Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
607/12.3TVLSB.L1-2
Relator: VAZ GOMES
Descritores: HERANÇA INDIVISA
REIVINDICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO:

I. Seja qual for a qualificação doutrinária, os Autores são apenas herdeiros da herança do falecido Amílcar, estando provado que o imóvel faz parte da herança dos mesmo e que os Autores enquanto seus herdeiros o podem reivindicar como bem se diz na sentença em litisconsórcio activo não para si próprios mas para a herança de que são herdeiros e daí a interpretação que a sentença fez do pedido dos Autores que constitui qualificação jurídica no que o Tribunal é soberano.
II. Assim o Tribunal recorrido procedeu a uma interpretação do pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pelos Autores enquanto herdeiros da herança.
III. Já no acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2001 de 23/01/2001, publicado no DR I-A n.º 57, de 08-03-2001 e a propósito da matéria de interpretação do pedido se decretou: “Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do art.º 616 do Código Civil) o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como pretendido pelo art.º 664 do Código de Processo Civil”.
IV. Este acórdão uniformizador de jurisprudência, versando, é certo, matéria diferente daquela que nos ocupa aqui, tem, todavia, um mérito não despiciendo para a solução da questão que aqui se debate: o Tribunal, estando em causa a indagação, interpretação e aplicação das regras do direito, não está sujeito à alegação das partes e pode/deve, interpretar o pedido, tal como interpretaria uma declaração negocial.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

APELANTES /RÉUS: JOÃO, JOANA e CRISTINA
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APELADOS/AUTORES: ISABEL CARLOS
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Com os sinais dos autos.
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I. Inconformada com a sentença de 21/3/2014, (ref:º 19144999 de fls. 288/306), que, julgando a acção procedente em consequência declarou “a) que a fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 2.º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua Professor..., 2.º esquerdo em Lisboa…pertence à herança deixada por óbito dos pais dos autores e da qual os autores são herdeiros” e condenou “b) o réu e as intervenientes a restituírem aos autores a identificada fracção, livre e devoluta no prazo de 30 dias a contra do trânsito em julgado da sentença” dela apelaram o Réu e os intervenientes, em cujas alegações concluem:

1ª) – Os Autores propuseram uma acção nominada – acção de reivindicação – que tramita como um acção declarativa, a um tempo de apreciação positiva (reconhecimento do direito de propriedade) e de condenação (na entrega da coisa) e que tem expressa previsão no Artº 1311º do Código Civil (adiante dito apenas C.C.).

2ª) – Os recorrentes, sem esforço e por corresponder à verdade, reconheceram a titularidade do direito de propriedade dos recorridos sobre a facção que faz o objecto da relação material controvertida nestes autos, chamando apenas a atenção para questões de rigor processual que, de resto, foram convenientemente solucionadas.

3ª) – Os recorrentes defenderam-se a partir do estatuído no Artº 1311º citado que, na sua previsão genérica e abstracta, contém uma verdadeira defesa por excepção, com todas as consequência, designadamente, com a aplicação de regra específica quanto ao ónus da prova.

4ª) – De facto o tribunal de 1ª instância faz o trato sucessivo da fracção em causa, da qual diz que está descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º….20081212-H, tendo, pela apresentação Nº 2177, de 2012/07/25 sido registada a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor dos autores, por sucessão hereditária de Amílcar.

5ª) – O tribunal deu como provado que os recorridos são os proprietários da fracção em causa, sendo certo que a partilha, ainda não efectuada (ou pelo menos ainda não registada) não atribui o direito de propriedade servindo apenas para definir as quotas que cada um dos herdeiros tem na coisa que pode ser 0 (zero) contra 100% (cem por cento) quando se dá uma adjudicação pela totalidade.

6ª) – O pai dos autores faleceu em 11 de Novembro de 2009.

7ª) – A fracção em causa é a casa de morada de família do réu e da autora, como resulta da matéria dada como provada.

8ª) – O tribunal de 1ª instância decidiu a excepção da ilegitimidade no douto Despacho Saneador com base no preceituado no Artº 30 do Código de Processo Civil dado que entendeu que a autora é titular da relação controvertida por ter interesse directo em demandar.

9ª) – Todavia o douto tribunal de 1ª instância não levou em conta o que estatui o Artº 33º/1 do Código de Processo Civil que impõe que, se a lei ou o negócio, exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.

10ª) – Ora o Artº 1682º - A/2 do Código Civil refere de forma peremptória que a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada de família carece sempre de consentimento de ambos os cônjuges.

11ª) – Assim sendo, a recorrida não pode ser aqui autora porque devia também ser ré, por imperativo legal e por se discutir a posse da casa de morada de família.

12ª) – E esta decisão do douto tribunal de 1ª instância deve se revogada por ilegitimidade da autora e serem os recorrentes absolvidos da instância.

13ª) – E isto porque que o tribunal de 1ª instância não aplicou o Artº 1.682º - A/2 do Código Civil, nem o previsto no Artº 33º/1 do Código de Processo Civil, fazendo errada eleição e aplicação do Artº 30º do deste último compêndio de leis.

14ª) – Os recorrentes viveram, desde o divórcio do recorrente e da recorrida durante 10 anos sem quaisquer problemas ou reclamações, quando podia ter sido intentada acção para obter a posse da casa e, por isso, o recorrente nunca suscitou o incidente de atribuição do direito de habitar a casa da morada da família.

15ª) – A fracção em causa é da recorrida desde a morte da sua falecida mãe, antes de ter sido intentada a primeira acção de reivindicação, proposta contra o recorrido que nessa altura sustentou, logo, que a fracção era também a casa de morada da família.

16ª) – Assim não colhe o argumento de que a casa não é nem do réu, nem da autora, nem da comunhão, conjugal ou da compropriedade de recorrente e recorrida, sendo da herança ou de terceiro.

17ª) – Por se tratar a presente causa de uma acção de reivindicação a primeira questão a analisar tem a ver com o direito de propriedade da fracção em causa atento disposto no Artº 1.311º/1 do Código Civil.

18ª) – E, de facto, os recorridos pediram ao tribunal que declarasse estes como donos e legítimos proprietários da fracção em causa.

19ª) – O tribunal de 1ª instância sustenta que a propriedade da fracção dos autos é da herança e não dos autores como herdeiros de seu pai e mãe e, partir desta asserção, constrói toda uma tese, para concluir que apesar da propriedade da fracção ser da herança os recorridos têm direito à sua restituição.

20ª) – O tribunal “a quo” termina o seu decreto decisório por julgar a acção procedente e por reconhecer a propriedade da fracção dos autos como pertencendo à herança.

21ª) – Esta decisão é uma verdadeira correcção ao lapso dos recorridos, na tese do tribunal, e condena em objecto diverso do pedido, devendo a expressão “objecto” ser interpretada em sentido amplo compreendendo o objecto imediato (a coisa) e o conteúdo (o direi to e o seu titular).

22ª) – O tribunal “a quo” reconhece um direito que não foi pedido.

23ª) – Esta decisão está ferida de nulidade por violação do preceituado no Artº 609º/1 articulado com o previsto no Art º 615º/1 alínea e) do Código de Processo Civil.

24ª) – Aliás, do ponto de vista da construção teorética e jurídica o tribunal não pode fazer uma ligação entre o direito de propriedade pertença da herança e o facto de acção de reivindicação ter de ser exercida por todos os herdeiros.

25ª) – Em primeiro lugar porque este tipo de acção, que implica a aquisição da posse (acção possessória) pode ser intentada apenas pelo cabeça-de-casal ou mesmo por qualquer dos herdeiros, como resulta dos Artºs 2.078º e 2.088º ambos do Código Civil.

26ª) – Em segundo lugar porque a propriedade dos bens da herança pertence aos herdeiros e não á herança, tendo o tribunal de 1ª instância efectuada errónea interpretação do Artº 2.050 do Código Civil onde domínio e posse não se confunde e onde domínio quer dizer propriedade.

27ª)- A posse é aqui“prima facie”o“corpus", isto é, a prática de actos de apreensão, utilização e uso ou guarda das coisas.

28ª) – O domínio é verdadeiramente a propriedade do bem que, enquanto não ocorrer a partilha, fica numa situação de regime idêntica à compropriedade, ficando esta assente em quota não definida, nem limitada e vindo, posteriormente, se o bem for adjudicado a um único herdeiro, a ser sua exclusivamente pertença.

29ª) – Subjacente a esta ilação está o facto de a herança não ser um sujeito de direito e não ter personalidade jurídica, no sentido de que é uma pessoa de direito susceptível de ser titular de situações jurídicas (v.g. direi tos, poderes potestativos, deveres, sujeições, ónus, entre outros).

30ª) – A herança, como património autónomo tem, isso sim, capacidade judiciária, nos termos do Artº 12º alínea a) do Código de Processo Civil, que é a susceptibilidade de ser parte em juízo.
31ª) – Foi esta distinção que o douto tribunal de 1ª instância não fez, fazendo errada aplicação do Artº 12º alínea a) do Código de Processo Civil.

32ª) – O tribunal de 1ª instância aborda ainda a questão da eventual existência de um contrato de comodato para dizer que à luz deste tipo de contrato a fracção devia ser, na mesma, restituída, mas a verdade é que nenhuma das partes suscitou a questão de forma imediata, pela singela razão de que, para haver comodato, é preciso um acordo de vontades nesse sentido e tal não ocorreu, não tendo por isso, sido alegado.

33ª) – Verifica-se abuso de direito quando se exerce o direito de que se é titular com excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito, sendo que este excesso deve ser manifesto e clamoroso.

34ª) – Resulta provado que os recorrentes sempre moraram na fracção que foi a casa de morada de família.

35ª) – Resulta também provado que os recorridos, só cerca de catorze anos depois de ter claudicado a primeira acção de reivindicação, decidiram invocar, intentando a idêntica acção, o seu direito de propriedade e o seu direito à restituição da coisa, o que se diz sem conceder.

36ª) – Durante todo este (longo) período de tempo, não estiveram os recorridos alheios ao que se passava (e passou) com a fracção, em sede de direito de propriedade.

37ª) – E é ainda mais bizarro que tenha ocorrido o divórcio entre recorrente e recorrida e esta, o seu irmão e o seu pai não tenham intentado a acção que agora foi intentada.

38ª) – O que seria normal é que decretada a dissolução do casamento a fracção fosse de imediato reivindicada e não foi e só o foi muito tempo depois – mais de uma década.

39ª) – Ao não fazerem nada os recorridos mais não transmitiram senão a mensagem, claramente implícita, de que reconheciam a natureza de casa de morada da família à fracção em causa, tanto mais que o recorrente já tinha sinalizado a sua tese e convicção de que a fracção em causa era, efectivamente, a casa de morada de família.

40ª) – Esta manifestação de vontade durante um dilatadíssimo período de tempo, e a inércia de actuação dos recorridos, não podem deixar de ser interpretados como contrários à vontade do exercício daquele direito, interpretados à luz do disposto no Artº 236º do Código Civil.

41ª) – Trata-se, na verdade, de uma demora desleal no exercício do direito, contrária à boa fé, o que traduz uma situação de «suppressio».

42ª) – Na verdade, perante tal conduta omissiva é, objectivamente, fundada a confiança, senão mesmo a certeza, de que o direito de restituição não mais seria exercido, representando esta acção, ou seja, esta conduta uma manifesta violação dos princípios da boa-fé e da confiança.

43ª) – Esta acção integra uma vertente do abuso de direito na modalidade de "venire contra factum proprium", porquanto este pressupõe, que aquele em quem se confiou, viole, com o seu comportamento, os princípios da boa-fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente a comportamento alheio.

44ª) – Quando assim se decide não se está acrescentar um novo instituto sobre o efeito do tempo nas relações e situações jurídicas, mas a aplicar o instituto de uma cláusula geral e essencial ao ordenamento jurídico e à figura do abuso puro do direito.

45ª) – Já seria diferente se se discutisse uma solução juridicamente válida e eticamente aceitável e justa, para o uso da fracção, como por exemplo, a celebração de um arrendamento cujos sinalagmas se revelassem justos em face dos diversos factores a ponderar (tipologia da fracção, localização urbana, vetustez, espaço interior , valor das rendas no mercado, entre outros).

46ª) – É assim evidente que os recorridos abusaram do seu direito ao pretenderem a restituição pura e simples da cada de morada da família.

47ª) – O tribunal de 1ª instância fez errada interpretação e aplicação do previsto no Artº 334º do Código Civil. NESTES TERMOS e nos melhores de Direito, que V. Exªs suprirão, se requer julguem procedentes as CONCLUSÕES dos recorrentes, revogando a douta sentença propalada nos termos e pelos fundamentos expostos nesta minuta de alegações.

I.2 Em contra-alegações concluem os Autores:

I - Ficou provado que os Autores foram habilitados como únicos herdeiros de seu pai, Amílcar, falecido em 11.11.2009, no estado de viúvo e conforme supra se referiu nessa qualidade estes adquiriram um direito de propriedade e posse da herança” sobre os prédios integram o acervo hereditário, legitimando-se assim os A.A, enquanto enquanto únicos herdeiros da herança respectiva, a intentar acção de reivindicação da posse.
Pelo que no nosso entendimento a douta sentença e agora objecto de recurso, é absolutamente exemplar, não merecendo qualquer reparo: a decisão é inquestionável; a respectiva fundamentação relativamente ao direito de propriedade e decisão sobre se estes ainda assim possuíam legitimidade para interpor a presente acção, é clara e inequívoca.
II) – Não existe entre a A. e R. qualquer comunhão de vida nem tão pouco qualquer residência em comum pelo menos desde 1993, há portanto pelo menos 21 anos. E desde essa data que a fracção sita na Rua Professor..., 2º esquerdo em Lisboa, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/20081212- H, objecto dos presentes autos NÃO é casa de morada de família nem da A. nem tão pouco do Réu. O conceito de CASA DE MORADA DE FAMILIA, é um conceito juridicamente consagrado e decorre da conjugação das normas contidas nos Artº.s 1673.º e 1793.º e 1105.º todos do Código Civil e passível de ser integrado por elementos factuais, para poder ser concebido como tal. Ora, uma qualquer casa (comum dos ex-cônjuges ou própria de um deles) só poderá ter essa qualificação quando for nela que habitualmente more ou habite a família, designadamente os CONJUGES com os filhos, do casamento, formando todos uma economia comum.
Pelo que a Autora é parte legítima ao assumir a posição processual de Autora legitimidade activa porque possui interesse directo em demandar enquanto herdeira e possuidora do acervo hereditário, e não uma legitimidade passiva uma vez que a fracção objecto de reivindicação não é casa de morada de família.
Tendo o douto Tribunal decidido em conformidade com a matéria junta aos autos não se podendo assim fazer qualquer reparo.
III) – Não se entende, que a douta Sentença do tribunal a Quo fez uma incorrecta interpretação da matéria referente à casa de morada de família, relativamente á faculdade concedida pelo artigo 1793.º do C.C., isto porque o aludido artigo foi referenciado nas motivações de direito, apenas como fundamentação de que não existe casa de morada de família, nem o direito do R, de habitar a fração, na medida em que este só poderia adquirir tal direito através de um pedido de arrendamento de casa de morada de família em sede de processo de divórcio nos termos previstos nessa mesma disposição legal, se o outro cônjuge fosse proprietário ou comproprietário do bem e não o era, ou se existisse um contrato de comodato o que também não existia. Para além disso nos pedidos formulados na douta contestação do Réu, não consta o pedido de atribuição do direito de arrendamento ao Réu ou às suas filhas ou qualquer outro pelo que o tribunal não se pronunciou sobre tal facto nem deu como provado nenhum directa ou indirectamente relacionado com a faculdade contida no Artº1793.º.
IV) – Descrevem repetidamente os recorrentes, factos que pretendem fazer prova de que o A. tem legitimidade de habitar a fracção e que os A.A. ao interporem a presente acção exerceram abusivamente o seu direito pois excederam os limites impostos pela boa-fé. Invocando ainda factos que consideram relevantes para provar a inércia dos proprietários em reivindicar a fração. Porém e conforme consta da douta decisão dúvidas não restaram ao Tribunal que não houve inércia da parte de quem de direito,
pois ficou provado nos pontos 12.º,13.º,14.º,15.º,16.º,18.º,20.º que interpelações inequívocas não faltaram, quer da parte do proprietário Amilcar, quer dos seus filhos após a sua morte, para que o Réu e as Filhas abandonassem a fração e a deixassem livre de pessoas e bens.
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, deverá a presente apelação ser julgada improcedente, por não provada, e, consequentemente, confirmar a decisão proferida pelo tribunal a quo com todos efeitos legais, justamente porque não violou quaisquer preceitos legais, "maxime" os mencionados pelos recorrentes pois assim se fará a COSTUMADA JUSTIÇA!
I.3. Recebida a apelação, foram os autos aos vistos dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, que nada sugeriram; nada obsta ao conhecimento do mesmo.

I.4. Questões a resolver:

Na Apelação do saneador
Saber se ocorre na decisão que considerou a Autora parte legítima erro de interpretação e de aplicação do disposto no art.º1682-A/2 do CCiv, 30 e 33 do CPC (conclusões 1 a 14).

Na apelação da sentença final
a) Saber se a sentença final padece de nulidade por ter reconhecido um direito que não foi pedido ou seja reconhece o direito de propriedade da fracção dos autos como pertencendo ``a herança quando o que é pedido é que sejam os Autores reconhecidos como donos e legítimos proprietários da fracção em causa;
b) Saber se ocorre na decisão recorrida erro de interpretação e de aplicação do disposto no art.º 334 do CCiv, devendo considerar-se abusivo o direito que os Autores pretendem fazer valer de restituição da fracção que foi a casa de morada de família e os Réus sempre moraram, por terem deixado decorreu 14 anos desde a claudicação da primeira acção de reivindicação sem nada terem reivindicado dos Réus, o que constitui manifestação clara e implícita que reconheceram ser a fracção em causa a casa de morada de família, sendo a presente acção uma manifestação clara de supressio.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É o seguinte o teor da decisão recorrida, na parte que releva, ou seja desde a fundamentação à decisão:

1. Por escritura de 15.12.2009, cuja cópia está a fls.16, os autores foram habilitados como únicos herdeiros de seu pai, Amílcar Sousa e Silva, falecido em 11.11.2009 no estado de viúvo.
2. Por escritura de 25.2.1977, cuja cópia está junta a fls. 85, dando-se por reproduzido o teor integral, a autora, na qualidade de procuradora de Amílcar …, declarou comprar a …Ribeiro Lda., que declarou vender, pelo preço de 700.000$00, a fracção autónoma designada pela letra H, segundo andar esquerdo, para habitação, do prédio urbano situado na Rua C à Quinta da Granja, na Estrada ..., lote , Lisboa, descrito na 5.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ….
3. A fracção referida no ponto anterior encontra-se actualmente descrita na conservatória do registo predial sob o n.º…/20081212-H, tendo pela Ap. 2177 de 2012/07/25 sido registada a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor dos autores, por sucessão hereditária de Amílcar, constando desse mesmo registo que o sujeito passivo (Amílcar) adquiriu a totalidade do prédio por partilha da herança de Luísa …, conforme certidão de fls.136.
4. Pela Ap.4 de 1976/09/24 foi registada no registo predial a aquisição da dita fracção, por compra, a favor de Amílcar …, casado com Luisa …, no regime da comunhão geral de bens, conforme certidão de fls.51.
5. A compra e venda a que se reporta a escritura referida em 2) foi precedida pela celebração entre a já identificada vendedora e Amílcar … do acordo escrito cuja cópia está a fls.77 e 78 dos autos epigrafado “contrato promessa” e pelo qual a sociedade … Ribeiro Lda., prometeu vender ao referido Amílcar, que prometeu comprar, a mencionada fracção autónoma.
6. O prédio onde se integra a fracção foi constituído em propriedade horizontal pela ap.9 de 1976/08/09 e a aquisição do mesmo encontrava-se registada pela ap.6 de 1975/11/06 a favor de … Ribeiro Lda., por compra.
7. Para efectivação da compra dessa fracção, Amílcar … e esposa contraíram junto da Caixa Geral de Depósitos um empréstimo no valor de 450 contos, formalizado por escritura de 25.2.1977, junta a fls. 90, tendo a autora Isabel intervindo na qualidade de procuradora de Amílcar … e esposa.
8. A autora e o réu casaram um com o outro em 29 de Julho de 1977.
9. Esse casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 6 de Julho de 2000, transitada em 25 de Setembro de 2000.
10. À data do casamento a autora e o réu foram morar para a fracção em causa nos autos, identificada em 2) e 3) supra, por permissão dos pais da autora.
11. Pelo menos em 1993 a autora separou-se do réu e foi viver para outra casa, e nesse ano de 1993, intentou a primeira acção de divórcio que, contudo, veio a ser julgada improcedente por sentença de 25.3.1994 cuja cópia está a fls.158 dos autos.
12. Após o referido no ponto anterior o réu e as intervenientes, filhas do casal, continuaram a viver nessa fracção, recusando-se o réu a sair invocando que essa era a casa de morada de família e que tinha o direito de aí residir ainda que contra a vontade do titular do direito de propriedade.
13. O pai dos autores pediu, por diversas vezes, ao longo dos anos por cartas e por conversa telefónica, que o réu desocupasse o imóvel.
14. Em 21.6.1995 Amílcar … instaurou contra o réu uma acção judicial pedindo que fosse reconhecido o seu direito de propriedade sobre a fracção H, (a mesma que está em causa nesta acção) e condenado o réu a entregar a fracção.
15. Nessa acção, por sentença de 21.1.1997, cuja certidão está a fls.166, o réu foi absolvido da instância por o autor ser parte ilegítima, tendo sido interposto  recurso a que foi negado provimento por acórdão transitado em 4.11.1997.
16. Por carta datada de 11.1.2010, cuja cópia é fls.18 dos autos e se dá por reproduzida, enviada ao réu e por este recebida, os autores, através de advogada, informaram que era sua intenção vender a fracção em causa nos autos, pelo preço de 130 mil euros, podendo o réu efectuar uma contraproposta no prazo de 15 dias, após o que, não havendo resposta, consideravam que não tinha intenção de adquirir a casa.
17. O réu respondeu pela carta cuja cópia está a fls.21, pela qual, entre o mais solicitou proposta mais favorável.
18. Os autores responderam pela carta cuja cópia está a fls.27, de 10.2.2010, informando que aceitam vender por 115 mil euros e caso o réu não pretenda adquirir o imóvel deverá deixá-lo livre e devoluto no prazo de 60 dias.
19. Por carta de 2 de Março de 2010, dirigida ao réu, os autores reiteraram o pedido de devolução da casa em 60 dias, a contar de 10 de Fevereiro passado.
20. Por carta de 5 de Maio de 2010, os autores pediram ao réu a entrega da casa em 8 dias, dado, dizem, já ter decorrido o prazo antes concedido, sob pena de intentarem acção judicial.
21. O réu não entregou a fracção e contínua a aí residir com as intervenientes, até ao presente.
22. Os autores antes da morte do pai não solicitaram ao réu a entrega da fracção.
23. O réu em data não apurada mas anterior à morte do pai dos autores e posterior a 1993 propôs-se arrendar a fracção.

2.2-FACTOS NÃO PROVADOS:
Com interesse para a decisão não se provou:
1. Que os pais dos autores tenham comprado a fracção visando destiná-la à morada do casal, ou seja, da autora e do réu.
2. Que em finais de 1975 os pais dos autores propuseram à filha, ora autora, adquirir um andar para ela autora e o réu (então namorados) constituírem família e aí viver.
3. Que o réu e até as filhas deste tivessem a convicção de que a sua casa (a fracção dos autos) iria ser o seu local de residência e permanência.

2.3. – MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
(…)

2.4-MOTIVAÇÃO DE DIREITO
Tendo em conta a matéria de facto provada cumpre fazer a sua análise no plano jurídico.
Os autores pretendem com a presente acção que seja declarado que são donos e legítimos proprietários da fracção autónoma que identificam e que o imóvel lhes seja restituído, condenando-se em conformidade o réu e, por via da intervenção principal provocada, as intervenientes.
Nestes termos estamos em face de uma acção de reivindicação, invocando os autores o seu direito de propriedade sobre a coisa, a detenção dela pelo réu e intervenientes, pedindo a sua restituição.
Nos termos do art.1311.º n.º1 do C.C. “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.
Referindo o n.º 2 do art.1311.º do CC, que havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, pretende afirmar-se que sendo o A. proprietário da coisa que reivindica (o que pressupõe que não tenha a posse ou detenção dela) caberá ao R. – detentor ou possuidor (n.º1 do citado artigo) – demonstrar e provar que a possui ou detém licitamente, sob pena da reivindicação ter que proceder.
Nestes termos se compreende a defesa do réu ao vir invocar um conjunto de factos de onde, em seu entender, decorre a licitude da detenção da fracção. E o cerne dessa defesa passa pela consideração de que a fracção é casa morada de família e, por isso, o réu pode aí habitar e permanecer não obstante o divórcio e não obstante, também, como se impõe concluir dos termos da acção, inexistir qualquer prévia decisão que possa aqui ser considerada como tendo regulado o destino da casa de morada de família.
A situação dos autos, face aos factos que vieram a provar-se, traduz-se no seguinte: após o casamento do réu com a autora o casal foi habitar uma casa dos pais da autora onde morou enquanto casal e com as filhas comuns até que a autora, em 1993, se separou de facto do réu e foi habitar em outro lugar. O casamento, contudo, só foi dissolvido no ano 2000, por divórcio, mas o réu manteve-se durante todo esse tempo a viver na fracção, apesar das interpelações para sair e entregar o imóvel quer pelo pai dos autores, quer depois da morte do mesmo pelos autores.
A primeira questão que se impõe apreciar e decidir é a de saber se os autores são proprietários da fracção, ou noutra perspectiva, em função do que lograram provar a restituição do imóvel se impõe. A este respeito, embora de forma claramente frouxa, dizia o réu que os autores não demonstravam convenientemente o respectivo direito, vindo a ser efectivamente o réu a juntar aos autos a escritura de compra e venda celebrada entre o pai dos autores e uma empresa por via da qual esta vendeu aquele a fracção em causa, o que naturalmente resultou provado. Em face dessa escritura, impõe-se afirmar que o pai dos autores adquiriu a propriedade do imóvel por contrato, modo legítimo de aquisição do direito como resulta do art.1316.º do C.C.. Resulta, aliás, também provado o registo dessa aquisição, pelo que, sempre por esta via se presumia a existência do direito nos termos em que o registo o definia (cfr.art.7.º do Código do Registo Predial onde se estabelece que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define). Sucede que o adquirente do direito veio a falecer no estado de viúvo, ou seja depois do falecimento do cônjuge, sendo os autores os seus herdeiros, como também atestam os factos provados. Nessa qualidade os mesmos autores registaram, a seu favor, no registo predial a aquisição da fracção, sem determinação de parte ou direito, por sucessão. Não se trata, contudo, de uma situação que corresponda à noção técnico-jurídica de compropriedade, mas sim a uma comunhão de direitos.
Efectivamente, os autores enquanto herdeiros sucedem nas relações jurídicas do falecido (art.2032.º do C.C.), e aceite a herança, como não pode deixar de considerar-se no caso concreto, adquire-se o domínio e posse dos bens independentemente da sua apreensão material, conforme se estabelece no art.2050.º do C.C.. Mas antes da partilha da herança os herdeiros não são titulares de qualquer quota ou parte especificada dos bens integrados no património hereditário, o que se compreende pois uma vez efectuada a partilha o herdeiro pode receber ou não qualquer dos bens que compõem a herança. O herdeiro tem apenas uma quota ideal no património hereditário, na universalidade que o constitui. Mas com a partilha, cada um dos herdeiros é considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, desde a abertura da sucessão. Não existe, assim, juridicamente, por via das regras do direito sucessório qualquer momento temporal de vácuo na titularidade dos bens. No caso dos autos, evidencia-se que a partilha ainda não foi feita, pelo que, em rigor estamos em presença de uma situação de herança não partilhada, indivisa, e no rigor dos princípios o imóvel pertence à dita herança. Os autores são os únicos herdeiros. O que os autores alegam, aliás, é que adquiriram o bem por herança, e na data da abertura da sucessão, sendo os únicos herdeiros, mencionando a existência do registo de aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito. Este registo é um registo com feição anómala, embora consentido pelo art.49.º do Código do Registo Predial. Esta norma estabelece “O registo de aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito é feito com base em documento comprovativo da habilitação e, tratando-se de prédio não descrito, em declaração que identifique os bens.”, o que equivale a dizer que assenta apenas na qualidade de herdeiro do titular, donde não corresponde rigorosamente à inscrição do direito de propriedade sobre bem determinado, pelo que, não cria a presunção do direito de propriedade, e justamente por isso se trata de registo em comum sem determinação de parte ou direito. Por isso, os autores não são rigorosos na análise que fazem em termos de aquisição do direito de propriedade. Porém, analisada a petição inicial, o certo é que não há dúvidas que se fundam na sucessão hereditária e nesta desembocam a titularidade do direito de propriedade em causa, invocando em sustento a sua qualidade de herdeiros do falecido. Nessa medida a causa de pedir, visto enquanto facto jurídico de onde emana o direito de propriedade, é referenciada à
sucessão, o que equivale a dizer que os autores se qualificam como donos por sucederem ao proprietário e o bem fazer parte da herança deste. Esta configuração correcta da questão da propriedade do imóvel versus alegação e pedido dos autores que se dizem proprietários, poderá determinar que se considere não estar demonstrado de forma suficiente a propriedade dos reivindicantes para efeitos de procedência do pedido de restituição? Entendemos que não, porque são efectivamente os autores que podem reivindicar de terceiro o imóvel em causa. O art.2091.º do C.C. diz-nos que “fora dos casos declarados nos artigos anteriores e sem prejuízo do disposto no art.2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros e ou contra todos os herdeiros”, o que permite afirmar que os autores podem pedir a restituição da coisa sem quaisquer constrangimentos, pois são eles que exercem os direitos à herança onde o imóvel se integra. Aliás sendo mister da reivindicação que se prove a propriedade do bem reivindicado, vem sendo entendido que não é indispensável que o pedido de reconhecimento seja expressamente formulado, estando implícito no pedido de restituição. E de facto a procedência do pedido de restituição comporta a afirmação daquele direito, mas a sua declaração não deixa de ser instrumental relativamente ao pedido de restituição do bem. Ora, no caso, os autores agem efectivamente enquanto herdeiros pois fundam-se nessa qualidade, e é esta que em substancia sustenta o pedido, sendo as suas afirmações de que são proprietários não mais do que mera interpretação jurídica dos efeitos decorrentes dessa sucessão, ou seja, não constitui matéria de facto, pelo que, o tribunal não está vinculado à interpretação jurídica que os autores fazem da natureza do direito em que se fundam. Os autores não adquiriram o bem por herança, os autores representam e são os herdeiros da herança à qual pertence o bem reivindicado, pelo que, o direito de propriedade que aqui importa tem que ser juridicamente referenciado à herança cujos direitos são exercidos pelos autores nos termos da lei. Estando assim na lide quem pode exercer o direito, e comprovando-se a existência desse direito, o facto dos autores se intitularem proprietários quando na realidade o direito de propriedade está na titularidade da herança de que são os únicos herdeiros, não pode deixar de determinar a procedência do pedido de restituição se o réu não lograr provar factos que o impeçam, continuando o tribunal a actuar no âmbito e limites da causa de pedir mas conformando-a juridicamente, interpretando e aplicando as regras de direito à mesma realidade fáctica que os autores interpretaram diversamente. Imagine-se na senda do que já se disse que os autores haviam omitido o pedido que formulam na alínea a) do petitório, pedindo apenas a restituição. Nessa situação em função de tudo o que invocam, concluir-se-ia, que enquanto herdeiros e fazendo o imóvel parte da herança, a reivindicação procedia, estando implícito o reconhecimento do direito de propriedade em que tem que se fundar a dita restituição. Pois não pode ser de outra forma na situação em que, embora por errada interpretação jurídica, os autores pedem que se declare que são donos fundam-se, de igual forma, na circunstancia do bem pertencer à herança (vide art.2.º da pi.) invocando expressamente (art.3.º da p.i.) que a herança não foi partilhada e são os herdeiros. O pedido dos autores de declaração de que são proprietários tem assim que ser interpretado em conjunção com causa de pedir que invocam e, nessa medida, por referência à titularidade do direito na herança de que são herdeiros, declarando-se em conformidade por estarem os mesmos legalmente legitimados a exercer os direitos da herança proprietária, não sendo posto em causa nos autos essa sua qualidade de herdeiros.
Concluímos assim ser a herança indivisa da qual os autores são os herdeiros titular do direito de propriedade sobre a fracção aqui reivindicada.
Importa agora apreciar se o réu logrou provar factos de onde decorra que detém legitimamente o imóvel. E adiantamos já que resposta tem que ser negativa. Não colhe, efectivamente, a argumentação do réu assente no facto da casa constituir casa de morada de família. Cremos que o réu parte de um pressuposto que não é correcto. Pese embora o casal tenha habitado a fracção, a mesma não lhe pertencia, donde enquanto bem comum ou enquanto bem próprio de um dos cônjuges não poderia haver, nem em sede de processo de divórcio, qualquer decisão quanto ao destino da casa de morada de família, nos termos do art.1793.º do C.C.. Esta norma permite que o tribunal dê de arrendamento a qualquer dos cônjuges a casa de morada de família seja ela comum seja própria do outro. Mas assim é porque a titularidade da casa pertence às pessoas envolvidas, não afectando direitos de terceiro alheio ao divórcio e nessa medida é possível a constituição da relação de arrendamento. Mas já não é possível o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges um bem pertença de terceiro, como facilmente se compreende. Por outro lado, não havia qualquer contrato de arrendamento em nome dos cônjuges ou de um deles, por forma a considerar a transmissão do arrendamento, nos termos do art.1105.º do Código Civil. Sendo tais situações aquelas em que, em caso de divórcio, o tribunal pode ser chamado a decidir sobre o destino da casa de morada de família, não se logra antever como poderia o réu pretender adquirir quaisquer direitos a morar na casa por efeitos do divórcio e relativamente a bem que, à data, não pertencia a qualquer dos cônjuges nem a estes estava arrendado. O contrário determinava que o dono da casa fosse obrigado a consentir a permanecia do réu sem absolutamente nenhum benefício, em violação absoluta do seu direito de propriedade e que lhe permite gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem dentro dos limites da lei (art.1305.º do C.C.). E continuava a ser assim, a nosso ver, ainda que o réu tivesse logrado provar – o que não fez – que a casa havia sido adquirida pelos pais da autora para o casal aí morar, porque mesmo que assim fosse, dissolvido o casamento, não sendo a casa dos cônjuges nem estes a habitando por arrendamento, não havia que lhe dar destino em sede de divórcio. Em todo o caso, o réu não provou esse facto pelo que não pode proceder qualquer pretensão que se arrimava no mesmo facto, o que equivale a dizer que não assiste ao réu qualquer direito de permanecer na fracção por via da circunstancia que alegava da casa ter sido adquirida pelo pai ou pais da autora visando constituir a casa de morada do casal. Ademais, mesmo que assim fosse, dissolvido o casamento, pilar da alegada intenção, falecia o suporte para manutenção da situação. Em síntese, a casa foi casa de morada da família constituída pelo réu, autora e filhos do casal, mas não sendo a mesma de nenhum dos cônjuges nem arrendada, não podia nenhum dos cônjuges pedir que o tribunal regulasse o seu destino quer no âmbito do divórcio quer em acção posterior. O que equivale a dizer que o divórcio irreleva para a solução, como irreleva o ter sido casa de morada de família. O casal habitou na casa por anuência dos titulares do direito de propriedade, situação que juridicamente poderia conduzir a um contrato de comodato (art.1129.º do C.C.), pois traduz-se na entrega da casa para que o casal se sirva dela com a obrigação da restituir (esta na medida em que decorre do facto de não haver transferência da titularidade da coisa). Nos termos do art.1137.º se não for convencionado prazo certo para a restituição da cosia mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restitui-la logo que o uso finde, independentemente de interpelação e se não foi convencionado prazo nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que se seja exigida. Deve adiantar-se que o uso determinado de que fala a lei é o uso concreto, especifico que determinou a entrega e não o uso genérico associado à natureza da coisa, pelo que, no caso da coisa entregue se destinar à habitação, não é esse facto que releva para efeitos do artigo mas o eventual uso concreto que presidiu ao contrato (v.g. para usar/habitar enquanto trabalhar em certo local, ou enquanto estiver a convalescer, ou enquanto os filhos forem menores, ou durante as férias etc.). No caso e em face dos factos, mesmo que se concebesse a existência de um comodato, o que o réu não invoca em concreto, nada se sabe sobre prazo nem uso concreto, pelo que, os comodatários, à data, autora e réu ainda casados estavam obrigados a restituir a coisa quando lhe fosse exigida. A autora entretanto deixou a casa, o réu continuava vinculado à obrigação de restituir a casa quando exigida e a casa foi exigida ao longo dos anos que lá se mantém até ao presente, incumprindo o réu reiteradamente essa obrigação. Decorre do exposto que o réu não é titular de qualquer direito que lhe permita manter a detenção do imóvel. Como não era titular de qualquer direito a nele se manter enquanto durou o casamento, se interpelado para o restituir pelo dono. O réu podia habitar a fracção apenas e só enquanto não lhe fosse pedida pelos coodantes. Tem pois os autores direito a que a fracção lhe seja restituída.
Invoca ainda o réu abuso de direito por parte dos autores, dizendo que houve inércia destes e/ou anteriores proprietários que nessa medida criaram a convicção de aí poder permanecer. O abuso de direito supõe que se afirme a existência do direito, sendo o respectivo exercício abusivo se o titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.334.º do C.C.). Por outro lado, convirá acrescentar que nos termos do art.1313.º do C.C., sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo decurso do tempo, donde eventual inércia dos proprietários em reivindica-la não os prejudica, mantendo-se o direito a reavê-la, o que só por si torna difícil a configuração de uma situação de abuso direito baseada nessa inércia. Mas dizia o réu que tal inércia/omissão, determinou a convicção de que a casa seria a sua residência permanente, ou seja, parece com isso significar que foi criada a convicção de que o direito jamais seria exercido. Mas não assiste nenhuma razão ao réu. O réu habita um imóvel alheio desde 1977, inicialmente por via do casamento com a autora e consentimento dos pais desta. Em 1993 o casal separou-se de facto, o réu foi interpelado várias vezes para deixar o imóvel, foi accionado judicialmente em 1995 para restituir a casa o que, se outros efeitos não teve tem, pelo menos, a evidente manifestação de vontade contrária à permanência do réu na casa, continuou a ser interpelado e de forma reiterada a partir de 2010 pelos autores, donde não se vê como afirmar que o direito à restituição esteja a ser exercido de forma manifestamente abusiva por contrária ao comportamento anterior. Comportamento anterior que o réu não logrou provar sequer que tivesse determinado a falada convicção. Afirmá-lo, seria no caso, pactuar com o comportamento incumpridor do réu que, como se viu, desde há muito tinha a obrigação de restituir a fracção, não estando o mesmo na situação em apreço protegido nem pela boa-fé, nem pelos bons costumes, nem pelo fim social e económico do direito, enquanto limites impostos ao exercício do direito.
Havendo que determinar a restituição da fracção aos autores, os mesmos, contudo, pedem que a restituição se faça dentro de um prazo a fixar pelo tribunal não superior a 60 dias a contar do trânsito da sentença, pelo que, levando em conta os termos que vêm pedidos, apesar de não ser exigida legalmente a fixação e qualquer prazo para o efeito, fixa-se o prazo requerido pelos autores em 30 dias.

III- Decisão:

Pelo exposto, julga-se a acção procedente e, em consequência:
a) Declara-se que a fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 2.º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua Professor ... L, 2.º esquerdo, em Lisboa, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º…/20081212 –H, pertence à herança deixada por óbito do pai dos autores e da qual são os autores herdeiros.
b) Condenam-se o réu e as intervenientes a restituírem aos autores a identificada fracção, livre e devoluta, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença.
(…”
II.2. Era o seguinte o teor do despacho saneador que os apelante também impugnam:
----- O Tribunal é o competente em razão da matéria, da hierarquia e das regras de competência internacional.---
----- O processo é o próprio, e inexistem outras nulidades que o invalidem na sua totalidade.---
----- As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias, e mostram-se devidamente patrocinadas.---
*
----- Da legitimidade activa.
----- O Réu na contestação embora sem denunciar a excepção como ilegitimidade, nos art.s 12º a 17º da contestação, refere que a autora não pode ser autora na acção porque deveria também ser ré por imperativo legal e por se discutir a posse da casa da morada de família (art.º 16º da contestação).---
----- Afigura-se-nos que o alegado pelo réu parece colocar em causa a legitimidade da autora para a presente acção impondo assim decisão sobre esta questão.---
----- Com a presente acção os autores, enquanto herdeiros de seu pai Amílcar e nessa medida se dizem donos do imóvel, pretendem reivindicar a fracção em causa na acção e a correspondente entrega pelos réus.---
----- Nesta perspectiva é evidente o interesse que a autora tem em demandar pois se arroga titular do direito sobre o imóvel que, juntamente com o outro herdeiro, pretende reaver.
Nesta medida a autora é titular da relação controvertida trazida ao processo, razão pela qual se afigura, face ao art.º 30º do CPC ser parte legítima.---
----- Diz o réu que a autora haveria de figurar no lado passivo por estar em causa a posse da casa de morada de família. Não tem o réu, a nosso ver razão. A questão da posse da casa de morada de família não é questão trazida à lide pelos autores mas sim pelo réu. E a relação controvertida a que o Tribunal deve atender para efeito de legitimidade haverá de ser a que foi configurada pelos autores. Diga-se, contudo, que o facto do réu invocar que a fracção em causa no processo foi a casa de morada de família do casal não pode deixar de ser entendido à luz da situação actual, ou seja, do facto da autora e o réu estarem divorciados desde do ano 2000, pelo que, não se concede que a autora tivesse de intervir no lado passivo da demanda pois com esta a autora não pretende valer qualquer posse sobre a casa de morada de família mas sim a titularidade do imóvel.---
----- Nesta medida se afirma a legitimidade da autora.---
*
----- O autor é parte legítima.---
*
----- Foi também suscitada a legitimidade passiva, pelo réu, por não terem sido demandadas as suas filhas, também residentes no imóvel indicado. Tal questão encontra-se já resolvida por terem sido convidados os autores a fazerem intervenientes as filhas, o que veio a ocorrer, e nessa medida sanada por via da preterição do litisconsórcio passivo.---
----- São os réus parte legítima.---
*
----- Inexistem outras excepções dilatórias, nulidades parciais, ou quaisquer questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento de mérito, e de que cumpra conhecer desde já.---

III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.1. Conforme resulta do disposto nos art.ºs 608, n.º 2, 5, 635, n.º 4, 649, n.º 3, do CPC[1] são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso. É esse também o entendimento uniforme do nosso mais alto Tribunal (cfr. por todos o Acórdão do S.T.J. de 07/01/1993 in BMJ n.º 423, pág. 539.

III.2. Não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto tal como enunciadas em I.

III.3. Na Apelação do saneador
Saber se ocorre na decisão que considerou a Autora parte legítima erro de interpretação e de aplicação do disposto no art.º1682-A/2 do CCiv, 30 e 33 do CPC (conclusões 1 a 14).

III.3.1. Entende-se que a decisão recorrida que, no saneador considerou a legitimidade da Autora aferida pela relação jurídica tal como ela e o irmão, a configuraram, seja como herdeiros da herança do mencionado Amílcar e de que faz parte a fracção em conformidade com o disposto no art.º 30 é a correcta, já que não pretendem discutir a posse da referida fracção como o fazem os Réus alcandorados na qualificação daquela fracção como casa de morada de família. Ainda que se tratasse de casa da morada de família a presente acção não visa a alienação, a oneração, o arrendamento ou a constituição de qualquer direito pessoal de gozo sobre imóvel próprio ou comum, pois na verdade a acção visa o reconhecimento do direito de propriedade desse imóvel quanto aos Autores (adiante veremos como os Autores se exprimiram do ponto de vista jurídico menos perfeitamente a justificar a interpretação da sua declaração petitória), enquanto herdeiros da herança de que o imóvel em questão faz parte e a consequente restituição à herança do mencionado Amílcar. Por conseguinte inexiste a situação de litisconsórcio passivo suportada nos mencionados art.ºs 1682-A e 34, n.ºs 3 e 1 (e não 33 com o decerto por lapso vem indicado), que imponha que a Autora deva estar do lado passivo ao lado do Réu e das filhas. Improcede nessa parte o recurso.

III.4. Saber se a sentença final padece de nulidade por ter reconhecido um direito que não foi pedido ou seja reconhece o direito de propriedade da fracção dos autos como pertencendo à herança quando o que é pedido é que sejam os Autores reconhecidos como donos e legítimos proprietários da fracção em causa;

III.4.1. No seu despacho de sustentação da decisão recorrida de 25/6/2014 onde refere que inexiste a mencionada nulidade porquanto a questão foi tratada na sentença e fez a correcta análise jurídica.

III.4.1. Na sentença em suma diz-se:
  • Os Autores enquanto herdeiros sucedem nas relações jurídicas do falecido (art.º 2032 do CCiv) e aceite a herança como o foi no caso concreto adquire-se o domínio e a posse dos bens independentemente da apreensão material tal como estatui o art.º 2050 do CCiv,
  • Antes da partilha os herdeiros não são titulares de qualquer quota ou parte especificada dos bens integrados no património hereditário, o que se compreende pois efectuada a partilha o herdeiro pode receber ou não qualquer desses bens da herança, tem apenas uma quota ideal no património hereditário na universalidade
  • Não existe qualquer momento de vácuo na titularidade dos bens, neste momentos o imóvel pertence à herança de que os autores são os únicos herdeiros, tendo registado o imóvel nos termos do art.º 49 do CRgP com aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, com base no documento da habilitação, registo que assentou apenas na qualidade de herdeiro do titular o que não criando a presunção da titularidade pelo que os Autores não são rigorosos na análise que fazem em termos de aquisição do direito de propriedade, mas analisada a petição não há dúvida de que se fundam na sucessão hereditária, invocando a qualidade de herdeiros do falecido, pelo que a causa de pedir é referenciada à sucessão, o que equivale por dizer que os autores se qualificam como donos por sucederem ao proprietário o bem fazer parte da herança deste
  • Nos termos do art.º 2091 do CCiv os Autores podem pedir a restituição da coisa sem constrangimentos pois são eles que exercem os direitos à herança onde o imóvel se integra, a afirmação de que são proprietários não é mais do que uma interpretação jurídica dos efeitos decorrentes da sucessão, não constitui matéria de facto, o Tribunal não está vinculado à interpretação jurídica dos efeitos decorrentes dessa sucessão, o que significa que o pedido pode proceder, continuando o tribunal a actuar nos âmbito e limites da causa de pedir mas conformando-a juridicamente.

  • III.4.2. Discordam em suma os Réus em suma dizendo:
  • Os Autores pedem que sejam declarados donos e legítimos proprietários da fracção e a condenação dos Réus a desocupar o imóvel e a restituí-lo aos Autores livre de pessoas e de bens num prazo nunca superior a 60 dias após o trânsito em julgado da decisão.
  • Não podemos acompanhar a sentença quando interpretando o disposto no art.º 2050 do CCiv conclui que antes da partilha os herdeiros não são titulares de qualquer quota especificada dos bens integrados no património hereditário, pois isso acontece tal como na compropriedade, os bens da propriedade colectiva podem ser divididos ou podem ficar em compropriedade e por conseguinte no caso dos autos isso não significa que o imóvel pertença à herança que não é sujeito de direito não é pessoa susceptível de ser titular de situações jurídicas, tendo apenas capacidade judiciária nos termos do art.º 12/a do CPC pelo que na perspectiva da sentença podia e devia proceder a acção e reconhecer não a herança mas os Autores como proprietários do imóvel.
  • Ao declarar a herança como proprietária do imóvel a sentença condenou em objecto diverso do pedido sendo nula nos termos do art.º 615/1/e

  • III.4.3. Herança jacente é um conceito de direito. A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (art.º 2031 do Código Civil, doravante designado por CCiv). Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046 do CCiv). A aceitação da herança podendo ser expressa ou tácita (art.º 2056 do CCiv) pode ser pura ou a benefício de inventário (art.º 2052/1 do CCiv) e a aceitação a benefício de inventário faz-se requerendo inventário judicial nos termos da lei de processo ou intervindo em inventário pendente (art.º 2053 do CCiv); os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (art.º 2056/3 do CCiv). A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal. A indicação da pessoa do cabeça-de-casal nos termos do art.º 2080 do CCiv é também hoje uma imposição fiscal. Não havendo quem administre os bens da herança jacente e para evitar a perda ou deterioração dos bens, o tribunal nomeia curador à herança jacente. O sucessível chamado à herança, sendo conhecido, não aceitando nem repudiando a herança dentre de 15 dias fica sujeito a que o Ministério Público ou qualquer interessado o mande notificar para o mesmo fim fixando-se-lhe um prazo, findo o qual, a lei ficciona a aceitação da herança (art.º 2049 do CCiv). Fora dos casos previstos nos art.ºs 2075, 2076, 2078, 2087, 2088, 2089, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (litisconsórcio).

    III.4.4. Se a herança estiver jacente tem personalidade judiciária. Não estando, não tem.

    III.4.5. Está provado e não foi impugnado que por escritura de 15/12/09 os autores foram habilitados como únicos herdeiros de seu pai Amílcar falecido em 11.11.09; quanto à fracção reivindicanda encontra-se registada a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos autores por sucessão hereditária do referido Amílcar.

    III.4.6. A herança é comummente designada na doutrina como uma comunhão, na medida em que sendo vários os herdeiros os seus direitos incidem sobre uma plêiade de bens e direitos relativamente a cada um dos quais não é possível afirmar que qualquer deles seja titular do direito de propriedade até porque em partilha pode qualquer desses bens ou direitos ficar a pertencer a apenas um ou alguns dos herdeiros aplicando-se-lhe, é certo, as regras da compropriedade.

    III.4.7. No que toca à herança indivisa, sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir, separadamente, a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que tais bens lhe não pertençam por inteiro, podendo o cabeça-de-casal pedir a entrega dos bens que deva administrar conforme os art.ºs 2078 e ss; fora desse circunstancialismo os direitos relativos ã herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (art.º 2090 do CCiv). As regras da compropriedade são aplicáveis com as necessárias adaptações à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles (art.º 1404 do CCiv); na falta de acordo sobre o uso da coisa comum a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela e o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva, ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título (art.º 1406, n.ºs 1 e 2 do CCiv). O comproprietário pode dispor da sua quota na comunhão mas não pode sem consentimento dos restantes consortes dispor de parte especificada da coisa comum, sendo que a disposição de parte especificada da coisa comum é havida como disposição de coisa alheia (art.º 1408, n.ºs 1 e 2 do CCiv).

    III.4.8. Seja qual for a qualificação doutrinária os Autores são apenas herdeiros da herança do falecido Amílcar, como tal foram habilitados; estando provado que o imóvel faz parte da herança e que os Autores, enquanto seus herdeiros o podem reivindicar, como bem se diz na sentença, em litisconsórcio activo, não para si próprios, mas para a herança, de que são os únicos herdeiros a interpretação que a sentença fez do pedido dos Autores constitui qualificação jurídica no que o Tribunal é soberano.

    III.4.9. Assim, o Tribunal recorrido procedeu a uma interpretação do pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pelos Autores enquanto herdeiros da herança.

    III.4.10. Já no acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2001 de 23/01/2001, publicado no DR I-A n.º 57, de 08-03-2001 e a propósito da matéria de interpretação do pedido se decretou: “Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do art.º 616 do Código Civil) o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como pretendido pelo art.º 664 do Código de Processo Civil.”

    III.4.11. Este acórdão uniformizador de jurisprudência, versando, é certo, matéria diferente daquela que nos ocupa aqui, tem, todavia, um mérito não despiciendo para a solução da questão que aqui se debate: o Tribunal, estando em causa a indagação, interpretação e aplicação das regras do direito, não está sujeito à alegação das partes e pode/deve, interpretar o pedido, tal como interpretaria uma declaração negocial.

    III.4.12. Inexiste a apontada nulidade.

    III.5. Saber se ocorre, na decisão recorrida, erro de interpretação e de aplicação do disposto no art.º 334 do CCiv, devendo considerar-se abusivo o direito que os Autores pretendem fazer valer de restituição da fracção que foi a casa de morada de família e os Réus sempre moraram, por terem deixado decorrer 14 anos desde a claudicação da primeira acção de reivindicação sem nada terem reivindicado dos Réus, o que constitui manifestação clara e implícita que reconheceram ser a fracção em causa a casa de morada de família, sendo a presente acção uma manifestação clara de supressio.

    III.5.1. Os Réus não impugnam nos termos da lei de processo a matéria de facto que o Tribunal recorrido deu como provada em 10/15, pelo que está assente que o primitivo proprietário do imóvel, pai dos Autores emprestou à filha e ao Réu, aquando do casamento a mencionada fracção para estes nela habitarem, sendo que a coabitação cessou em 1993, altura em que aquele intentou a acção de restituição do imóvel, que apenas naufragou por razões formais; ora, não há dúvida de que a posição do Réu, após a cessação da coabitação, naquela que foi a casa de morada de família, constituía uma mera detenção e não uma verdadeira posse, detenção aquela que se tornou ilegítima após o pedido de restituição (art.ºs 1137/2 e 1135/h do CCiv). O pai dos autores pediu por diversas vezes, ao longo dos anos, por cartas e por conversa telefónica que o réu desocupasse o imóvel (ponto 13 da decisão de facto) e como não vem provada data é perfeitamente razoável que o tenha feito até à data da sua morte em 11/11/09. Depois da morte do pai dos Autores, logo em 11/1/2010 foi a vez dos autores solicitarem a devolução do imóvel, pelo que os factos dados como provados são mais do que suficientes para demonstrar o contrário daquilo que os Réus pretendem fazer valer na acção e no recurso, ou seja que houve inércia que essa inércia gerou uma situação de confiança de que os Autores consideravam a casa como casa de morada da família composta pelo Réu e as filhas. Improcede também aqui o recurso.

    IV- DECISÃO

    Tudo visto acordam os juízes em julgar improcedente a apelação e confirmar as decisões recorridas.

    Regime da Responsabilidade por Custas: As custas são da responsabilidade dos Réus /Recorrentes que decaem e porque decaem nos termos do art.º 527.

    Lxa.,

    João Miguel Mourão Vaz Gomes
    Jorge Manuel Leitão Leal
    Ondina Carmo Alves


    [1] Na redacção que foi dada ao Código do Processo Civil pela Lei 41/2013 de 26/7, atento o disposto nos art.º 5/1, 8, e 7/1 (a contrario sensu)e 8 da mesma Lei que estatuem que o novo Código de Processo Civil entrou em vigor no passado dia 1/09/2013 e que se aplica imediatamente às acções declarativas pendentes, não estando a situação ressalvada no art.º 7 e a data da decisão recorrida que é de 21/03/2014; ao Código referido, na redacção dada pela Lei 41/2013, pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem.