Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15344/16.1T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: DANOS NÃO PATRIMONIAIS
GRAVIDADE
CÁLCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: 1. Tal como sobre as partes recai o dever de alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas (arts. 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c), do C.P.C.), a enunciação linear, lógica e cronológica dos factos, tanto dos provados, como dos não provados, dentro dos limites dos temas da prova anteriormente enunciados, deve ater-se igualmente aos factos essenciais alegados no processo por cada uma das partes, de modo a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito.
2. Além de que, sendo necessária, deve ainda fazer-se a enunciação dos factos complementares e/ou concretizadores, também eles essenciais, cuja enunciação se apresente insuficiente ou difusamente alegada, desde que se apresentem como imprescindíveis para a procedência da ação ou da defesa, à luz dos diversos segmentos normativos relevantes para a decisão do caso concreto.
3. A gravidade do dano não patrimonial há-de medir-se por um padrão objectivo, conquanto a sua apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias do caso concreto, e não à luz de factores subjectivos, de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada.
4. Derivando o ressarcimento dos danos não patrimoniais da violação de direitos fundamentais, deve, em definitivo, numa visão moderna, atualista e europeísta, abandonar-se um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes.
5. Na tradução quantitativa dos danos de natureza não patrimonial há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos embora sem a pretensão de “anular” tais prejuízos como se de um “preço de dor” se tratasse.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO:
MC intentou a presente ação declarativa de condenação contra L, S.A.[1], alegando, em suma, que no dia 28 de outubro de 2013 foi internada no Hospital dos L, pertença da ré, a fim de ser submetida a uma intervenção cirúrgica programada.
Essa intervenção, uma histerectomia vaginal ovariectomia, bilateral, por laparoscopia diagnóstica, veio a ocorrer nesse mesmo dia, pelas 20.00 horas.
Contudo, essa intervenção tinha estado programada para o dia 21 do referido mês de Outubro, pelo Dr. AP, em 14 de Outubro, tendo sido solicitado o termo de responsabilidade à seguradora da autora, a AC, nos termos da Proposta de Cirurgia, assinada pelo referido médico, e do Agendamento pré-operatório.
A autora foi operada no dia 28 de Outubro de 2013, pelos médicos Dra. FN e Dr. AP.
No pós-operatório, na madrugada do dia 30 de Outubro, pelas 03h00, a autora começou a sofrer fortes dores abdominais, impossíveis de suportar, tendo solicitado o apoio da enfermeira de serviço, a qual lhe administrou o medicamento “Tramadol”, o que lhe provocou arritmia, insónia e letargia.
Aquele medicamento foi administrado à autora, quando do seu dossier clínico, em poder do hospital, constava que ela era alérgica ao mesmo.
Não havia qualquer médico de turno naquela noite, sendo que aquele medicamento constava entre os indicados pelo médico anestesista para ser ministrado aos doentes quando estes apresentassem dores durante a noite, sem qualquer critério ou análise da sua situação clínica.
No dia seguinte, 31 de Outubro, ao pequeno-almoço, foi servida à autora uma refeição da qual constava um puré de fruta servido numa taça em vidro, tapada com uma fina película de celofane.
A autora levou uma colher de puré à boca, engolindo o alimento.
Nessa ocasião sentiu um objecto estranho e áspero no interior da boca, que não conseguiu engolir e rapidamente tirou da boca.
Esse objeto consistia num pedaço de vidro com aproximadamente 3 cm.
Constatou, então, que a taça de vidro em que o puré era servido tinha a borda lascada, e que misturados com o puré, se encontravam fragmentos de vidro.
A médica FN, depois de procurar vestígios de sangue na boca da autora, e perante a afirmação desta que tinha engolido puré, decidiu submetê-la a uma endoscopia alta não tendo sido observados os protocolos necessários a este tipo de exame.
Em consequência do descrito, a autora sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial pelos quais pretende ser ressarcida.
Conclui assim a petição inicial:
«Nestes termos e nos demais de direito (...), deve a presente ação ser julgada procedente e provada, e em consequência:
a) Ser a ré condenada a pagar à autora a quantia de € 100.000,00  (...), como indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos;
b) Acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até ao efectivo e integral pagamento».
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A ação foi contestada pela sociedade L, S.A., que pugna pela improcedência da mesma, com a sua consequente absolvição do pedido.
Além disso, deduziu o incidente de intervenção principal provocada de F, S.A., alegando para o efeito que celebrou com esta seguradora um contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional, titulado pela apólice n.º 00/0000, através do qual transferiu para esta, até ao limite do capital seguro, a responsabilidade pelo pagamento de indemnizações que viessem a ser exigidas por danos resultantes da sua atividade.
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Na procedência desse incidente, a F, S.A., uma vez citada, veio apresentar contestação, alegando, em suma, que o sinistro a que se reportam os presentes autos não está garantido pela referida apólice, uma vez que não se trata de uma situação de responsabilidade civil extracontratual imputável ao hospital e, ainda, porque o mesmo não lhe foi participado até 24 meses a contar da data geradora do dano.
No mais, impugna a factualidade alegada pela autora, para concluir pugnando para que a ação seja, quanto a si, julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido.
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Na subsequente tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, consequentemente:
a) Condeno a Ré, L, S.A., a pagar à Autora, MC, a quantia de 1.000,00 (mil euros);
b) Absolvo a Ré "F, S.A." do pedido».
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A autora não se conformou com o assim decidido, pelo que interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações conclui assim:
1 - A Recorrente considera incorrectamente julgado o facto 7., da matéria de facto não provada,
Pois que,
2 – O documento de fls. 16 verso e ss, que constitui uma carta produzida, assinada e expedida à Recorrente, pelos serviços da Recorrida, contém prova bastante, suficiente e adequada para prova desse facto.
3 – Esse documento, junto com a petição inicial, tem a sua autoria reconhecida nos autos, quer porque não foi impugnado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 374.º, n.º 2, do Código Civil, quer porque foi mencionado pela Recorrida para fundamentar factos que alegou na contestação que apresentou;
Assim,
4 – Deveria a sentença recorrida ter considerado provado que: o Hospital L, em conjunto com a empresa prestadora de serviços de alimentação, I, S.A., a implementar medidas correctivas/preventivas, entre as quais a substituição das taças de vidro por taças de cerâmica com tampa em acrílico.
5 - Ao não dar como provada a mudança do procedimento hoteleiro admitido pela R. Hospital, em correspondência com o constante em documento produzido pela Recorrida, que não o pôs em causa, a sentença recorrida encontra-se em violação do disposto no art. 376.º do Código Civil, n.ºs 1 e 2, que estabelece que o documento particular cuja autoria seja reconhecida (…) faz prova plena quanto ás declarações atribuídas ao seu autor, e que os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Pelo que,
6 – Deve nesta parte ser revogada.
7 – A sentença recorrida omitiu pronunciar-se sobre o facto alegado no art. 35.º da petição inicial, o qual indica que por ter havido suspeita de que a Recorrente tivesse ingerido vidro “permaneceu mais um dia internada (…) para permitir um diagnóstico mais assertivo”.
8 – O apuramento deste facto é importante para a determinação do quantum indemnizatório, pois é suscetível de balizar o momento em que a Recorrida ainda considerava haver risco para a saúde da Recorrente por lhe ter criado uma situação de perigo, enquanto aos seus cuidados.
Então,
9 – A sua omissão torna a douta sentença recorrida nula, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d) e n.º 4, do Código de Processo Civil.
Finalmente,
10 – O quantum indemnizatório fixado ficou aquém do circunstancialismo apurado no julgamento e vertido na sentença, em dissonância com o disposto no art. 494.º, do Código Civil.
11 - O juízo de equidade formulado pela Mmª Juiz a quo está em contradição com as demais circunstâncias do facto danoso e suas consequências, conforme resulta da motivação da decisão.
Pelo que,
12 – Deverá a douta sentença ser revista sendo justo ser de atribuir-lhe compensação não inferior a 10.000,00€.
13 – O Tribunal a quo fez errada interpretação do disposto nos art.s 374.º, n.º 2, 376.º, n.º 1 e 2, do Código Civil, padece do vício a que alude o art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, e não respeita o disposto no art. 494.º, do Código Civil.
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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
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A juíza a quo pronunciou-se no sentido de a sentença recorrida não padecer da nulidade invocada pela recorrente.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do CPC) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º, do CPC).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do CPC) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
À luz destes considerandos, são as seguintes as questões a decidir neste recurso:
a) alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) nulidade da sentença recorrida;
c) montante indemnizatório a atribuir à apelante.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A autora foi intervencionada no Hospital L, pertencente e explorado pela ré, no dia 28.10.2013, por virtude de padecer de “displasia do colo uterino”/”CIN III multifocal do endocolo.
2. Tendo sido submetida a uma cirurgia descrita como Histerectomia total vaginal, Anexectomia bilateral assistida por Laparoscopia” pela equipa médica constituída pelo cirurgião, Dr. AP, pela primeira ajudante, Dra. FN, e pelo segundo ajudante, Dr. BR.
3. No dia 30 de Outubro, pelas 03h00, a autora sofreu de dores abdominais tendo-lhe sido ministrado o medicamento tramadol.
4. Após a prescrição e aplicação do medicamento “Microlax”, a autora sentiu alívio da dor.
5. No dia 31 de Outubro foi servida à autora uma refeição ao pequeno-almoço, onde constava um puré de fruta numa taça de vidro tapada com uma fina película de celofane.
6. Ao levar a colher à boca a autora apercebeu-se de um pedaço de vidro, tendo ficado aflita e ansiosa com a possibilidade de ter ingerido fragmentos do mesmo, pelo que chamou a enfermeira de imediato.
7. Na sequência dos factos referidos nos pontos 5. e 6., por decisão da Dra. FN, a autora foi submetida, pelas 13.00h do dia referido em 5., a uma endoscopia digestiva alta, sob anestesia geral, com vista a verificar se havia conteúdo no estômago que pudesse ser aspirado.
8. A endoscopia referida em 7., não foi precedida de jejum prévio de 6 horas antes do exame, com vista a viabilizar a detecção do eventual vidro digerido, não se tendo identificado qualquer corpo estranho ou lesão relacionada.
9. A ré, à data, contratara uma empresa em outsourcing para realizar e fornecer as refeições aos doentes do Hospital.
10. A autora teve alta no dia 1 de Novembro de 2013, algaliada.
11. No dia 27 de Novembro de 2013, após consulta pós-operatória, foi retirada à autora a algália.
12. A autora é acompanhada na U de Alvalade pela médica de família, Dra. IN.
13. A Autora transmitiu ao cirurgião principal, o Dr. AP, em consulta de 14.10.2013, que apenas teria alergia a Aspirina” e Nolotil”.
14. No dia da consulta de anestesia, a autora entregou ao Dr. CB, uma folha com o seguinte teor: “Faço alergia aos seguintes medicamentos (detectados até à presente data): Antiflamatórios; - Aspirina - Voltaren (comprimido, pomada e injectável) - Nolodil, Outros: - Triatec (ramipril).”
15. O Dr. CB escreveu no relatório da Consulta de Anestesia, a título de “Cuidados Anestésicos Pré-operatórios” o seguinte: "doente que me parece com algum grau de ansiedade e muito stress e, bem assim, que "tem anexa folha das alergias medicamentosas que me parece importante”.
16. A autora sofria, antes mesmo de ter sido internada para ser submetida à cirurgia referida em 2., de arritmias, insónias, problemas do foro intestinal e abdominal, sendo acompanhada pela área de especialidade de gastrenterologia, bem como de comportamento psiquiátrico depressivo.
17. Em correspondência trocada entre a ré e o mandatário da autora, datada de 14/03/2014, referindo-se ao episódio da taça de vidro, a ré declarou que “(...) caso se venha a demonstrar clinicamente que, decorrente da situação em apreço, tenha existido um qualquer dano diretamente causado pelo incidente, assumirá as suas responsabilidades. (...) a sociedade L, S.A. permanece disponível para contribuir com o pagamento de um seguro de saúde à Sra. MC, pelo prazo de 3 anos".
18. A Ré celebrou com a F, S.A., um contrato designado por contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional, com o número da Apólice 00/0000, por efeito do qual se previu que a segunda seria responsável, até aos limites do capital seguro, pela indemnização por danos que viesse a ser exigida à primeira, e que resultassem, nomeadamente, de actos de negligência médica praticados no exercício da sua actividade profissional.
19. Nos termos do contrato referido em 18. (art. 5.º das Condições Particulares - cláusula temporal) fica garantido "o ressarcimento dos danos resultantes dos actos ou omissões ocorridos durante o período da sua vigência, desde que os mesmos se manifestem e sejam participados à SEGURADORA até 24 meses após a 1a data geradora do dano, sem prejuízo da data termo ou de resolução do contrato."
20. A Interveniente apenas teve conhecimento dos factos acima referidos com a citação para o presente processo a 16/03/2017.
A sentença recorrida considerou não provada a seguinte factualidade:
1. A toma do medicamento referido em 3. da Matéria de Facto Provada provocou-lhe um estado de arritmia, insónia e letargia.
2. O medicamento referido em 3. da Matéria de Facto Provada foi administrado à autora em contradição com a informação constante no Dossier Clínico referida em 14. da Matéria de Facto Provada.
3. Não havia nenhum médico de turno de noite, tendo o medicamento referido em 3. sido administrado à autora sem qualquer critério nem análise clínica da sua situação.
4. Na sequência dos factos referidos em 6. e 7. da Matéria de Facto, a autora tenha entrado em pânico.
5. O pedaço de vidro referido no ponto 6. da Matéria de Facto Provada tinha três centímetros e o puré de fruta servido à autora continha vidro moído, faltando à taça alguns estilhaços de vidro.
6. A autora sofre, ainda hoje, de dores no baixo-ventre, devido aos gases que ficaram da laparoscopia e dos pontos não absorvidos, quebras de tensão que provocam dor crónica com sensação de desmaio e taquicardia.
7. Após os factos referidos nos pontos 5. e 6. da Matéria de Facto Provada, a ré alterou todo o procedimento hoteleiro, deixando de servir refeições em loiça de vidro e passando a utilizar utensílios inquebráveis.
8. A autora tem sido assistida no HSM devido a dor abdominal crónica e problemas sintomáticos na bexiga, necessitando de consultas e exames periódicos, para despiste de outra sintomatologia, como tumores malignos.
9. Todo o gás injectado aquando da operação no Hospital dos L, ainda se mantinha no organismo da autora um mês depois da operação, tendo de ser medicamentada para expulsar esse gás, causador de dores intensas e da infecção urinária permanente de que a Autora sofre.
10. A autora sofre de pesadelos constantes, com os mesmos sintomas de quando lhe foi administrado o medicamento "Tramadol, com insónias e taquicardias.
11. A autora sente pedaços de vidro dentro da boca e tornou-se paranoica com a forma como lhe são servidas as refeições.
12. A autora, antes de dar entrada no Hospital dos L, era uma pessoa alegre, extrovertida, óptima colega, com uma boa carteira de clientes na sua profissão de agente de viagens.
13. A. autora vive angustiada, em constante sofrimento, incapaz de uma vida social activa, sem alegria de viver, com ideias suicidas, inquieta com o seu futuro, quer de vida quer profissional, sem rendimentos a não ser do seu trabalho.
14. A autora sente que lhe roubaram a sua vida, vive na tortura constante de até quando irá o seu corpo aguentar, da forma como foi tratada pelos serviços da Ré e de esta nunca ter assumido as suas responsabilidades.
15. A autora apresentou queixa-crime contra a ré, tendo o processo corrido no DIAP de Lisboa, com o n.º ___/__.0TDLSB,tendo as acusações de crimes de ofensa à integridade física e de violação das artis legis, bem como de contra a genuinidade, qualidade é composição dos géneros alimentícios, foram arquivadas.
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Por tal se afigurar relevante para a decisão da causa, nos termos do art. 662.º, n.º 1, do C.P.C., à matéria de facto provada adita-se o seguinte facto:
21. A autora nasceu no dia 13 de maio de 1959.
Motivação:
Trata-se de um facto introduzido pela autora nos autos por via da junção, com a petição inicial, dos documentos hospitalares, produzidos pelo Hospital dos L, constantes de fls. 11, 12 vº, e que não foram objeto de impugnação por parte da ré.
É certo que o nascimento de alguém, como facto sujeito a registo, carece, em regra, de prova documental, mediante a junção da respetiva certidão de nascimento, emitida pela competente Conservatória do Registo Civil.
Sendo certo que tal documento não se mostra junto aos autos, sempre estaria nos poderes deste tribunal, ordenar a sua junção ou requisitá-lo diretamente, nos termos do art. 662.º, n.º 1, al. c), do C.P.C.
No entanto, em situações como a presente, não é necessária a junção de tal documento para demonstração da data de nascimento da autora.
A demonstração documental de factos sujeitos a registo, máxime ao registo civil, deve ocorrer em ações de estado, o que não é, manifestamente, o caso da presente ação, cujo objeto é apenas e só patrimonial.
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3.2 – Do mérito do recurso:
3.2.1 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Considera a apelante que o documento de fls. 16 impunha que a juíza a quo tivesse julgado provado o enunciado descrito em 7 dos factos não provados.
Esse enunciado tem o seguinte teor: «Após os factos referidos nos pontos 5. e 6. da Matéria de Facto Provada, a ré alterou todo o procedimento hoteleiro, deixando de servir refeições em loiça de vidro e passando a utilizar utensílios inquebráveis».
Trata-se de um enunciado que não assume qualquer relevo para a decisão da causa.
Tal como sobre as partes recai o dever de alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas (arts. 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c), do C.P.C.), a enunciação linear, lógica e cronológica dos factos, tanto dos provados, como dos não provados, dentro dos limites dos temas da prova anteriormente enunciados, deve ater-se igualmente aos factos essenciais alegados no processo por cada uma das partes, de modo a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito; ou seja, a enunciação factológica efetuada pelo juiz na sentença deve abarcar necessariamente uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa), linear, lógica e cronológica, sobre factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou fundar as exceções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com a fattispecie da norma jurídica aplicável, se revelem necessários para a procedência da ação ou da exceção.
Além de que, sendo necessária, deve ainda fazer-se a enunciação dos factos concretizadores, também eles essenciais, da factualidade que se apresente difusa, sendo importante referir que a enunciação dos factos complementares e/ou concretizadores, repete-se, também eles essenciais, deve fazer-se desde que se apresentem como imprescindíveis para a procedência da ação ou da defesa, à luz dos diversos segmentos normativos relevantes para a decisão do caso concreto[2].
O direito à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não subsiste a se, antes assumindo um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito.
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processuais, o tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação forem insuscetíveis de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, não assumirem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente[3].
Dito de outra forma: o princípio da limitação dos atos, consagrado no art. 130º do CPC, deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir[4].
É o que sucede, no caso concreto, pois o enunciado de facto ora em apreço, reitera-se, nenhum relevo assume para a decisão da causa, tendo em conta até, e desde logo, o teor dos enunciados descritos nos pontos de facto 5. e 6..
Termos em que não será objeto de apreciação a impugnação da matéria de facto.
3.2.2 – Da nulidade da sentença recorrida:
Considera a apelante que a sentença é nula nos termos do art. 615.º, n.ºs 1, al. d) e 4, do C.P.C., pois «omitiu pronunciar-se sobre o facto alegado no art. 35.º da petição inicial, o qual indica que por ter havido suspeita de que a Recorrente tivesse ingerido vidro “permaneceu mais um dia internada (…) para permitir um diagnóstico mais assertivo».
O apuramento deste facto é importante para a determinação do quantum indemnizatório, pois é suscetível de balizar o momento em que a Recorrida ainda considerava haver risco para a saúde da Recorrente por lhe ter criado uma situação de perigo, enquanto aos seus cuidados».
Dispõe o art. 608.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC, que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras», estatuindo, por sua vez, o art. 615.º, n.º 1.º, al. d), 1.ª parte, do mesmo código, que «é nula a sentença quando (…) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)».
A sentença comporta sempre um limite mínimo segundo o qual ao juiz compete resolver todas as questões submetidas pelas partes à sua apreciação, com exceção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, entendendo-se por «questão» o efeito pretendido pelo autor (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir), bem como as exceções, sejam dilatórias ou perentórias, e suas razões, invocadas pelas partes ou de que o juiz deva conhecer oficiosamente[5].
Ora, a omissão de pronúncia (vício a que alude o art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte) pressupõe o silenciar absoluto de qualquer questão de cognição obrigatória, nos termos do art. 608.º, n.º 2, 1.ª parte; ou seja, tal nulidade ocorre quando o juiz pura e simplesmente deixa de se pronunciar sobre determinada questão que devesse apreciar, sendo certo que questão a resolver para os efeitos dos mencionados normativos legais é coisa diferente de «questão jurídica» - determinação de qual a norma aplicável e sua correta interpretação – que, como fundamento ou argumento de direito possa (ou deva mesmo) ser analisada no âmbito da apreciação da questão a resolver.
Assim pois, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que constituem, de forma direta e imediata, dados integradores dos elementos constitutivos ou impeditivos, modificativos ou extintivos dos direitos cuja tutela é procurada pelas partes em juízo, na lógica e na perspetiva dos pedidos, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os argumentos, opiniões ou razões jurídicas.
À luz destes considerandos, é evidente que a sentença recorrida não padece da nulidade que lhe é assacada pela apelante.
Improcede, assim, a arguição de nulidade da sentença recorrida.
3.2.3 – Do enquadramento jurídico:
Está em causa apenas a fixação do quantum indemnizatório a pagar pela apelada L, S.A., à apelante, a título de danos de natureza não patrimonial, posto que a apelada não discute sequer a existência de tais danos.
Na petição inicial afirma-se que «é impossível quantificar os prejuízos e despesas suportados pela Autor, devido ao seu internamento no Hospital dos L, quer com despesas médicas, medicamentos e todo o tipo de gastos provocados pelo seu estado de saúde, físico e psicológico (...).
E quanto aos danos não patrimoniais, os factos de que a autora foi vítima, no Hospital pertencente à ré, destruíram toda a sua vida, vivendo esta num sofrimento permanente, quer físico quer psicológico.
Pelo que a Autora tem todo o direito de exigir uma indemnização à Ré, no valor de € 100.000,00 (...) pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, que o comportamento doloso dos serviços da ré lhe provocou».
Concluiu, como se viu, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 100.000,00, não autonomizando, no entanto, o montante indemnizatório pelo qual considera dever ser ressarcida a título de danos não patrimoniais.
A sentença recorrida fixou tal montante em € 1.000,00, com a seguinte argumentação: «Caso a Ré tivesse cumprido o dever de cuidado a que estava adstrita, seguramente que teria evitado que a Autora ao levar a colher à boca se tivesse apercebido do pedaço de vidro e ficasse aflita e ansiosa com a possibilidade de ter ingerido fragmentos do mesmo (ponto 6. da Matéria de Facto Provada).
Mais, o cumprido do dever de cuidado a que a Ré estava adstrita teria evitado que a Autora tivesse de ter sido submetida a uma endoscopia digestiva alta, sob anestesia geral, com vista a verificar se havia conteúdo no estômago que pudesse ser aspirado (ponto 7. da Matéria de Facto Provada).
Considerando que a Autora se encontrava no pós-operatório de uma histerectomia total vaginal, anexectomia bilateral assistida por laparoscopia e, consequentemente, fragilizada, entendo que o estado de ansiedade e aflição a que foi sujeita em virtude da possibilidade de ter ingerido vidro, bem como, pelo facto de se ter de submeter a um exame endoscópico, o qual acarreta necessariamente risco, deverá ser ressarcível.
Verificados os pressupostos da responsabilidade civil por omissão, não logrou a Ré demonstrar a presença e atenção continuadas que o conceito de vigilância pressupõe, de modo a afirmar-se que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua, nos termos previstos no art. 493.º, n.º 1., do CC.
Assim sendo, incumbe, agora, apurar o quantum indemnizatório.
No que respeita aos danos não patrimoniais, dispõe o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil que na fixação da indemnização deve atender-se aqueles que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo que, por força do n.º 3 do mesmo preceito legal, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º”.
(...)
Para o efeito, há que atender à situação de fragilidade em que a autora se encontrava quando se verificou o incidente em apreço, bem como, as consequências do mesmo, designadamente, a perturbação psicológica que tal provocou à Autora e, concomitantemente, ao facto da Ré ter respondido imediatamente com o procedimento médico adequado a evitar quaisquer consequências físicas da possível ingestão de um corpo estranho lacerante.
Acresce que após o conhecimento do resultado negativo do exame endoscópico, não se vislumbra qualquer razão para as preocupações demonstradas pela Autora em sede da petição inicial.
Efectivamente, estamos perante a verificação de um dano não patrimonial contido num curto espaço temporal, com suficiente importância indemnizatória, mas sem qualquer evidência física - art. 496.º do CC.
Assim, consideramos que uma indemnização que se cifre em mil euros cobre a aflição e a preocupação da Autora advenientes do episódio da taça de vidro sofrido aquando do seu internamento no Hospital dos L».
Não podemos concordar com tal decisão, tendo em conta a exiguidade do montante indemnizatório atribuído.
Dispõe o art. 496º, nº 1, do C.C., que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».
Segundo Menezes Cordeiro[6], quando estejam em causa valores morais – portanto, atinentes à pessoa, à família, à dignidade, à saúde e ao bom nome – a responsabilidade civil deve assumir uma postura mais avançada, retribuindo o mal e prevenindo ofensas. Há, por isso, que facilitar a imputação aquiliana, no tocante a danos morais, quer aligeirando – quanto a correcta interpretação da lei o permita – os seus pressupostos, quer reforçando as indemnizações.
A terminologia utilizada no art. 496º, nº 1, «danos não patrimoniais», não se mostra indiferente a esse possível alargamento da intensidade da protecção dos danos não patrimoniais.
Este preceito erigiu a gravidade do dano como única condição de ressarcibilidade.
A gravidade do dano não patrimonial mede-se, conforme é hoje unanimemente entendido, por um padrão objetivo, embora tendo em conta as circunstâncias de cada caso concreto, afastando-se fatores suscetíveis de sensibilidade exacerbada ou requintada e aprecia-se em função da tutela do direito[7].
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, «a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)»[8].
Antunes Varela afirma ainda que a gravidade do dano «apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado»[9].
Assim, não relevam para efeitos de indemnização por danos de natureza não patrimonial os simples incómodos ou contrariedades[10].
Segundo Maria Manuel Veloso, «o recurso à gravidade do dano como critério delimitador franqueia a porta a uma ponderação baseada na dignidade, no valor intrínseco, do bem ou interesse jurídicos.
Danos consequentes a lesões de bens da personalidade podem ser rotulados, em regra, como graves, mas já não meros atentados à propriedade. Não existe, no entanto, um absoluto paralelismo entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico, porquanto outros factores podem conferir esse carácter ao dano (ainda que o interesse a proteger não figure como um interesse supremo). Assim ocorre, de facto, com a intensidade da lesão (quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa); lesões mais intensas provocam danos (mais) graves. Também não é despicienda a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos outros critérios (dignidade e intensidade) poderia quedar sem protecção.
Cabe também indagar se existe uma componente subjectiva no apu­ramento da gravidade dos danos. A jurisprudência cita amiúde, como se de um refrão se tratasse, as seguintes palavras de Antunes Varela: "a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embo­tada ou especialmente requintada)". O critério é (e, na nossa opinião, não pode deixar de ser), no entanto, alvo de certa contemporização. A casuís­tica relativa a danos causados por lesão dos direitos de personalidade e no âmbito das relações de vizinhança revela, pelo menos aqui, uma forte tendência para valorar o dano não patrimonial à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado. A doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais são tidas em conta, sem que paralelamente se forneça qualquer explicação para um tratamento de favor destes lesados. Poder-se-ia ser tentado a pensar que tal tratamento decor­reria da "centralidade" do dano decorrente de lesões corporais e de lesões de direitos da personalidade. A prioridade concedida aos direitos de personalidade parece, no entanto deixar à margem, alguns desses direitos, precisamente o direito à integridade física. Ainda que, a título exemplifi­cativo, exista um quadro subjectivo de dor mais intensa do que se pode­ria esperar face às lesões verificados, factor que é geralmente sublinhado na elaboração de um relatório pericial, onde é indicado qual o grau de dor a que corresponderiam grosso modo essas lesões, não é descabido pensar que o julgador se aterá a este último, preterindo o estado subjectivo relatado.
Inclinamo-nos a pensar que a mencionada diferença reflecte apenas o facto de ao existir uma maior margem de apreciação, por impossibili­dade de recurso a factores objectivos (por exemplo, critérios médico-legais), o julgador sentir de uma forma mais premente a necessidade de chamar à colação todos os factores que compõem a imagem da lesão. Ora, nestes casos, não choca atender a especiais características do lesado. Parece-nos, aliás, que elas devem ser tidas em consideração, como regra geral. O que se pretende é afastar pretensões que converteriam meros incómodos, pequenas contrariedades, em danos juridicamente relevan­tes. Não pode a mera perspectiva do lesado, que compreensivelmente em muitos casos sobrevalorizará a sua lesão, prevalecer face a uma dose de objectividade (quiçá, mero bom senso), ainda que ao julgador se exija uma análise sobre as razões que podem ter levado o lesado a afastar-se do “atte­giamento” tido como o sócio-culturalmente aceitável, em dado circuns­tancialismo sócio-temporal.
O dano não patrimonial grave “et pour cause” ressarcível mostra, cote­jando com a outra categoria de dano, uma maior permeabilidade a facto­res subjectivos (perspectiva do lesado). Permeabilidade também, e mais visível, aos factores tempo e espaço, que interferem na definição da gravidade do dano.
É incontestável que o elemento tradicional do dano é um elemento em transformação podendo dar origem a um direito da responsabilidade muito diferente do direito com a configuração tradicional. Em Portugal, três factores relacionados com os danos não patrimoniais contribuí­ram para uma das vertentes dessa transformação que se traduziu na exten­são progressiva da responsabilidade civil. Menezes Cordeiro refere a este propósito expressamente o afastamento da reparação simbólica e o aumento progressivo dos montantes de indemnização. (…).
O fenómeno da extensão não pode ser evocado para justificar o reconhecimento de qualquer dano, nem para manter, “ad perpetuam”, a ressarcibilidade de danos não patrimoniais que de acordo com a evolução sócio-cultural se apresentam desajustados. (…).
(…) não pode o reconhecimento da gravidade de um dano escudar-se na ideia de que a expansão da área dos danos não patrimoniais determina um aligeiramento dos critérios e, por conseguinte, um quase imediato reconhecimento. A tentação da ligeireza na apreciação desses pressupostos deve, outrossim, ser contrariada. Esta tarefa encontra-se, de todo o modo, hoje amplamente facilitada. O julgador, atendendo ao caso concreto, não deixará de recorrer a tipologias (mais ou menos consolida­das em termos doutrinais e jurisprudenciais) de danos não patrimoniais.
(…).
De entre os tipos mais salientes, destaque-se o dano moral em sen­tido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha, a ansiedade. Nele se inclui a própria dor, dor essa que no direito português abrange as duas componentes insertas no termo anglo-saxónico “pain anrl sufféring”. A dor física e o sofrimento moral são meras componentes do dano da dor e apesar de não existir regime diferente correspondente a essas duas componentes, propendemos para considerar que deve o julgador descrever a causa (dor, mera ansiedade, etc.) ou as formas de manifestação do dano moral.
(…).
Diferente do dano moral em sentido estrito se apresenta o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, ainda que possa perfeitamente verificar-se aquele numa situação que atinja o bem em causa. Qual o sentido da autonomização? Poder-se-ia dizer-se que actos atentatórias da dignidade humana “tout court” provocam angústia, amargura, desespero. Advogam os defensores desta autonomização, baseada na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que tem vindo a considerar que a violação de um dos direitos protegidos deve, como mínimo, ser protegida com a imposição de danos não patrimoniais pela violação em si»[11].
Derivando o ressarcimento dos danos não patrimoniais da violação de direitos fundamentais, deve, em definitivo, numa visão moderna e atualista, abandonar-se um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes.
Face a tais considerandos, sem olvidar que a atuação da ré é meramente culposa:
a) tendo a autora, uma mulher então com 54 anos de idade, sido submetida, no dia 28 de outubro de 2018, no Hospital L, pertencente à ré, e por ela explorado, a uma cirurgia descrita como “Histerectomia total vaginal, Anexectomia bilateral assistida por Laparoscopia”, por padecer de “displasia do colo uterino”/”CIN III multifocal do endocolo”;
b) tendo-lhe sido servida, naquele Hospital, no dia 31 de Outubro de 2013, uma refeição ao pequeno-almoço, da qual constava um puré de fruta, servido numa taça de vidro tapada com uma fina película de celofane;
c) apercebendo-se a autora, nessa altura, ao levar a colher à boca, de um pedaço de vidro;
d) tendo a autora, por via disso, ficado aflita e ansiosa com a possibilidade de ter ingerido fragmentos do vidro, pelo que de imediato chamou uma enfermeira;
e) tendo a autora, na sequência do descrito em c) e d) supra, por decisão da Dra. FN, sido submetida, pelas 13.00h do dia referido em b) supra, ou seja, três dias depois da intervenção cirúrgica referida em a), a uma endoscopia digestiva alta, sob anestesia geral, com vista a verificar se havia conteúdo no estômago que pudesse ser aspirado;
f) não tendo a endoscopia referida em e) supra, sido precedida de jejum prévio de 6 horas antes do exame, com vista a viabilizar a detecção do eventual vidro digerido,
apesar de não ter sido identificado qualquer corpo estranho ou lesão relacionada com o descrito em b) a d), não podemos deixar de concluir que o montante de € 1.000,00, para a ressarcir pelos danos não patrimoniais sofridos é manifestamente insuficiente, à luz dos padrões acima assinalados.
Como sustenta Vaz Serra, «a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado um satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação»[12].
Justamente por imperativo da dimensão conceitual da equidade, a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais não encontra a sua finalidade específica senão através da razoabilidade, isto é, dentro daqueles comandos ditados pelo bom senso como expressão natural da razão.
Na tradução quantitativa dos danos de natureza não patrimonial há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos embora sem a pretensão de «anular» tais prejuízos como se de um «preço de dor» se tratasse.
A dificuldade de «quantificar» os danos não patrimoniais não pode servir de entrave à fixação de uma indemnização que procurará ser justa, correndo o risco, embora, de ser aleatória, tanto mais que, neste campo, repete-se, assume particular relevância a vertente da equidade.
No caso concreto, face a tudo quanto antecede, à luz dos parâmetros traçados, nomeadamente quanto à sua inspiração no ditame da equidade, entende-se que a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a pagar pela apelada à apelante, pelos danos não patrimoniais por esta sofridos é justa, adequada e proporcional, a que acrescem juros de mora civis, vencidos desde a data da citação da apelada até ao presente momento, à taxa de 4% ao ano, e vincendos, a esta mesma taxa ou à que entretanto vier a vigorar, até efetivo e integral pagamento.
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em alterar a sentença recorrida, em consequência do condenam a ré/apelada a pagar à autora/apelante a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora civis, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Custas pela apelante e pela apelada, na proporção de 90% a cargo daquela, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga), e de 10% a cargo desta.

Lisboa, 4 de junho de 2019
(Acórdão assinado digitalmente)
Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Diogo Ravara

[1] Erradamente, salvo o devido respeito, na petição inicial a autora identifica a ré como “Administração do Hospital L, S.A.”. A “Administração do Hospital L, S.A.”, enquanto parte numa ação, nada é! Não obstante ter sido citada a “Administração do Hospital L, S.A.”, a contestação foi apresentada pela pessoa coletiva sociedade anónima L, S.A., ela sim, detentora de personalidade jurídica e, consequentemente, judiciária. Considera-se, pois, a ação intentada contra a sociedade L, S.A., tanto mais que o tribunal a quo nada disse sobre a questão.
[2] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 717-719.
[3] Cf. Ac. da R.C. de 27.05.2014, Proc. nº. 104/12.0T2AVR.C1 (Moreira do Carmo), in www.dgsi.pt.
No Acórdão da mesma Relação de 24.04.2012, Proc. nº. 219/10.6T2VGS.C1 (Beça Pereira), in www.dgsi.pt, escreveu-se a este propósito:
«A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º».
No acórdão da mesma Relação de 14.01.2014, Proc. nº 6628/10.3TBLRA.C1 (Henrique Antunes) in www.dgsi.pt, a mesma ideia é assim expressa:
«De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a ação, ou pelo réu, com a contestação.
Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objeto da ação.».
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 17.05.2017, Proc. nº 4111/13.4TBBRG (Cons. Isabel Pereira), in www.dgsi.pt.
[5] Sobre a noção de «questões», nomeadamente para os efeitos dos arts. 608.º e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC/2013, vide Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, 1981, pp. 51-58.
[6] Da Responsabilidade dos Administradores das Sociedades Comerciais, Lex, Lisboa, 1997, pp. 482, ss.
[7] Cfr. Manuel Pereira Augusto de Matos, Dano patrimonial e não patrimonial. Avaliação dos danos no tribunal em grandes traumatizados, crianças e idosos, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Edição APADAC – Associação Portuguesa de Avaliação do Dano Corporal, Instituto de Medicina Legal de Coimbra, Novembro 2000 – Ano IX – N.º 10, pág. 32); no mesmo sentido, Ac. do S.T.J. de 26.06.1991, B.M.J. 408º, 538.
[8] Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª Ed., Coimbra Editora, 1987, p. 499, nota 1.
[9] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, pág. 606
[10] Cfr. Acs. do S.T.J., de 12.10. 1973 e de 18.11.1975, B.M.J. 230, 107 e 251º, 148.
[11] Danos Não Patrimoniais, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512,
[12] B.M.J., 83º, 85.