Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11755/19.9T8LSB.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APREENSÃO DE VEÍCULO
CONTRATO DE FINANCIAMENTO
RESERVA DE PROPRIEDADE
SUB-ROGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/09/2020
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Em princípio, a cláusula de reserva de propriedade inscrita no artº. 409º, do Cód. Civil, apenas pode ser estipulada ou constituída por aquele que é proprietário, isto é, por aquele que aliena a coisa ;
- pelo que, nos casos em que aquela cláusula é estipulada, ab initio, no próprio contrato de compra e venda, a favor da entidade mutuante (terceira), a mesma é inválida, por impossibilidade de objecto – cf., o nº. 1, do artº. 280º, do Cód. Civil ;
- Todavia, devendo ser sempre constituída a favor do proprietário/alienante, é válida a sua posterior transmissão a favor do terceiro financiador, ou seja, a cláusula é sempre constituída a favor do proprietário/alienante, ocorrendo posteriormente transmissão desta a favor do financiador mutuante, com a consequente sub-rogação deste nos direitos do vendedor/alienante ;
- para que se possa admitir tal transmissão e sub-rogação, é mister que a reserva de propriedade não fique condicionada ao pagamento do preço ao vendedor – cumprimento, total ou parcial, das obrigações da outra parte – antes se admitindo que nos contratos de alienação se reserve a propriedade à verificação de qualquer outro evento (que, in casu, era o da liquidação de todas as prestações acordadas no âmbito do contrato de financiamento, isto é, no mútuo outorgado), sendo que este não tem que necessariamente reportar-se ao âmbito ou efeitos do contrato de alienação em causa ;
- na actualidade, o contrato de alienação tradicional deu lugar a um denominado negócio com sinalagma trilateral, em que associado àquele surge um contrato de financiamento/mútuo, existindo assim clara necessidade de reportar o artº. 18º, nº. 1, do DL nº. 54/75, de 12/02, ao “negócio trilateral de alienação financiada”, deste decorrendo obrigações do contrato de mútuo, que determinaram a reserva estipulada ;
- efectivamente, reconhecendo-se a validade do aduzido negócio trilateral de alienação financiada, deve concluir-se pela inexistência de qualquer óbice a que o incumprimento definitivo do contrato de mútuo, que ocorreu in casu, possa servir de base á presente providência cautelar, bem como de causa de resolução daquele negócio triangular de compra e venda dependente do mútuo que originou a reserva, a fundar a posterior acção principal de resolução inscrita na parte final do nº. 1, do mesmo artº. 18º.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
               
I – RELATÓRIO
1 FCE BANK PLC, com sede na Avenida dos Defensores de Chaves, nº. 45, 4º, em Lisboa, intentou a presente providência cautelar de apreensão judicial de veículo automóvel e respectivos documentos, contra GF…, residente na Rua …, …, Carrascal, Sintra,
deduzindo o seguinte petitório:
- que, sem prévia audição do Requerido, seja decretada a presente providência cautelar e, consequentemente, ordenada a imediata apreensão do veículo de marca Ford, modelo TRVAN350L4TRE, com a matrícula …-SZ-… e respectivos documentos, através das autoridades policiais competentes, e entrega dos mesmos à Requerente.
Alegou, em suma, o seguinte:
· No exercício da sua actividade de financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis, financiou o Requerido na aquisição do veículo automóvel de marca Ford, modelo TRVAN350L4TRE, com a matrícula …-SZ-…, vendido pela FORD LUSITANA, S.A., nos termos do Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito n.º … ;
· Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída uma reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo, FORD LUSITANA, S.A., até que se mostrasse liquidado, na íntegra, o contrato de financiamento celebrado ;
· A FORD LUSITANA, S.A. cedeu à Requerente, com o consentimento do Requerido, a titularidade da referida reserva de propriedade, nos termos da cláusula 12. das Condições Particulares e da cláusula B. das Condições Gerais do Contrato supra mencionado ;
· O preço total da viatura foi de € 27.540,52, tendo o Requerido efectuado um desembolso inicial de € 1.000,00 ;
· não podendo ou não querendo desembolsar a totalidade do valor da aquisição, o Requerido recorreu ao financiamento para aquisição a crédito, o que a Requerente se dispôs a conceder-lhe, tendo-lhe financiado a quantia de € 26.540,00 ;
· Na cláusula 9 das Condições Particulares e no Plano de Amortizações do mencionado contrato, o prazo do reembolso foi fixado pelas partes em 60 meses, mediante 60 prestações mensais iguais e sucessivas no valor de € 503,30 cada uma ;
· o Requerido deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas no âmbito do contrato junto sob Doc.1 em 21/11/2018, correspondente à 17.ª prestação ;
· pelo que a Requerente procedeu à resolução do Contrato de Financiamento ;
· todavia, além de não ter regularizado os valores em dívida, até à presente data, o Requerido também não entregou à Requerente o mencionado veículo automóvel ;
· Nos termos contratuais, a Requerente tem direito a receber todas as prestações vencidas e não pagas, ou seja, todo o montante financiado que não tinha ainda sido reembolsado pelo Requerido, na data da resolução do mencionado contrato;
· Por outro lado, é admissível o acordo de reserva de propriedade entre o vendedor e o adquirente dos bens, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 409.º do Código Civil, que permite “ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento” ;
· De acordo com o prescrito nos artigos 588.º e 591.º do Código Civil, com conhecimento e consentimento do Requerido, a FORD LUSITANA, S.A. cedeu à Requerente a reserva de propriedade constituída com vista ao cumprimento integral do contrato de financiamento, ao abrigo do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 409.º do Código Civil.
O Requerente juntou documentos, tendo o procedimento cautelar sido instaurado em 04/06/2019.
2 – Conforme despacho de fls. 21 e 22, datado de 14/06/2019, foi suscitada a incompetência territorial do Tribunal, determinando-se a competência dos Juízos Locais Cíveis de Sintra, do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, para o conhecimento do objecto dos presentes autos.
3 – Em 12/07/2019, foi proferida decisão, em cujo DISPOSITIVO consta o seguinte:
Em face de tudo o exposto, por o pedido ser manifestamente improcedente, decide-se indeferir liminarmente a petição inicial.
Custas pela requerente.
Valor: €27 540,52.
Registe e notifique-se”.
4 – Inconformado com o decidido, o Requerente interpôs recurso de apelação, em 02/08/2019, por referência à decisão prolatada.
Apresentou, em conformidade, o Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
A. Apesar de a doutrina e jurisprudência admitirem e defenderem a possibilidade de entidade que financiou a aquisição de um veículo, constituir, no âmbito do contrato de financiamento, uma cláusula de reserva de propriedade a seu favor – com fundamento na existência de coligação de contratos e numa necessária e imprescindível interpretação atualista das normas constantes no artigo 409.º do Código Civil – o certo é que no caso em apreço, a reserva de propriedade foi inicialmente constituída pelo entidade alienante do veículo, a saber, a FORD LUSITANA, S.A., e no âmbito do contrato de alienação que constituiu a compra e venda do veículo.
B. Como se pode observar no Doc.2 junto com a Petição Inicial, o contrato de compra e venda foi celebrado com reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo, para garantia do montante de EUR 32.191,40, exatamente o montante acordado pagar pelo Apelado à Apelante, por conta do financiamento concedido.
C. No âmbito do referido contrato, o efeito jurídico da transferência da propriedade ficou efetivamente condicionado à ocorrência de um evento determinado, neste caso o pagamento integral pelo Apelado à Apelante de todas as prestações acordadas no contrato de financiamento que possibilitaria a aquisição por aquele do referido veículo automóvel.
D. Conforme alegado na Petição Inicial, para garantia do valor financiado foi constituída uma reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo – cfr. cláusula 12 das condições particulares e B das condições gerais do contrato de financiamento.
E. A supra referida cláusula B das condições gerais esclarece que “Nos termos do disposto no artigo 409.º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas pelo COMPRADOR à FCE BANK, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá à FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade.”.
F. Prevê o artigo 409.º, n.º 1 do C.C., “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento”.
G. A situação descrita enquadra-se sem qualquer dúvida no conceito de “qualquer outro evento” previsto na parte final do n.º 1 do referido artigo 409.º do C.C, que permite que no mesmo sejam abrangidas realidades como, por exemplo, a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário.
H. Veja-se a este respeito o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12.08.2013, e em que é Relator o Exmo. Desembargador Pedro Martins, consultável em www.dgsi.pt: “A reserva da propriedade (art. 409 do CC) só pode ser estipulada a favor do alienante, mas isso não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante (isto ao abrigo da parte da previsão ou até verificação de qualquer outro evento que consta do n.º 1 do art. 409 do CC) e que depois seja transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do devedor” (sublinhado nosso).
I. Veja-se ainda o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 15.07.2008, e em que é Relator o Exmo. Desembargador Hélder Roque, consultável em www.dgsi.pt: “É que a reserva de propriedade pode ser constituída legalmente, para garantir um crédito de terceiro, em especial, quando este tenha a sua fonte num contrato relacionado com a compra e venda de veículo, como acontece com o contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o primeiro contrato, ou seja, o contrato de compra e venda.”
J. Ora, verificado que se encontra o facto de a reserva de propriedade ter nascido no âmbito de um contrato de alienação (nomeadamente no contrato de compra e venda celebrado entre o Apelado e a vendedora FORD LUSITANA, S.A.), e o facto de o evento do qual depende a transferência de propriedade se encontrar de forma clara e inequívoca dentro do legalmente estipulado,
K. Urge concluir que nada impede a constituição da reserva de propriedade nos termos em que a mesma foi efetuada.
L. Este mesmo é de resto o entendimento defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2014, em que é relatora a Exma. Conselheira Maria Clara Sottomayor, consultável em www.dgsi.pt, que de seguida se reproduz, por total adesão ao mesmo: “Segundo Isabel Menéres Campos, «(…) a afirmação de que a reserva de propriedade a favor do financiador é nula por corresponder a um negócio contrário à lei não colhe, por não conseguirmos descortinar qual a norma jurídica imperativa violada. Como tivemos oportunidade de rever ao longo deste trabalho, a regra da consensualidade, constante do artigo 408.º do Código Civil, não corresponde a nenhum princípio de natureza imperativa e inderrogável. As partes podem convencionar o afastamento dessa regra, colocando, convencionalmente, o momento da transferência do contrato. A letra da lei, ao admitir a possibilidade de as partes nos contratos de alienação subordinarem a transferência do direito real ao pagamento do preço ou à verificação de um qualquer outro evento comporta, a nosso ver, a possibilidade de a posição do vendedor resultante da cláusula de reserva de propriedade se transmitir ao financiador que, no âmbito de um contrato de compra e venda financiada por terceiro, empresta os fundos necessários ao pagamento do preço dessa aquisição”.
M. Face ao exposto, não se alcança o entendimento plasmado na Sentença recorrida, de que a constituição da reserva apenas poderá servir para garantir o pagamento do preço ao vendedor do veículo, uma vez que tal entendimento, além de não resultar da Lei, é absolutamente contrário ao supra referido n.º 1 do artigo 409.º do C.C., nomeadamente à respectiva parte final, a qual vota a uma absoluta insignificância e inutilidade!
N. Em consequência, a reserva de propriedade em análise é assim absolutamente legal, possuindo plena eficácia e validade.
O. Resulta claro que a vendedora transmitiu à ora Apelante a propriedade de algo – neste caso o veículo objeto dos autos – que efetivamente ainda se encontrava na sua esfera jurídica, porquanto o que as partes expressamente acordaram foi a manutenção da propriedade do bem nessa esfera jurídica até à ocorrência de determinado evento.
P. Verificando-se a validade da respetiva constituição, também a posterior transferência/transmissão da reserva de propriedade efetuada pela vendedora à ora Apelante – com o consentimento da Apelada e nos termos alegados na Petição Inicial, ao abrigo da liberdade contratual prevista no n.º 1 do artigo 405.º do C.C., e nos termos dos artigos 588.º e 591.º do mesmo diploma, e devidamente explanada na Cláusula B das Condições Gerais do Contrato de Financiamento junto sob Doc.1 – não padece também de qualquer vício, sendo totalmente válida e eficaz.
Q. De acordo com tudo o que subjaz aos contornos da liberdade contratual, a Apelante adquiriu a propriedade do veículo pela cessão da reserva de propriedade e sub-rogação dos direitos que a reservatária originária detinha.
R. Para que a referida sub-rogação seja eficaz, nos termos do n.º 2 do artigo 591.º do CC, basta que haja declaração expressa no documento do empréstimo, de que a coisa mutuada se destina ao cumprimento da obrigação e assim fica o mutuante sub-rogado nos direitos do credor, nomeadamente os decorrentes da reserva de propriedade.
S. Assim, neste caso o Apelado celebrou o já mencionado contrato de financiamento com a Apelante e declarou nas cláusulas 12. das condições particulares e B. das condições gerais do contrato de financiamento, que sub-rogava a Apelante, nos direitos do credor, ou seja do vendedor, encontrando-se assim cumpridos os requisitos do supra referido preceito legal: (i) declaração expressa da vontade de sub-rogar no terceiro mutuante, e (ii) menção dessa vontade no documento de empréstimo, i.e. no contrato de financiamento.
T. Foi deste modo, e na respetiva sequência, que a ora Apelante passou assim, legitimamente, a ser titular do direito de propriedade – ainda que sob reserva – por transmissão efetuada pela vendedora e autorizada pelo comprador (ora Apelado). U. É esta também a posição de Nuno Manuel Pinto de Oliveira: “O art. 409.º do CC deve confrontar-se com as regras sobre a sub-rogação dos arts. 589.º e ss: o financiador sub-roga-se nos direitos do vendedor (arts. 589.º e 590.º, ou art. 591.º); a sub-rogação importa a transmissão, para os terceiros, das garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do devedor” (Contrato de compra e venda, noções fundamentais, Almedina, 2007, págs. 53/55 e 56/57).
V. Esse mesmo é também o entendimento plasmado no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 12.08.2013, e em que é Relator o Exmo. Desembargador Pedro Martins, consultável em www.dgsi.pt: “O mutuante que cumpre a obrigação, pode ser colocado na posição do alienante – na titularidade de uma propriedade reservada para garantia do seu crédito – por sub-rogação, quer pelo devedor (art. 589 CC) quer pelo devedor (a requerida), sem necessidade de consentimento do vendedor (art. 590 do CC), desde que a vontade de sub-rogar seja manifestada até ao momento do cumprimento da obrigação.”
W. “Situação que ainda se verifica quando o mutuário cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada pelo mutuante, também sem necessidade de consentimento do credor, desde que haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do vendedor (art. 591 do CC).” (sublinhado nosso).
X. Naturalmente, tal posição é também perfilhada no supra referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2014 ao entender que “De acordo com o instituto da sub-rogação, recebendo o vendedor a totalidade do preço do financiador, os seus direitos enquanto alienante, resultantes da reserva de propriedade, transmitir-se-iam para aquele, juntamente com o crédito do preço, por sub-rogação, figura prevista e regulada nos artigos 589.º e segs.”.
Y. “Como vimos, não existe qualquer proibição legal de que o titular possa ceder a sua propriedade reservada com função de garantia, como, em regra, se pode transferir um direito de crédito acompanhado da respectiva garantia a um terceiro. A transmissão da cláusula de reserva de propriedade para o financiador seria então, uma situação equivalente à transmissão de créditos garantidos por penhor ou hipoteca em conjunto com o penhor ou com a hipoteca, mas não equivalente a uma cessão da posição contratual do vendedor. A cessão restringe-se à reserva de propriedade, como garantia do crédito, e não à posição contratual do vendedor, continuando, pois, a ser este que responde perante o comprador pelo incumprimento ou pelo cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, assumindo, nomeadamente, a responsabilidade pelos vícios da coisa alienada.”
Z. “Deve entender-se, portanto, que tendo-se convencionado entre vendedor, mutuante e mutuário que a reserva de propriedade, que incide sobre a coisa a adquirir com recurso ao crédito, se transmite para o financiador, esta convenção ou acordo não pode deixar de significar que as partes pretenderam atribuir ao financiador os direitos que assistiriam ao vendedor numa pura venda a prestações, funcionando o pagamento das prestações do empréstimo, para o comprador, como o pagamento das prestações do preço na venda a prestações.”.
AA. Verifica-se assim que, também no que diz respeito à sub-rogação alegada, não existe qualquer nulidade ou violação de qualquer normativo legal, apresentando-se a mesma como absolutamente válida e apta a produzir os respetivos efeitos.
BB. Já no que diz respeito à alegada impossibilidade de a ora Apelante, com base na resolução do contrato de financiamento, intentar a ação prevista no artigo 18.º do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro, sempre se voltará ao supra referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 30.09.2014, no âmbito do processo n.º 844/09.8TVLSB.L1.S1, em que é relatora a Exma. Conselheira Maria Clara Sottomayor, e disponível em www.dgsi.pt: “Cada vez mais se reconhece que a inserção do contrato na vida jurídica e social implica que os seus efeitos ultrapassem as partes para se projectarem na esfera jurídica de terceiros, em função de uma relação jurídica entre um terceiro e um dos contratantes.”
CC. A ordem jurídica não pode, assim, ignorar que os dois contratos – o de compra e venda e o de financiamento – coexistem e estão interligados entre si, visando a consecução de uma finalidade económica comum: a facilitação do consumo por recurso ao crédito. Apesar de manterem a sua autonomia estrutural e formal, verifica-se uma interdependência de interesses entre o triângulo de sujeitos contratuais, que os tribunais devem reconhecer e que influencia as soluções jurídicas.”.
DD. Assim, e embora se refira expressamente no excerto em causa ao artigo 409.º do Código Civil, o mesmo raciocínio vale logicamente para o referido artigo 18.º, n.º 1 do DL 54/75 de 24/02, defendendo-se “…Uma interpretação actualista que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades actuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro.”.
EE. Não pode assim desconsiderar-se o exponencial crescimento que ocorreu no âmbito do crédito ao consumo, que necessariamente implica que a aquisição de qualquer bem como valor significativo – sendo um bom exemplo disso mesmo os veículos automóveis – seja efetuada com recurso a financiamento por parte instituições devidamente habilitadas para o efeito.
FF. E nem o facto de o sistema jurídico facultar outros mecanismos que permitam garantir a posição das entidades financeiras obsta, nem deverá alguma vez obstar, à análise e potencial interpretação atualista de quaisquer normas em vigor.
GG. Assim sendo, e seguindo de perto o que a este respeito é defendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 20.10.2005, no âmbito do processo n.º 8454/2005-6, em que é relatora a Exma. Desembargadora Fátima Galante, disponível em www.dgsi.pt, transcrevem-se excertos do mesmo, dada a sua clareza da respetiva exposição, com a qual se concorda sem reservas:
HH. “Parece, pois, perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, como decorre da parte final do art. 409º, 1, do CC.”
II. “Assim, o art. 409º, nº 1, do CC abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo.”
JJ. “Por tudo isso, na leitura do disposto no artº 18º, nº 1 do DL nº 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade, a referência ao "contrato de alienação".
KK. “A formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, tornaria inútil e sem efeito prático a cláusula da reserva de propriedade, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro, o que constitui hoje a regra, face à evolução verificada nessa forma de aquisição.”.
LL. Assim, forçoso se torna concluir que a referência a “contrato de alienação” contida no n.º 1 do artigo 18. º do DL 54/75 de 24/02 tem necessariamente de ser extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda.
MM. O entendimento contrário - de que apenas o incumprimento e resolução do contrato de alienação determinariam a possibilidade de se requerer a apreensão do veículo alienado - acarretaria a inutilidade da cláusula de reserva da propriedade nos casos em que a aquisição do veículo é feita através de financiamento de terceiro, o que é hoje a regra no comércio jurídico.
NN. Não só a este último respeito, mas também em relação a tudo quanto se expôs supra nas presentes alegações, atente-se na reflexão constante do voto de vencido da Exma. Senhora Desembargadora Maria de Deus Correia, proferido no âmbito do processo n.º 2058/19.0T8LSB, incorporado no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 4 de Julho de 2019, em caso idêntico ao dos presentes autos:
OO. “Esta dinâmica contratual a que nos conduziu a já mencionada evolução das relações económicas e a transformações da sociedade de consumo em que vivemos exigem uma leitura actualista das disposições legais já mencionadas, designadamente do disposto no art.º 409.º do Código Civil.”
PP. “Deste princípio de liberdade contratual derivam várias consequências: os contraentes são inteiramente livres tanto para contratar ou não contratar, como na fixação do conteúdo das relações contratuais que estabeleçam, desde que não haja lei imperativa, ditame de ordem pública ou bons costumes que se oponham.”
QQ. “E é à luz deste princípio basilar do regime dos contratos que não se vislumbra qualquer obstáculo legal a que o alienante possa transferir um direito que é seu para a esfera jurídica de terceiro, neste caso o mutuante, no âmbito de um contrato tripartido ou triangular a que vimos aludindo, em que o risco de crédito se desloca do vendedor para o financiador, estando ambos os contratos (compra e venda e mútuo) interligados.”
RR. “Esse é o acordo subjacente ao contrato: o financiador assume o risco do alienante e, em contrapartida, este transfere para aquelas as garantias de que já não carece. Nada na lei parece impedi-lo.”
SS. Por tudo quanto exposto supra é absolutamente admissível – e até exigível – uma interpretação atualista do referido n.º 1 do artigo 18.º do DL 54/75 de 24/02, no sentido de se entender que a referência a “contrato de alienação” abrange o contrato de mútuo conexo com a compra e venda.
TT. Assim sendo, e face a tudo quanto supra exposto, urge concluir-se que, contrariamente ao entendimento plasmado na Sentença recorrida, não existe qualquer nulidade da cláusula de reserva de propriedade nem da sua subsequente transmissão, sendo, ao invés, ambas plenamente válidas e eficazes, inexistindo ainda qualquer outro vício que obste ao decretamento da Providência Cautelar apresentada.
UU. Consequentemente, tendo sido validamente constituída e transmitida à Apelante, a reserva de propriedade que se encontra registada a favor da mesma justifica, juntamente com o preenchimento (que se encontra indiciariamente provado pela documentação já junta aos autos e que de resto se admite na própria Sentença) dos restantes requisitos constantes dos artigos 15.º e 16.º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro, a procedência do presente Procedimento Cautelar.
VV. Ao indeferir liminarmente o procedimento cautelar requerido o Tribunal a quo violou o Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, designadamente as normas previstas nos artigos 15.º, n.º 1 e 16.º, n.º 1 e 18.º n.º 1 do mesmo, bem como os artigos 405.º, n.º 1, 409.º, n.º 1, 588.º e 591.º do Código Civil, e ainda o artigo 9.º do mesmo diploma.
Conclui, pugnando pelo provimento do presente recurso, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que decrete a suscitada providência cautelar.
5 – O recurso foi admitido por despacho de fls. 47, datado de 06/08/2019, como de apelação, tendo-se determinado a citação do Requerido nos termos do artº. 641º, nº. 7, do Cód. de Processo Civil.
6 – Realizadas várias diligências no sentido de se proceder à citação do Requerido, e mostrando-se esta inviável, por ser desconhecido o seu paradeiro, por despacho datado de 09/12/2019 foi determinada a remessa dos autos ao presente Tribunal.
7 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
**
II ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação do Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina apurar se a entidade financiadora (ora Requerente) pode assumir a posição do vendedor/alienante e requerer a providência cautelar de apreensão do veículo cuja aquisição financiou.
Na apreciação do objecto recursório conhecer-se-á, fundamentalmente, acerca:
· Da validade da constituição da cláusula de reserva de propriedade ;
· Da admissibilidade e validade da sub-rogação operada ;
· Da eventual necessidade de uma interpretação actualista do artº. 18º, nº. 1, do DL nº. 54/75, de 12/02 ;
· Dos requisitos/pressupostos do presente procedimento cautelar nominado.
**
III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na decisão apelada foi considerada relevante para a apreciação liminar do pedido do Requerente, a seguinte FACTUALIDADE:
1. A Requerente dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis.
2. No exercício da sua actividade, a Requerente financiou o Requerido na aquisição do veículo automóvel de marca Ford, modelo TRVAN350L4TRE, com a matrícula …-SZ-…, vendido pela FORD LUSITANA, S.A., nos termos do Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito n.º … que ora se junta sob Doc.1 e cujo respectivo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
3. Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída uma reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo, FORD LUSITANA, S.A., até que se mostrasse liquidado, na íntegra, o contrato de financiamento celebrado (cfr. cláusulas 2. e 12. das Condições Particulares, cláusula B. das Condições Gerais referido Contrato junto sob Doc. 1).
4. A FORD LUSITANA, S.A. cedeu à Requerente, com o consentimento da Requerida, a titularidade da referida reserva de propriedade, nos termos da cláusula 12. das Condições Particulares e da cláusula B. das Condições Gerais do Contrato supra mencionado.
5. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor da Requerente, conforme se pode constatar pela análise da certidão narrativa do veículo automóvel em causa, que ora se junta como Doc.2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
6. O preço total da viatura foi de € 27540,52, tendo o Requerido efectuado um desembolso inicial de € 1000,00 (cfr. cláusulas 4. e 5. das Condições Particulares do Contrato junto sob Doc.1).
7. A Requerida, não podendo ou não querendo desembolsar a totalidade do valor da aquisição, recorreu ao financiamento para aquisição a crédito, o que a Requerente se dispôs a conceder-lhe, tendo-lhe financiado a quantia de € 26.540,52 (cfr. cláusula 6. das Condições Particulares do Contrato referido).
8. O Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito celebrado entre a Requerente e a Requerida, estipulou na cláusula 8. das suas Condições Particulares que o valor total a reembolsar à Requerente era de € 32191,40 (cfr. cláusulas 6.3., 7. e 8. das Condições Particulares do Contrato).
9. Na cláusula 9 das Condições Particulares e no Plano de Amortizações do mencionado contrato, o prazo do reembolso foi fixado pelas partes em 60 meses, mediante 60 prestações mensais iguais e sucessivas no valor de € 503,30, cada uma.
10. O contrato em questão foi assinado em 12.05.2017, e entrou em vigor nesse mesmo dia.
11. Sucede que, o Requerido deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas no âmbito do contrato junto sob Doc.1 em 21.11.2017, correspondente à 17.ª prestação.
12. Atenta a não liquidação pelo Requerido de qualquer outra prestação, a Requerente endereçou ao Requerido carta registada com aviso de recepção, com data de 25.02.2019, através da qual lhe dirigiu uma interpelação para pôr termo à mora no prazo de quinze dias, considerado razoável para o efeito - cfr. Doc.3, que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
13. Não tendo o Requerido posto termo à mora, a Requerente notificou-a, por carta registada com aviso de recepção, datada de 25.03.2019, da resolução do Contrato de Financiamento - cfr. Doc.4 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
14. Sucede que além de não ter regularizado os valores em dívida, até à presente data, o Requerido também não entregou à Requerente o mencionado veículo automóvel, apesar do convencionado na cláusula H. das Condições Gerais do Contrato de Financiamento junto sob Doc.1.
15. Em consequência da não devolução do veículo, a Requerente desconhece o estado em que o mesmo se encontra, mas face à ocultação do mesmo pelo Requerido é levada a presumir que aquele se encontra completamente desvalorizado.
**
B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
No requerimento inicial do presente procedimento cautelar, aduz o Requerente, basicamente, o seguinte:
- em 12/05/2017, financiou o Requerido na aquisição de um veículo automóvel vendido pela Ford Lusitana, S.A., nos termos do Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito que junta ;
- como garantia de reembolso do montante financiado, fixado pelas partes em 60 prestações mensais, foi constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora daquele veículo, até que a totalidade do montante financiado se mostrasse integralmente liquidado ;
- com o consentimento do adquirente e ora Requerido, a vendedora, nos termos dos artigos 588º e 591º, ambos do Cód. Civil, cedeu à Requerente financiadora a titularidade da referida reserva de propriedade, que a tem registada a seu favor ;
- tendo assim o Requerido devedor/adquirente sub-rogado a Requerente nos direitos do vendedor registado ;
- o Requerido deixou de pagar as prestações acordadas em 21/11/2018 (correspondente à 17ª prestação), tendo-se operado a resolução do contrato de financiamento em 25/03/2019 ;
- pelo que a Requerente financiadora tem assim o direito de obter a imediata restituição do veículo, nos termos dos artigos 15º e segs. do DL nº. 54/75, de 12/02 ;
- advindo, ainda, tal direito da liberdade contratual, atenta a vinculação do Requerido constante da cláusula H) das Condições Gerais do outorgado contrato de financiamento.
Por sua vez, a decisão apelada, que desatendeu a pretensão da Requerente, fundou-se, essencialmente, no seguinte:
- apenas o alienante/vendedor tem a possibilidade de recorrer ao mecanismo previsto no artº. 15º do DL nº. 54/75, de 12/02, ainda que uma interpretação actualista defenda que também o mutuante possa recorrer ao mesmo regime, admitindo-se a possibilidade de transmissão do direito de reserva por sub-rogação ;
- efectivamente, a apreensão prevista no citado artº. 15º está dependente da acção de resolução do contrato de alienação e não da acção de resolução de um contrato de financiamento, conforme o artº. 18º, nº. 1, 2ª parte, do mesmo diploma ;
- ora, no caso concreto apenas é invocável o incumprimento no pagamento das prestações decorrentes do contrato de mútuo, pelo que será a resolução deste que poderá constituir objecto da acção declarativa de que esta providência é dependente ;
- efectivamente, não pode ser proposta acção em que o pedido consista na resolução do contrato de compra e venda com reserva de propriedade ;
- pelo que, não podendo ser proposta a acção prevista na 2ª parte, do nº. 1, do artº. 18º, do DL nº. 54/75, de 12/02, também não pode ser decretada a providência prevista no artº. 18º do mesmo diploma, por esta ser dependente daquela ;
- ademais, nem se diga que o mutuante fica desprotegido, pois, para recorrer à apreensão prevista no citado artº. 15º bastará constituir hipoteca sobre o bem cuja aquisição foi financiada ;  
- atenta a sua natureza, finalidade e razão de ser, a reserva de propriedade só é admissível em benefício do alienante, sendo que no caso concreto a vendedora do veículo cedeu à financiadora a titularidade da reserva de propriedade ;
- ora, recebendo o vendedor o preço integral da venda, deixa o mesmo de ter legitimidade para, a posteriori (após o recebimento do preço) reservar o direito de propriedade para si – cf., artº. 409º, do Cód. Civil -, pelo que não é por esta via que a propriedade pode ser reservada pela Requerente mutuante ;
-  é, deste modo, inaplicável a sub-rogação prevista no artº. 591º, do Cód. Civil, pois os direitos do mutuante não coincidem com os do vendedor, sendo mais amplos.
No que concerne à pretensão recursória, funda-se basicamente no seguinte argumentário:
- da validade da constituição da clausula de reserva de propriedade:
- no caso concreto, a reserva de propriedade foi inicialmente constituída pela entidade alienante do veículo, no âmbito do contrato de alienação que constituiu a compra e venda do veículo ;
- tendo o efeito jurídico da transferência de propriedade ficado condicionado à ocorrência de um evento determinado, nomeadamente o pagamento integral de todas as prestações acordadas no contrato de financiamento ;
- sendo a vendedora (Ford Lusitana, S.A.) e a mutuante (FCE Bank) entidades associadas, a reserva de propriedade teve assim a sua origem no contrato de compra e venda do veículo, a favor da vendedora deste (Ford Lusitana, S.A.), tendo em vista o cumprimento integral do contrato de financiamento, ou seja, o pagamento integral do montante financiado ;
- o que se enquadra no conceito de qualquer outro evento, previsto na parte final do nº. 1, do artº. 409º, do Cód. Civil, sendo este evento o cumprimento integral das prestações constantes do contrato de financiamento ;
- pois, no conceito de qualquer outro evento cabe a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário ;
- pelo que nada impede a constituição da reserva de propriedade nos termos em que ocorreu, sendo a mesma absolutamente válida e eficaz ;   
- ademais, existe inclusive doutrina e jurisprudência que admitem que a própria entidade financiadora possa constituir, no âmbito do contrato de financiamento, uma cláusula de reserva de propriedade a seu favor ;
- o que se fundamenta na existência de coligação de contratos e numa interpretação actualista do artº. 409º, do Cód. Civil.
- da validade da sub-rogação
- deste modo, sendo válida a constituição da cláusula de reserva de propriedade, é totalmente válida e eficaz a sua posterior transferência/transmissão da alienante/vendedora para a mutuante/financiadora ;
- pois existe consentimento do devedor/adquirente, ocorre ao abrigo da liberdade contratual inscrita no nº. 1, do artº. 405º, do Cód. Civil e nos termos dos artigos 588º e 591º, ambos do mesmo diploma ;
- assim, a reserva de propriedade foi cedida pela vendedora do veículo (Ford Lusitana, S.A.) à financiadora/mutuante (FCE BANK), ficando esta sub-rogada nos direitos da vendedora ;
- ou seja, a financiadora, através da cessão da reserva de propriedade e sub-rogação dos direitos que a reservatária originária detinha, adquiriu a propriedade do veículo ;
- pois, conforme a cláusula B das Condições Gerais e cláusula 12. das Condições Particulares, o adquirente/devedor sub-rogou a financiadora/mutuante nos direitos da vendedora, nos termos do artº. 591º, do Cód. Civil ;
- da interpretação actualista do artº. 18º, nº. 1, do DL nº. 54/75, de 12/02
- o contrato de compra e venda e de financiamento coexistem e estão interligados entre si, pelo que deve ocorrer a extensão da previsão do artº. 409º, do Cód. Civil, que se refere a contratos de alienação, à compra e venda financiada por um terceiro ;
- segundo o princípio da liberdade contratual, é o próprio comprador do veículo que associa o pagamento do preço do bem ao cumprimento do contrato de financiamento, assim aceitando que a garantia da reserva da propriedade seja constituída como garantia de cumprimento desse contrato de financiamento ;
- no caso dos autos, a reserva de propriedade sob o veículo foi constituída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, e não o contrato de compra e venda ;
- pelo que a referência a contrato de alienação contida no artº. 18º, nº. 1, do DL nº. 54/75, de 24/02, tem necessariamente que ser extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda, assim se impondo uma necessária interpretação actualista daquele normativo ;
- inexistindo, assim, qualquer nulidade da cláusula de reserva de propriedade, e sua posterior transmissão, sendo ambas válidas e eficazes.
Sendo estas as posições jurídicas em confronto, vejamos.
I) Do enquadramento jurídico
Estatuindo acerca da liberdade contratual, prescreve o artº. 405º, do Cód. Civil, que:
“1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.
Por sua vez, regulando acerca dos contratos com eficácia real, estatui o nº. 1, do artº. 408º, do mesmo diploma, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”.
Acrescenta o artº. 409º, a propósito da reserva de propriedade, que:
“1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros” (realce e sublinhado nosso).
Na análise da controvérsia em equação, convoquemos, igualmente, as regras relativas á sub-rogação, enquanto modalidade de transmissão de créditos, prevendo o artº. 589º, a propósito da sub-rogação pelo credor, que “o credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogá-lo nos seus direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação”.
Dispõe o normativo seguinte – 590º -, na previsão da sub-rogação pelo devedor, que:
“1. O terceiro que cumpre a obrigação pode ser igualmente sub-rogado pelo devedor até ao momento do cumprimento, sem necessidade do consentimento do credor.
2. A vontade de sub-rogar deve ser expressamente manifestada”.
Prescrevendo acerca da sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor, estatui o artº. 591º que:
“1. O devedor que cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode sub-rogar este nos direitos do credor.
2. A sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas só se verifica quando haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor”.
Em equação, encontra-se, ainda, o estatuído no DL nº. 54/75, de 12/02, que prevê acerca do registo da propriedade automóvel, nomeadamente no que concerne aos artigos:
5º, nº. 1, alín. b)
“1 - Estão sujeitos a registo:
(…)
b) A reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis” ;
15º
“1 - Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula.
2 - O requerente expõe na petição o fundamento do pedido e indica a providência requerida.
3 - A prova é oferecida com a petição referida no número anterior” ;
16º
“1. Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo.
2 - Se no acto da apreensão não for encontrado o certificado de matrícula, deve o requerido ser notificado para o apresentar em juízo no prazo que lhe for designado, sob a sanção cominada para o crime de desobediência qualificada” ;
18º, nº. 1
“1. Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação (realce e sublinhado nosso) ;
21º
“O processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário”.
II) Das diferenciadas posições jurídicas
Relativamente à temática em equação, descortinamos, doutrinária e jurisprudencialmente, no essencial, três diferenciadas posições:
– a que admite a constituição, ab initio, da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora do contrato de alienação ;
– a que considera que a cláusula de reserva de propriedade só pode ser estipulada a favor do alienante, mas que tal não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante/financiador, sendo posteriormente transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do vendedor/alienante ;
– a que apenas admite a estipulação de cláusula de reserva de propriedade em benefício do alienante/vendedor, não admitindo a transmissão da mesma cláusula, por parte do alienante/vendedor, por cessão da posição contratual ou por sub-rogação dos seus direitos, para o mutuante/financiador.
Grosso modo, a decisão apelada sufraga esta terceira posição, enquanto que a Requerente Apelante defende a primeira, admitindo, ainda, se bem se percebe, o entendimento exposto na segunda posição indicada.
Vejamos.
O douto Acórdão desta Relação de 12/08/2013 [2] enuncia as várias posições doutrinárias e jurisprudenciais, de forma exaustiva e completa, acabando por sufragar a segunda das enunciadas posições.
Relativamente á estipulação da cláusula de reserva de propriedade, referencia que esta “só pode ser estipulada por aquele que é proprietário, isto é, por aquele que aliena a coisa. Isto é, ela só tem sentido enquanto reserva da propriedade a favor de quem já era proprietário.
De outra perspectiva, isto quer dizer que a reserva de propriedade não pode ser feita a favor de terceiro: o terceiro não pode reservar para si – ou não podem reservar para ele – a propriedade que não tem”.
E, após citar abundante doutrina e jurisprudência corroborante de tal posição, admite que existe alguma jurisprudência, a qual cita, que “defende a validade da cláusula da reserva da propriedade a favor dos mutuantes nestes casos (isto é, daqueles em que se pode falar em contratos ou relações triangulares, envolvendo o vendedor, o mutuante que financia a compra do veículo e o comprador mutuário). Mas, com raras excepções, não se está a defender a validade da constituição inicial de tal cláusula a favor do mutuante, mas sim que a reserva pode ser transmitida para o mutuante, ou que ela pode ser constituída para garantia do crédito do mutuante, ou então nem sequer se discute - por vezes por falta de dados – a questão e aceita-se, sem saber como é que ela se constituiu, que a reserva existe, por estar registada a favor do mutuante, e é válida”.
Donde, conclui, nos casos em que a cláusula de reserva de propriedade é estipulada, de início, no próprio contrato de compra e venda, a favor da entidade mutuante (terceira), a mesma é inválida, por impossibilidade de objecto – cf., o nº. 1, do artº. 280º, do Cód. Civil.
O mesmo aresto, no que concerne à transferência da cláusula de reserva de propriedade e da sub-rogação do mutuante nos direitos do credor, aduz que “o mutuante que cumpre a obrigação, pode ser colocado na posição do alienante – na titularidade de uma propriedade reservada para garantia do seu crédito – por sub-rogação, quer pelo vendedor (art. 589 do CC) quer pelo devedor (a requerida), sem necessidade de consentimento do vendedor (art. 590 do CC), desde que a vontade de sub-rogar seja manifestada até ao momento do cumprimento da obrigação.
Situação que ainda se verifica quando o mutuário cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada pelo mutuante, também sem necessidade de consentimento do credor, desde que haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do vendedor (art. 591 do CC).
E, se assim for, o mutuante passa a ter os direitos que antes eram do vendedor e são esses direitos que estão aqui em causa e que podem ser exercidos.
O que no caso dos autos terá acontecido, com o pagamento do preço ao vendedor, embora não se saiba em que modalidade, por não ter sido alegado, se o pagamento foi feito directamente pela mutuante ou pelo mutuário com o financiamento obtido”.
Enuncia, seguidamente, vária doutrina que perfilha a admissibilidade desta transmissão e sub-rogação, entre a qual se realça, pela sua pertinência, a posição defendida por Isabel Meneres de Campos [3], no sentido de que “o financiador, quando entrega o preço ao comprador, sub-roga-se nos direitos do vendedor, transmitindo-se os créditos e os seus acessórios, incluindo a cláusula de reserva de propriedade constituída em favor deste”.
O que, segundo o mesmo aresto, desenvolve na tese de doutoramento [4], aduzindo que “se o vendedor recebe a totalidade do preço, o efeito automático da transferência da propriedade verificar-se-ia independentemente de qualquer acto. O mesmo sucederia se esse pagamento fosse efectuado, não pelo comprador, mas pelo financiador – a eficácia extintiva do pagamento determinaria a transferência da propriedade para o comprador.
Este impedimento só pode ser superado se as partes acordarem, expressamente, que a transferência da propriedade para o comprador só se dará, não com o recebimento do valor correspondente ao preço pelo vendedor, como ocorreria numa compra e venda normal, mas com o pagamento da totalidade da dívida ao financiador, sub-rogando-se este nos direitos do vendedor. Configurando-se o negócio como um pagamento com sub-rogação, o vendedor recebendo do financiador a totalidade do preço, sub-roga-o nos seus direitos por força desse pagamento.
[…]
É de rejeitar o argumento de que, com o pagamento integral do preço (pelo financiador), a propriedade se transmite automaticamente para o comprador. Como se disse acima, no pagamento com sub-rogação, o crédito não se extingue, alterando-se apenas o seu sujeito activo e transmitindo-se para o solvens o crédito, as suas garantias e os seus acessórios.
Em consequência desse pagamento com sub-rogação, a cláusula de reserva de propriedade, quer se conceba como uma garantia, quer se conceba simplesmente como uma cláusula acessória do contrato de compra e venda, transmite-se para o solvens, que passa a ser o titular da propriedade reservada com função de garantia”.
Através da presente posição não se defende, porém, a validade da constituição da cláusula de reserva de propriedade a favor de terceiro, que não seja o proprietário alienante, ab initio, mas sim a validade da transmissão desta cláusula a favor do terceiro financiador. Ou seja, a cláusula é sempre constituída a favor do proprietário/alienante, ocorrendo posteriormente transmissão e sub-rogação para o terceiro financiador.
E, tal posição é perfeitamente compatível, pois “é perfeitamente coerente dizer que a cláusula só pode ser estipulada a favor do alienante, mas admitir a transferência da propriedade para o mutuante e a sub-rogação deste nos direitos do vendedor nos casos em que foi estipulada a reserva até que fosse pago o crédito da mutuante”.
Todavia, para que assim seja, isto é, para que se possa admitir aquela transmissão e sub-rogação, é mister que a reserva de propriedade não fique “condicionada ao pagamento do preço ao vendedor. Se o evento “condicionante” for o pagamento do preço ao vendedor, pago este – seja por quem for -, a propriedade transfere-se para o comprador, deixando de existir qualquer reserva que possa ser transmitida.
Se assim é, a validade desta construção está dependente de se aceitar que o art. 409/1 do CC permite que nos contratos se reserve a propriedade à verificação qualquer outro evento que não apenas até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte”.
Ora, o transcrito nº. 1, do artº. 409º, do Cód. Civil, permite que nos contratos se reserve a propriedade à verificação de qualquer outro evento, que não apenas até ao cumprimento, total ou parcial, das obrigações da outra parte.
No sentido de tal admissibilidade, o mesmo douto Acórdão, que vimos seguindo, cita Raúl Ventura [5], mencionando este que “a reserva de propriedade constitui normalmente uma cautela do vendedor. Não pode dizer-se que tem sempre uma função de garantia do vendedor quanto ao pagamento do preço – ao contrário do que se afirma no direito italiano – porque a reserva de propriedade, no nosso direito, tanto pode ser estipulada em função do pagamento do preço, como em função de outros eventos.
[…]
O nosso art. 409/1 é muito mais liberal [que o art. 1523 do CCit], permitindo subordinar a transmissão da propriedade “até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”. Não só a reserva pode ser ligada ao pagamento do preço a prestações, como pode ser ligada ao pagamento total do preço ou ainda a qualquer outro evento, sem conexão com o cumprimento da obrigação do comprador (ou, em geral, da outra parte) (sublinhado aditado no aresto).
Bem como, e entre outras citações, Menezes Leitão [6], no sentido de que “normalmente, o evento que determina a verificação dessa transferência é o pagamento do preço, o que constitui a forma comum e típica de venda como reserva de propriedade, ainda que as partes ao abrigo da sua autonomia privada, possam igualmente colocar a transferência da propriedade dependente da verificação de qualquer outro evento, o qual pode inclusivamente ser o pagamento de uma dívida de terceiro (sublinhado aditado no Acórdão) [7] [8].
O mesmo Acórdão, reportando-se ao obstáculo formal contido no nº. 1, do artº. 18º, do DL 54/75, reconhece que este normativo, depois da procedência da providência cautelar de apreensão, “impõe que o titular do registo da reserva proponha uma acção de resolução do contrato de alienação. A providência tem por pressuposto, segundo o art. 15 do mesmo DL, o não cumprimento das obrigações que originaram a reserva da propriedade.
É pois a fonte das obrigações que originaram a reserva da propriedade que aquela norma quer que seja resolvida, pressupondo que a reserva apenas tinha por fonte um contrato “bilateral” de alienação tradicional”.
Todavia, presentemente, aquele contrato de alienação tradicional deu lugar a um denominado negócio com sinalagma trilateral, em que associado àquele surge um contrato de financiamento/mútuo, existindo assim clara necessidade de reportar aquele artº. 18º, nº. 1, ao “negócio trilateral de alienação financiada”, deste decorrendo obrigações do contrato de mútuo, que determinaram a reserva estipulada.
Deste modo, “admitido que o negócio triangular não se extinguiu, tal não como se extinguiu a cláusula da reserva, e que a mutuante foi sub-rogada nos direitos do vendedor decorrentes de tal cláusula, não há qualquer obstáculo a que o incumprimento definitivo do mútuo possa servir de base à providência cautelar e de causa de resolução do negócio/contrato triangular de alienação dependente do mútuo que originou a reserva a invocar na futura acção principal de resolução imposta pelo referido art. 18”.
Donde decorre que, nas situações em que exista “reserva da propriedade para o alienante mas subordinada ao pagamento de crédito do mutuante, seguida de transferência da reserva para este, com sub-rogação do mutuante nos direitos do alienante”, para além de se considerar válida a cláusula de reserva a favor do mutuante/financiador, obtida mediante transmissão com sub-rogação, urge, ainda, defender a necessária “actualização da interpretação da norma do art. 18 (que não se está a confundir com uma interpretação actualista, que não se aceita, das normas que se entende impedirem a admissão da reserva da propriedade estipulada, logo de início, a favor do mutuante)”.
Jurisprudencialmente, perfilhando a 1ª ou 2ª das posições referenciadas, entre outros, referenciem-se, ainda, os seguintes arestos (todos em www.dgsi.pt):
- desta Relação de 15/03/2011 – Relatora: Graça Amaral, Processo nº. 427/11.2T2SNT.L1-7, citado nas alegações recursórias -, onde se defende que “atentas as exigências decorrentes da evolução social face às novas modalidades de contratação que, pela sua peculiar estrutura, impõem uma flexibilidade dos tradicionais modelos processuais de forma a poderem abarcar no seu seio as novas realidades contratuais, tem vindo a desenvolver-se posicionamento jurisprudencial que considera admissível a constituição da reserva de propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro, fazendo incluir no âmbito da expressão contida no art.º 18º, nº 1, do DL 54/75, "contrato de alienação" o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda que esteve na origem da reserva de propriedade (nestes casos está-se perante uma "relação tripartida" - vendedor-financiador - em que os contratos, de compra e venda e de financiamento se mostram como que interdependentes)”.
Pelo que considera ser “perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, como decorre da parte final do art. 409º, 1, do CC”.
O presente Acórdão corresponde à 2ª posição enunciada, tendo um voto de vencido correspondente à 3ª posição referenciada ;
- desta Relação de 20/10/2005 – Relatora: Fátima Galante, Processo nº. 8454/2005-6, citado nas alegações recursórias -, no qual se sumariou ser “admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, abrangendo a referência, no art. 18º, nº 1 do DL 54/75, ao “contrato de alienação” também o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
2. O art. 409º, nº 1, do CC abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel, em virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo”.
Conforme resulta da análise do mesmo, perfilha o entendimento exposto na 1ª posição, admitindo a constituição da clausula de reserva de propriedade, ab initio, a favor da financiadora/mutuante ;
- desta Relação de 14/11/2013 – Relator: Gilberto Jorge, Processo nº. 844/09.8TVLSB.L1-6 -, no qual se sumariou que “num contrato de compra e venda de veículo com financiamento por terceiro do montante do preço, a mutuante fica sub-rogada nos direitos da vendedora garantidos por reserva de propriedade.
II) Incumprindo a compradora a obrigação de pagamento das prestações do mútuo, correspondentes ao preço do veículo, e resolvido com esse fundamento o contrato de mútuo, procede a pretensão da mutuante de reconhecimento do direito de propriedade sobre o veículo e de condenação da mutuária a entregar-lho”.
Tal entendimento corresponde à 2ª posição enunciada, estando-se perante situação em que ocorreu transmissão da reserva de propriedade, mediante sub-rogação da mutuante/financiadora nos direitos da vendedora/alienante ;
- desta Relação de 18/02/2014 – Relator: Manuel Tomé Soares Gomes, Processo nº. 3331/11.0TVLSB.L1 -, o qual, apesar de considerar, no sumário elaborado, não ser configurável a “possibilidade legal de transmitir a reserva de propriedade do alienante para um terceiro por via da cessão de crédito previsto nos artigos 577.º e seguintes do CC ou mediante a sub-rogação legal estabelecida no artigo 592.º do mesmo diploma, já que se trata de institutos de transmissão de créditos e de dívidas a que são alheios os dieitos ou efeitos de natureza real”, ressalva que “quanto à possibilidade de transferência da reserva de propriedade do vendedor para o financiador, no quadro de contratos mistos, nomeadamente em sede de união de contratos, ou mediante cessão da posição contratual do vendedor para o financiador, nos termos do artigo 424º e seguintes do CC, afigura-se admissível que possa o vendedor do bem financiado, ao receber directamente o preço da venda do bem por parte da financiadora, sub-rogar a sua posição contratual no contrato de compra e venda a esta financiadora, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação, nos termos do 589.º do CC, incluindo a reserva de propriedade que ali tenha sido estabelecida” ;
- desta Relação de 10/02/2015 – Relator: Pimentel Marcos, Processo nº. 813/10.5TBSCR.L1-7 -, o qual alude à relação triangular decorrente da celebração de dois contratos conexos: o contrato de compra e venda do veículo automóvel e o contrato de mútuo, pelo montante necessário ao pagamento do preço daquele.
Considera, assim, válida a estipulação, ab initio, no contrato de crédito, de cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante, sendo tal entendimento correspondente à 1ª das posições supra enunciadas ;
- da RC de 15/07/2008 – Relator: Hélder Roque, Processo nº. 187/08.4TBAGN.C1, citado nas alegações recursórias (tem um voto de vencido) -, o qual admite a constituição, ab initio, de cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora.
Consta das conclusões de tal aresto que “a compra e venda financiada por um terceiro, polarizada na relação entre o consumidor e o terceiro financiador, desdobra-se num contrato de compra e venda, a pronto, ou seja, sem qualquer convenção de diferimento do preço, celebrado entre o consumidor e o vendedor, e num contrato de mútuo de dinheiro, celebrado entre o consumidor e o terceiro financiador, sendo o capital mutuado destinado ao pagamento imediato do preço estabelecido no conexo contrato de compra e venda.
II – Abrangendo o artigo 409º, nº 1, do CC, na sua letra e no seu espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda de veículo automóvel, em virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda fosse fraccionado no tempo, a figura da reserva da propriedade tem sentido no contexto do contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o contrato da compra e venda.
III - A reserva de propriedade pode tutelar o interesse do vendedor ou da entidade financiadora que com aquele colabora, compelindo o comprador ao cumprimento integral das obrigações assumidas para com aquela.
IV - Encontrando-se a entidade financiadora na posição de titular da reserva de propriedade, considerando que se demonstrou o incumprimento pelo adquirente das obrigações que originaram a reserva de propriedade e que esta se encontra registada, a favor do respectivo titular, mostram-se preenchidos os requisitos legais que conduzem à procedência da providência cautelar para a apreensão de veículo” ;
- do STJ de 30/09/2014 – Relatora: Maria Clara Sottomayor, citado nas alegações recursórias -, acerca de situação fáctica com contornos idênticos à dos presentes autos.
Na situação apreciada, a cláusula de reserva de propriedade foi estipulada a favor da vendedora e depois cedida á entidade financiadora/mutuante.
Expõe as duas teses em confronto, com referências doutrinárias e jurisprudenciais, aprecia a natureza jurídica da reserva de propriedade e alude á trilateralidade do negócio em causa.
Neste ponto, refere que “nos casos em que o vendedor é simultaneamente o financiador da aquisição não tem levantado problemas a validade desta cláusula. Contudo, nos casos, como o dos autos, em que o financiador é um terceiro, uma parte da jurisprudência e da doutrina tem entendido que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador é nula por impossibilidade legal do objecto da estipulação (art. 280.º do CC) ou por violação de normas imperativas (arts 408.º, 409.º e 294.º do CC)”.
Acrescenta, então, que “o panorama das relações jurídico-económicas da época, nestes casos, era praticamente limitado à venda a prestações, suportando o vendedor o risco do crédito. Todavia, essa não é a realidade actual. Hoje, o financiamento de aquisições a crédito é geralmente assegurado por uma instituição financeira especializada. Esta modalidade de negócio trilateral veio substituir a tradicional venda a prestações, não sendo habitual que seja o vendedor a assumir o risco do crédito. A venda a prestações, o principal domínio de aplicação da reserva de propriedade à data da elaboração do Código Civil, já não corresponde à realidade socioeconómica presente. E, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, o intérprete tem de tomar em consideração as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada, estando a interpretação actualista legitimada pelo Código Civil e pela teoria do direito.
Na prática, a cláusula de reserva da propriedade mais não é, afinal, do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito, desde a data em que foi elaborado o Código Civil.
A utilização da reserva de propriedade a favor do financiador resulta da evolução socioeconómica e representa a resposta do sistema a novas necessidades do comércio jurídico, devido à insuficiência do modelo tradicional de garantias do crédito, sobretudo das garantias reais”.
Criticando a tese da invalidade da clausula de transmissão da reserva de propriedade ao financiador/mutuante, acrescenta que tal “conduziria a um resultado insólito, que não pode ter sido pretendido pelo legislador, cuja razoabilidade se presume: ou a propriedade reservada se mantém na titularidade do vendedor, que fica enriquecido por manter a propriedade e receber a totalidade do preço do financiador; ou a propriedade se transfere para o comprador, no momento do pagamento pelo terceiro, adquirindo aquele a propriedade plena sem ter pago o preço, resultado contrário ao fim visado pelo legislador. Nas duas hipóteses, o terceiro financiador fica impedido de beneficiar da função de garantia visada pela reserva de propriedade. Ou seja, esta cláusula perde as suas virtualidades.
Em termos lógicos e de coerência valorativa, não faz sentido que a garantia da reserva de propriedade se verifique em relação ao vendedor, que recebe a totalidade do preço do financiador, quando é este último que corre o risco do não pagamento do preço pelo comprador, nem faz sentido que a propriedade se transfira para o comprador que deve, ainda, a quantia mutuada.
Por último, também não pode dizer-se que o sentido proposto para o art. 409.º não tenha qualquer correspondência no texto da lei: o Código Civil admitiu a cláusula de reserva de propriedade com grande amplitude e a expressão contida na norma “qualquer outro evento”, pela sua abertura, é susceptível de incluir o pagamento das prestações de um contrato de mútuo ao financiador, afinal, o credor do preço da venda”.
Defende, assim, a validade da cessão da reserva de propriedade do vendedor/alienante para o financiador/mutuante, tendo por subjacente, no essencial, os seguintes argumentos:
1) A natureza da propriedade reservada como um direito que assume uma função de garantia do crédito.
2) Uma interpretação actualista que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades actuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro.
3) O princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato de cessão da reserva de propriedade ao terceiro financiador, da mesma forma que permite a celebração de contratos inominados, atípicos ou mistos, que surgem habitualmente por iniciativa dos agentes económicos, só vindo a ser regulamentados na lei posteriormente.
4) A natureza dispositiva, e não imperativa, das normas dos artigos 408.º e 409.º do Código Civil”.
E, na consideração da admissibilidade do instituto da sub-rogação, aduz que através deste “recebendo o vendedor a totalidade do preço do financiador, os seus direitos enquanto alienante, resultantes da reserva de propriedade, transmitir-se-iam para aquele, juntamente com o crédito do preço, por sub-rogação, figura prevista e regulada nos artigos 589.º e segs.
Como vimos, não existe qualquer proibição legal de que o titular possa ceder a sua propriedade reservada com função de garantia, como, em regra, se pode transferir um direito de crédito acompanhado da respectiva garantia a um terceiro. A transmissão da cláusula de reserva de propriedade para o financiador seria então, uma situação equivalente à transmissão de créditos garantidos por penhor ou hipoteca em conjunto com o penhor ou com a hipoteca, mas não equivalente a uma cessão da posição contratual do vendedor. A cessão restringe-se à reserva de propriedade, como garantia do crédito, e não à posição contratual do vendedor, continuando, pois, a ser este que responde perante o comprador pelo incumprimento ou pelo cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, assumindo, nomeadamente, a responsabilidade pelos vícios da coisa alienada”.
Pelo que, em “consequência do pagamento com sub-rogação, a cláusula de reserva de propriedade transmite-se para o financiador, que passa a ser o titular da propriedade reservada com função de garantia. Nesta hipótese, o crédito não se extingue, alterando-se apenas o seu sujeito activo e transmitindo-se para o solvens o crédito, as suas garantias e os seus acessórios”.
O presente aresto tem um voto de vencido, correspondente à 3ª posição enunciada, no sentido de que “atento o disposto nos Artºs 409º nº1 do C.C. e 5º nº1 b) do D.L. 54/75, pensamos que só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/ proprietário clausular a reserva de propriedade.
O contrato de mútuo que a A. celebrou com a Ré, não é, evidentemente, um contrato de alienação e a A. nunca adquiriu a propriedade do veículo em causa, limitando-se a financiar a aquisição.
Assim sendo, não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo não se vê como possa reservar para si a propriedade de algo que nunca foi sua, e, com base na titularidade da reserva, obter a declaração de propriedade sobre um veículo que nunca lhe pertenceu, conseguindo a sua restituição definitiva, aliás, corolário da qualidade de proprietária”.
Em contraponto, podem enunciar-se, entre outras, as seguintes decisões judiciais dos Tribunais Superiores que sufragam a 3ª posição enunciada, acolhida na decisão apelada (todos em www.dgsi.pt):
- desta Relação de 17/12/2015 – Relatora: Maria Teresa Pardal, Processo nº. 8075/14.9T8LSB.L1-6 -, no qual, para além de não se admitir a estipulação de cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante, também não admite a transmissão da mesma cláusula, por parte do alienante, por cessão da posição contratual do alienante ou por sub-rogação dos seus direitos, porque “o alienante ao receber o preço da compra, deixa de gozar do direito conferido pelo artº. 409º, não podendo transmitir ao mutuante a reserva de um direito de propriedade que já não tem e que foi transmitida para o comprador mutuário”.
O presente Acórdão tem um voto de vencido, defensor da tese sufragada no já exposto Acórdão do STJ de 30/09/2014 ;
- desta Relação de 19/11/2019 – Relatora: Maria Amélia Ribeiro, Processo nº. 13914/19.5T8LSB.L1-6, acerca de situação fáctica idêntica á dos presentes autos -, no qual, seguindo-se, de perto, aresto do STJ de 02/10/2007, e em consonância com a posição que a Exma. Relatora havia assumido no supra citado Acórdão de 15/03/2011, sumariou-se que “em caso de incumprimento do contrato de mútuo, o financiador não pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade”.
No caso concreto a cláusula de reserva de propriedade também havia sido estabelecida a favor do alienante, com posterior transmissão para o financiador, com sub-rogação deste nos direitos do alienante, tal como acontece no caso sub júdice ;
- da RC de 08/03/2016 – Relatora: Sílvia Pires, Processo nº. 934/15.8T8LMG.C1 -, que se reporta a situação em que a cláusula de reserva de propriedade foi estipulada a favor da financiadora/mutuante, a qual considera legalmente impossível e, como tal, nula, nos termos do nº. 1, do artº. 280º, do Cód. Civil.
Segue, de perto, a posição assumida pelo Conselheiro Moreira Alves no voto de vencido proferido no citado Acórdão do STJ de 30/09/2014, referindo expressamente que o “art.º 409º do C. Civil não pode ser aplicado, por analogia, a esta situação, uma vez que não é possível equiparar a posição do alienante, proprie­tário de um bem que aliena, a quem é atribuída a possibilidade de convencionar a suspensão dos efeitos translativos do contrato de alienação, com a do mutuante, que não é proprietário desse bem, limitando-se a financiar a sua aquisição” ;
- do STJ de 12/07/2011 – Relator: Garcia Calejo, Processo nº. 403/07.0TVLSB.L1.S1 -, que se reporta a situação em que a cláusula de reserva de propriedade foi estabelecida a favor do alienante, com posterior transmissão para o financiador, com sub-rogação deste nos direitos do alienante.
Sumariou-se no mesmo que “a disposição constante do art. 409.º, n.º 1, do CC, apenas permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa e já não ao (eventual) financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação.
V - Suspendendo, a cláusula em questão, somente os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só nesse tipo de contrato pode ser estipulada, não sendo válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante constante do contrato de mútuo, porque legalmente inadmissível, face ao disposto no art. 409.º, n.º 1, do CC.
VI - Sendo nula tal cláusula, nos termos do art. 294.º do CC, é evidente que não pode produzir o efeito da transferência de propriedade do bem da vendedora para o financiador.
VII - A expressão “outro evento”, constante do art. 409.º, n.º 1, do CC, diz respeito ao próprio contrato de alienação e não a qualquer outro, mesmo que relacionado com ele”.
Todavia, o mesmo aresto parece admitir a sub-rogação inscrita no artº. 591º, do Cód. Civil, sendo o cumprimento efectuado pelo devedor, ainda que com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro, exigindo, porém, “a declaração expressa, no documento de empréstimo, de sub-rogação feita pelo devedor ao mutuante”, a qual considera não existir no caso concreto ;
- do STJ de 10/07/2008 – Relator: Santos Bernardino, Processo nº. 08B1480 -, referente a situação em que foi estipulada cláusula de reserva de propriedade no contrato de mútuo a favor do financiador/mutuante.
Sumariou-se neste ser “pressuposto do recurso à providência cautelar de apreensão, prevista nesse diploma, a existência de um contrato de alienação de veículo, em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade, só dela podendo lançar mão o alienante.
3. E tal não é contrariado pelo disposto na al. f) do n.º 3 do art. 6º do Dec-lei 359/91, de 21 de Setembro – diploma que rege sobre os contratos de crédito ao consumo – que tem em vista apenas as situações em que o crédito é concedido para financiar o pagamento de um bem alienado pelo próprio credor, ou seja, em que a pessoa ou entidade financiadora é a detentora do direito de propriedade do bem alienado.
4. No contrato de mútuo, celebrado para financiamento da aquisição, pelo mutuário, de um veículo automóvel, não pode o financiador reservar para si o direito de propriedade sobre o veículo, uma vez que, não sendo seu dono, nada vendeu: o contrato de mútuo não é um contrato de alienação, constituindo uma contradição nos próprios termos alguém reservar um direito de propriedade que não tem.
5. Não pode falar-se, sem mais, em sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, nos termos dos arts. 589º e seguintes do CC, pois a sub-rogação voluntária assenta sempre num contrato, realizado entre o credor e terceiro ou entre o devedor e terceiro, devendo ser, em qualquer caso, expressamente manifestada a vontade de sub-rogar, e exigindo-se, quanto à sub-rogação a favor do terceiro mutuante, que seja feita, no documento do empréstimo, a declaração de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.
6. A interpretação actualista deve ser aplicada com a necessária prudência, estando, logo à partida, condicionada pelos factores hermenêuticos, designadamente pela ratio da norma interpretanda e pelos elementos gramatical e sistemático.
7. No art. 409º n.º 1 do CC, quer o elemento gramatical, quer o escopo ou finalidade visado pela norma, afastam a possibilidade de uma interpretação actualista, no sentido de alargar o seu alcance ao contrato de mútuo ou financiamento, mesmo quando se trate de um contrato de mútuo a prestações conexionado com o contrato de compra e venda do bem financiado, sendo, ademais, certo que o financiador não se acha totalmente desprotegido, pois tem meios ao seu dispor para fazer face a eventual incumprimento do mutuário.
8. E o mesmo se dirá quanto ao art. 18º/1 do já citado Dec-lei 54/75: nem a sua letra nem o seu espírito consentem interpretação que leve a considerar que, à necessária acção de resolução do contrato de alienação, de que a providência de apreensão de veículo automóvel constitui dependência, possa equivaler a eventual instauração de uma acção de resolução do contrato de mútuo.
9. É, assim, nula, porque legalmente impossível, a cláusula de reserva de propriedade, incluída em contrato de financiamento, a favor do financiador que mutuou o preço da aquisição do veículo, não tendo este, em consequência do incumprimento, pelo mutuário, do contrato de mútuo, direito à entrega do dito veículo”.
III) Da aplicabilidade ao caso concreto
Aqui chegados, é tempo de retornar ao caso concreto, e apreciar acerca da (im)pertinência do decidido.
In casu, o Requerente, enquanto financiador/mutuante, celebrou com o Requerido, enquanto cliente/mutuário, um contrato de financiamento para aquisição a crédito de um veículo automóvel, figurando como vendedora deste a Ford Lusitana, S.A..
Consta de tal contrato que o montante total financiado é no valor de 26.540,52 €, sendo o montante total imputado cliente de 32.191,40 € - cf., factos 7. e 8.-, a reembolsar em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor unitário de 503,30 € - cf., facto 9..
Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora do veículo, a referenciada Ford Lusitana, S.A., até que se mostrasse liquidado, na íntegra, o contrato de financiamento celebrado, cf., cláusulas 2. e 12. das Condições Particulares e cláusula B. das Condições Gerais do referido Contrato.
Por sua vez, a mesma vendedora do veículo – Ford Lusitana, S.A. - cedeu à Requerente mutuante, com o consentimento do Requerido devedor, a titularidade da referida reserva de propriedade, nos termos da mesma cláusula 12. das Condições Particulares e da cláusula B. das Condições Gerais do Contrato supra mencionado – cf., factos 3. e 4. -, encontrando-se tal reserva de propriedade registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor da Requerente – cf., facto 5..
O Requerido mutuário deixou de pagar, em 21/11/2017, as prestações contratualmente outorgadas, correspondente à 17ª prestação e, mantendo tal incumprimento, a Requerente mutuante/financiador enviou-lhe carta registada com aviso de recepção, com data de 25.02.2019, através da qual lhe dirigiu uma interpelação para pôr termo à mora no prazo de quinze dias, considerado razoável para o efeito.
Decorrido tal prazo, e não tendo o Requerido posto termo à mora, a Requerente notificou-a, por carta registada com aviso de recepção, datada de 25.03.2019, da resolução do Contrato de Financiamento – cf., factos 11. a 13..
Consta sob a aludida Cláusula 2. das Condições Particulares do outorgado Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito, que o vendedor registado é a Ford Lusitana, S.A., mencionando-se na Cláusula 12., sob o título de Reserva de Propriedade, que “o presente contrato é celebrado com reserva de propriedade a favor do VENDEDOR REGISTADO identificado no número 2 das presentes Condições Particulares, nos termos e para os efeitos das Condições Gerais deste Contrato constantes da página 2 à página 5 do mesmo. O VENDEDOR REGISTADO cedeu ou cederá á FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade , e o cliente desde já preta o seu consentimento a tal cessão”.
Por sua vez, consta sob a Cláusula B. das Condições Gerais do mesmo contrato, igualmente sob o título de Reserva de Propriedade, que “nos termos do disposto no artigo 409º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas pelo CLIENTE à FCE BANK, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá á FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade. O CLIENTE presta o seu consentimento a tal cessão. Nos termos do disposto no artigo 591º do Código Civil, o CLIENTE sub-roga a FCE BANK nos direitos do VENDEDOR REGISTADO, decorrentes da reserva de propriedade. As despesas inerentes á constituição, registo e cancelamento da reserva de propriedade são da exclusiva responsabilidade do CLIENTE”. 
Por fim, sob a Cláusula H. das mesmas Condições Gerais, sob a epígrafe Devolução, consta que “após a comunicação da resolução deste Contrato ao CLIENTE este fica obrigado a entregar de imediato, e independentemente de interpelação para o efeito, o veículo à FCE BANK acompanhado da respectiva documentação, nomeadamente do Documento Único Automóvel, da Declaração de Entrega e do Requerimento de Registo Automóvel, este último, preenchido de forma a autorizar a venda do veículo, devendo a entrega ser efectuada no Concessionário autorizado mais próximo”. 
Ora, quer se sufrague a 1ª posição elencada - que admite a constituição, ab initio, da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora do contrato de alienação -, quer se perfilhe a 2ª posição enunciada (a que propendemos, por considerarmos pertinente o argumentário supra exposto) - que considera que a cláusula de reserva de propriedade só pode ser estipulada a favor do alienante, mas que tal não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante/financiador, sendo posteriormente transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do vendedor/alienante -, não se poderá deixar de concluir pela validade da constituição da cláusula de reserva de propriedade.
Com efeito, a mesma foi constituída no âmbito do contrato de alienação, ou seja, no âmbito do contrato de compra e venda, outorgado entre a vendedora Ford Lusitana, S.A. e o adquirente ora Requerido, pelo que, nada impedindo legalmente a sua constituição, é aquela perfeitamente válida e dotada de plena eficácia.
Todavia, no caso concreto, para além daquela constituição da reserva de propriedade a favor da alienante (vendedor registado), está igualmente em equação a transmissão daquela a favor do financiador mutuante, com a consequente sub-rogação deste nos direitos do vendedor/alienante.
Com efeito, o ora Requerente, ao cumprir a obrigação perante a vendedora alienante (quer directamente, quer disponibilizando o dinheiro para o efeito ao devedor), é colocada na posição desta, passando a ter os direitos que anteriormente pertenciam à vendedora, passando a deter a aludida titularidade de uma propriedade reservada para garantia do seu crédito.
O que ocorreu in casu, em que o preço terá sido liquidado junto da vendedora do veículo, ainda que se desconheça, em concreto, se tal ocorreu directamente pelo financiador/mutuante, ou pelo adquirente/mutuário com o produto do financiamento obtido (o que parece resultar indiciado, atento o teor da sub-rogação feita constar na Cláusula B. das Condições Gerais, em que se alude ao artº. 591º, do Cód. Civil).
Acresce que, nos termos supra expostos, no caso em análise, a estipulada cláusula de reserva de propriedade não ficou condicionada ao pagamento da totalidade do preço por parte do adquirente (ora Requerido), enquanto contraparte no contrato de compra e venda, mas antes à verificação de um qualquer outro evento que, no caso concreto, era o da liquidação de todas as prestações acordadas no âmbito do contrato de financiamento, isto é, no mútuo outorgado.
Com efeito, a cláusula B. das condições gerais do contrato de financiamento, significa, no contexto em que foi proferida, de acordo com os critérios do art. 236.º, n.º 1 do Cód. Civil, uma declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante/financiador fica sub-rogado, pelo devedor, nos direitos do credor - art. 591.º, nºs 1 e 2 do CC.
O que se configura, nos termos supra expostos, como legalmente admissível, pois aquele outro evento não tem que necessariamente reportar-se ao âmbito ou efeitos do contrato de alienação em causa.
Por outro lado, no que concerne aos pressupostos da sub-rogação, a factualidade fixada evidencia a sua verificação.
Efectivamente, é inquestionável que o contrato de financiamento outorgado destinou-se á aquisição do veículo automóvel por parte do Requerido, acabando a reserva estipulada por servir de garantia do pagamento de tal empréstimo ou mútuo, sendo que a vontade de sub-rogar encontra-se expressamente manifestada, conforme resulta do teor da citada Cláusula B. das Condições Gerais. 
Estipulada a admissibilidade da estipulação da cláusula de reserva de propriedade para a vendedora/alienante, subordinada ao pagamento do crédito do Requerente mutuante, a que se seguiu a transferência da reserva de propriedade para o mesmo mutuante/financiador, com sub-rogação deste nos direitos da vendedora/alienante, acrescentamos que se perfilha o entendimento de uma necessária actualização na interpretação do transcrito nº. 1, do artº. 18º, do DL nº. 54/75, de 12/02.
O que determina que, no reconhecimento da validade do aduzido negócio trilateral de alienação financiada, deva concluir-se pela inexistência de qualquer óbice a que o incumprimento definitivo do contrato de mútuo, que ocorreu in casu, possa servir de base á presente providência cautelar, bem como de causa de resolução daquele negócio triangular de compra e venda dependente do mútuo que originou a reserva, a fundar a posterior acção principal de resolução inscrita na parte final do nº. 1, do mesmo artº. 18º.
Prosseguindo a análise em curso, cumpre agora, apenas, aferir acerca do eventual preenchimento dos requisitos ou pressupostos de deferimento da presente providência cautelar especificada [9].
De regresso, novamente, ao Acórdão desta Relação de 12/08/2013, na parte em que cita Moitinho de Almeida [10], as condições de exercício da mesma são elencadas, ainda que carecendo de alguma actualização, da seguinte forma: “(i) a registo da reserva de propriedade a favor da requerente (art. 5/1/b) do DL 54/75); (ii) incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade por parte da requerida (arts. 15 e 16 do DL 54/75); (iii) esse incumprimento, não consista apenas na falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço (art. 934 do CC); (iv) estando a requerida em mora, a requerente a tenha interpelado para pôr termo à mesma em prazo razoável, ou que exista uma situação equiparada: perda de interesse, recusa de cumprimento, etc. (arts. 808 e 801, ambos do CC)”.
Ora, a factualidade considerada sob os nºs. 5. e 11. a 14., tal preenchimento afigura-se-nos inequívoco ou concludente, conducente a um necessário juízo de deferimento da presente providência ou procedimento cautelar.
Por todo o exposto, julga-se a presente apelação procedente, determinando-se a revogação da decisão apelada de indeferimento liminar, que se substitui pela presente decisão de deferimento/decretamento da requerida providência cautelar, determinando-se, consequentemente,  a apreensão do veículo de marca Ford, modelo TRVAN350L4TRE, com a matrícula …-SZ-…, e respectivos documentos, através das autoridades policiais competentes, e sua posterior entrega ao indicado depositário.
*
No que concerne à tributação:
- as custas do presente procedimento cautelar é, por ora, fixada a cargo do Requerente, a atender, a final, na respectiva acção principal – cf., artº. 539º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil ;
- relativamente à presente apelação, obtendo o Requerente/Apelante/Recorrente vencimento na pretensão recursória, sem que tenha ocorrido intervenção processual do Requerido/Recorrido/Apelado, decide-se pela sua não tributação.
***
IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante/Recorrente/Requerente FCE BANK PLC ;
b) Em consequência, decide-se revogar a decisão apelada de indeferimento liminar, que se substitui pela presente decisão de deferimento/decretamento da requerida providência cautelar, determinando-se, consequentemente, a apreensão do veículo de marca Ford, modelo TRVAN350L4TRE, com a matrícula …-SZ-…, e respectivos documentos, através das autoridades policiais competentes, e sua posterior entrega ao indicado depositário.
Relativamente à tributação:
- as custas do presente procedimento cautelar é, por ora, fixada a cargo do Requerente, a atender, a final, na respectiva acção principal – cf., artº. 539º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil ;
- obtendo o Requerente/Apelante/Recorrente vencimento na pretensão recursória, sem que tenha ocorrido intervenção processual do Requerido/Recorrido/Apelado, decide-se pela não tributação da presente apelação.                        
--------
Lisboa, 09 de Janeiro de 2020
Arlindo Crua
António Moreira
(Vencido, nos termos constantes da Declaração que segue)
Carlos Gabriel Castelo Branco
***
Vencido, por concordar com os fundamentos expressos na decisão recorrida para indeferir liminarmente o requerimento inicial, especialmente quanto ao afastamento da necessidade da interpretação actualista do D.L. 54/75, de 12/2.
Com efeito, e para além do argumento aí apresentado, no sentido da entidade mutuante não estar desprotegida, já que sempre lhe era permitido recorrer à constituição de hipoteca sobre o veículo automóvel cuja aquisição é financiada (e sendo que o “acesso” a tal instrumento jurídico de garantia decorre claramente do disposto no art.º 4º do D.L. 54/75, de 12/2), importa salientar que as afirmações constantes do referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/9/2014 (relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt), quer no sentido de que “a cláusula de reserva da propriedade mais não é, afinal, do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito, desde a data em que foi elaborado o Código Civil”, quer no sentido de que “a utilização da reserva de propriedade a favor do financiador resulta da evolução socioeconómica e representa a resposta do sistema a novas necessidades do comércio jurídico, devido à insuficiência do modelo tradicional de garantias do crédito, sobretudo das garantias reais”, não reflectem a realidade nem decorrem de qualquer factualidade verificada, ainda que sob a forma de factos públicos de notórios.
Com efeito, afirmar que o tráfico negocial evoluiu ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito mais não representa que o reconhecimento que institutos negociais históricos e sedimentados, como a compra e venda ou como o mútuo, continuam a ser utilizados como antes da entrada em vigor do Código Civil de 1966 (e já assim eram utilizados no domínio do Código de Seabra). Que é o mesmo que afirmar que carecem apenas de ser aplicados tendo em atenção “as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (conforme dispõe o nº 1 do art.º 9º do Código Civil), mas já não com recurso a uma interpretação que vai além da sua letra e espírito.
Do mesmo modo, afirmar que a utilização do instituto da reserva de propriedade como meio de garantia do financiador é a resposta do sistema à insuficiência do modelo tradicional de garantias reais é esquecer a existência do instituto da hipoteca, seu alcance e modo de exercício. É que a menção feita no D.L. 54/75, de 12/2, ao “crédito hipotecário” (nº 1 do art.º 15º) e ao “vencimento do crédito” (nº 1 do art.º 16º) é quanto basta para concluir que o sistema apresenta uma resposta adequada e eficaz às necessidades de garantia do mutuante financiador de aquisições de veículos automóveis, através da faculdade de recurso à mais tradicional das garantias, como é a hipoteca.
Por outro lado, e quanto ao afirmado “resultado insólito” (porque contrário ao fim visado pelo legislador), que consiste na circunstância da propriedade se transferir “para o comprador, no momento do pagamento pelo terceiro [o mutuante], adquirindo aquele [o comprador] a propriedade plena sem ter pago o preço”, assim seria se o preço (entendido o mesmo como a contrapartida pecuniária da entrega da coisa vendida) não estivesse satisfeito na sua totalidade ao vendedor. Mas é exactamente porque o bem é entregue pelo vendedor ao comprador, do mesmo passo que este providencia pela satisfação integral da obrigação de pagamento do preço (ainda que com recurso à quantia emprestada pelo mutuante) que não há que falar em qualquer resultado não querido pelo legislador, mas apenas e tão só aos efeitos típicos do contrato de compra e venda.
Assim, e porque se entende estarem afastados os argumentos jurisprudenciais decisivos para afirmar a necessidade da interpretação actualista do D.L. 54/75, de 12/2, com a consequente afirmação do direito da requerente à peticionada apreensão de veículo, seria de manter a decisão recorrida.

Lisboa, 9/1/2020
António Moreira
_______________________________________________________
[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Relator: Pedro Martins, Processo nº. 3225/12.YXLSB-2, in www.dgsi.pt , citado nas alegações recursórias e que trata situação factual semelhante à dos presentes autos.
[3] Algumas reflexões em torno da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, publicado nos Estudos em Comemoração do 10º aniversário da licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Almedina, 2004, págs. 640 a 643.
[4] Cf., págs. 390/391, parte do ponto 6.3.3., na referida versão.
[5] ROA de 1983/III, pág. 607.
[6] Direito das Obrigações, vol. III, contratos em especial, 3ª edição, 2005, Almedina, pág. 52.
[7] Referencie-se, ainda, pela sua pertinência, a citação da Decisão Individual desta Relação de 10/01/2008 – Processo nº. 10958/2007-7 -, aí se referenciando que “contrariamente ao referido na decisão agravada não existe qualquer obstáculo a que a reserva de propriedade (a favor do transmitente) fique condicionada pelo pagamento de prestações a terceira entidade. Com efeito, o art. 409/1 do CC, legitima que a transferência da propriedade fique dependente da “verificação de qualquer outro evento”, o que tanto nos pode reconduzir a um evento directamente emergente do contrato, como a um evento com ele apenas indirectamente relacionado, como ocorre com o cumprimento do contrato de financiamento celebrado com terceira entidade com vista à aquisição do bem”.
[8] Urge, assim, acentuar a necessária destrinça entre o conceito de reserva de propriedade a favor de terceiro, que surge como legalmente inadmissível, e o de reserva de propriedade subordinada ao pagamento a terceiro, legalmente admissível nos termos da parte final do citado nº. 1, do artº. 4098º, do Cód. Civil.
[9] Consideramos ser totalmente dispensável a produção de prova testemunhal, considerando-se suficiente e bastante a prova documental produzida pelo Requerente, que determinou a fixação da matéria factual enunciada.
[10] O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 3ª ed, Coimbra Editora, 1998, págs. 29/30.