Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
44223/04.3YYLSB-A.L1-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE MÚTUO
VEÍCULO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Sumário: 1. Embora no contrato de crédito ao consumo a financiadora possa ser tida, sob ponto de vista formal, como alheia ao contrato de compra e venda, não o é contudo em termos substanciais, pelo que se a alienação não se realizar, por falta do respetivo objeto, inexistindo o veículo a transacionar, importará na não subsistência do contrato de mútuo.
2. Tendo a entidade financiadora concedido o financiamento sem os documentos do veículo ou respetiva identificação, carecendo a “Declaração” de entrega da viatura da mesma identificação, apurando-se que o veículo não existia, não se coaduna tal conduta com o contratualmente estipulado, de a entrega da quantia mutuada ser feita sempre depois da entrega do bem, e do recebimento de toda a documentação exigida para o efeito ou inerente ao contrato.
3. A financiadora não deu desse modo cabal satisfação à sua prestação, sendo que como entidade organizada, e vocacionada para este tipo de operações comerciais, poderia com maior facilidade e eficácia detetar as discrepâncias que inquinaram, de forma iniludível, o contrato de “aquisição a crédito”, e assim o mútuo referenciado, tornando inexigível a quantia correspondente, titulada na livrança que ofereceu à execução.
4. Apurado o pagamento de quatro prestações, das sessenta indicadas, por transferência bancária, tendo em conta as discrepâncias verificadas, não se pode concluir que a dedução de oposição à execução pelo mutuário, se traduza num exercício abusivo do direito.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - Relatório
1. R veio deduzir oposição nos autos de execução que lhe move S, SA., pedindo que a Exequente seja condenada a reconhecer que a letra e assinatura constantes do contrato de crédito n.º …, declaração de entrega de bem e autorização permanente de transferência bancária, não são do oponente, determinando a extinção da execução, em alternativa, seja declarada a anulabilidade do contrato de crédito por falta de objeto, determinando-se a extinção da ação executiva por falta de título.
2. Alega para tanto que não preencheu, nem assinou a livrança que serve de base à execução, negando também a responsabilidade pelo crédito invocado pelo Exequente e titulado pela livrança, porquanto não celebrou o contrato subjacente, não estando reunidos os necessários pressupostos para a existência do negócio em referência, uma vez que o financiamento se reporta a um veículo que nunca existiu, tendo sido concedido o financiamento sem que a viatura tivesse sido identificada, e feita a comprovação da sua existência, ou mesmo da respetiva aquisição.
3. A Exequente veio contestar.
4. Realizado julgamento foi proferida decisão que julgou procedente a oposição, extinguindo a execução.
5. Inconformada veio a Exequente interpor recurso de apelação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
· O presente recurso vem interposto de decisão que julga totalmente procedente a oposição, extinguindo a execução, sendo que, o tema decidendi, em apreciação centra-se na reapreciação da prova produzida e respetivo enquadramento efetuado pelo Tribunal a quo.
· Bem andou o Meritíssimo Juiz a quo quando deu por provada a autoria do Opoente quanto às assinaturas apostas em todos os documentos impugnados, designadamente a livrança, o contrato, a declaração de renúncia ao direito de revogação e instrução permanente de transferência bancária.
· Bem andou também ao concluir pela celebração voluntária do contrato, pelo Opoente, e pela assunção das obrigações que estiveram, ulteriormente, na base do preenchimento da livrança.
· Contudo, contrariamente ao expectável e em oposição à própria prova produzida nos autos, considerou não provado o pagamento do preço do bem ao fornecedor e deu uma relevância quase decisória à inexistência do veículo.
· Sucede que, a existência ou inexistência do bem não poderá ser imputada à Exequente.
· Importa aqui fixar o foco dos presentes autos: qual seja a subscrição de uma livrança, dada em garantia do bom cumprimento de um contrato de financiamento (ambos voluntariamente subscritos pelo Opoente) cujo objeto é o próprio montante do financiamento.
· A obrigação da entrega do bem recai sobre o fornecedor que, contratualmente, assume todas as responsabilidades relativas a essa mesma entrega.
· À Exequente cumpre garantir que o bem – escolhido e indicado pelo mutuário – lhe seja entregue, para então efetuar o pagamento do preço.
· A certificação da entrega do bem ocorre por meio de uma declaração a subscrever pelo mutuário, na qual é feita constar a receção do veículo financiado.
· Esta é a única forma de controlo que assiste à mutuária, a qual confia na boa fé contratual dos mutuários, que são os maiores interessados na entrega do bem.
· No caso vertente a declaração foi entregue pelo mutuário, convencendo a Exequente de que pagamento poderia ser efetuado ao fornecedor.
· Resulta provado nos autos que a Exequente cumpriu a sua obrigação, ao proceder ao pagamento do valor do empréstimo ao fornecedor, escolhido pelo mutuário, para a conta indicada expressamente e por escrito pelo próprio fornecedor, para o efeito.
· Aliás, o fornecedor, representado em audiência pelo sócio gerente – em funções à data da prática dos factos - assumiu ter enviado a comunicação escrita à S.
· Com intenção de criar, deliberada e propositadamente, a convicção na S de estar a efetuar o pagamento corretamente.
· Não seria expectável que a Exequente agisse de diferente modo, cabendo-lhe proceder à transferência conforme solicitado pela beneficiária do pagamento. Pois bem,
· No que respeita à identificação da matrícula, releva desde logo o depoimento da 1ª testemunha, N, sócio gerente do fornecedor E Ld.ª à data da celebração do contrato, o  qual depôs com clareza no que a esta matéria respeita [Minuto11:04 a 11:29].
· Deste depoimento se conclui como certo que o bem tinha de ser identificado, para garantir a sua existência.
· Porém, é certo também que a declaração a que se alude o depoimento passava por um duplo crivo – do fornecedor e do mutuário - até chegar à Exequente; à qual importava particularmente a assinatura do mutuário, comprovativa da efetiva receção do bem.
· Trata-se de uma declaração que se presume séria, consciente e que cumpre acima de tudo o interesse do próprio Cliente.
· Pelo que, da parte da Exequente, nada mais se poderia exigir.
· Relativamente à celebração do contrato sem identificação concreta da matrícula da viatura, releva igualmente o depoimento da testemunha A, que depôs de modo isento, credível e coerente [Minuto 08:18 a 09:51] [Minuto 15:48 a 17:17]
· Igualmente importante referir que, na contrainstância, a testemunha esclareceu perfeitamente o motivo pelo qual o Opoente sabia destes procedimentos, designadamente da assinatura da declaração sem matrícula e do facto de ser o próprio Cliente a pedir que a declaração fosse assim enviada.
· Esclarecendo que o Sr. R, para além de Cliente, era também parceiro comercial da S S.A., para a qual angariava alguns financiamentos. O que denota um conhecimento direto e privilegiado dos trâmites das negociações da Exequente. [Minuto 18:51 a 21:35]
· No que respeita á boa-fé da S e ao desconhecimento da inexistência do bem, explicou ainda a testemunha que à data da celebração do contrato a S desconhecia que o bem não existia. [Minuto 18:00 a 18:28]
· Diante do depoimento da 2ª testemunha da Opoente, dúvidas não subsistem de que a Exequente agiu na convicção da existência do bem e crente na boa fé do mutuário que, para além de Cliente, era parceiro comercial e, como tal, encontrava-se investido de uma dupla confiança por parte da Exequente.
· De resto, o próprio Opoente pretendeu entregar a declaração sem o preenchimento do campo destinado à matrícula. O que comprova que quis, ou pelo menos se conformou, com o resultado que constituiu o desfecho do presente financiamento.
· Todavia, esse mesmo desfecho não poderá ser imputado á Exequente, que desembolsou a quantia necessária à aquisição da viatura indicada pelo fornecedor e pelo mutuário.
· A Exequente efetuou o pagamento ao fornecedor, nos exatos termos em que o mesmo o solicitou.
· Resulta documentalmente provado nos autos a ordem de transferência e confirmação do pagamento. Resulta documentalmente provada a instrução expressa do mesmo fornecedor para que o pagamento fosse efetuado, via transferência bancária, para uma conta titulada no BCP.
· Provas corroboradas pela testemunha N que assumiu declaradamente ter remetido à S as instruções de pagamento, no intuito de a convencer da veracidade da informação [Minuto14:52 a 15:35], [Minuto17:14 a 18:11], [Minuto 21:10 a 21:34]
· Testemunha que depôs com total conhecimento dos factos, atenta a sua intervenção direta na situação sub judice.
· O depoimento da 1ª testemunha da Opoente demonstra sem qualquer margem para dúvidas, que a Exequente efetuou o pagamento por conta daquele contrato, e que o fez na convicção de estar a pagar o montante devido para a conta do fornecedor, em conformidade com instruções expressas do mesmo.
· Instruções essas que a Exequente não poderia ignorar, nem lhe era legítimo recusar, uma vez que a forma de pagamento poderá ser livremente estabelecida pelo beneficiário do pagamento!
· Motivo pelo qual, a obrigação contratual da mutuante, que se consubstancia no pagamento do preço ao fornecedor resultou cumprida;
· Deverá, pois, falecer o raciocínio do Meritíssimo Juiz a quo, que privilegia a conduta danosa e dolosa do Opoente em detrimento da Exequente cuja conduta se pautou pela lisura e correção.
· De todo o modo, ainda que assim não se entendesse, a conduta do Opoente sempre seria subsumida ao instituto do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Porquanto,
· O Opoente entregou a declaração de entrega do bem, sem a identificação da matrícula, bem sabendo que isso legitimaria a mutuante ao pagamento do preço desse mesmo bem ao fornecedor.
· O mutuário pagou quatro prestações, entre os meses de setembro de 2003 e janeiro de 2004, num total de quase Eur.:4.000,00€.
· O Opoente apenas arguiu a inexistência do bem, em sede de execução, volvidos cerca de três anos desde a celebração do contrato.
· Em suma, o Opoente manifestou durante um prolongado hiato temporal a sua concordância com o contrato, sem alegar qualquer vício que pusesse em causa a sua validade, tendo sido o causador dos alegados vícios do contrato.
· No caso vertente, o pagamento de 4 prestações afigura-se suficiente para concluir que o Opoente aderiu efetivamente aos efeitos do contrato, prescindindo de invocar qualquer vício do mesmo.
· Primeiramente, porque a declaração assinada pelo Opoente renunciava ao exercício do direito de revogação. Sendo que, enquanto comerciante de veículos e parceiro comercial de instituições de crédito, tinha perfeito conhecimento do teor da declaração e das suas implicações.
· Por outro lado, ainda que assim não se entendesse, o prazo de cinco meses – contados desde o pagamento da primeira até à quarta prestação – é muito superior ao próprio período de reflexão legalmente concedido que é, atualmente, de 14 dias e na data da celebração do contrato era de apenas 7 dias!
· Por último, a questão do valor, consideravelmente elevado, pago pelo Opoente, e que nunca foi reclamado! O que não se coaduna com a postura típica de quem pretende arguir qualquer invalidade contratual…
· Por todo o exposto, parece-nos pois indiscutível que o Opoente atua em manifesto abuso de direito, tal como configurado pelo art.º 334.º do Código Civil.
· Por conseguinte, ainda que se considere inválido o contrato, situação que a Recorrente não concebe, não deve a referida invalidade ser reconhecida, por a sua invocação se traduzir num comportamento abusivo e contrário à boa fé.
· Em síntese: uma correta ponderação de toda a prova produzida nos autos (quer documental quer testemunhal), impunha uma decisão diversa da recorrida, nomeadamente no sentido da integral improcedência da oposição, por não provada, e do prosseguimento da execução nos seus ulteriores termos até final.
· A douta sentença recorrida revela-se manifestamente penalizadora e injusta para a Exequente, visto desvalorizar a prova produzida em sede de julgamento e atribuir uma valorização excessiva a questões que, para além de marginais, foram astuciosamente provocadas pelo próprio Opoente.
· Assim, pelos mais elementares critérios de justiça, não poderá a decisão favorecer a parte que atuou em manifesta má fé, em detrimento da parte lesada, que atuou com a diligência que lhe era efetivamente exigida!
· Por todo o supra exposto, não pode ser mantida a decisão proferida pelo tribunal a quo, que deve ser doutamente revogada.
· Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve ser julgado procedente por provado o presente recurso, anulando-se ou revogando-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências.
6. Cumpre apreciar e decidir.
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II – Enquadramento facto-jurídico
1. Do factualismo.
Na sentença sob recurso foram considerados como provados, os  seguintes factos.
1) A exequente é portadora da livrança, no valor de € 53.464,47, junta a fs. 18 dos autos de execução, emitida em Lisboa, a 01/06/2004, a qual tem aposta a data de vencimento de 09/06/2004, a qual tem aposto dizer «ver ...», contendo no local destinado à assinatura do subscritor, uma assinatura com o nome R.
2) Encontra-se junto aos autos, a fls. 85, o acordo escrito particular denominado “aquisição a crédito”, relativo à aquisição de um veículo automóvel, marca …., encontrando-se em branco o espaço destinado à identificação da matrícula do mesmo, a fornecer por E, Lda., com o valor de € 54.867,77, no qual figura no local destinado à identificação do cliente o nome do executado e no local destinado à assinatura do mesmo, uma assinatura em nome do executado.
3) Nos termos do acordo acima referido, o montante do crédito concedido foi no valor de € 44.891,82, fixando-se na quantia de € 56.307,26 o total do financiamento e encargos, a pagar em 60 prestações, mensais e sucessivas, no valor, cada, de € 932,63.
4) Encontra-se junto aos autos uma cópia de declaração de renúncia do direito de revogação, na qual consta uma assinatura com o nome do executado, cfr. fls. 86, cujo teor se dá por reproduzido.
5) Encontra-se junto aos autos uma cópia de instrução permanente de transferência bancária a favor da exequente, na qual consta uma assinatura com o nome do executado, cfr. fls. 87, cujo teor se dá por reproduzido.
6) A exequente enviou ao executado a carta cuja cópia consta de fls. 90, mediante a qual lhe solicitava o pagamento da quantia de € 974,41, relativa a valores em dívida do contrato de crédito n.º ..., sob pena de considerar vencidas todas as prestações e preenchimento da livrança.
7) A exequente tem na sua posse cópia do bilhete de identidade e cartão de contribuinte do executado.
8) O executado apresentou uma queixa crime, que deu origem ao Proc. …..
9) Encontra-se junto aos autos a fls. 89 uma cópia da aviso de lançamento em 14/08/2003, em conta bancária da quantia de € 44.467,36, a favor de E, Lda..
10) A assinatura que consta da livrança dada à execução com o nome do executado/opoente foi por este aposta com o seu próprio punho.
11) As assinaturas que constam dos documentos referidos em 2), 4) e 5), com o nome do executado, foram por este apostas com o seu próprio punho.
12) O veículo automóvel referido no acordo a que se alude em 2) nunca existiu.
13) O financiamento a que se refere o acordo a que se alude em 2) foi concedido sem os documentos do veículo e sem que o mesmo estivesse identificado.
14) Em setembro de 2003 foi efetuado o pagamento da primeira prestação do acordo referido em 2), por transferência bancária de conta titulada pelo opoente junto do M, agência de ….
15) E em outubro, novembro de 2003 e janeiro de 2004 foram pagas a 2.ª. 3.ª e 4.ª prestações por transferência bancária de conta titulada pelo opoente.
2. Do direito
Como se sabe o objeto do recurso é definido pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, artigos 684.º, n.º 3, e 713.º[1], todos do CPC, sendo certo que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, e quanto ao enquadramento legal, não está o mesmo sujeito às razões jurídicas por aquelas invocadas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664[2], do mesmo diploma legal.
No seu necessário atendimento, avulta a discordância do decidido, na referência ao julgamento em termos de matéria de facto e respetiva subsunção jurídica realizada, invocando-se ainda um exercício abusivo de direito por parte do Recorrido, deduzindo oposição ao processo executivo.
Na decisão sob recurso, tendo em conta o factualismo apurado, considerou-se que estando-se perante um mútuo para a aquisição de bens, para a existência das responsabilidades invocadas do Executado, ora recorrido, importava que a Recorrente tivesse demonstrado que dera cumprimento às obrigações constitutivas de tal contrato, prejudicada ficando, desse modo, o reconhecimento de uma situação de inadimplemento, tornando lícito o preenchimento da livrança, dada como título à execução.
Vejamos.
Quanto ao erro no julgamento da matéria de facto, e pedido de subsequente reapreciação da prova produzida, da análise das alegações apresentadas, bem como das conclusões decorrentemente formuladas, resulta que não pretendendo a Recorrente questionar a autoria quanto às assinaturas apostas nos documentos, matéria vertida nos artigos 1.º e 2.º da base instrutória, e não sendo feita a indicação expressa dos concretos pontos da matéria de facto considerados julgados de modo incorreta, estará assim em causa a resposta dada aos artigos 3.º[3], 4.º[4] e 5.º[5] e 6.º[6] formulados naquela, e que mereceram também a resposta de “Provados”.
Analisados que foram todos os elementos constantes dos autos, bem como ouvidos, em termos integrais, os depoimentos prestados[7], resulta do depoimento prestado por P[8] a matéria vertida nos artigos 5.º e 6.º, na contraposição até com o documento autorização permanente de transferência bancária[9], que diga-se, não surge contrariada.
Relativamente aos artigos 3.º e 4.º releva, conforme foi, aliás, salientado no despacho que fundamentou a decisão sobre a matéria de facto, a fls. 285, para além dos escritos referentes ao contrato de aquisição a crédito[10], os depoimentos de N[11] e de P[12].
Informaram as testemunhas dos procedimentos normalmente adotados para a aquisição de uma viatura com financiamento da Exequente, segundo as práticas comerciais, sem prejuízo de condutas nem sempre seguidas, quer no concerne à indicação da matrícula do veículo a adquirir[13], quer em termos da transferência da quantia mutuada, e a respetiva correlação com a entrega do veículo, tendo em consideração o encontro de vontades do consumidor/comprador, o vendedor/fornecedor e a entidade que financia, o negócio, determinante na prossecução de tal ramo de atividade.
No que à situação os autos respeita, em termos do questionado, foram os testemunhos referenciados firmes e esclarecedores no sentido da inexistência do veículo a adquirir, e na concretização dos passos relativos ao financiamento sem que a respetiva documentação tivesse sido tomada em linha de conta, pelo que não se evidencia que exista fundamento para alterar o decidido em sede da decisão sobre a matéria de facto.
Na realidade, avulta, sobretudo, que a verdadeira divergência da Recorrente assenta na subsunção jurídica da factualidade apurada, na defesa da sua conduta se ter pautado dentro dos parâmetros que lhe eram exigidos, como financiadora, face à apresentação dos escritos a tanto relativos, diversamente da atuação do Executado, não satisfazendo as prestações monetárias a que se obrigou.
No enquadramento normativo a realizar, em sede da sentença sob recurso, atendendo à matéria de facto apurada, isto é, que o Executado subscreveu um contrato pelo qual a Exequente declarou obrigar-se a emprestar-lhe a quantia de €44.891,82, a restituir em 60 prestações mensais de € 932,63 cada, destinando-se a quantia mutuada a permitir a aquisição de uma viatura Me..., a fornecer pela E, Lda., entendeu-se que as aqui partes tinham celebrado um contrato de mútuo, tendo em vista a aquisição de bens, que para além de previsto no art.º 1142, do CC, se mostrava regulado pelo DL 359/91, de 21 de setembro[14], designado de crédito ao consumo.  
Referenciada se mostra assim a existência de um contrato de crédito ao consumo, realidade[15] nos termos que para o caso releva, se consubstancia na celebração de um contrato de mútuo bancário, bem como dum contrato de compra e venda, na consideração que o montante mutuado serve para financiar a aquisição de um bem, e deste modo, os contratos não se diluindo, mostram-se funcionalmente ligados, não só de forma material, mas também com a correspondente relevância jurídica, numa efetiva subordinação de um face a outro, visando a mesma finalidade económica, conforme a vontade manifestada pelos sujeitos contratuais, um dos quais, o adquirente, comum em ambos os contratos.
Pode-se, em conformidade dizer, que se estará perante uma união de contratos, em que as partes querem a pluralidade de contratos como um todo, que tendo em conta a configuração do negócio globalmente considerado, maxime a relação económica existente entre as várias prestações, permite inferir, se não expressamente consignada, uma relação de dependência, o que se traduz no que respeita à vigência e validade dos contratos, que um só será válido e eficaz, se o outro o for também[16].
Tal ligação evidencia-se no âmbito do regime previsto no DL 359/91, de 21 de setembro, pois a aquisição do bem financiado constitui a causa pela qual o consumidor contratou o mútuo com a entidade financiadora, patenteando-se uma ligação entre os contratos celebrados, verificando-se as correspondentes repercussões no plano da subsistência e execução dos contratos[17], repercussão essa colocada nos dois sentidos, isto é, da ineficácia do contrato de crédito no contrato de compra e venda, bem como a consequência para o contrato de crédito da ineficácia ou incumprimento do contrato de compra venda.
Recorrendo-se ao disposto no art.º 12 daquele diploma, à volta do qual se estabeleceu vasta polémica[18], cuja elucidação não se mostra aqui relevante, no concerne às repercussões decorrentes da conexão dos contratos, não deixou de ser defendido que, para além da norma expressa, a invalidade ou ineficácia do contrato de compra e venda gerava a invalidade ou ineficácia do contrato de crédito[19].
A realidade no caso sob análise acima descrita, salientada como tal na sentença sob recurso, surge-nos como parte do todo geralmente pretendido pelos intervenientes nos dois contratos que formam o conjunto económico visado, consubstanciando-se este na subscrição de um contrato no qual o comprador/consumidor manifesta a sua intenção de beneficiar da concessão de um crédito, a concessão deste pela entidade financiadora face ao contrato apresentado e documentos solicitados tidos por necessários e respetiva confirmação, por via de regra, através do fornecedor do bem, e subsequente execução prática, com a entrega do bem pelo vendedor, e a satisfação do preço pela entidade financeira a este último.
Ora, olhando para a factualidade que resulta apurada, face à globalidade dos elementos probatórios carreados pelas partes, divisa-se, de imediato, que os contornos da situação em análise não se coadunam com tal discrição, tendo em conta a falta do veículo a transacionar, com a decorrente inexistência do contrato de compra e venda, celebrado que se mostrava o contrato de mútuo por causa da mesma, destinando-se, tão só, ao pagamento do preço dessa aquisição, numa efetiva ligação causal entre os dois contratos, pelo que a vicissitude apontada acarreta necessariamente consequências, e inerentes repercussões jurídicas.
Com efeito, não se discutindo que a Exequente, enquanto financiadora, ficou desapossada da verba apontada, certo é, também que o Executado, para além do mais que argumentou na oposição deduzida e que se mostra ultrapassado, logrou demonstrar que tal disponibilização não foi efetuada conforme, mas sobretudo, para os efeitos propostos.
Na verdade, embora a Apelante, como financiadora possa ser tida, sob ponto de vista formal, como alheia ao contrato de compra e venda, não o é contudo em termos substanciais, podendo importar na não subsistência do contrato de mútuo, maxime se a alienação não se realizar, como no caso em análise, por falta do respetivo objeto.
Pugna no entanto a Recorrente que a sua conduta foi de molde a autorizá-la a preencher a livrança, título executivo oferecido à execução, na medida em que sobre a mesma não impendia qualquer outra obrigação, para além da efetivada quando à disponibilidade da quantia mutuada, num apelo, até, à normalidade deste tipo de operações e consequente confiança que em termos usuais pautam as relações trilaterais, como a em referência.
Acontece, como se vem dizendo, e se patenteia, a situação dos autos foge aos cânones normais[20], realidade que a Recorrente não enjeita, sendo certo que a mesma concedeu o financiamento sem os documentos do veículo ou respetiva identificação, mostrando-se quanto à “Declaração” de entrega do veículo a inexistência da identificação do veículo[21], o que para além de obstaculizar ao funcionamento de garantias e constituição de possível de reserva de propriedade, art.º 9, das Condições Gerais de Financiamento para Aquisição de Crédito[22], principalmente, não se coaduna com o estipulado no art.º 2, dessas mesmas condições, no sentido de a quantia mutuada ser entregue sempre depois da entrega do bem, e do recebimento de toda a documentação exigida para o efeito ou inerente ao contrato.
Desta forma, e contrariamente ao pretendido, não avulta que a Recorrente, tenha, de forma cabal, satisfeito a sua prestação, no atendimento das circunstâncias concretas do caso, avultando que como entidade organizada, e vocacionada para este tipo de operações comerciais, poderia com maior facilidade e eficácia detetar as discrepâncias que inquinaram, de forma iniludível, o contrato de “aquisição a crédito”, e assim o mútuo referenciado, tornando inexigível a quantia correspondente titulada na livrança oferecida à execução.
Importa, ainda, apreciar, se como pretende a Recorrente, a conduta do Recorrido, enquanto Executado, deve ser entendida como abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Como se sabe, o art.º 334, do CC, diz-nos que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Seguindo o entendimento que a conceção legalmente adotada é essencialmente objetiva[23], sempre se deverá ter presente, no que diz respeito ao fim social e económico do direito, o juízo de valor positivamente consagrados na lei, compreendendo-se assim, que como pressuposto lógico da situação de abuso de direito, esteja a existência de um direito, reportado a um direito subjetivo ou a um poder legal, caracterizando-se o abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito, ou do contexto em que ele deve ser exercido.
Dir-se-á, em conformidade, que a noção de abuso de direito assenta no exercício legal de um direito, que no entanto é feito em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito, comprometendo o gozo dos direitos de terceiros, e gerando uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício de direito por parte do seu titular e as consequências que outros têm de suportar.
Essa contradição mostra-se mais patente nos casos configurados como venire contra factum proprium, que se verificam quando alguém exerce um direito depois de ter feito crer à contraparte que não o iria fazer, na medida em que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, assentando, assim, na tutela de tal confiança.
Para que a conduta sobre a qual incide a valoração negativa resulte ilegítima, importa que se verifique uma situação objetiva de confiança, existente quando se pratica um determinado ato que, em abstrato, é apto a incutir em outrem a expectativa de adoção no futuro, de um dado comportamento coerente com aquele primeiro e que, em concreto, gera efetivamente tal convicção.
Por outro lado, deverá haver um investimento na confiança, com base na qual a outra parte se determinou, caso que ocorre, quando esta última, com base na situação de confiança criada, toma disposições e organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a sua confiança legítima vier a ser frustrada.
Diga-se também, ser necessário que haja, igualmente, boa fé da contraparte que confiou, por supor que o autor da conduta contraditória estava vinculado a adotar a conduta prevista, e convencendo-se de tal, atue com o cuidado e as precauções usuais no tráfego jurídico.
Próxima ou mesmo confundindo-se com esta modalidade de abuso de direito está a suppressio[24], que resulta da combinação do decurso de um longo período de tempo sem que o titular do direito o exerça, com uma particular conduta do mesmo titular, que permite à contraparte obter a convicção justificada que o direito já não será exercido, e em conformidade se determine formulando programas de ação.
De qualquer forma, o recurso à existência de abuso de direito e o respetivo sancionamento, visará sempre obstar a uma situação de injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico comummente aceite na comunidade social, decorrente do exercício de um direito legalmente conferido, face a determinadas circunstâncias especiais do caso concreto.
No atendimento deste quadro legal, brevemente traçado, ressalta em termos da factualidade apurada, o pagamento de quatro das prestações, das sessenta indicadas, por transferência bancária[25], reportadas a setembro, outubro, novembro de 2003 e janeiro de 2004.
Ora, não só não estamos perante um hiato temporal, cuja relevância pudesse gerar na Recorrente uma convicção que o Recorrido iria satisfazer, de motu próprio, as demais prestações, como também o número das realizadas não é de tal modo elevado que permita essa conclusão.
Desse modo, presente o já explanado no concerne às discrepâncias verificadas na situação sob análise, não se vislumbra que o Executado, deduzindo oposição à execução, tenha extravasado, maxime, amplamente, o contexto em que podia exercer tal direito, conforme surge configurado em termos legais, exorbitando o fim próprio do mesmo direito, ou do contexto em que ele podia ser exercido.
Improcedem, deste modo e na totalidade, as conclusões formuladas.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença sob recurso.
Custas pela Recorrente.
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Lisboa, 10 de setembro de 2013
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Ana Resende
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Dina Monteiro
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Luís Espírito Santo
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[1] Veja-se, de igual modo, o disposto nos artigos 635 e 663, do CPC vigente.
[2] Veja-se de igual modo, o disposto no art.º 5, n.º3, do CPC vigente.
[3] O veículo automóvel referido no acordo a que se alude na alínea B) nunca existiu?
[4] O financiamento a que se refere o Acordo a que se alude na Alínea B) foi concedido sem os documentos do veículo e sem que o mesmo estivesse identificado?
[5] Em setembro de 2003 foi efetuado o pagamento da primeira prestação do acordo referido na Alínea B), por transferência bancária de conta titulada pelo opoente junto do M, Agência ?
[6] E em outubro, novembro de 2003 e janeiro de 2004 foram pagas a 2.ª, 3.ª e 4.ª prestação por transferência bancária de conta titulada pelo opoente?
[7] Pretende-se a alteração da decisão da primeira instância, na hipótese prevista no art.º 712, n.º 1, a), do CPC, ora 662, sendo feita a impugnação, nos termos do art.º 690.º - A, ora  640, do CPC, numa revisibilidade da decisão da matéria de facto quanto a determinados pontos controvertidos relativamente aos quais a parte recorrente manifesta, adequadamente, a sua discordância, não podendo ser esquecido, que no âmbito do julgamento em processo civil rege o princípio da livre apreciação das provas, art.º 655, ora 607, n.º 5,  do CPC, e como consta da alínea b) do n.º 1, do art.º  690-A, ora 640, n.º 1, b), do CPC, tendo presente a referência expressa aos meios concretos de prova constantes do processo ou da gravação, que impunham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida. Na reapreciação a efetuar, não é despiciendo, que deverá ficar demonstrado, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, numa exigência que tais elementos de prova sejam inequívocos quanto ao sentido pretendido por quem recorre, bem como da posição privilegiada do Julgador na primeira instância, considerando a oralidade e imediação de que este Tribunal não pode usufruir, impondo em conformidade, que se conduza com acrescida prudência na formulação do seu juízo.
[8] Identificando-se como subdiretor do departamento de contencioso da Exequente.
[9] Cfr. fls. 217.
[10] Cfr fls. 214, que se mostra acompanhado da Declaração, a fls. 216, e Autorização permanente de transferência bancária, a fls. 217.
[11] Identificou-se como sócio-gerente da E, Lda., funções desempenhadas até dezembro de 2003, tendo tal empresa sido “parceira” em alguns negócios de aquisição a crédito de veículos automóveis, no âmbito do desenvolvimento do seu escopo social – stand de automóveis – trabalhando o depoente, desde o ano de 1996/1997 como vendedor de automóveis, nessa qualidade tendo contactos profissionais como a Exequente.
[12][12] Referindo que desempenhou as funções de diretor regional Sul da Exequente, responsável pela atividade comercial da mesma naquela zona, no período de 2001 a 2007.
[13] Em certos casos de carros importados, ou novos, se a matrícula não se mostrar ainda atribuída.
[14] Diploma que estabeleceu normas relativas ao crédito ao consumo, transpondo para a ordem jurídica interna as Diretivas n.ºs 87/102/CEE, de 22 de dezembro e 90/88/CEE, de 22 de fevereiro de 1990, alterado pelos DL 101/2000, de 2 de junho, e 82/2006, de 3 de maio, aplicável aos presentes autos, nos termos do art.º 34, do DL 133/2009, de 2 de junho (alterado pelo DL 72-A/2010, de 17 de junho) – contratos de crédito a consumidores, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2008/48/CE, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, revogando o regime anterior, art.º 33.
[15] Não enjeitada pelas partes.
[16] Citando, Inocêncio Galvão Telles, in Manual dos Contratos em Geral, pag. 475 e segs, que aqui de perto se seguiu.
[17] Matéria amplamente tratada por Fernando Gravato Morais, in União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo,
[18] No que respeita aos pressupostos de aplicação, maxime no concerne à exigência de exclusividade na concessão de crédito. Dando notícia da divergência de entendimentos – restringindo o alcance da exigência da exclusividade, numa ótica de proteção dos interesses do consumidor, ou afastando a aplicação do n.º 2 do mencionado art.º 12, por não verificado o pressuposto da existência da exclusividade – veja-se Jorge Morais de Carvalho, Os Contratos de Consumo – Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, pag. 628 e seguintes, bem como Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de dezembro de 2006 e de 20 de março de 2012, ambos in www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Jorge Morais de Carvalho, obra citada, fls. 429.
[20] Antes se configurando com contornos não totalmente nítidos, e cuja elucidação não se mostrou clarificada, e que não se afigura que possa a ser concretizada, nomeadamente tendo em conta a natureza dos presentes autos.
[21] Da “Declaração” em causa, para além do teor impresso, presumivelmente pré-estabelecido, apenas consta a assinatura do Executado.
[22] A fls. 214 verso.
[23] Não é necessária a consciência de se estar a exceder com o exercício do direito os limites impostos, quer pelos bons costumes, quer pelo fim social económico do direito, importando apenas que os limites sejam excedidos, por forma, manifesta, como a própria lei indica.
[24] Cfr. António Menezes Cordeiro in Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, fls. 56 e seguintes.
[25] Mostra-se junta aos autos uma cópia de instrução permanente de transferência bancária a favor da Exequente, na qual consta uma assinatura com o nome do Executado, tendo também sido dado como provado que tal assinatura foi aposta pelo seu próprio punho.