Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
68/22.9JAPDL-A.L1-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade previstos no nº 1 do art. 193º do Código Processo Penal devem considerar-se conceptualizados  da seguinte forma:
a. Necessidade: “consiste em que o fim visado pela concreta medida de coação (…) decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido”, estando essas medidas previstas, em consonância, numa escala de crescente gravidade a partir do TIR, passando por outras não privativas da liberdade até às duas mais graves - a obrigação de permanência na residência e a prisão preventiva -, que “só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação” (cfr. nº 2 daquele preceito), devendo, ainda assim, ser dada preferência à primeira sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares” (cfr. nº 3 do mesmo preceito).
b. Adequação: “consiste em que as medidas de coação (…) devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer”.
c. Proporcionalidade: “consiste em que as medidas de coação devem ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.
II – No crime de tráfico de estupefacientes, pelas especificidades que este tipo de actividade assume, pela versatilidade e sofisticação dos meios de dissimulação a que os traficantes recorrem, regra geral só a medida de coação de prisão preventiva consegue prevenir de forma eficaz os perigos enunciados no artigo 204º do CP.
III – É de relevar no crime de tráfico de substâncias estupefacientes previsto no artigo 21º n.° 1 do DL 15/93, de 22.01 a sua forma de execução, que envolve a prática de plúrimos actos e de diferentes naturezas destinados à disseminação indiscriminada do consumo de substâncias estupefacientes por terceiros, por períodos mais ou menos prolongados de tempo, e que postula, neste quadro, o perigo concreto de continuação da actividade criminosa.
( sumário elaborado pelo relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1.1. No âmbito de inquérito 68/22.9JAPDL que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, P. Delgada - Juízo Inst. Criminal, no âmbito do primeiro interrogatório judicial, foi proferida decisão em 24.01.2022, relativamente à arguida ECQ______ através do qual á mesma foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva.
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1.2.  Inconformada com a decisão que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva veio a arguida ECQ______ interpor recurso com as seguintes conclusões:
1° A prisão preventiva não tem em vista uma punição antecipada;
2° A medida de prisão preventiva, mesmo nos casos do artigo 209° do Código de Processo Penal, só é admissível quando se verificarem os pressupostos do artigo 204° do Código de Processo Penal.
3° As necessidades cautelares enunciadas em IV do Douto Despacho (f Is. 6, 7 e 8) não justificam a sua aplicação pois que não implicam necessariamente a inadequação ou insuficiência, no caso, das restantes medidas de coação.
4° O Douto Despacho recorrido não averiguou a justeza das razões aduzidas pela arguida ora recorrente, nomeadamente quanto inexistência de fuga ou perigo de fuga (alínea a) do artigo 204° do Código de Processo Penal) e quanto à inexistência de perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido... alínea c) do artigo 204° do Código de Processo Penal).
5° Porque se entende que os pressupostos do artigo 204° do Código de Processo Penal se não verificam.
6° Deu o Douto Despacho recorrido uma interpretação que raia a inconstitucional incaucionabilidade.
7° A manutenção da prisão preventiva da arguida ora recorrente atenta contra os direitos e sentimentos de Justiça da recorrente, causa verdadeiro alarme social e afeta a credibilidade da Justiça.
8° A recorrente é delinquente primária e nunca esteve presa.
9° Trabalha e tem residência estável, confirmando-se a sua integração social e profissional;
10° tem a residir consigo, uma filha maior também com trabalho no nosso País e uma neta menor de idade, demonstrando-se de forma evidente o seu enraizamento;
11° a confissão integral e sem reservas da arguida aliada à conduta de colaboração desde o início dos presentes autos, as motivações apresentadas e o comportamento da arguida perante as autoridades judiciárias e as fontes que carreou para os autos deverão ser transportados a favor da mesma,
12° tudo razões que diminuem/afastam o receio de fuga.
13° A arguida não tem antecedentes criminais, não é referenciada nem possui ficha biográfica na Polícia Judiciária;
14° No que concerne à alegada continuação da atividade criminosa, reitere-se que a arguida não possui passado criminal, não tem referências nem é conhecida ria área do crime;
15° Nada nos autos indicia concretamente que a arguida venha a dar continuidade à conduta criminosa que lhe é imputada.
16° A privação da sua liberdade - preventivamente - terá imediatamente prejuízos irreparáveis na inserção social da arguida, nomeadamente na sua situação laboral, com o mercado de trabalho a atravessar uma crise que em nada facilitará a sua rápida reinserção no ativo.
17° A arguido encontra-se em processo de aquisição de autorização de residência definitiva em Portugal, processo esse que também será irremediavelmente comprometido com manutenção da medida determinada que, muito certamente, levará à sua recusa.
18° Aliás, estes vínculos - familiar, laborai e social - indicam a ausência de qualquer intenção de fuga, tanto mais que a arguida colaborou fortemente com as autoridades policiais e judiciárias.
19° Esta forte colaboração por parte da arguida coadjuvada com a previsão - hipotética - de uma condenação pelo mínimo (atento o facto de ser uma delinquente primária e até pela gravidade dos factos e a própria natureza do crime em questão) só por si justificam a excessividade da medida de coação aplicada.
20° No caso, as exigências cautelares coativas seriam suficientemente acauteladas com uma medida menos gravosa do que a estabelecida pelo Tribunal a quo, designadamente com a medida de apresentação periódica ou mesmo de obrigação de permanência na habitação, esta com vigilância eletrónica.
21° Face nos condicionalismos pessoais da arguida, e principalmente à não verificação dos pressupostos do artigo 204° do Código de Processo Penal deveria a recorrente, ter sido restituída à liberdade imediatamente.
22° O Douto Despacho recorrido fez incorreta apreciação dos factos e violou o artigo 32°, n.° 2 e o artigo 27° e o 28° da Constituição da República Portuguesa, e o artigo 204° e artigo 213° do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado, ordenando-se a libertação imediata da arguida ora recorrente, devendo aguardar os ulteriores trâmites do processo em liberdade, ou, no máximo, sujeita a uma outra(s) qualquer(quaisquer) medida(s) de coação que não a prisão preventiva.
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1.3. Respondeu o Mº Pº apresentado as seguintes conclusões:
1. A prisão preventiva surge, no quadro das medidas de coacção postas à disposição do aplicador do direito pelo legislador como ultima ratio.
2. Não pode porém ser arredada quando as exigências cautelares concretas exigem a aplicação de tal medida; verificando-se no caso os perigos do art. 204.° do Código de Processo Penal, a saber:
a) perigo de fuga, por a arguida ter nacionalidade estrangeira, e, em face da pena abstracta aplicável ao ilícito, poder facilmente eximir-se à acção da justiça;
b) perigo de continuação da actividade criminosa, dado que a arguida foi detida na segunda vez que veio a S. Miguel, transportando produtos estupefacientes, não sendo abusivo perspectivar, em face das circunstâncias do caso e das regras da experiência e normalidade das situações, que na primeira viagem já tenha feito algum transporte que não foi sujeito a intervenção policial, e que face à sua personalidade e situação social e ao lucro fácil que lhe foi oferecido pelo estranho, poderia facilmente reincidir em novos transportes.
3. Aquelas exigências derivam da existência de sérios indícios da prática de crime grave e dos perigos linearmente explanados pelo Mmo. Juiz, que são patentes nos autos, e a que o Juiz de Instrução Criminal bem atentou, sendo realçados na decisão recorrida, que o Ministério Público dá por alicerçada e justa.
4. Considerando a experiência comum e a sensatez que é necessária à escolha da medida de coacção concretamente aplicável, deve-se concluir que, percorrido o elenco das medidas, todas se revelam inidóneas ou insuficientes para satisfazer as exigências processuais emergentes, à excepção da prisão preventiva, atento o crime grave, de tráfico de estupefacientes, crime p.p. no art. 21.', n. 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, e que transparece claramente dos autos.
5. Ou seja, qualquer outro estatuto de limitação da liberdade implicará risco grave, altamente provável, da inobservância da finalidade processual de evitar os perigos do art. 204.° do Código de Processo Penal, e designadamente quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa.
6. Com isto não se afasta o regime excepcional e subsidiário da privação da liberdade, salientando-se, isso sim, a justeza da aplicação da prisão preventiva, por se estar perante uma hipótese extrema, residual, das tais que não admitem uma solução mais favorável.
7. Em situações extremas, como a dos autos, a aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação há-de ceder, porque só assim se dirimirá o conflito emergente dos riscos que a actividade criminosa criou.
8. Se há princípios que regem a escolha das medida de coacção (arts. 191.°, 193.° e 195.° do Código de Processo Penal), outros há que devem estar presentes na actividade judiciária, como é o princípio da segurança, consagrado na Constituição.
9. O Mmo. Juiz de Instrução Criminal, no seu despacho, subsumiu a realidade (exigências cautelares) ao direito (medidas de coacção), assim valorizando o alcance dos arts. 21.°, n. 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, bem como dos arts. 191.°, n. 1, 193.°, n.°s 1 e 2, 195.°, 202.°, n.° 1, al. a), e 204.°, als. a) e c), todos do Código de Processo Penal, bem como o princípio constitucional da segurança; normas e princípio que foram respeitados.
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1.4. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Sr.ª. Procuradora-geral Adjunta proferido parecer pugnando pela improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida, acompanhando a resposta do Mº Pº da 1ª instância.
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1.5. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, número 2 do Código Processo Penal e não foi deduzida resposta.
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1.6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado Código.
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II - FUNDAMENTAÇÃO  
Analisando e decidindo
2.1. O âmbito dos recursos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98), e são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª ed., pág. 335), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, que no caso não se suscitam nem ocorrem.  
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2.2. Face às conclusões do recurso, as questões submetidas à nossa apreciação é a seguinte:
1. Desconformidade da decisão face aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de coação de prisão preventiva fixada à Recorrente.
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2.3. A decisão que fixou a medida de coação de prisão preventiva, no segmento que ora nos importa, tem o seguinte teor:
(…)
II. Relativamente aos factos, tenho por indiciada toda a factualidade imputada à arguida elencada no requerimento do Ministério Público que antecede, com a retificação ora promovida, que aqui tenho por reproduzida, atenta a solidez dos elementos do processo também indicados, para os quais remeto, destacando aqueles com valor de prova pré constituída já carreada para os autos consistente no auto de revista a fls. 7, no auto de revista e apreensão a fls. 8-9, nos documentos apreendidos a fls. 10-14 (relacionados com a viagem e um contacto em S. Miguel), no auto de apreensão a fls. 15, na reportagem fotográfica a fls. 17-21 bem elucidativa do local onde os produtos estupefacientes estavam acondicionados e correlativa dimensão da atividade, tudo indicando para um típico transporte, como “correio de droga” (cfr. auto de teste rápido e pesagem a fls. 23), com envolvimento em rede. De resto, diante mim, a arguida confessou integralmente os factos, contextualizando-os detalhadamente, inclusive quanto à viagem do mesmo jaez no passado dia 16 de janeiro, e também quanto à motivação, sendo certo que, por regra, são precisamente pessoas socialmente integradas, mas com fortes carências económicas, que são aliciadas, e se deixam aliciar, para este tipo de transporte.
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III. No que concerne à qualificação jurídica, os factos integram, indubitavelmente, o tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com reporte à detenção e transporte de haxixe, substância inscrita na tabela I-C do mesmo diploma.
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IV. Quanto às necessidades cautelares que se fazem sentir, tenho por verificado o perigo concreto da continuação da atividade criminosa, diretamente resultante da gravidade dos factos, quer vista pela perspetiva da moldura abstrata do crime desta natureza (trata-se de um ilícito que se inscreve no conceito normativo jurídico-processual de criminalidade altamente organizada), quer pela da sua concretude e do seu contexto, tendo a arguida, residente no continente português, um papel determinado com a inerente contrapartida económica, consubstanciado em fazer entrar haxixe, por via aérea, nesta comunidade insular e geograficamente circunscrita (com fortíssima incidência do fenómeno), substância esta que destinar-se-ia a ser entregue a terceiros, não podendo aquela arguida deixar de conhecer os contornos e a dimensão do seu papel na cadeia de transporte e o respetivo efeito disseminador a jusante. O “correio” de droga não é uma mera peça de uma engrenagem, mas sim parte do seu motor. Os factos revelam igualmente a facilidade na ligação à rede de traficância, a procura por dinheiro fácil, e a disponibilidade para efetuar viagens deste tipo, sendo que, atenta a contrapartida financeira e as carências económicas, seguramente outras se seguiriam caso houvesse lograsse êxito com esta, como bem salienta o Ministério Público nesta diligência. O exposto, aliado à elevada quantidade dos produtos estupefacientes quantidade, refletindo objetivamente o maior desvalor da respetiva ação pela afetação mais intensa e grave da saúde de um maior número de potenciais adquirentes, aponta para consideráveis graus de culpa e de ilicitude dentro das hipóteses cogitáveis previstas pela norma incriminadora, sem prejuízo da motivação apresentada pela arguida, sendo de prever a aplicação de uma pena de prisão efetiva, não obstante a colaboração que tem vindo a ser prestada pela mesma (aliás a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a afastar penas substitutivas de prisão iguais ou inferiores a 5 (cinco) anos, salvo em situações excecionalíssimas). Noto que a integração social e a ausência de antecedentes criminais não assumem particular relevo neste domínio face aos específicos contornos da prática do ilícito criminal. Aliás, como acima já aflorei, segundo as regras da experiência, os “correios de droga” sem histórico criminal registado são mais apelativos para as organizações criminais pois menos suspeitas suscitam às autoridades fiscalizadoras. Acresce o perigo de fuga, cuja concretude se prende com a facilidade de mobilidade da arguida, conforme demonstrou com estas viagens, aliado à sua nacionalidade brasileira, permitindo-lhe o retorno ao país de origem sem quaisquer constrangimentos e, assim, eximir-se à sua responsabilidade criminal (inexistindo acordo de extradição para Portugal de nacionais daquele país), tanto mais atendendo à moldura legal abstrata aplicável (de 4 a 12 anos de prisão – cfr. cit. norma incriminadora) e, como expus, à expectável pena de prisão efetiva.
Num tal quadro, impõe-se a aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade, não vendo outra hipótese, de momento, que não prisão preventiva, única necessária e adequada a acautelar os enunciados perigos e, bem assim, proporcional à gravidade do crime e à pena prognosticável (nos moldes supra escalpelizados), tal como requer o Ministério Público, sublinhando que as fortes
exigências cautelares sobretudo quanto ao perigo de fuga não se satisfariam com a eventual obrigação de permanência na habitação sujeita a meios técnicos de controlo à distância com referência não só à facilidade de mobilidade, do continente português, para o estrangeiro, incluindo por via terrestre, mas também, à permeabilidade demonstrada pela mesma para a traficância com o fito de ganhar "dinheiro fácil".
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V. Em face do exposto, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 191º, n.º 1, 192º, 193º, n.s 1, 2 e 3, 194º, n.s 1, 4, 6 e 7, 202º, n.º 1, als. a) e c) [esta última com referência ao art.º 1º, al. m)] e 204º, al.s a) e c), todos do CPP, determino que a arguida ECQ______ aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à seguinte medida de coação, para além do TIR já prestado:
- prisão preventiva.
(…)
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2.4. Desconformidade da decisão face aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de coação de prisão preventiva fixada à Recorrente
In casu, os factos fortemente indiciados nos autos são os seguintes:
A 23 de Janeiro de 2022, pelas 22:40 horas, a arguida ECQ______ chegou ao aeroporto de Ponta Delgada, no voo FR 2625 da Ryanair, proveniente de Lisboa, sendo a sua bagagem assinalada pelas polícias, pelo que foi abordada; buscada a sua bagagem de porão ali foi encontrado e apreendido dezasseis embalagens, contendo 120 placas de haxixe, com o peso bruto de 12,096 quilos.
Efectuada revista, foi-lhe encontrado e apreendido:
g) Um smartphone Samsung, modelo Galaxy A21S, com os IMEI … e …, com o cartão SIM …;
h) Na sua mala de mão, foi encontrado e aprendido um bilhete electrónico n.º 3316918707665, de comboio, entre Vila Nova de Gaia e Lisboa, viagem no dia 23 de Janeiro de 2022, 14,47 horas;
i) Uma factura da agência de viagens “Barros e Amado”, no valor de 290 euros, relativo a viagem entre Ponta Delgada e Porto;
j) Um documento com a reserva da Ryan Air para a viagem de 23 de Janeiro de 2022;
k) Um cartão de embarque e etiqueta da bagagem de porão apreendida;
l) Um papel com uma morada manuscrita – R. …, Arrifes.
A arguida tinha já viajado para Ponta Delgada, na semana passada, trazendo consigo uma mala de porão com características semelhantes à mala agora apreendida, e que foi entregue pela mesma nas proximidades do Parque Atlântico a um indivíduo que não sabe identificar, recebendo em contrapartida a quantia de 500 (quinhentos) euros.
A arguida actuou voluntária, livre e conscientemente, conhecendo as características estupefacientes do produto que detinha, transportava, e fez transitar, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Estes factos indiciários estão suportados pela seguinte prova constante dos autos:
Fls. 2 a 4, auto de notícia por detenção;
Fls. 5, termo de consentimento de busca e revista;
Fls. 7, auto de revista da bagagem;
Fls. 8 a 9: auto de revista e apreensão;
Fls. 11: auto de revista e apreensão;
Fls. 10/4, documentos apreendidos à arguida;
Fls. 15, auto de apreensão do haxixe;
Fls. 17 a 21- fotografias da mala de viagem e do haxixe;
Fls. 24 a 26 – termo de consentimento quanto ao telemóvel;
Fls. 27 a 29 – pesquisa ao telemóvel;
Fls. 43 a 47: auto de inquirição da arguida;
Fls. 51: auto de apreensão.
Não temos dúvidas que os autos revelam a existência de indícios fortes de que a arguida terá cometido um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do D.L. n.° 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I- C anexa ao referido diploma. Aliás, nem a ora arguida/recorrente põe em causa tal qualificação jurídica.
A arguida/recorrente começa por apontar à decisão recorrida a violação do nº 3 do art. 193º do C.P.P..
Vejamos:
A aplicação de medidas de coação implica, em maior ou menor grau consoante os traços distintivos da medida em causa, restrições ao direito à liberdade, direito fundamental com tutela constitucional, estando por isso submetidas ao princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade , e devendo conter-se, de acordo com o estabelecido no nº 2 do art. 18º da CRP, dentro dos limites necessários à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Como princípio geral, a privação da liberdade só pode ser legitimada por sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança (cfr. nº 2 do art. 27º da C.R.P. ), sendo reconhecido a todo o acusado o direito de exigir prova da sua culpabilidade em processo criminal que assegure todas as garantias de defesa, presumindo-se inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação ( cfr. nºs 1 e 2 do art. 32º da C.R.P. ). Daí que a prisão preventiva, a medida de coação mais gravosa porque mais limitadora da liberdade, esteja sujeita a critérios de estrita legalidade, prevista como uma das exceções ao princípio enunciado no nº 2 daquele art. 27º. A sua natureza excecional e subsidiária encontra-se expressamente afirmada no nº 2 do art. 28º da C.R.P., nos termos do qual “a prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.”
Assim se procura alcançar um certo equilíbrio entre o interesse da boa administração da justiça, por um lado, e o direito à liberdade individual, por outro, nas situações em que conflituem.
Os princípios constitucionais acima aludidos têm tradução e desenvolvimento na lei adjetiva penal. Desde logo no nº 1 do art. 191º, que estabelece os princípios da legalidade e tipicidade das medidas de coação e de garantia patrimonial nos seguintes termos: “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”.
Em seguida, o nº 2 do art. 192º do mesmo diploma afasta a aplicação de qualquer medida de coação ou de garantia patrimonial sempre que haja “fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal”.
Por seu turno, o nº 1 do art. 193º estabelece que as medidas de coação estão sujeitas aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
O primeiro “consiste em que o fim visado pela concreta medida de coação (…) decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido” , estando essas medidas previstas, em consonância, numa escala de crescente gravidade a partir do TIR, passando por outras não privativas da liberdade até às duas mais graves - a obrigação de permanência na residência e a prisão preventiva -, que “só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação” ( cfr. nº 2 daquele preceito ), devendo, ainda assim, ser dada preferência à primeira sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares” (cfr. nº 3 do mesmo preceito).
O segundo “consiste em que as medidas de coação (…) devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer”.
E o terceiro “consiste em que as medidas de coação devem ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas” .
O quadro legal dos casos de admissibilidade da prisão preventiva vem estabelecido no art. 202º, que reafirma o caráter excecional e subsidiário daquela medida, fazendo-a depender da inadequação e insuficiência das demais medidas de coação previstas na lei processual penal. A prisão preventiva deve ser, de facto, a última ratio; ainda que ao caso deva ser aplicada medida de coação privativa da liberdade, sempre deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação quando esta medida se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se façam sentir ( cfr. nº 3 do art. 193º ).
Por outro lado, a imposição de medidas de coação, mormente das privativas da liberdade, não contende com o princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32º nº 2 da C.R.P. , sendo certo que não pode constituir uma antecipação da pena e que aquelas sempre hão-de ter natureza excecional e de última ratio, obedecendo estritamente aos requisitos fixados na lei, respeitando, enfim, os princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade.
Recordamos que se consideraram como verificados, na decisão que aplicou a prisão preventiva, os perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa, justificando-se assim a necessidade daquela medida de coação.
É de relevar que a Jurisprudência tem vindo a entender que no caso do crime de tráfico de estupefacientes, pelas especificidades que este tipo de actividade assume, pela versatilidade e sofisticação dos meios de dissimulação a que os traficantes recorrem, regra geral só a medida de coação de prisão preventiva consegue prevenir de forma eficaz os perigos enunciados no artigo 204º do CP.
É de considerar também que, conforme descrição infra só podemos entender que a medida de coação aplicada á arguida no 1ª Interrogatório judicial foi a adequada, justa e proporcional:
a) a gravidade dos factos cometidos, considerando a moldura penal abstrata para o crime que lhe está imputado, e, consequentemente o manifesto alarme social que ocorre neste tipo de criminalidade;
b) as circunstâncias do crime também são gravosas tendo em conta toda a referida factualidade indiciada;
c) a prática do crime de estupefacientes fortemente indiciado assume uma preocupante dimensão social. 
d) intranquilidade social considerando a criminalidade conexa com o crime em apreço;
e) possibilidade de obtenção de lucros fáceis e rápidos neste tipo de atividade criminosa;
f) a conduta da arguida e as circunstâncias que rodeiam a sua atuação; e
g) a conduta da arguida revela uma atuação ardilosa; e,
h) a quantidade do produto estupefaciente (12 quilos).
A arguida/recorrente sustenta que a medida de coação aplicada deve ser revogada e substituída por outra de menor gravidade.
Sem desdouro pelo esforço argumentativo da recorrente, não podemos deixar de dizer que a razão está do lado Ministério Público.
Na verdade, os elementos indiciados demonstram a aparência fortemente provável da responsabilidade da arguida na prática do crime mencionado. E sabe-se que a apreciação que o tribunal a quo fez resultou da análise conjugada e coerente de todos os elementos probatórios descritos e também com a estrutura, a lógica e a dinâmica da própria investigação criminal.
Como já expendido, na decisão sub judice o tribunal entendeu que se verifica, no caso, elementos sustentados que indiciam os perigos de fuga e de continuação da actividade delituosa desta arguida.
Estabelecido que ficou o enquadramento jurídico-penal dos factos como crime de tráfico de substâncias estupefacientes do artigo 21º  n.° 1 do DL 15/93, de 22.01, importa ter em atenção que a própria forma de execução deste tipo de crime, que envolve a prática de plúrimos actos e de diferentes naturezas destinados à disseminação indiscriminada do consumo de substâncias estupefacientes por terceiros, por períodos mais ou menos prolongados de tempo, postula naturalmente a continuação da actividade criminosa. Assim, e não só por esta consideração que resulta do recurso às regras da experiência comum, mas também pelos fundamentos aduzidos no despacho recorrido, o perigo de continuação criminosa é evidente e concreto, não obstante o esforço argumentativo da arguida/recorrente por entendimento em contrário.
A matéria factual descrita nos autos, reveste enorme gravidade atenta a danosidade que provoca, tanto para os consumidores de tais produtos bem como para a sociedade em geral, tendo em conta a criminalidade conexa com tal tipo de consumo.
Estamos a falar de uma atividade ilícita de tráfico de estupefacientes na qual cada um tem o seu papel na difusão de produto estupefaciente. E, não é uma situação que aconteceu uma vez. Repare-se que a própria arguida/recorrente confirmou que não foi a única viagem de transporte de produto estupefaciente que efetuou.
Regressando ao princípio da excecionalidade da prisão preventiva, em função de outras medidas não detentivas e, nomeadamente, a aplicação da outras medidas de coação menos restritivas, como seja, respetivamente, a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, é por demais evidente que no caso dos autos não parece existir qualquer razão para atender a esta medida de coação, porque  não é suficiente para acautelar o perigo real de continuação da actividade delituosa.
Sobre esta temática o Ac. do Tribunal desta Relação, processo nº 1534/17.3T9TVD-A.L1-5, datado de 11.06.2019, sendo seu Relator o Sr. Desembargador José Adriano, in www.dgsi.pt, cuja linha de entendimento subscrevemos, refere:
“Se é certo que a medida de obrigação de permanência na habitação prossegue um fim concorrente com o da prisão preventiva, coincidindo até em alguns dos seus pressupostos e tratamento adjectivo, tal circunstância não tem a virtualidade de apagar as diferenças significativas que existem entre ambas, em especial ao nível da sua eficácia, porquanto, “a barreira física decorrente do confinamento de alguém a um domicílio não assenta exclusivamente na valia dos meios técnicos postos na detecção de eventuais ausências” que têm essencialmente por função dar a conhecer as “violações” da obrigação de permanência na habitação.
Por outro lado, a mencionada obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, não é, só por si, impeditiva de o referido arguido manter o mesmo negócio ilícito, contactando com os seus clientes a partir da sua residência - seja ela qual for – e ser por eles contactado, fazendo com que estes – sejam os mesmos de antigamente, ou outros diferentes - se desloquem à aludida residência.
Tendo em conta tais pressupostos, não cremos que a aplicação de qualquer outra medida coactiva, não privativa da liberdade, ou mesmo a obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios técnicos de controlo, sejam suficientes para afastar o arguido/recorrente da prática de novos factos da natureza dos indiciados, de tráfico de estupefacientes, tornando-se, por isso, necessária a prisão preventiva, sendo a única medida adequada às exigências cautelares que no caso se fazem sentir e proporcional à sanção que previsivelmente lhe poderá ser aplicada, em caso de condenação, não havendo, por ora, quaisquer elementos a ponderar que permitam ajuizar, com seriedade, acerca de uma provável suspensão da execução da prisão que lhe for aplicada.”
Não poderíamos dizer melhor, tal a evidência da sua aplicação a estes autos.
E não seria pelo facto de a arguida/recorrente não ter antecedentes criminais publicitados, no sentido de vir a preencher os pressupostos formais para a aplicação de outra medida de coação menor grave, que permitiria reequacionar a substituição da medida de coação de prisão preventiva, pois esta é de facto, em concreto, a única proporcional, necessária e adequada de aplicar no caso dos autos. Basta atentar nos juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade da arguida/recorrente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, para não nos permitir supor que, com a substituição da medida de coação de prisão preventiva por outra medida menos grave, as expectativas de confiança na prevenção da prática de futuros crimes de natureza semelhante ficam salvaguardadas.
Nestes termos o recurso terá de improceder.
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III-DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela arguida ECQ______ e confirmar a manutenção da medida de coação de prisão preventiva.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em três Ucs, sem prejuízo de eventual apoio judiciário que beneficie.
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Lisboa 04-05-2022
Alfredo Costa
Rosa Vasconcelos
Conceição Gonçalves
Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP).