Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2841/2007-6
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1 - Pretendeu-se, através do registo das provas produzidas ao longo da audiência de discussão e julgamento, alcançar um triplo objectivo, entre os quais se destaca a ampliação das garantias das partes no processo, e nessa perspectiva, a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes a real possibilidade de reacção quanto a eventuais incorrecções, pelo respectivo julgador, ocorridas na apreciação das provas.
2 - Por sua vez, tal gravação das audiências finais, determinou a criação de um especial ónus de alegação para a respectiva parte.
3 - Sendo completamente inaudíveis os registos dos depoimentos gravados, a parte que tenha interposto recurso da decisão proferida pelo Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto, vê-se impedida de exercer o seu direito de recurso com tais fundamentos.
4 – Assim sendo, a falta de gravação ou a sua deficiência, nos casos em que a lei a prevê, porque influi decisivamente na decisão da causa, constitui a omissão de um acto prescrito por lei.
5 - O que vicia o julgamento da matéria de facto e, consequentemente, os actos seguintes, porquanto se tem de extrair da deficiência da gravação o efeito próprio de uma nulidade processual: o de anulação e repetição do acto viciado e dos actos posteriores que dele dependam.
(A.L.G.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – 1. T, Lda. intentou os presentes embargos de executado contra:
S, S.A.
Alegando, em síntese, que não deve qualquer quantia à Exequente “Sapa Portugal”, porquanto, a dívida titulada pela letra dada à execução já foi paga pela Executada, aqui Embargante.
Facto que é do perfeito conhecimento da Embargada, pedindo, assim, a condenação desta como litigante de má-fé e a consequente indemnização à Embargante no valor de 2.493,99 Euros.

2. A Embargada deduziu defesa por impugnação, argumentando que as quantias pagas pela Embargante não dizem respeito à dívida titulada pela letra, a qual se encontra por pagar.
Peticiona, igualmente, a condenação da Embargante como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da Embargada em valor não inferior a 3.000,00 Euros.

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento o Tribunal “a quo” julgou os presentes embargos de executado totalmente improcedentes, por não provados.

4. Inconformada a Embargante Apelou, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:

1. A ora Recorrente requereu a gravação da prova testemunhal, a produzir em sede de audiência de discussão e julgamento, requerimento que foi deferido;
2. Sendo que o depoimento da testemunha Odete Pereira, que reputa de essencial, sobretudo quando foi interrogada pelo mandatário da ora apelante, gravado em registo magnético na 2ª parte do lado A da cassete entre as rotações 90 e 584, encontra-se totalmente inaudível;
3. A ora Recorrente só teve conhecimento deste facto, após ter pedido cópia da gravação da audiência, em 22 de Dezembro de 2006, e após ter sido proferida a sentença recorrida e de ter interposto recurso da mesma;
4. Sendo impossível a audição e transcrição dos depoimentos da referida testemunha, verifica-se um impedimento na reapreciação da prova facultada às partes nos termos dos artigos 522º-B e 522º-C, na perspectiva do cumprimento dos ónus previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 690º-A, pelo que tem manifesta influência na decisão da causa;
5. As deficiências do registo magnético constituem uma irregularidade que influi no exame e na decisão da causa, o que importa nulidade do acto e dos subsequentes e absolutamente dependentes (artigo 201º, nos 1 e 2, do C.P.C)
6. Pelo que, nos termos das disposições legais referidas, deve ser declarada a nulidade de carência do registo gravado dos depoimentos prestados em audiência, que vicia, ab initio, o julgamento da matéria de facto, determinando-se a repetição dos depoimentos carenciados.

5. Nas contra-alegações apresentadas, e sobre a presente matéria da gravação da prova, a Embargada/Exequente pronuncia-se no mesmo sentido – o de que a prova se mostra inaudível – referindo que, por tal facto, o julgamento deve ser repetido – cf. fls. 342, pontos 14) a 16) das suas contra-alegações.

6. Tudo Visto,
Cumpre Apreciar e Decidir.

II – Enquadramento Jurídico:
1. Na presente Apelação impõe-se, antes de mais, apreciar a questão suscitada pela Recorrente quanto ao facto de saber se se deve proceder à anulação do julgamento, uma vez que tendo sido requerida a gravação da prova testemunhal, o depoimento da sua testemunha ficou completamente inaudível.
Sobre a presente matéria se pronunciou igualmente a Recorrida, no mesmo sentido, dando, pois, razão à Recorrente nesta parte, conforme decorre expressamente do teor das conclusões nºs 14) a 16), das contra-alegações apresentadas.
Pelo que, a conclusão a extrair não poderá ser diversa.
Vejamos porquê.

2. Resulta dos autos que a Embargante requereu a gravação da prova. E que o Tribunal “a quo” procedeu à mesma.
Reapreciada a sua audição constata-se que:
- só foram ouvidas duas testemunhas em julgamento;
- o depoimento de ambas, maxime o daquela testemunha que a Recorrente reputa de essencial – apresenta-se inaudível, sem qualquer registo magnético.
Ora, dispõe o art. 522º-B, do CPC, que as audiências finais e os depoimentos nele prestados são gravados sempre que alguma das partes o requeira por não prescindir da documentação da prova nela produzida.
Sendo a gravação efectuada por sistema sonoro, nos termos que constam do art. 522º-C do CPC.
Normativos introduzidos no ordenamento jurídico com a reforma do processo civil pelos Decretos-Leis nº 329-A/95, de 12 de Dezembro e nº 39/95, de 15 de Fevereiro.

3. Este último diploma regulamentou especificamente a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida.
E o seu preâmbulo assinala claramente as funções desempenhadas pela documentação ou registo das audiências finais e da prova produzida.
De acordo com o mesmo, pretendeu-se, através do registo das provas produzidas ao longo da audiência de discussão e julgamento, alcançar um triplo objectivo:
- Em primeiro lugar, tal registo amplia as garantias das partes no processo, e nessa perspectiva, cria um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa a real possibilidade de reacção quanto a incorrecções na apreciação das provas pelo julgador e quanto à fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito;
- Em segundo lugar, o registo dos depoimentos prestados em audiência constitui o meio mais idóneo para evitar que aqueles que depõem intencionalmente deturpem a verdade dos factos, inquinando as respostas à matéria de facto e respectiva motivação;
- Finalmente, o registo das audiências e da prova nelas produzida configura-se, ainda, como instrumento adequado para auxiliar de forma relevante o próprio julgador sobre as matérias sobre as quais foram sendo prestados os sucessivos depoimentos.
Pode dizer-se, em síntese, que a gravação integral da audiência contribui de forma relevante para o atingimento dos fins do registo da prova, responsabilizando não só mais eficazmente todos os intervenientes, como permitindo também um julgamento da matéria de facto mais passível de correcção de eventuais erros de julgamento. (1)

4. Por sua vez o estabelecimento da possibilidade da gravação das audiências finais, ao implicar a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, determinou a criação – particularmente para o Recorrente que impugna a decisão proferida sobre a prova gravada ou registada – de um especial ónus de alegação, em consequência do preceituado no art. 690º-A do CPC. (2)
Este especial ónus de alegação, a cargo do Recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das Relações (resultantes da nova redacção do art. 712º do CPC) e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta. (3)
Daí que se estabeleça no art. 690º-A do CPC que o Recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto.
É, pois, inquestionável, que o registo da prova tem a utilidade de permitir ao Tribunal, em caso de dúvida sobre a decisão da matéria de facto, a reconstituição do conteúdo do acto de produção da prova e a função de permitir às partes o recurso dessa decisão, que de outro modo escaparia ao controlo do Tribunal da Relação.

Ora, não sendo audíveis os registos dos depoimentos gravados, a parte que tenha interposto recurso da decisão proferida pelo Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto vê-se impedida de exercer o seu direito de recurso com tais fundamentos, ficando coarctada a possibilidade de salientar quaisquer incongruências ou discrepâncias entre o que a testemunha realmente disse em julgamento e o que o Tribunal deu efectivamente como provado.

5. Efectivamente, no caso sub judice, constata-se que:
a) Foi requerida a gravação da prova.
b) Na audiência de discussão e julgamento apenas compareceram duas testemunhas:
- uma da embargante;
- outra da embargada.
c) Após a sua audição o Tribunal “a quo” considerou como “não provados” os dois únicos quesitos que integravam a base instrutória, tendo exarado, na fundamentação, que o depoimento de ambas “foi contraditório”, tendo a testemunha da embargada respondido “exactamente de modo oposto” – cf. fls. 177 e segts.
d) Tentada, por nós, a audição dos depoimentos das testemunhas inseridos na respectiva cassete, para reapreciação da prova produzida, verificou-se que as mesmas se encontram completamente inaudíveis, sem qualquer som, ficando-se inclusivamente sem saber se se procedeu a qualquer gravação, pois das cassetes nenhum som se retira.

Ora, tendo a Apelante recorrido da decisão da matéria de facto e considerado que o depoimento da testemunha O se encontra inaudível, e sendo o mesmo essencial para a prova dos factos carreados nos autos, a conclusão a que se tem de chegar, em face da inexistência de gravação, é que as verificadas deficiências do registo magnético são impeditivas da reapreciação da prova nos termos dos arts. 522º-B e 522º-C, ambos do CPC, na perspectiva do cumprimento dos ónus previstos nos nºs 1 e 2 do art. 690º-A, do CPC.
E a falta de gravação ou a sua deficiência, nos casos em que a lei a prevê, porque influi decisivamente na decisão da causa, constitui a omissão de um acto prescrito por lei.
O que vicia o julgamento da matéria de facto e, consequentemente, os actos seguintes, porquanto se tem de extrair da deficiência da gravação o efeito próprio de uma nulidade processual: o de anulação e repetição do acto viciado e dos actos posteriores que dele dependam.(4)
Destarte, atendendo a que essa omissão acarreta a nulidade do acto e os subsequentes que dele sejam dependentes, deve, pois, por força do preceituado no art. 201º do CPC, proceder-se à repetição do julgamento com a realização da gravação da respectiva prova testemunhal em termos adequados e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida.

III – Decisão:
- Termos em que se acorda em julgar procedente a Apelação e, em consequência, procede-se à anulação do julgamento e actos subsequentes, revogando-se a sentença recorrida.
- Sem Custas.
Lisboa, 10 de Maio de 2005
Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
Fátima Galante
Ferreira Lopes
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1 Cf. António Abrantes Geraldes, in “Registo da Prova”, Sub Judice, Janeiro/Março 1994, págs. 65 e segts.
2 Neste sentido cf. Lopes do Rego in “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 370.
3 Cf. O preâmbulo do citado diploma legal; no mesmo sentido António Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., págs. 187 e segts.
4 Neste sentido, cf. o Acórdão do STJ., de 09 de Julho de 2002, in CJSTJ, T. II, pág. 153.