Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11687/06.0TBOER-A.L1-8
Relator: ANA LUISA GERALDES
Descritores: INVENTÁRIO
DOAÇÃO
COLAÇÃO
DISPENSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: ALTERADA
Sumário: 1. O instituto da colação visa a igualação dos descendentes na partilha, mediante a restituição fictícia à herança dos bens doados em vida pelo de cujus a um dos herdeiros.
2. E assenta na presunção de que o de cujus, fazendo em vida alguma liberalidade a um seu presuntivo herdeiro legitimário, não quis avantajá-lo em relação aos restantes, mas tão só antecipar a transferência da legítima que viria a competir-lhe.
3. A lei prevê que a colação possa ser dispensada pelo doador no acto da doação ou posteriormente.
4. Mas tal dispensa deverá sempre resultar de factos inequívocos que revelem que a declaração visa objectivamente a dispensa da colação.
5. A dispensa de colação está sujeita à mesma forma do acto a que se reporta.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – 1. No inventário que corre termos por óbito de A e em que exerce o cargo de cabeça-de-casal B, veio a interessada no inventário

C

Reclamar da inclusão de duas verbas – bens imóveis – na relação de bens apresentada, com os seguintes fundamentos:

1 - Não deve ser levada à relação de bens a verba nº 4 (metade da moradia denominada «Vivenda D», situada na Rua , descrita sob o nº  Conservatória do Registo Predial e inscrita na respectiva matriz predial sob o número, porquanto, em síntese, se trata de bem doado à Reclamante com dispensa de colação.
2 - Também não deve ser levada à relação de bens a verba nº 5 (prédio urbano de rés-do-chão e primeiro andar, denominado «Casa de S», situado na Rua …descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial sob o nº e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo, pois tal bem foi objecto de contrato de compra e venda celebrado entre os avós da Reclamante como vendedores e esta e a sua irmã como compradoras, sendo, por conseguinte, pertença da Reclamante.

2. Notificados a cabeça-de-casal e os demais interessados vieram insurgir-se contra tal pretensão, invocando, em síntese que, em ambos os casos se está perante doações feitas à Reclamante e uma vez que essas doações não foram isentas de colação os respectivos bens doados devem ser restituídas à massa da herança para igualação da partilha, procedendo-se, consequentemente, à inclusão desses bens na relação de bens para serem partilhados.

3. O Tribunal “a quo” indeferiu a reclamação, tendo proferido decisão nos seguintes termos:
“…mantenho a descrição das verbas nºs 4 e 5, decido que estão sujeitas à colação e em consequência determino que venha a ser indicado o valor da metade da “Vivenda D” e da “Casa S” à data da morte do inventariado”.

4. Inconformada a Reclamante C Agravou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Para a correcta interpretação da declaração do doador constante da escritura deve ter-se em conta o disposto no art. 238º, nº 2, do CC, nos termos do qual é admissível o recurso a elementos estranhos aos documentos.
2. A declaração expressa na escritura de doação é complexa e não usual, reafirmativa de um desprendimento definitivo a favor da filha e do carácter definitivo desta doação para o futuro.
3. Importa compatibilizar tal declaração com os demais factos dados como provados, para retirar daí um entendimento lógico do que tenha sido a vontade real do doador.
4. Ora, conforme foi dado como provado – no facto nº 9 – "o A fez a C a doação do direito à meação na Vivenda D”, porque este era bem de D, que lhe adviera por força do regime de bens do casamento, considerando que sendo a C a única herdeira daquela, a vivenda lhe deveria pertencer em exclusivo, assim pretendendo resolver a fase da sua vida anterior ao seu 2º casamento.
5. O A quis manifestamente colocar um marco separador dessa fase anterior da sua vida relativamente à que poderia vir a resultar do futuro com um segundo casamento à vista.
6. E o facto desta moradia ter pertencido à mãe de C e o A ter adquirido direito a metade por força do casamento não pode ser desprezado no raciocínio, concorrendo também para a interpretação da cláusula constante da escritura.
7. A vontade real de A – doação com dispensa de colação, ou por conta da quota disponível – foi conhecida dos seus futuros herdeiros legitimários que sempre aceitaram (até agora) que a "Vivenda D" pertencia sem qualquer ónus de colação à C. Basta atentar nos factos provados sob o nº 10 e nos anos que decorreram após a morte de A.
8. Por outro lado, a "Vivenda D", como resulta da certidão do registo predial junta aos autos, a fls. 39 a 40, foi vendida em vida do doador A sem que por tal facto tenha sido esboçado a menor pretensão fosse de quem fosse, relativamente a essa venda ou ao preço recebido pela C.
9. A interpretação, face a todos os factos e circunstâncias provadas, é que a doação da "Vivenda D" foi feita com dispensa de colação encontra no texto escritura suporte suficiente, tendo em conta o disposto no art. 238.° do Código Civil.
10. A vontade real do declarante é determinante. E importa que o julgador deduza tal vontade real do circunstancialismo factual provado e não fique prisioneiro da letra do documento.
11. É a substância sobre a forma que deve ser tida em conta como a verdade material sobre a verdade meramente formal.
12. O Conservador ao inscrever a propriedade de metade da "Vivenda D" com base na doação não teve qualquer dúvida quanto à não inscrição do ónus da sujeição colação (cf. facto provado n.º 26 e Parecer da Direcção Geral dos Registos e Notariado P.37/92.R.P.4 – in www.dgrn.mj.pt).
13. Está provado que a "Casa S" foi mandada construir pelos avós maternos de C (cf. facto n.º 13), H e mulher. Tal como está provado (cf. facto n.º 11) e documentado que os proprietários, avós de C, venderam a "Casa S" à C e à J por 350.000$00 em 13/02/1959. As compradoras, então menores, foram representadas pelo pai A.
14. Não foi provado qualquer facto no sentido de demonstrar que a compra e venda da "Casa S", por escritura de 13/02/1959, haja sido um negócio simulado. Ou seja, não se provou que por detrás de uma compra e venda as partes quisessem ter celebrado uma doação.
15. O bem em causa — "Casa de S" – nunca entrou na esfera jurídica do A. Da esfera jurídica de H e mulher passou por efeito da compra e venda para a esfera jurídica de C e J.
16. É absolutamente inadmissível o salto de raciocínio constante da sentença recorrida onde na penúltima página se afirma "...atenta a escritura de compra e venda celebrada pelo pai da reclamante e em sua representação e de sua irmã, tem-se esta como doação indirecta,... ".
17. Ora, nenhum facto provado permite sustentar tão absurda conclusão.
18. É certo que não se provou ter ocorrido por detrás da compra e venda uma doação dos avós da C a esta e à sua irmã Conceição. Todavia, também nada se provou no sentido de ter havido doação por parte de A ao preço declarado na escritura.
19. Ou seja, na total e absoluta ausência de qualquer facto que sustente qualquer doação no caso, temos a escritura de compra e venda e a transmissão da propriedade da "Casa de S" directamente da esfera jurídica dos vendedores, H e mulher, para a de C e J.
20. E nada mais.
21. Esta compra e venda não está posta em causa por qualquer facto, nada permitindo sustentar uma decisão (opinião) arbitrária no sentido de que poderia ter sido uma doação indirecta dos avós ou do pai,
22. Foram violadas, entre outras, as disposições dos artigos 238º, 2113º, 217º nºs 1 e 2, todos do Código Civil.
23. Razão pela qual deve conceder-se provimento ao presente recurso de agravo e a sentença recorrida ser substituída por outra que aplique o direito e faça justiça.


5. Foram apresentadas contra-alegações pela cabeça-de-casal e restantes herdeiros e interessados deste inventário, pugnando todos eles pela confirmação da decisão recorrida.

6. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.


II – Os Factos:

- Mostram-se provados os seguintes factos:

1. D adquiriu, por compra, a "Vivenda D” (verba nº 4 destes autos), ainda no estado de solteira, a V e mulher, conforme consta da Conservatória do Registo Predial.
2. O inventariado A, em 14 de Abril de 1945, casou em primeiras núpcias com D , no regime de comunhão de bens, conforme certidão de casamento de fls. 90.
3. Desse casamento nasceu a ora reclamante C , em 11/04/1946, neta de H  e Mulher, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos a fls. 91.
4. D faleceu em 11/04/1946, conforme consta do documento que dou por reproduzido, nos autos a fls. 92.
5. Em 9 de Agosto de 1952, A, ainda no estado civil de viúvo, declarou doar à sua única filha C a metade indivisa da "Vivenda D”, declarando que “da metade do referido prédio e pela pre­sente escritura, faz doação pura e irrevogável, de hoje para sempre, a sua única filha a menor impúbere C " e que “se demite de todo o domínio, direito, acção, posse e usufruição que até agora tem tido na metade do prédio doada e tudo inteiramente cede e transfere à donatária sua filha, a quem ficam a pertencer os respectivos rendimentos desde esta data, e sendo também por conta da mesma donatária as contri­buições e impostos desta mesma data em diante”, conforme consta do documento que aqui dou por reproduzido e que dos autos é fls. 35-38.
6. Na Conservatória do Registo Predial , pela apresentação de 30-3-98, foi inscrita a aquisição da verba nº 4 a favor da reclamante C, por sucessão hereditária de D  e doação do direito à meação de A .
7. O A casou com B  já depois da doação, mas ainda em 1952, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 5.
8. Pela apresentação de 30-3-1998 foi inscrita a aquisição da vivenda D a favor de S, Limitada, por compra, conforme consta do doc. que aqui dou por reproduzido e que dos autos é fls. 39 a 40.
9. O A fez a C a doação do direito à meação na vivenda D, porque este era um bem de D, que lhe adviera por força do regime de bens do casamento, considerando que sendo a C a única herdeira daquela, a vivenda lhe deveria pertencer em exclusi­vo, assim pretendendo resolver a fase da sua vida anterior ao seu 2º casamento.
10. A dita "Vivenda D” esteve arrendada, durante anos, beneficiando a C das respectivas rendas.
11. No dia 13-2-1959 H e mulher declara­ram a A , este em representação da reclamante C e da sua irmã J , suas filhas menores, que vendiam a estas, sua neta e irmã consanguínea o prédio denominado "Casa S", pelo preço de Esc. 350.000$00, recebido deste, conforme consta do doc. que aqui dou por reproduzido e que dos autos é fls. 43-45.
12. À data da construção da “Casa S" o A encontrava-se em comissão de serviço na Índia.
13. O prédio foi mandado construir pelos avós maternos da C.
14. No mesmo período, a mulher e filhos do A residiam na Vivenda T por ele mandada construir.
15. Tinha a C 12 ou 13 anos quando o pai regressou da Índia.
16. O A passou a residir cm a família no rés-do-chão da "Casa S" e os avós maternos no 1º andar, até 1969.
17. No aludido rés-do-chão residiu o A até falecer e ainda aí reside hoje a requerente B.
18. A C nasceu em 11 de Abril de 1946 e casou em 1968, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 91.
19. A C, representada por seu avô H , em 3-10-1969, deu de arrendamento o 2º andar da "Casa S”, conforme consta do documento que dou por reproduzida e que dos autos é fls. 93-94.
20. Nunca foi posto em causa que a senhoria era só a C.
21. Entre a C e a J havia o entendimento de que o primeiro andar seria para a C e o rés-do-chão para a J, nunca sofreu qualquer contestação.
22. Os avós maternos da C tinham esta como sua única neta e herdeira.
23. A irmã J e o pai A tiveram conhecimento do arrendamento do 1° andar da “Casa S".
24. Em 26-7-1967, o inventariado A declarou comprar, em representação dos seus filhos menores M e N, a fracção H do prédio descrito sob o nº da Conservatório do Registo Pre­dial, conforme consta do doc. que aqui dou por reproduzido e que dos autos é fls. 54 a 57.
25. Pela Ap. de 22-8-1967 foi inscrita a aquisição a favor de M e N , menores, por compra, da fracção H do prédio descrito sob o nº  da Conservatório do Registo Predial, conforme consta do documento que aqui dou por reproduzido e que dos autos é fls. 60-63.



III – O Direito:

1. O presente recurso foi despoletado pelo facto de ter sido incluída na relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal, no âmbito do inventário em curso, duas verbas – dois bens imóveis – que a Recorrente considera terem sido indevidamente incluídas por lhe pertencerem, originando, assim, uma reclamação da sua parte.

Na reclamação então deduzida, tal como nesta Apelação, insiste a Reclamante/Recorrente no seguinte entendimento:
1. Não deve ser incluída na relação de bens a verba nº 4 – metade da moradia “Vivenda D”, – pois tal verba foi-lhe doada por seu pai A com dispensa de colação;
2. Também não deve ser incluída na relação de bens a verba nº 5 – prédio urbano de rés-do-chão e primeiro andar denominado “Casa S”, – pois os anteriores proprietários (avós da Recorrente) venderam-no, ainda em vida, a esta e à sua irmã, tendo ambas, então menores, sido representadas no acto de compra e venda pelo seu pai A.

Entendimento diverso foi adoptado pelo Tribunal “a quo” que determinou a permanência de tais verbas na relação de bens, porquanto considerou que:
a) Existiu doação da verba nº 4 à Reclamante por seu pai A, doação que, contudo, foi feita sem dispensa de colação;
b) A “venda” da verba nº 5 efectuada pelo avô à Reclamante C e à sua irmã J, mais não foi do que uma verdadeira doação – uma doação indirecta – não tendo sido também dispensada de colação.

Está assim em causa saber se:
a) Tais verbas foram ou não doadas;
b) E, em caso afirmativo, em que termos.
   
Ou seja, se estão ou não sujeitas à colação.
Analisando o alcance de cada um dos conceitos e decidindo:

2. O conceito de doação é-nos dado pelo art. 940º do CC, como sendo o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
Constituem seus requisitos legais:
a) A atribuição patrimonial de um bem sem contrapartida económica;
b) A diminuição efectiva do património do doador;
c) E o espírito de liberalidade – que muitos autores denominam de animus donandi. [1]

A atribuição patrimonial, geradora de um enriquecimento, apresenta-se correntemente nas doações sob a forma de uma transferência do doador, para o donatário, de um direito, normalmente um direito de propriedade ou outro direito real, v.g., usufruto ou da nua propriedade.
Mas tal como prevê a norma conceptual, a transferência por doação também pode ter por objecto um direito (um direito de crédito) ou uma obrigação.
Relevante para que se possa falar de doação é a gratuitidade da atribuição patrimonial, ou seja, a inexistência de um correlativo ou correspectivo valor de natureza patrimonial.
A atribuição patrimonial de um bem sem contrapartida económica será feita, por conseguinte, à custa do património do doador, envolvendo uma diminuição efectiva do património deste.
Tendo como móbil subjacente a todas essas acções o espírito de liberalidade por parte do disponente: o denominado animus donandi.
Ou seja, o espírito de liberalidade do doador, enquanto elemento subjectivo, revelado pelo acto de generosidade em que propriamente se concretiza em fazer uma liberalidade ao donatário, enriquecendo o seu património.

3. Ultrapassada a questão do enquadramento legal da doação – que nos será bastante útil no momento em que se proceder à análise dos factos provados nos autos – partimos para a compreensão do conceito de colação.

3.1. Segundo o art. 2104º, nº 1, do CC, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.
A colação assenta na presunção de que o de cujus, fazendo em vida alguma liberalidade a um seu presuntivo herdeiro legitimário, como por exemplo a doação a um dos filhos, não quis avantajá-lo em relação aos restantes, mas tão só antecipar a transferência da legítima que viria competir-lhe.
Presunção iuris tantum, podendo, pois, ser afastada.
O próprio legislador prevê expressamente tal hipótese ao estabelecer que a colação pode ser dispensada pelo doador no acto da doação ou posteriormente – cf. art. 2113º, nº 1, do CC.
Impõe, contudo, a forma de o fazer: se a doação tiver sido acompanhada de alguma formalidade externa, só pela mesma forma, ou por testamento, pode ser dispensada – cf. art. 2113º, nº 2, do CC.
Princípio que comporta uma excepção: a colação presume-se sempre dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias – nº 3 do art. 2113º do CC.

3.2. O instituto da colação visa a igualação dos descendentes na partilha do de cujus, mediante a restituição fictícia à herança dos bens que foram doados em vida por este a um deles. Pelo que, pressupõe a pluralidade de descendentes que pretendam entrar na sucessão e que sejam sucessíveis legitimários. [2]
A própria previsão da dispensa de colação mostra-nos que o instituto da colação é supletivo.

Na análise desta norma o Prof. Antunes Varela realça que o art. 2113º do CC corresponde, na substância, ao disposto no art. 2099º do Código de 1867, tendo mantido duas das ideias fundamentais da legislação anterior sobre a dispensa de colação.
E embora se refira a um acto inter vivos (a doação feita pelo doador a um dos seus descendentes), não deixa de inspirar-se na vontade presumível do de cujus.

Quanto à forma a que deve observar a colação salienta o ilustre Mestre:
“A dispensa de colação posterior ao acto da doação constitui, ou funciona pelo menos como se fosse, sob determinados aspectos, uma segunda doação.
A doação anterior à dispensa que estava condenada a ser restituída à massa da herança, por imputação no valor da quota hereditária, visto presumir-se, com base na lei, que ela é uma presunção de antecipação dessa quota.
A partir, porém, da dispensa de colação, a fisionomia da doação sofre uma alteração radical.
Ela passa a considerar-se como efectuada por conta da quota disponível do doador, sem tocar por conseguinte na quota hereditária que, em princípio, competiria ao donatário como herdeiro.
E assim se explica o regime da forma a que o nº 2 do art. 2113º do CC sujeita a dispensa de colação.
Note-se, aliás, que o requisito da forma para a dispensa da colação não é apenas o da solenidade exigida por lei para a doação mas o da formalidade que tenha acompanhado, de facto, a realização da doação”. [3]

Assim, por exemplo, tendo os bens sido doados por escritura pública também a dispensa de colação só poderá ter lugar nos mesmos termos: por escritura pública.
E nesse caso, não havendo lugar à colação, a doação é imputada na quota disponível.
Ou seja: a doação fica por conta da quota disponível. E o valor dos bens doados não será considerado para efeitos de igualação da partilha entre os descendentes legitimários.

3.3. Discute-se neste processo, como se disse, a questão de saber se existiu doação de bens com dispensa ou não de colação.
Sendo de salientar que ambas as partes esgrimiram os seus argumentos reportando-se ao quadro legislativo actual.
Também a nossa análise, até este momento, assentou nas normas do Código Civil na redacção que actualmente lhe conhecemos.
Acontece porém que a doação que aqui se discute teve lugar em 1952, portanto, ainda sob a égide do Código Civil Português de então, conhecido como o “Código de Seabra” [4], e aprovado pela “Carta de Lei” de 1 de Julho de 1867.
Assim, afigura-se-nos útil uma incursão ao instituto e à forma como se mostrava regulado naquele Código.

Cotejadas as normas que regulam a matéria da colação constatamos que a dispensa de colação mostra-se consagrada no art. 2099º, de teor ligeiramente diverso do actual 2113º do CC.
Uma das diferenças mais relevantes prende-se com a forma ou procedimento a que tal dispensa deve observar.
Assim, enquanto o Código Civil actual exige a mesma formalidade externa, isto é, a mesma forma a que obedeceu a doação (o que significa que tendo a doação de um bem imóvel sido realizada por escritura pública também a dispensa de colação deverá observar essa mesma forma), já o Código de Seabra alude, no texto da norma, a uma “declaração”.
Podendo ler-se, a este propósito, no art. 2099º o seguinte:
“A colação poderá escusar-se entre os herdeiros legitimários, se o doador o houver assim declarado, ou o donatário repudiar a herança, salvo o direito de redução, no caso de inoficiosidade”.
Nada mais prevendo.

Terá sido decerto por tal razão, pela singeleza manifestada pelo legislador, que a doutrina e a jurisprudência de então foram muito mais abundantes do que a actual na interpretação da formalidade a que deveria obedecer a colação em tais circunstâncias.
Sendo indiscutivelmente maioritária a doutrina e jurisprudência que defendia, naquela época, que uma declaração dessa natureza deve assentar em actos que a revelem de forma inequívoca ou concludente no sentido de que o doador quis dispensar o donatário da colação, quis beneficiar o donatário em relação aos demais descendentes e não apenas propiciar-lhe a antecipação do gozo e fruição do bem doado. [5]
Porquanto sendo a doação de imóveis um negócio formal, funciona aqui o princípio da equivalência quanto à forma, devendo a colação assumir o mesmo formalismo. [6]

Quer isto dizer, em síntese, que:
1) Quer seja efectuada por declaração, quer por outro tipo de formalidade, deverá sempre conter factos inequívocos que revelem que a declaração negocial produzida (enquanto negócio jurídico unilateral) visa objectivamente a dispensa da colação;
2) E esta dispensa está sujeita à mesma forma do acto principal praticado onde se insere – com as declarações a serem produzidas nesses termos em escritura pública de doação ou em testamento.

4. Aqui chegados somos de novo confrontados com a seguinte questão:
 - E será que no caso sub judice se pode defender, como pretende a Recorrente, que houve dispensa de colação?
Não nos parece que assim seja.

5. Desde logo porque do teor da escritura pública de doação realizada tal declaração de dispensa da colação não foi inserida no documento, não se encontrando aí qualquer referência a essa matéria.
E a inexistência de qualquer elemento que revele ter sido essa a vontade do doador impede que se possa dar por assente que a doação foi feita com dispensa da colação.
Não podendo ser interpretada como tal a mera declaração inserida pelo pai da Recorrente na escritura de doação que “… da metade do referido prédio e pela pre­sente escritura, faz doação pura e irrevogável, de hoje para sempre, a sua única filha a menor impúbere C" e que “se demite de todo o domínio, direito, acção, posse e usufruição que até agora tem tido na metade do prédio doada e tudo inteiramente cede e transfere à donatária sua filha, a quem ficam a pertencer os respectivos rendimentos desde esta data, e sendo também por conta da mesma donatária as contri­buições e impostos desta mesma data em diante” - conforme consta do doc. de fls. 35-38 dos autos e dos factos provados do ponto 5).
Não só porque nada se diz a tal respeito, mas também pelo facto de se apresentar desacompanhada de quaisquer outras expressões que permitam extrair uma conclusão dessa natureza.

Com efeito, é preciso também não esquecer que a dispensa da colação é um negócio jurídico destinado a regular a sucessão hereditária do falecido.
E quer seja efectuada por declaração expressa ou tácita, terá que manifestar-se, por qualquer forma, por actos ou expressões que revelem a vontade inequívoca do doador de conceder o bem doado como um benefício a mais, relativamente à quota hereditária do donatário, isto é, de o privilegiar em relação aos outros co-herdeiros. [7]

Quer isto dizer que essa declaração tem em vista privilegiar alguém, em determinado momento, em relação a outros co-herdeiros.
Inexistindo esse alguém, porquanto naquela data, tanto quanto se sabe, o donatário apenas tinha uma filha, sendo viúvo, falece um dos suportes que lhe daria sentido útil.
O que o doador pretendeu com a referida declaração inserta na escritura de compra e venda foi que a donatária, sua filha, passasse, a partir daquela data, a fruir em pleno do referido bem imóvel: usufruindo dos seus rendimentos, dispondo dele como lhe aprouvesse e satisfazendo o pagamento dos impostos.
Mas fora deste quadro nada mais se encontra dito sobre a questão de “avantajar” a Recorrente em relação a outros presuntivos herdeiros legitimários, nem tão pouco consta do texto declaratório que o doador pretendeu dispensar a doação da colação.

Donde, qualquer extrapolação nesses termos, ao fim de todos estes anos, quando nada no documento nos aponta como tendo sido essa a vontade expressa e manifestada pelo doador, ainda que de forma tácita, é quanto a nós, e ressalvado, claro, melhor entendimento, arrojada e desprovida de suporte fáctico e jurídico.

6. Por outro lado, conforme se assinalou já, em matéria de forma, o acto de dispensa voluntária de doações da colação segue o princípio da equivalência face à forma usada na doação.
E não sendo expressa, qualquer declaração de natureza tácita tem de resultar de factos inequívocos, permitindo concluir com bastante segurança, ou com toda a probabilidade, uma dada vontade negocial [8], revelando, in casu, da parte do doador essa vontade de dispensa – cf. também o nº 1 do art. 217º do actual Código Civil e art. 648º do Código Civil de 1867.
Não sendo legítimo extrair de palavras que não o demonstrem um sentido tácito de uma manifestação de vontade que, afinal, nesta matéria, é inexpressiva e omissiva.

Já no domínio do Código de Seabra era então defendido que embora a colação de bens pudesse ser dispensada por declaração, de forma expressa ou tácita, deveria tal dispensa ser inequívoca.
Para esse efeito “a interpretação do título de doação, no sentido de se considerar estipulada a dispensa de colação, constitui matéria de facto” e, assim sendo, é ao Tribunal que julga a matéria de facto que lhe “compete interpretar os negócios jurídicos, de maneira a averiguar a intenção dos contraentes, examinado e estudando o contexto dos títulos em que os outorgaram”. [9]

Ora, in casu, o que resulta da escritura pública de doação é que o donatário apenas pretendeu propiciar à donatária a antecipação do gozo e fruição total do bem doado.
Traduzindo esse seu desejo ou vontade na declaração produzida nessa escritura pública nos seguintes termos: que “se demite de todo o domínio, direito, acção, posse e usufruição que até agora tem tido na metade do prédio doada e tudo inteiramente cede e transfere à donatária sua filha, a quem ficam a pertencer os respectivos rendimentos desde esta data, e sendo também por conta da mesma donatária as contri­buições e impostos desta mesma data em diante”.
E não manifestou vontade apreensível, nem exarou uma declaração que se possa considerar concludente em termos de dispensar a donatária da colação ou beneficiá-la em relação aos demais e eventuais descendentes ou herdeiros legitimários.
Da declaração assinalada apenas é possível concluir que o doador exprimiu de forma clara a sua vontade: a de efectuar uma doação pura e irrevogável à filha, desse imóvel. [10]  Para antecipar, por essa via, a transferência de um bem para a sua filha, como preenchimento da sua quota indisponível, do seu quinhão hereditário.
E nada mais.

Tudo isto para concluir que não resulta da escritura pública de doação celebrada que o doador tivesse querido dispensar a donatária – a Recorrente – do instituto jurídico da colação.
Uma conclusão dessa natureza, como se demonstrou, só é possível extrair do próprio teor do documento, ou seja, da escritura pública – daquela onde se concretizou a doação ou de outra que entretanto fosse celebrada ou até por testamento.
E não de quaisquer outros factos complementares, alegados pela Recorrente, sem suporte fáctico na escritura pública celebrada.

Razão pela qual improcede a Apelação, nesta parte, quanto à verba nº 4.

7. Improcedendo a Apelação nesta parte, o bem aqui em causa – verba nº 4 – porque não sujeito à colação, tem de estar descrito na relação de bens, nos termos do art. 2114º, nº 1, do CC.
Devendo ser indicado o valor desse bem – da metade da “Vivenda D” – à data da morte do inventariado, nos termos dos arts. 2109º, nºs 1 e 2, e 2162º, nº 1, todos do CC.


8. Quanto à verba nº 5:

8.1. Entendeu o Tribunal “a quo”, nesta parte, que a verba nº 5 – “Casa S” – tinha sido objecto de uma doação indirecta e que também não fora dispensada de colação.
Fundou o seu entendimento nos seguintes factos:
- Tendo tal bem sido vendido pelo avô da Recorrente, então menor, a esta e à sua irmã também menor, a intervenção de seu pai na referida escritura de compra e venda do imóvel, em representação de ambas as filhas menores, só podia ser entendida como uma doação indirecta.
Na opinião daquele Tribunal as partes teriam querido celebrar uma doação e não uma compra e venda.
Conclusão que não podemos de todo subscrever.

8.2. Com efeito, os autos não revelam qualquer matéria fáctica que habilite o Tribunal “a quo” a efectuar uma interpretação dessa natureza.
O que está provado é tão só que:
“No dia 13-2-1959, H e mulher declara­ram a A , este em representação da reclamante C e da sua irmã J , suas filhas menores, que vendiam a estas, sua neta e irmã consanguínea o prédio denominado "Casa S", pelo preço de Esc. 350.000$00, recebido deste” – cf. doc. de fls. 43-45 e factos provados e inseridos no ponto 11).

Ora, deste circunstancialismo fáctico o que resulta é que se tratou de uma compra e venda, legítima e válida, em que A – pai da Recorrente – interveio em representação desta, então menor e de outra sua irmã, também menor.
Intervenção que visou colmatar a menoridade das menores, comprando, em nome destas, um imóvel. E um negócio jurídico celebrado naqueles termos nada tem de transcendente.
Não se tendo provado outras circunstâncias factuais que permitam sugerir ou concluir no sentido de que tal compra e venda encobria um negócio simulado ou qualquer outro celebrado com o intuito de enganar terceiros, é temerário enveredar por uma conclusão dessa natureza.
E na total ausência de prova desses elementos fácticos que sustentem e sirvam de suporte a um negócio jurídico diverso do que foi celebrado, apenas se pode atender à essência e conteúdo da escritura de compra e venda celebrada.
Sendo o contrato de compra e venda válido tem de produzir os respectivos efeitos jurídicos.
O mesmo é dizer que tendo o imóvel sido comprado pelas menores, representadas no acto por seu pai, o bem pertence-lhes em pleno.

Destarte, forçoso é revogar, nesta parte, a sentença proferida que decidiu diferentemente e, por consequência, deve ser excluída da relação de bens a verba nº 5.

Procede, assim, a Apelação apenas no que concerne à verba nº 5 – “Casa S”.

IV – Em Conclusão:

1.  O instituto da colação visa a igualação dos descendentes na partilha do de cujus, mediante a restituição fictícia à herança dos bens que foram doados em vida por este a um deles.
2.   E assenta na presunção de que o de cujus, fazendo em vida alguma liberalidade a um seu presuntivo herdeiro legitimário, v.g., através da doação de um bem a um dos filhos, não quis avantajá-lo em relação aos restantes, mas tão só antecipar a transferência da legítima que viria a competir-lhe.
3.  Porém, a lei prevê que a colação possa ser dispensada pelo doador no acto da doação ou posteriormente.
4.  Mas tal dispensa, quer seja efectuada por declaração, quer por outro tipo de formalidade, deverá sempre conter factos inequívocos que revelem que a declaração negocial produzida (enquanto negócio jurídico unilateral) visa objectivamente a dispensa da colação;
5. A dispensa de colação está sujeita à mesma forma do acto principal praticado onde se insere – com as declarações a serem produzidas nesses termos em escritura pública de doação ou em testamento.


V – Decisão:

- Termos em que se acorda em julgar parcialmente procedente a Apelação e em consequência:
a) Decide-se manter a descrição da verba nº 4 e a sua inclusão na relação de bens, porque não sujeita à dispensa de colação, nos termos referidos supra nos pontos 6) e 7);
b) Decide-se excluir da relação de bens apresentada a verba nº 5.

E assim se revoga a sentença recorrida nos precisos termos que antecedem.



- Custas da Apelação por ambas as partes, na proporção de metade para cada uma.
                                                 

      Lisboa, 02 de Julho de 2009.

  Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
António Manuel Valente
Ilídio Sacarrão Martins
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[1] Neste sentido cf. Almeida Costa in “Noções de Direito Civil”, págs. 254 e segts. e Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, II Vol., págs. 237 e segts.
Cf. tb. Baptista Lopes in “Doações”, pág. 15, obra esta citada por Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, pág. 1001.
[2] Neste sentido cf. Jorge Duarte Pinheiro, in “Direito da Família e das Sucessões”, IV Volume, págs. 90 e segts.
[3] Cf. Profs. Antunes Varela e Pires de Lima, in “Código Civil Anotado”, VI vol., págs. 188 e segts.
[4] Denominação resultante do facto de ter sido redigido por Joaquim Pedro de Seabra.
[5] Neste sentido cf. Capelo de Sousa, in “Lições de Direito das Sucessões”, II Vol., pág. 270.
Cf. tb. o Acórdão do  STJ, de 10/01/1967, proferido no âmbito do  Proc. nº  061583.
[6] Ibidem.
[7] Neste sentido cf. Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”, VII Vol., pág. 331.
[8] Cf. Vaz Serra, in RLJ, 110º, pág. 378.
[9] Neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13 de Fevereiro de 1959, BMJ. nºs 36 e 84, págs. 507 e segts.
[10] Cf. Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 05/03/87, in www.dgsi.pt, citado nos autos.