Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3499/12.9JFLSB-F.L1-9
Relator: GUILHERMINA FREITAS
Descritores: CONSULTA DO PROCESSO
DEVER DE INFORMAR
JORNALISTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I- Decorre do disposto no art. 90.º, n.º 1, do CPP, que o único critério para aferir da pretensão de terceiros para aceder à consulta de processo que não se encontre em segredo de justiça ou obter cópia, extracto ou certidão de auto ou de parte dele, é o da existência de interesse legítimo por parte do requerente, que o deve alegar e provar.
II- Entre as pessoas que, não sendo sujeitos processuais, podem ter um interesse legítimo no acesso ao processo encontram-se os jornalistas.
III- Os jornalistas beneficiam de um regime especial por força do disposto no art. 8.º, n.ºs 2 e 3 do Estatuto dos Jornalistas, estabelecido pela Lei n.º 1/99 de 13/1, constituindo interesse legítimo a invocação pelo jornalista do interesse no acesso às fontes de informação.
IV- É de considerar como legítimo o interesse do requerente, ora recorrente, em consultar os autos ou obter cópia da acusação do Ministério Público, com o objectivo de realizar trabalho jornalístico, à luz do disposto no n.º 1 do art. 90.º do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos autos com o n.º 3499/12.9JFLSB, que correm termos no Tribunal Judicial de Sesimbra, veio o jornalista RM... recorrer do despacho proferido em 19/5/2014, pelo JIC, despacho esse que, por efeito de remissão expressa para os fundamentos invocados no despacho de fls. 6840, lhe indeferiu o pedido de consulta dos autos ou a obtenção de cópia da acusação deduzida pelo Ministério Público.
2. Da respectiva motivação extrai o recorrente as seguintes (transcritas) conclusões:
“A. O despacho recorrido viola os artigos 86.º, n.º 7 e 90.º, n.º 1 do CPP, por não ter decido no sentido de que, para efeitos do previsto no artigo 90.º, n,º 1 do mesmo compêndio legal, os jornalistas podem, se alegarem a existência do título profissional de jornalista e o objetivo de realizar trabalho jornalístico de interesse público, consultar os autos e até obter cópia, extrato ou certidão de processo em que vigore a publicidade externa, detendo, em consequência, interesse legítimo para os efeitos descritos nesse dispositivo legal;

B. O despacho recorrido viola ainda os artigo 86.º, n.º 7 e 90.º, n.º 1 do CPP, por não ter decidido no sentido de que a qualidade do interesse do jornalista na consulta de um processo-crime, resulta diretamente da Constituição da República Portuguesa, quando esta garante expressa e formalmente o direito dos jornalistas ao acesso às fontes de informação, não podendo a norma vertida no artigo 90.º, n.º 1 do CPP ser interpretada e aplicada para resolução de uma putativa colisão de direitos, pois que o Legislador do processo penal, ciente dos direitos constitucionais dos jornalistas e dos de personalidade de todo e qualquer cidadão, acabou já por fazer traduzir na Lei Processual Penal, em momento necessariamente anterior, uma solução de justa composição de interesses, e sem sacrifício de nenhum dos direitos eventualmente em causa, resolução essa que se mostra prevista no artigo 86.º, n.º 7 do CPP, inaplicado e inaplicável nos presentes autos;

C. A restrição imposta pelo despacho recorrido à liberdade de informação, não tem fundamento na norma do artigo 90.º, n.º 1 do CPP, sendo materialmente inconstitucional, uma vez que, tal restrição, só deveria ter ido até onde fosse imprescindível assegurar e defender os interesses que a lei processual penal identifica, designadamente, no artigo 86.º, n.º 7 do mencionado compêndio legal, devendo assim ter-­se sacrificado, no mínimo, os direitos dos jornalistas, de modo a não afetar conteúdos essenciais do direito de informação, como o é o direito ao acesso às fontes de informação, o que não aconteceu nos autos;

D. O despacho recorrido violou, assim, com a interpretação e aplicação desconformes ao sentido defendido nas conclusões supra, as normas legais vertidas nos artigos: 18.º, n.º 2, e 38,º, n.º 2, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; 8.º, n.ºs 2 e 3 do Estatuto do Jornalista; e 86.º, n.º 6, alínea c), e n.º 7 e 90.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.

TERMOS EM QUE,
E. O despacho recorrido deve ser integralmente revogado e substituído por outro que permita ao Recorrente a consulta dos autos ou a obtenção de cópia da acusação,
F. O que se requer, com todas as consequências legais.”

3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 46 deste apenso.                   
4. O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta ao recurso, concluindo que ao mesmo deverá ser negado provimento.
5. Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.º do CPP, no sentido da improcedência do recurso.
6. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art. 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP).
Assim sendo, a questão a apreciar por este Tribunal ad quem consiste em saber se o recorrente, jornalista de profissão, tem ou não interesse legítimo para, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 90.º do CPP, consultar os autos ou obter cópia da acusação do Ministério Público, com o objectivo de realizar trabalho jornalístico, conforme requereu a fls. 6858.
2. A decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição):
“Fls. 6858:
Renovo o despacho de fls. 6840 e, desta forma, indefiro ao requerido.
Notifique.”
Por sua vez o despacho de fls. 6840, para o qual a decisão recorrida remete, tem o conteúdo seguinte (transcrição):
“Vem MM..., jornalista do jornal (...) , requerer a consulta dos autos.
Para tanto, alega a sua qualidade de jornalista e esclarece que o requerido se prende com um trabalho que está a realizar sobre o SNS e à fraude naquele serviço.
De acordo com o disposto no art. 90.º do Código de Processo Penal pode pedir a consulta de auto de um processo que não se encontre em segredo de justiça, desde que nisso revele interesse legítimo.
O presente processo não está em segredo de justiça.
A requerente não alega qualquer interesse legítimo e o que decorre da sua qualidade de jornalista – o dever de informar aqueles que têm o direito de serem informados – não se pode, pelo menos nesta fase de instrução, sobrepor ao direito dos sujeitos processuais e das respectivas famílias, à reserva da sua vida privada, ao bom nome e ao sigilo em relação aos factos em apreciação, pelo menos, até ser fixado o objecto do processo, com a respectiva pronúncia ou não pronúncia.
Desta forma e porque não se considera legítimo o interesse da requerente, à luz do disposto no n.º 1 do art. 90.º do CPP, indefiro ao requerido.
Notifique.”
3. Analisando
A questão fulcral a decidir neste recurso é a de saber se o recorrente, jornalista de profissão, tem ou não interesse legítimo para, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 90.º do CPP, consultar os autos ou obter cópia da acusação do Ministério Público, com o objectivo de realizar trabalho jornalístico, conforme requereu a fls. 6858.
Vejamos.
Dispõe o art. 90.º do CPP, sob a epígrafe, “Consulta de auto e obtenção de certidão por outras pessoas”, que:
“1 – Qualquer pessoa que nisso revelar interesse legítimo pode pedir que seja admitida a consultar auto de um processo que se não encontre em segredo de justiça e que lhe seja fornecida, à sua custa, cópia, extracto ou certidão de auto ou de parte dele. Sobre o pedido decide, por despacho, a autoridade judiciária que preside à fase em que se encontra o processo ou que nele tiver proferido a última decisão.
2 – A permissão de consulta de auto e de obtenção de cópia, extracto ou certidão realiza-se sem prejuízo da proibição, que no caso se verificar, de narração dos actos processuais ou de reprodução dos seus termos através dos meios de comunicação social.”  
Decorre da análise deste preceito que o único critério para aferir da pretensão de terceiros, que não os sujeitos processuais (em relação a estes dispõe o art. 89.º do CPP), para aceder à consulta de processo que não se encontre em segredo de justiça ou obter cópia, extracto ou certidão de auto ou de parte dele, é o da existência de interesse legítimo por parte do requerente, que o deve alegar e provar.
Resta saber o que deve ser entendido por interesse legítimo dada a inexistência de qualquer definição legal, tarefa que há-de caber em cada caso concreto à autoridade judiciária competente para decidir o requerimento e que envolve uma inevitável dose de subjectivismo, só susceptível de ser controlado através da necessária fundamentação do despacho, como bem se refere no “Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas” dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, em anotação ao art. 90.º, contrariamente ao que acontece com a aferição sobre se o processo está ou não a coberto do segredo de justiça, requisito este que tem carácter objectivo.
Exemplificando o tipo de pessoas que, não sendo sujeitos processuais, podem ter um interesse legítimo no acesso ao processo, referem-se no citado Código, aqueles que necessitam de cópias, extractos ou certidões para efeitos judiciais, bem como por razões científicas ou pedagógicas, os profissionais ligados, directa ou indirectamente, à administração da justiça, tais como juristas, criminalistas, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais, professores, etc., e ainda os jornalistas.
Aí se acrescentando que “Quanto a estes últimos profissionais há, no entanto, que atender ao que prescreve o n.º 2 deste preceito, que deverá ser conjugado com o n.º 1 do art. 87.º e os n.ºs 1 e 2 do art. 88.º, ambos do presente Código, e com os n.ºs 1 e 3 do Estatuto do Jornalista (Lei n.º 1/99 de 13/1, alterada pela Lei n.º 64/2007, de 06-11). Dessa conjugação resulta que estes profissionais podem ter acesso ao processo quando este não esteja a coberto do segredo de justiça – direito de acesso às fontes de informação – mas não podem, sob pena de desobediência simples, narrar os actos processuais em relação aos quais haja sido restringida ou excluída a assistência do público em geral nem, salvo autorização expressa, transcrever ou reproduzir peças processuais ou documentos integrados nos autos antes da leitura da sentença em primeira instância.”  
Também Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição actualizada, 2008, em anotação ao mesmo preceito, defende que os jornalistas beneficiam de um regime especial por força do disposto no art. 8.º, n.ºs 2 e 3 do Estatuto dos Jornalistas, estabelecido pela Lei n.º 1/99 de 13/1, constituindo interesse legítimo a invocação pelo jornalista do interesse no acesso às fontes de informação.
No presente caso o despacho recorrido considerou que o requerente, ora recorrente, “(…) não alega qualquer interesse legítimo e o que decorre da sua qualidade de jornalista – o dever de informar aqueles que têm o direito de serem informados – não se pode, pelo menos nesta fase de instrução, sobrepor ao direito dos sujeitos processuais e das respectivas famílias, à reserva da sua vida privada, ao bom nome e ao sigilo em relação aos factos em apreciação, pelo menos, até ser fixado o objecto do processo, com a respectiva pronúncia ou não pronúncia.”
Concluindo, dessa forma, que o interesse do requerente não era legítimo à luz do disposto no n.º 1 do art. 90.º do CPP, indeferindo-lhe o seu requerimento de fls. 6858.
Discordamos, salvo o devido respeito, da posição assumida no despacho recorrido.
No seu requerimento de fls. 6858, o requerente, para além de invocar a sua qualidade de jornalista do semanário (...), com a carteira profissional n.º (...), alega que o seu interesse na consulta do processo tem “o objectivo de realizar trabalho jornalístico de interesse público”.
Ou seja, embora não o diga de forma expressa, depreende-se do seu requerimento que aquilo que o requerente pretende é exercer o seu direito de acesso às fontes de informação para, no desempenho da sua actividade profissional, informar o público em geral.
E tratando-se de um processo em que está em causa uma fraude ao Serviço Nacional de Saúde é por demais evidente o interesse do público em geral em sobre o mesmo ser informado.
De resto, não se vê que outros factos relevantes poderia o requerente invocar, na qualidade de jornalista de profissão, para fundamentar o seu pedido de consulta do processo ou de cópia da acusação.
Há, pois, que considerar como legítimo o interesse do requerente, ora recorrente, em consultar os autos ou obter cópia da acusação do Ministério Público, com o objectivo de realizar trabalho jornalístico, conforme requereu a fls. 6858, à luz do disposto no n.º 1 do art. 90.º do CPP.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso interposto por RM..., revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que defira o pedido de consulta dos autos ou de obtenção de cópia da acusação, nos termos por si requeridos a fls. 6858.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).


Guilhermina Freitas
José Calheiros da Gama