Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28230/15.3T8LSB-E.L1-6
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
CULPA DO DEVEDOR NA DOAÇÃO
AGRAVAMENTO DA SITUAÇÃO PATRIMONIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas deve ser lida em articulação com disposto no art. 186.º do mesmo Código;

II. Tal articulação é particularmente relevante no que tange às pessoas que não tenham natureza singular face à precisa indicação de elementos circunstanciais invariavelmente indicadores do carácter culposo da insolvência. Quanto a tais pessoas, o legislador luso foi claro ao acolher a disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros como claro elemento indicativo desse carácter;

III. Encontrando-nos perante uma insolvente pessoa singular, não podemos, no entanto, ignorar o relevo, para a subsunção feita pelo Tribunal «a quo», da disposição de um dos escassos bens imóveis da devedora no contexto de elevado endividamento que veio invocar perante o Tribunal.

IV. Com dificuldade se vê, num abordagem ético-jurídica sufragável, que, a menos de dois meses de distância da data em que daria início ao seu processo de insolvência e revelaria a falência da sua gestão patrimonial e a não fiabilidade da sua palavra no âmbito dos compromissos assumidos, a Recorrente não estivesse preocupada em concentrar todos os seus cabedais com vista a reduzir os sérios prejuízos que provocava aos seus devedores, não cuidasse de fazer tudo o que fosse possível para honrar os seus compromissos e, tendo escasso património imobiliário, não o mantivesse com particular concentração na sua exiguidade e na necessidade de o preservar para proteger os interesses dos seus devedores profundamente lesados e antes se dispersasse fazendo uma doação a um seu filho por razões que não quis explicar, numa estratégia de gestão patrimonial sem sentido aparente (na perspectiva do interesse da manutenção da garantia patrimonial das suas dívidas) e perdesse tempo doando um bem sem valor relevante (na tese que parece subjazer ao recurso) e sem finalidade apreensível;

V. Se não há, perante os elementos disponíveis, dados firmes no sentido da existência de culpa da devedora na criação da situação de insolvência, não restam dúvidas que – ao afastar do seu reduzido e deficitário património um dos seus bens imóveis (cujo potencial de venda se desconhece não se dispondo, sequer, de certidão matricial que, ao menos, indique o seu valor formal) – a Recorrente agravou a sua situação de insolvência em termos que só lhe podem ser imputados, logo, fê-lo em termos culposos.

VI. O eventual valor patrimonial baixo, invocado, não constitui factor directo de afastamento da aplicabilidade do regime em apreço. Trata-se de elemento ausente das fattispecies sob ponderação, antes havendo que avaliar se o acto agravou a situação de iliquidez e a insusceptibilidade de honrar compromissos.

VII. É flagrante, no caso dos autos, a produção deste agravamento. A tal respeito, é decisiva a referência feita pelo Tribunal «a quo», na decisão recorrida, ao recordar que o acto de doação sob ponderação operou uma redução patrimonial sem contrapartida (logo, poderíamos acrescentar, irracional na perspectiva da manutenção da garantia patrimonial por não ser possível compreender, a essa «luz», que quem não tenha o suficiente ainda pratique actos gratuitos de alienação do pouco de que dispõe).

SUMÁRIO: (elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.RELATÓRIO:

                   
MM, com os sinais identificativos constantes dos autos, veio, «nos termos do disposto nos artigos 18.º e segs. do Código da Insolvência», «requerer a sua declaração de insolvência» com os fundamentos indicados no requerimento inicial entre os quais merece destaque, pelo seu relevo para a presente decisão: «O passivo da requerente é manifestamente superior ao seu activo, até porque, não dispõe de bens susceptíveis de garantir o cumprimento de todas as obrigações vencidas, ou seja, esta não dispõe de bens móveis e imóveis». Nesse requerimento inicial, a Requerente solicitou, também, «a exoneração do passivo restante, nos termos do n.º 1 do art. 236.º do CIRE».

O Tribunal «a quo» descreveu os contornos da acção e as principais ocorrências processuais até à decisão liminar impugnada, nos seguintes termos:
No requerimento de apresentação à insolvência veio a devedora MM pedir a exoneração do passivo restante.
Para o efeito alegou que reúne as condições necessárias para tal e assume as obrigações a que alude o artigo 239.º, n.º 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Em sede de Assembleia de Credores não foi deduzida oposição à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Notificada a Devedora para, querendo, em dez dias se pronunciar quanto ao eventual preenchimento da alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas veio a mesma exarar a posição que antecede, e se dá por reproduzida por razões de economia processual, alegando, em suma, que a conduta que adoptou – doação de ½ de um prédio rústico – não alterou a situação patrimonial da Requerente.

Foi proferida decisão judicial que decretou:
Assim e em cumprimento do disposto nos art.ºs 236º, n.º 1, parte final e 238°, n.ºs 1 e 2 ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, por não se verificarem os legais pressupostos, se indefere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora.

É dessa decisão que vem o presente recurso interposto por MM, que alegou e apresentou as seguintes conclusões e pedido:
a)- A disposição dos bens em proveito pessoal ou de terceiro deve ser vista através da óptica do interesse do devedor e, como ficou descrito, não existia do ponto de vista do devedor qualquer interesse ou beneficio que lhe surgissem desta conduta. Não estando em causa a verificação da analise da culpa em concreto mas antes da existência de elementos que indiciem com toda a probabilidade a sua existência, ou o agravamento da situação de insolvência, podemos afirmar que aqui não existem quaisquer elementos que permitam assegurar esta probabilidade forte;
b)- Não estando preenchida a presunção da alínea d) do art.186º, nº2, também não se pode enquadrar a conduta da recorrente de forma alguma num agravamento da situação de insolvência previsto na alínea e) do art.283º do CIRE.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências, por ser ele de Justiça.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É a seguinte a questão a avaliar:
Não estando preenchida a presunção da alínea d) do n.º 2 do art.186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, também não se pode enquadrar a conduta da recorrente num agravamento da situação de insolvência previsto na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do mesmo Código?

II.FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto
Estão provados os factos processuais constantes do relatório acima lançado.

Foi considerado demonstrado, na decisão recorrida, sem que tenha sido objecto de impugnação judicial, que:
A Devedora apresentou-se à insolvência em 15 de Outubro de 2015, tendo em 24 de Agosto de 2015, conjuntamente com o seu marido, doado livre de ónus ou encargos, ½ indivisa do prédio rústico denominado “Ónias”, sito P...S... sob o n.º 4..., da freguesia de P...S... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 9..., Secção Código Civil, ao filho de ambos GM

I...C..., Administrador Judicial da insolvência de MM apresentou, em tal insolvência, relatório com o seguinte conteúdo:
RELATÓRIO
Nos termos do art.º 155º do C.I.R.E
Residência
A insolvente, MM, com residência na Av.ª GC e actualmente residente na Rua CS.
Actividade
A insolvente, MM, com residência na Av.ª GC e actualmente residente na Rua CS, não exerce qualquer actividade remunerada, encontrando-se a aguardar despacho de reforma por limite de idade.
Credores
Os principais credores são a AFP - Associação de Farmácias de Portugal, Alloga Portugal - Armazenagem e Distribuição Farmacêutica, Ldª, ALTER,S.A, Banco BPI, SA, Caixa Geral de Depósitos, SA, D.L.A. Farmacêutica, SA, Glintt – Business Solutions, Ldª, Instituto de Segurança Social, I.P, L’ ORÉAL Portugal Unipessoal, Ldª, MERCK, S.A, Pierre Fabre Dermo-Cosmética Portugal, Ldª, Reckitt Benckiser Healthcare, Ldª, Sanofi-Produtos Farmacêuticos, Lda, SOFTREIS – INFORMÁTICA UNIPESSOAL, Lda, conforme consta da relação de créditos elaborada nos termos do artº 154º do CIRE.
Conclusão
No sentido do desempenho das funções que me foram confiadas por força do disposto no art.º 155º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, desenvolvia as seguintes diligências e constatei:
1.- Que a insolvente, MM, com residência na Av.ª GC e actualmente residente na Rua CS, não exerce qualquer actividade remunerada, encontrando-se a aguardar despacho de reforma por limite de idade.
2.- Que a insolvente é separada judicialmente de pessoas e bens de C... A... S... M....
3.- Diz a insolvente que as dívidas em reclamação, são maioritariamente dívidas contraídas no âmbito da actividade farmacêutica que exercia na F, Lda pessoa colectiva nº 510 706 401, com sede no Largo T, em Lisboa
4.- Estabelecimento comercial que foi objecto de trepasse por escritura pública celebrada a 7 de Novembro de 2013, no cartório notarial de A... M... G... S... B....
5.- A insolvente diz que o produto do trespasse não foi suficiente para dar cumprimento à totalidade das dívidas de todos os credores.
6.- Dependo de ajudas dos familiares, amigos para viver condignamente, enquanto aguarda despacho de fixação de pensão de velhice.
7.- Diz suportar mensalmente no local onde habita a quantia mensal de € 650,00, de despesas inerentes ao seu dia a dia, incluindo alimentação, vestuário, água electricidade e gás e bem assim com medicamentos.
8.- A insolvente tem prestado todas as informações e colaboração necessária ao desempenho das minhas funções quer, pessoalmente quer, por intermédio do seu mandatário o Dr. A... R....
9.- O pedido de insolvência foi apresentado pela própria insolvente.
10.- Elaborei a relação provisória dos créditos por força do disposto no artº 154º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Da análise levada a efeito pode concluir-se que a insolvente face ao total de créditos na ordem de € 948.019,18 (novecentos e quarenta e oito mil e dezanove euros e dezoito cêntimos), aos seus proveitos mensais, não exerce qualquer profissão remunerada, estando a aguardar a fixação da pensão de velhice, às despesas mensais fixas que diz suportar, não tem possibilidades de solver as dívidas.
Para viver condignamente, mesmo com o apoio dos familiares, a insolvente terá de dispor mensalmente de uma importância nunca inferior a um salário mínimo.
Porquanto pude verificar junto da Autoridade Tributária e Aduaneira dispor de dois imóveis, com o valor patrimonial de € 38.410,00 e € 770,80, inscritos na matriz predial urbana da freguesia de Alvalade, concelho de Lisboa sob o artº 1...- H, e rústica da União das freguesias de Ponte de Sor, Tâmega e Vale de Açor, sob o artº 9....
E junto Conservatória do Registo Automóvel, pude verificar que, a insolvente, não possuem quaisquer veículos.
As instituições bancárias não comunicaram a existência de qualquer conta com saldo em nome da insolvente.
Assim, é minha convicção não se encontrarem reunidas as condições mínimas para a insolvente poder solver as dívidas, devendo proceder-se de imediato à liquidação dos bens que compõe o activo da insolvente.
Entende que face a situação factual do insolvente se encontram reunidas todas as condições para lhe ser deferido o pedido de exoneração do passivo restante.

Fundamentação de Direito.

Não estando preenchida a presunção da alínea d) do n.º 2 do art.186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, também não se pode enquadrar a conduta da recorrente num agravamento da situação de insolvência previsto na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do mesmo Código?
Face ao conteúdo da decisão questionada e ao objecto da impugnação, é manifesto que a Recorrente se equivocou ao invocar a al. e) do art. 283.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que queria referenciar a alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do mesmo Código.

Este preceito impõe o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante se «Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º»

É esta própria norma que estabelece a necessidade de articulação com o regime do art. 186.º. Este artigo, no que releva para a reanálise proposta no recurso, qualifica como «Insolvência culposa» a que tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor (…), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência».

A remissão é particularmente relevante no que tange às pessoas que não tenham natureza singular face à precisa indicação de elementos circunstanciais invariavelmente indicadores do carácter culposo da insolvência. Quanto a tais pessoas, o legislador luso foi claro ao acolher a disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros como claro elemento indicativo.

Não sendo de convocar, aqui, o automatismo referido, por estarmos perante uma insolvente pessoa singular, não podemos, no entanto, ignorar o relevo, para a subsunção feita pelo Tribunal «a quo», da disposição de um dos escassos bens imóveis da devedora no contexto de elevado endividamento que veio invocar perante o Tribunal.

Com dificuldade se vê, num abordagem ético-jurídica sufragável, que, a menos de dois meses de distância da data em que daria início ao seu processo de insolvência e revelaria a falência da sua gestão patrimonial e a não fiabilidade da sua palavra no âmbito dos compromissos assumidos, a Recorrente não estivesse preocupada em concentrar todos os seus cabedais com vista a reduzir os sérios prejuízos que provocava aos seus devedores, não cuidasse de fazer tudo o que fosse possível para honrar os seus compromissos e, tendo escasso património imobiliário, não o mantivesse com particular concentração na sua exiguidade e na necessidade de o preservar para proteger os interesses dos seus devedores profundamente lesados e antes se dispersasse fazendo uma doação a um seu filho por razões que não quis explicar, numa estratégia de gestão patrimonial sem sentido aparente (na perspectiva do interesse da manutenção da garantia patrimonial das suas dívidas) e perdesse tempo doando um bem sem valor relevante (na tese que parece subjazer ao recurso) e sem finalidade apreensível.

Em termos de estrita normatividade, apresenta-se como seguro que, se não há, perante os elementos disponíveis, dados firmes no sentido da existência de culpa da devedora na criação da situação de insolvência, não restam dúvidas que – ao afastar do seu reduzido e deficitário património um dos seus bens imóveis (cujo potencial de venda se desconhece não se dispondo, sequer, de certidão matricial que, ao menos, indique o seu valor formal) – a Recorrente agravou a sua situação de insolvência em termos que só lhe podem ser imputados, logo, fê-lo em termos culposos.

Não corresponde à realidade a afirmação vertida no requerimento inicial, certamente em resultado de uma redação infeliz, no sentido de que a ora Recorrente «não dispõe de bens móveis e imóveis». A ser verdade esta afirmação, ainda maior gravidade assumiria a doação privativa do último resquício de património. 
 
Não deixa de se referir que o eventual valor patrimonial baixo, invocado, não constitui factor directo de afastamento da aplicabilidade do regime em apreço. Trata-se de elemento ausente das fattispecies sob ponderação, antes havendo que avaliar se o acto agravou a situação de iliquidez e a insusceptibilidade de honrar compromissos.

É flagrante, no caso dos autos, a produção deste agravamento. A tal respeito, é decisiva a referência feita pelo Tribunal «a quo», na decisão recorrida, ao recordar que o acto de doação sob ponderação operou uma redução patrimonial sem contrapartida (logo, poderíamos acrescentar, irracional na perspectiva da manutenção da garantia patrimonial por não ser possível compreender, a essa «luz», que quem não tenha o suficiente ainda pratique actos gratuitos de alienação do pouco de que dispõe).
Responde-se negativamente à questão proposta.

III.DECISÃO.
Pelo exposto, julgamos a apelação improcedente e, em consequência, confirmamos a decisão impugnada.
Custas pela Apelante.
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Lisboa, 15.02.2018



Carlos M. G. de Melo Marinho (Relator)
Anabela Moreira de Sá Cesariny Calafate (1.ª Adjunta)
António Manuel Fernandes dos Santos (2.º Adjunto)