Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1558/13.0TTLSB.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: TRABALHADOR INDEPENDENTE
ACIDENTE IN ITINERE
ACIDENTE DE TRABALHO
REGRESSO A CASA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: Não resultando dos factos provados que o evento ocorreu por motivos alheios à situação profissional, é acidente de trabalho em sentido estrito, e não acidente in itinere, aquele que um trabalhador independente, que não tem local de trabalho fixo, sofre ao regressar a casa.

(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
TEXTO INTEGRAL:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Sinistrada (adiante, por comodidade, designado abreviadamente por A.): ….
Responsável (adiante designada por R.): …– Sucursal em Portugal.
A A. demandou a R. na presente acção especial emergente de acidente de trabalho alegando que é trabalhadora independente desempenhando a actividade de profissional de seguros tendo nesse âmbito celebrado com a ré um contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho pela retribuição anual de € 35.737,10, tendo sofrido no percurso das instalações da ré para sua casa um acidente de viação que lhe causou sequelas de onde resultaram incapacidades temporárias e permanente.
Com esses fundamentos pediu a condenação da R. a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de € 500,32 desde o dia seguinte da data da alta, uma indemnização por incapacidade temporária absoluta no montante de € 1.370,74 e as despesas médicas e medicamentosas no valor de € 635,00, acrescidas de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento. Mais peticiona a condenação da ré a pagar-lhe multa e indemnização como litigante de má-fé.

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Proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto e elaboração da BI, e organizado apenso para fixação da incapacidade, no âmbito do qual foi realizada junta médica, e proferida decisão a fixar a IPP do A. em 2%, desde 11.03.2013, foi realizada audiência de julgamento, tendo o Tribunal proferido a final sentença em que julgou a ação improcedente e absolveu a R. do pedido.
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Inconformada, a sinistrada recorreu, concluindo:
(…)


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Contra-alegou a R., pedindo a improcedência do recurso e concluindo:
(…)
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O Mº Pº teve vista, defendendo a confirmação da sentença.
As partes não responderam ao parecer.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar neste recurso – considerando que o seu objecto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 635/4, 639/1 e 2, e 663, todos do Novo Código de Processo Civil – se os factos apurados constituem acidente ressarcível ou não.
A A. levanta-se também contra a resposta à matéria de facto.
Contudo, como veremos, esta questão não é relevante, pelo que a sua apreciação redundaria na prática de atos inuteis, que a lei processual não admite (art.º 130, CPC), pelo que será ignorada.
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Factos provados:
1. A autora é trabalhadora independente, desempenhando a actividade profissional de agente de seguros – (A).
2. A autora/sinistrada tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a BBB, Sucursal em Portugal titulado pela apólice n.º 004074784, pelo montante global anual de € 35.737,10 (€ 2.552,65 x 14 remuneração base) – (B).
3. Em 22 de Fevereiro de 2013 a autora/sinistrada entregou à ré/seguradora a participação do acidente junta a fls. 120 e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido – (C)
4. Em 25 de Fevereiro de 2013 a autora foi observada pelos serviços clínicos da ré/seguradora – (D).
5. Em 19 de Fevereiro de 2013, pelas 19h28m, em Lisboa o veículo … onde seguia a autora, ao mudar de direcção para a esquerda, numa via com duas hemi faixas de rodagem para cada sentido – (3º e 19º)
6. ….Sofreu uma colisão por parte de outro veículo, com a matrícula …– 4º)
7. Em consequência dos factos descritos em 3º e 4º, a autora dirigiu-se ao Hospital … – (5º)
8. Era necessário efectuar um TAC para aferir das lesões – (6º)
9. Aquela hora e dia não era possível realizá-lo – (7º)
10. Por esse facto dirigiu-se à Clínica …, para efectuar aquele exame – (8º)
11. A autora despendeu em medicamentos e exames as seguintes quantias:
- € 80,00 na consulta de atendimento permanente;
- € 465,00 nos exames TAC;
- € 90,00 em consulta de neurocirurgia;
- € 32,03 em medicamentos – (9º)
12. Em consequência do acidente a autora sofreu as lesões descritas a fls. 79 a 83 – (10º)
13. As instalações da delegação de Lisboa da ré situam-se na Avenida … n.º 24 – (11º)
14. …E encerram às 16h45m – (12º)
15. Após o encerramento a autora poderia permanecer nas instalações por mais uma hora – (13º)
16. Às 19h00 apenas em situações excepcionais se encontram nas referidas instalações um ou outro funcionário – (14º)
17. O trajecto de carro entre a Av. … e a Praça … demora dez minutos em circunstâncias de tráfego normal – (15º)
18. …E vinte minutos em circunstâncias de grande afluência de tráfego – (16º)
19. O trajecto entre a Av. …, em Lisboa e a Rua … em Caxias, em veículo automóvel demora cinquenta minutos com grande afluência de trânsito – (17º)
20. …E entre trinta a quarenta minutos com tráfego normal – (18º)
21. A autora como mediadora de seguros da ré tinha conhecimento que a Clínica … e a Clínica … tinham com esta acordo de prestação de cuidados médicos urgentes – (20º)
22. No dia 25 de Fevereiro de 2013, na consulta na Clínica … foi determinada nova consulta no dia 11 de Março de 2013 – (21º)
23. A autora não compareceu à consulta marcada para 11 de Março de 2013 – (22º)
24. No dia 15 de Março de 2013 a autora/sinistrada comunicou ao funcionário da ré responsável pelo sinistro que não queria continuar a ser assistida pela (…) no âmbito do processo de acidente de trabalho – (23º)
25. …E que iria pedir assistência médica e indemnização ao abrigo da apólice do seguro automóvel uma vez que era ocupante do veículo … também seguro na ré – (24º)
26. Em face das declarações da autora a ré não procedeu à marcação de qualquer outra consulta no âmbito do processo de acidentes de trabalho – (25º)
27. A ré considerando que a autora nada reclamou no processo do sinistro automóvel nem formulou a desistência da sua participação de acidente de trabalho, voltou a solicitar por escrito à autora que lhe fornecesse os relatórios de assistência médica – (26º)
28. Em reunião realizada a 16 de Abril de 2013 a autora voltou a comunicar pessoalmente à ré que iria desistir da participação do acidente de trabalho e reclamar o reembolso das despesas em causa ao abrigo da apólice automóvel pois era ocupante do veículo - (27º)
29. Por esta razão solicitou à ré os originais dos documentos relativos às despesas que entregara com a participação do acidente – (28º)
30. A autora nunca entregou à ré os relatórios e exames complementares de diagnóstico juntos a fls. 127 a 129 – (29º)
31. A autora podia usar o carimbo da ré e apô-lo nos documentos relativos às apólices da sua mediação de seguros com o esclarecimento que o fazia mediante pedido de autorização a … sendo pontual esta autorização – (30º)
32. Em 16 de Outubro de 2009 a autora foi vitima de um acidente de viação que lhe causou lesões corporais na coluna – (31º)
33. A autora encontra-se afectada de uma IPP de 2% desde 11.03.2013 – (cf. decisão de fls. 210 do Apenso de Fixação da Incapacidade).
Mais se provou:
34. Em consequência dos factos referidos em 3º e 4º, a autora sofreu um período de incapacidade temporária absoluta de 19.02.2013 a 11.03.2013 (auto de exame por junta médica e exame médico singular a fls. 90 dos autos)
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A questão da existência de acidente ressarcível ao abrigo da Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT, Lei 98/2009, 4.9) tem sido equacionado nos autos como de eventual acidente in itinere, ocorrido (ou não) quando a sinistrada se deslocava do local de trabalho para casa (cfr. art.º 21 da pi, 5-18 da contestação, enfim, toda a motivação de direito da sentença recorrida).
Não nos revemos, porém, nesta discussão.
Há que notar antes do mais que, como bem diz a sentença, convergindo com o acórdão de 18.6.2014, o que carateriza os acidentes in itinere, por oposição aos acidentes de trabalho em sentido estrito, é que naqueles o prestador da atividade não está sob a autoridade e direção do empregador.
Neste caso, a A. é uma profissional independente, o que, é consabido, não impede a aplicação do regime da reparação dos acidentes de trabalho, mutatis mutandis quanto aos respetivos pressupostos (cfr. art.º 184, Lei 98/2009, 4.9). A primeira questão com essa qualidade relacionada é bem outra: a A. regressava a casa findo o seu tempo e provinda do seu local de trabalho?
O que é que se provou nesta matéria? Que a A., que presta a atividade na área dos seguros, esteve nas instalações da R. sitas em Lisboa, na Avenida da República, as quais encerram às 16:45 horas, podendo os trabalhadores permanecer nelas mais uma hora, sendo que às 19:00 só excecionalmente se encontram nelas um ou outro funcionário; que o acidente ocorreu pelas 19:28 horas, na Praça …, sendo o veículo da A. embatido; e que da Avª … à Praça … medeiam 10 a 20 minutos consoante o tráfego seja normal ou haja grande afluência.
Ora, sendo a A. prestadora de atividade independente, não se vê que esteja sujeita a horário e nem a local de trabalho; e nem nada se provou neste sentido. É certo que, sendo independente, não poderia estar subordinada a um empregador; mas poderia ter um horário e um local para executar a sua prestação, o que, repete-se, não resulta de lado algum (aliás, a própria R. refere no art.º 5º da contestação, e cita-o nas contra-alegações, que “ainda que a A. tenha estado na Delegação de Lisboa da Ré no dia 19 de Fevereiro de 2013”, o que certamente significa que não prestava a atividade apenas naquele local, ou que era aí que prestava geralmente, ou até só habitualmente, a sua atividade).
Não se podendo dizer que era aí que a A. prestava a sua atividade, não tem sentido discutir-se se o que ocorreu depois é um acidente in itinere. Este pressupõe um local de prestação da atividade (a própria lei) e a ocorrência do infortúnio fora do mesmo mas mantendo tal conexão com a situação laboral que a lei entende que o prestador da atividade deve ser ressarcido.
Afasta-se, pois, a hipótese de acidente de trajeto.
Mas temos de ir mais longe.
Que acontece se o sinistrado não tem local certo de prestação da atividade? Local que, entenda-se, pode ser plúrimo: suponhamos que todos os dias da semana ele presta a atividade num certo sítio predeterminado (p. exemplo um enfermeiro independente labora em 10 clínicas do credor da atividade, sendo que segunda feira de manhã o faz sempre numa delas, de tarde noutra, e assim sucessivamente, de modo que previamente se sabe onde se há de encontrar). Neste caso ele tem local definido, e portanto, qualquer infortúnio que ocorra fora desses lugares e tempo será in itinere (ou não será simplesmente ressarcível ao abrigo da LAT). O problema põe-se, porém, quando o prestador da atividade o faz sem sítio definido, por exemplo visitando clientes. Nestes casos os acidentes ocorridos em trânsito não são in itinere; mas serão ressarcíveis na mesma medida em que o são aqueles que possa sofrer um caixeiro viajante ou um estafeta: são acidentes de trabalho em sentido estrito, ocorridos no tempo e no local de trabalho (a menos que resulte dos factos que a deslocação não tem conexão com a situação laboral, como acontece se um técnico que presta assistência aos clientes do empregador sofre um acidente numa praia onde se deslocou por motivos meramente lúdicos).
É exatamente isso que importa apurar no caso: a sinistrada deslocou-se às instalações da R., para quem prestava atividade, não sendo aí, porém, o seu local de trabalho, nem se divisando qualquer local determinado; sofreu o acidente quando regressava a casa. Pode dizer-se que o evento nada tem a ver com a sua situação profissional?
Seguramente que não. Pouco importa para aqui a discussão relativa ao modo como a A. teria empregue o tempo após sair, se a visitar um cliente e a buscar as filhas ou não; é que bem se vê que o que está em causa apenas poderia relevar em sede de acidente de trajeto: saber se houve interrupção ou desvio atendível (art.º 9º, n.º 3, da Lei 98/09, de 4.9). Interessa, sim, que nada se vislumbra que quebre a conexão entre a situação profissional da sinistrada e viagem em que ocorreu o acidente, não resultando de lado algum que tenham sido motivos não profissionais a dar azo à deslocação.
Assim sendo, concluímos que os factos consubstanciam um acidente de trabalho strictu senso.
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Provou-se que do evento dos autos resultou para a sinistrada uma IPP de 2%, ITA entre 9.12.13 e 11.3.13. Teve despesas de 80,00 €, 465,00 €, 90,00 € e 32,03 €.
Tudo isto é ressarcível.
Claro está que aquilo que o sinistrado porventura receba a título de ressarcimento de danos decorrentes de acidente de viação será tido em conta, não havendo lugar ao duplo ressarcimento pelos mesmos danos (não há noticia, de qualquer modo, que a sinistrada tenha requerido tal).
Enfim, não se vê relevância ao facto de a A. haver mostrado vontade de desistir da participação do acidente de trabalho, tanto mais que nem sequer o concretizou (não entraremos, pois, noutros considerandos, nomeadamente no que toca à validade de uma tal declaração, atenta a natureza da reparação dos acidentes de trabalho e as considerações de ordem publica subjacentes).
Procede, pois, o recurso.
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DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga o recurso procedente, revoga a sentença e em consequência condena a R. … a pagar à A. o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de quinhentos euros e trinta e dois cêntimos (500,32 €), com início no dia 12.03.2013; e mil trezentos e setenta euros e setenta e quatro cêntimos (1370,74 €) de indemnizações por incapacidades temporárias.
Mais condena a Ré no pagamento de:
80,00 € a título de despesas de consulta em atendimento permanente;
465,00 € de exames TAC;
90,00 € em consulta de neurocirurgia;
32,03 € em medicamentos.
Custas do recurso pela recorrida.
Lisboa, 14 de junho de 2017
Sérgio Almeida
Celina Nóbrega
Paula Santos