Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8893/16.3T8LSB-A.L1-7
Relator: CARLA CÂMARA
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ALTERAÇÃO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (i)Da conjugação dos artigos 1793.º do CC e 990º do CPC resulta dever correr por apenso aos autos de divórcio, ainda que findos (« Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio»), o pedido de alteração da decisão de atribuição da casa de morada de família («O regime fixado (…) pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.»).
ii)A competência dos Juízos de Família e Menores para os pedidos de atribuição da casa de morada de família e suas alterações é uma competência por conexão - traduzida na circunstância da competência de um tribunal pode ser alargada através de uma conexão estabelecida em função das partes ou do objecto da causa -, o que bem se compreende considerando que os pressupostos da alteração (circunstâncias supervenientes que revelem a necessidade de alterar o anteriormente definido) não dispensam a aferição daqueles que estiveram subjacentes à fixação, logrando-se assim uma maior eficácia, atendendo aos interesses familiares em causa, bem como às especificidades da jurisdição voluntária.
iii)O artigo 990º do CPC (como o anterior 1413º, nº 4, do mesmo diploma) não faz depender a competência dos Juízos de Família e Menores da pendência da acção e tal não resulta do DL 272/2001 que é meramente atributivo de competência às Conservatórias (e não excludente da competência dos Tribunais).

(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Rui ……….. intentou a presente acção de alteração da decisão de atribuição da casa de morada de família contra Ana ……………., na sequência do que foi proferido o seguinte despacho:

«Resulta das disposições conjugadas dos arts. 5º, nºs 1, b) e 2 e 6º, do D.L. nº 272/2001 de 13/10 que, para a apreciação do pedido de atribuição da casa de morada família que não seja cumulado com outros pedidos no âmbito da mesma ação judicial ou que não constitua incidente ou dependência de ação pendente, é competente qualquer Conservatória do Registo Civil.
Reportando-nos ao caso vertente, verificamos que correram termos neste Juízo e Secção uns autos de divórcio, os quais se encontram findos.
Ora, considerando que o requerente não cumulou o pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família com qualquer outro pedido e que os autos de divórcio não se encontram pendentes, este tribunal não é competente para a apreciação da presente ação, cabendo tal competência às Conservatórias do Registo Civil.
***
Nestes termos, declaro este tribunal incompetente para a apreciação da presente ação e competentes as Conservatórias do Registo Civil.»
*

Não se conformando com este despacho, dele apelou o A. formulando as seguintes conclusões:
I.-O presente recurso é interposto de despacho datado de 16 de Novembro de 2016, que declarou o Tribunal incompetente para apreciar o pedido de alteração de decisão de atribuição da morada de família, que havia sido proferida em autos judiciais de divórcio onde se logrou, em sede de tentativa de conciliação, chegar a acordo.
II.-Entendeu o Tribunal recorrido que como "o requerente não cumulou o pedido de alteração da casa de morada de família com qualquer outro pedido e que os autos do divórcio não se encontram pendentes, este tribunal não é competente para a apreciação da presente ação, cabendo tal competência às Conservatórias do Registo Civil".
III.-De acordo com o disposto no artigo 1793.°, n.° 3 do CC, com a redacção da Lei n.° 61/2008 de 31 de Janeiro, o acordo firmado pelas partes relativamente ao destino da casa de morada de família é passível de alteração nos termos gerais da jurisdição voluntária.
IV.-Sempre que houver uma alteração substancial ou anormal das circunstâncias que foram tidas em consideração no acordo, conforme in casu sucede (mas que não cumpre aqui demonstrar), pode o mesmo ser alterado.
V.-Relativamente à competência do Tribunal para apreciação do pedido formulado, dita o artigo 990.°, n.° 4 do CPC que "se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso ", referindo-se à "atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.° do Código Civil" (artigo 990.°, n.° 1 do CPC).

VI.-A este respeito entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão datado de 8 de Outubro de 2015, no âmbito do processo n.° 367/12.8TMLSB-B.L1-8, o seguinte:
Entendeu-se na decisão recorrida que, achando-se findo o processo de divórcio, havido entre o requerente, ora apelante, e a requerida, no qual foi acordado que a casa de morada de família seria atribuída à cônjuge mulher, não seria aquele tribunal competente para de novo apreciar pedido a tal referente. Dispõe o art.1793° n°3, do C. Civil que o regime fixado quanto à atribuição da casa de morada da família, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária. Estabelecendo o art. 990°, n°4, do C.P.Civil que, se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso, Em face das citadas disposições legais, não oferece, assim, dúvida que, sendo admissível a alteração do regime, quanto a tal questão, anteriormente fixado, a competência para daquela conhecer, tendo havido acção de divórcio, pertence ao tribunal onde essa acção haja corrido. Havendo, no caso, a acção de divórcio sido tramitada no tribunal recorrido, forçoso se torna, pois, concluir, ao invés do decidido, ser o mesmo competente para apreciar o pedido formulado pelo apelante - procedendo, em consequência, as alegações respectivas. Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que determine o prosseguimento do incidente.

VII.-Tendo em conta que o casamento do ora Recorrente com a ex-cônjuge foi dissolvido por divórcio no âmbito de acção judicial que correu termos no J5 da la Secção de Família e Menores da Instância Central da Comarca de Lisboa, é a mesma instância competente para conhecer do pedido.
VIII.-A Conservatória apenas será competente para apreciação do pedido de alteração do destino da casa de morada de família quando o processo de divórcio também aí tiver corrido termos.
IX.-Mesmo que a Conservatória fosse competente, o que não é, havendo oposição, o que se antecipa, sempre seria o processo remetido para o Tribunal competente, na medida em que apenas este tem competência para decidir em caso de falta de acordo.
X.-Remeter o processo, ab initio, para a Conservatória consubstanciaria um acto inútil, e por isso ilegal, nos termos do disposto no artigo 130.° do CPC.
XI.-Em face do exposto, deve o despacho recorrido ser revogado e ser considerado competente o Tribunal para a apreciação do pedido.
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Questões a decidir.

Como resulta das conclusões das alegações do recurso acima transcritas, a questão a decidir é a da competência do Tribunal para conhecer do pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família ou, ao invés, se a mesma cabe à Conservatória do Registo Civil.
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COM INTERESSE PARA A DECISÃO DO RECURSO DECORRE DOS AUTOS QUE:
1–Correu termos processo de divórcio no Tribunal recorrido, os quais se mostram findos, por decisão que decretou o divórcio entre os cônjuges.
2–No âmbito do processo de divórcio referido acordaram as partes quanto à casa de morada de família.
3–Por apenso aos mencionados autos o agora recorrente intentou pedido de alteração da decisão de atribuição da casa de morada de família.
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Fundamentação de Direito.

Analisemos, então, a competência do Tribunal de Família para conhecer do pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família, para o que importa atentar nos preceitos a tal atinentes, cabendo, desde logo, fazer apelo ao artigo 1793.º do CC, com a epígrafe «Casa de morada da família», nos termos do qual, no que ao caso interessa «3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.»

Efectivamente, encontramos no artigo 990.º do CPC, com a epígrafe «Atribuição da casa de morada de família», preceito inserido nos processos de jurisdição voluntária, no capítulo das providências relativas aos cônjuges, a seguinte previsão «1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil (…) deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito. (…) 4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso.»

Da conjugação dos artigos 1793.º do CC e 990º do CPC resulta dever correr por apenso aos autos de divórcio, ainda que findos (« Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio»), o pedido de alteração  da decisão de atribuição da casa de morada de família («O regime fixado (…) pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.»).

Assim, a competência dos Juízos de Família e Menores (na terminologia recentemente introduzida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12, anteriormente designados por das Secções de Família e Menores) para os pedidos de atribuição da casa de morada de família e suas alterações é uma competência por conexão - traduzida na circunstância da competência de um tribunal pode ser alargada através de uma conexão estabelecida em função das partes ou do objecto da causa -, o que bem se compreende considerando que os pressupostos da alteração (circunstâncias supervenientes que revelem a necessidade de alterar o anteriormente definido) não dispensam a aferição daqueles que estiveram subjacentes à fixação, logrando-se assim uma maior eficácia, atendendo aos interesses familiares em causa, bem como às especificidades da jurisdição voluntária.

Esta competência das Secções de família e menores encontrava-se à data prevista no artigo 122.º da Lei n.º 62/2013, de 26/08, Lei de Organização do Sistema Judiciário, que assim dispunha «1 - Compete às secções de família e menores preparar e julgar: a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;», preceito que não sofreu alteração com a recente alteração da LOSJ pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12.

Nesta medida, tem que concluir-se resultar destes preceitos a competência do Tribunal (e não da Conservatória) para conhecer da matéria relativa à alteração da atribuição da casa de morada de família.

Deixamos, todavia, uma nota à fundamentação da decisão recorrida, para nos afastarmos dela.

Assenta o Tribunal recorrido a sua decisão na previsão dos artigos 5º, nº 1, b) e 2 e 6º do DL n.º 272/2001, de 13 de Outubro, que regulamenta os processos da competência do Ministério Público e das Conservatórias do Registo Civil, referindo a tal propósito que « (…) para a apreciação do pedido de atribuição da casa de morada família que não seja cumulado com outros pedidos no âmbito da mesma ação judicial ou que não constitua incidente ou dependência de ação pendente, é competente qualquer Conservatória do Registo Civil.».

Dispõe o referido artigo 5.º, que regulamenta o «Objecto do procedimento tendente à formação de acordo das partes» que:
« 1 - O procedimento regulado na presente secção aplica-se aos pedidos de:
(…)
b) Atribuição da casa de morada da família;
2 - O disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos no âmbito da mesma acção judicial, ou constituam incidente ou dependência de acção pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil.»

Por seu turno dispõe o artigo 6.º que «1 - Os processos previstos no artigo anterior podem ser instaurados em qualquer conservatória do registo civil.»

A interpretação deste mencionado artigo 5º, nº 1, b) e nº 2, há-de ser feita, apelando ao artigo 9º do Código Civil, indo além da «letra da lei» e reconstituindo a partir dos textos o pensamento legislativo, apelando à unidade do sistema jurídico, às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que é aplicada.

Desde logo, resulta que esta norma exclui a competência da Conservatória do Registo Civil quando o pedido de atribuição da casa de morada de família seja cumulado com outros pedidos no âmbito da mesma acção judicial ou constitua incidente ou dependência de acção pendente.

E de acção finda?

Colide esta previsão com o disposto no artigo 990º, nº 4, do CPC?
Nos termos do preceituado no mencionado artigo 990º, nº 4, do CPC, devendo o pedido de atribuição da casa de morada de família correr por apenso à acção de divórcio, é competente para dele conhecer o Tribunal.

A questão coloca-se com a referência constante do artigo 5º, nº 2 DL n.º 272/2001, de 13 de Outubro, a «acção pendente».

Com a entrada em vigor do DL n.º 163/95, de 13 de Julho, o Conservador do Registo Civil passou a poder decretar o divórcio por mútuo consentimento, homologando os necessários acordos, e a transmissão da posição de arrendatário (Artigo 1773.º do CC, alterado pelo mencionado DL:
«1- O divórcio pode ser por mútuo consentimento ou litigioso.
2- O divórcio por mútuo consentimento pode ser requerido por ambos os cônjuges, de comum acordo, no tribunal ou na conservatória do registo civil se, neste caso, o casal não tiver filhos menores ou, havendo-os, o exercício do respectivo poder paternal se mostrar já judicialmente regulado.
3- O divórcio litigioso é requerido no tribunal por um dos cônjuges contra o outro, com algum dos fundamentos previstos nos artigos 1779.º e 1781.º».

Com o DL n.º 272/2001, de 13/10, passaram as Conservatórias a ter competência para os procedimentos tendentes à formação do acordo das partes, designadamente, quanto à atribuição da casa de morada da família (artigo 5.º, n.º 1, al. b)) e competência exclusiva para decretar a separação e o divórcio por mútuo consentimento (artigo 12.º, n.º 1, al. b)).

O que bem se compreendia.

Nos termos enunciados no preâmbulo do referido diploma «Procede-se ainda à transferência de competências para as conservatórias de registo civil em matérias respeitantes a um conjunto de processos de jurisdição voluntária relativos a relações familiares - a atribuição de alimentos a filhos maiores e da casa de morada da família, a privação e autorização de apelidos de actual ou anterior cônjuge e a conversão da separação em divórcio -, na estrita medida em que se verifique ser a vontade das partes conciliável e sendo efectuada a remessa para efeitos de decisão judicial sempre que se constate existir oposição de qualquer interessado.»

Correndo termos na Conservatória o divórcio por mútuo consentimento, havendo acordo das partes para a regulação das demais questões familiares, não se compreenderia que ficassem fora das Conservatórias estes processos.

Nesta medida, nos termos do mencionado DL n.º 272/2001, de 13 de Outubro, apenas correriam nos Tribunais os processos que devessem correr por apenso aos divórcios litigiosos, onde aquela ausência de acordo afastava a intervenção da Conservatória. E assim, a redacção do artigo 1413º do CPC referente à atribuição da casa de morada de família referia que «4 - Se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou de separação litigiosos, o pedido é deduzido por apenso.»

Assim, o pedido de atribuição da casa de morada de família ou de alteração daquela decisão deveria ser formulado nos Tribunais sempre que aí corra ou haja corrido acção de divórcio ou separação; Na Conservatória do Registo Civil, nos restantes casos. É este o propósito da norma e nem outro dela poderia resultar.

Ora, artigo 990º do CPC (como o anterior 1413º, nº 4, do mesmo diploma) não faz depender a competência das secções de família e menores da pendência da acção e tal não resulta do DL 272/2001 que é meramente atributivo de competência às Conservatórias (e não excludente da competência dos Tribunais).

«Ainda que se admita que, no caso de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos e foi decidido na Conservatória do Registo Civil, a natureza incidental do pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família, consinta que seja na Conservatória que esse pedido seja deduzido, carece de apoio legal, face ao estatuído no nº4 do artº 990º do NCPC, o entendimento de que tendo corrido tal divórcio num Tribunal de Família, tal pedido de alteração deva igualmente ser deduzido naquela repartição pública.»[1]

Assim, tem que concluir-se que a competência para os pedidos de alteração da atribuição da casa de morada de família cabe aos Tribunais, no caso, aos Juízos de Família e Menores.
Procede, consequentemente, a apelação.
*

DECISÃO:
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
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Lisboa,07.02.2017                                                                                                       


(Carla Câmara)
(Maria do Rosário Morgado)
(Rosa Maria Ribeiro Coelho)



[1]Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 20 OUTUBRO, 2016, N.º PROCESSO: 559/14.5T8TMR-A.E1 in http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/09d2cf9a8e64534b8025806000554ac9?OpenDocument