec-Lei nº 64-A/89 de 27/2 que, ocorrendo justa causa, pode o trabalhador fazer cessar imediatamente o contrato de trabalho, rescisão que deve ser feita por escrito, com indicação sucinta, mas claramente, dos factos que a fundamentam e que o levam a tomar essa atitude.
Decorre da acima do referido art. 395º-1 do CT/2009 que na comunicação escrita em que se anuncie a intenção de rescindir o contrato deve o trabalhador ter em especial atenção que só os factos indicados na comunicação é que são atendíveis para a justificar judicialmente (cfr. Abílio Neto, «Contrato de Trabalho, Notas Práticas», 16ª edição, pag. 1.030).
"Assim, e para que o trabalhador possa rescindir o contrato com justa causa e com direito à indemnização de antiguidade, terá de rescindir o contrato por escrito...E a indicação, embora sucinta, dos factos fundamentadores da rescisão tem um especial interesse porque só os factos indicados na comunicação são atendíveis para a justificar judicialmente..." - Ac. do STJ de 11/6/96, Col. STJ, 1996, T. 2, pag. 273. (v. também o Ac. desta Relação de Lisboa, de 19/2/97, Col. 1997, T. 1, pag. 186).
Invocou a autora na carta que enviou à ré o não pagamento de retribuições desde Janeiro de 2014, num total de € 1.390,00 (facto provado nº 3).
Apurada que esteja a ocorrência de culpa da entidade empregadora, a existência da justa causa para resolução é apreciada nos termos do art. 351º-3 do CT/2009, com as devidas adaptações, por força do art. 394º-4 do CT/2009.
Nos termos do art. 32º -1-b) do DL nº 235/92 de 24/10, é fundamento de rescisão com justa causa, a falta culposa de pagamento pontual da retribuição, na forma devida.
Invocou a autora, na carta que enviou à ré, o não pagamento de retribuições desde Janeiro de 2014, num total de € 1.390,00 (facto provado nº 3).
Atento o disposto no art. 394º-5 do CT/2009, uma vez ultrapassados os 60 dias de mora, presume-se culpa da entidade empregadora presunção que não admite prova em contrário, como aliás tem sido entendimento firme desta Relação de Lisboa, de que se citam, a título meramente exemplificativo apenas dois acórdãos, o Ac. de 30/4/2014, P. nº 633/12.2TTFUN.L1-4, Relatora Desemb. Alda Martins e Ac de 30/4/2014, P. nº 366/12.0TTCSC.L1-4, Relatora Desemb. Francisca Mendes.
Resulta da factualidade apurada que à data da resolução contratual estavam já ultrapassados os referidos 60 dias quanto às retribuições vencidas desde Janeiro 2014.
O pagamento do salário constitui o principal ou fundamental sinalagma a que a entidade empregadora está obrigada em resultado da celebração do contrato de trabalho. É a necessidade de sobrevivência que coloca a generalidade dos trabalhadores (poucos serão aqueles que resolvem trabalhar por conta de outrem por mero intuito recreativo) a colocarem, diariamente, a sua força de trabalho sobre a direcção de outrem, condicionando determinantemente a sua liberdade de dispor do seu tempo por outra forma que melhor entendessem.
Como afirma João Leal Amado[1], “Se visto pelo prisma social – próprio do trabalhador -, o salário traduzir-se-á, acima de tudo, no principal ou mesmo único meio de sustento do trabalhador (e respectivo agregado familiar), meio virtualmente indispensável à sua subsistência em termos dignos.”
O salário é assim, em regra, o único ou determinante interesse do trabalhador na actividade laboral, pelo que o seu não pagamento, mesmo que somente em mora, assume uma relevância de grande monta.
Já nos termos do nº 1 do art. 3º e 6º da Lei nº 17/86, a falta de pagamento pontual da retribuição era considerada uma falta qualificada, cuja gravidade era classificada como sendo "uma situação jurídica, moral e socialmente inaceitável". E até o preâmbulo do Dec-Lei 402/91, referia que "o apontado período de 30 dias é suficientemente dilatado, por forma a não ser exigível ao trabalhador suportar por mais tempo uma dívida de retribuição".
O Prof. Júlio Gomes[2] enfatiza que “qualquer incumprimento da retribuição se tem, em princípio, por sério, na economia do contrato. Em suma, o não cumprimento ou o cumprimento parcial ou defeituoso) da obrigação de retribuir torna, em regra, inexigível o cumprimento da obrigação de trabalhar”.
Como se escreve também no Ac. do STJ de 1/3/2018, P. nº 1952/15.1T8CSC.L1.S1, “Acresce que o caracteriza o contrato de trabalho é a subordinação jurídica e não a subordinação económica. Esta última existirá frequentemente, porventura até normalmente, mas pode não existir sem que isso altere a qualificação do contrato como contrato de trabalho. Um trabalhador subordinado não deixa de o ser mesmo que tenha um grande património ou um tal aforro que lhe permita satisfazer tranquilamente os seus compromissos financeiros apesar do incumprimento contratual do empregador. E tem direito à sua retribuição na íntegra, independentemente de o seu valor ser mais elevado ou mais reduzido. Compreende-se que muitos trabalhadores invoquem – o que pode interessar para tornar mais patente a gravidade do incumprimento – dificuldades financeiras mais ou menos prementes que o incumprimento pode acarretar como meio de deixar bem clara a gravidade do mesmo, mas, repete-se, não é necessário que o trabalhador tenha tais dificuldades para que o trabalhador possa resolver o contrato.”
O montante retributivo que a ré entendeu por bem não pagar à autora e invocada na carta de resolução tem uma expressão pecuniária muito significativa para a autora pois é no valor de € 1.390,00, sendo que a média mensal que auferia se situava nos € 215,00 mensais.
Dada a expressão da parcela retributiva em falta e a especial relevância do salário para a autora no interesse pela manutenção do contrato de trabalho, entendemos que a actuação da ré se revestiu de uma gravidade que pôs em crise irremediável a permanência da relação laboral.
É que a reiterada omissão de cumprimento da obrigação retributiva por parte da ré colocou a autora numa clara situação de lesão grave por perda da fonte normal do seu sustento e de quem dele está dependente, mais a mais numa conjuntura nacional extremamente difícil, causando à autora constrangimentos de ordem económica que são os comuns a quem vive do seu salário.
Assim, a autora resolveu, validamente e com justa causa, o contrato de trabalho.
Por força do estipulado no art. 32º-2 do DL nº 235/92 de 24/10, em face da resolução com justa causa, a autora tem direito a uma indemnização de valor correspondente a um mês de retribuição por cada ano completo de serviço ou fracção.
Atentos os factos provados nºs 1, 3 e 7 e de acordo com a apurada média mensal de € 215,00, tem a autora direito a uma indemnização equivalente a 5 x € 215,00 (€ 1.075,00). Porém, como a esse título só peticionou € 860,00 e não é caso de aplicação do disposto no art. 74º do CPT, só terá direito a este último valor pedido.
IX- Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando a sentença recorrida, condenam a ré a pagar à autora quantia de € 5.670,75 (Cinco Mil, Seiscentos e Setenta Euros e Setenta e Cinco Cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde as datas dos respectivos vencimentos parcelares, até integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias a cargo da ré.

Lisboa, 5 de Junho de 2018

DURO MATEUS CARDOSO
ALBERTINA PEREIRA
LEOPOLDO SOARES

[1] “A Protecção do Salário”, 1993, Separata do Volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a pag. 16.
[2] Direito do Trabalho, Vol. I, Coimbra editora, 2007, a pag. 1048