Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
551/13.7T2SNT-A.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO GERAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I– Os privilégios creditórios, nos termos do artº. 733º, do Cód., Civil, tendo exclusivamente fonte legal, concedem preferência de pagamento, e emanam com o surgimento ou constituição do direito de crédito que garantem, tendo, todavia, a sua eficácia condicionada ao acto de penhora a operar sobre os bens que constituem o objecto da sua abrangência ;

II– A redacção inicial do nº. 3, do artº. 735º, do Cód. Civil, ao prescrever que os privilégios imobiliários são sempre especiais, determinou que o Código Civil não procedesse à subdistinção entre os privilégios imobiliários gerais e os especiais, pois todos eles incidiam sobre certos e determinados bens imóveis ;

III– Todavia, posteriormente, veio o legislador a criar, em lei avulsa, alguns privilégios imobiliários gerais, o que terá determinado, inclusive, a alteração introduzida naquele nº. 3 pelo DL nº. 38/2003, de 08/03, no sentido de passar a constar que “os privilégios imobiliários estabelecidos neste código são sempre especiais”(contendo o sublinhado o aditamento introduzido)

IV– Relativamente à oponibilidade dos privilégios imobiliários a direitos de terceiro a legal solução prevista na redacção inicial do artº. 751º, do Cód. Civil, que concedia preferência, nomeadamente, aos créditos da Segurança Social, que beneficiam de privilégio imobiliário geral, relativamente á hipoteca, foi definitivamente questionada pelo Tribunal Constitucional que, pelo Acórdão nº. 363/02, de 17/09/2002 – in DR I-A, de 16/10 -, decidiu “declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República, das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil” ;

V– O que justificou a alteração introduzida no mesmo artº. 751º pelo DL nº. 38/2003, de 06/03, ao restringir a oponibilidade a terceiros dos privilégios imobiliários especiais, assim afastando tal solução às situações de privilégio imobiliário geral ;

VI– Pelo que, presentemente, em termos da sua preferência e graduação, o crédito reclamado, e já reconhecido, pelo Instituto da Segurança Social, I.P., que beneficia, no que ora importa, de privilégio imobiliário geral, nos termos dos artigos 11º do DL nº. 103/80, de 09/05 - Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência – e 205º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não prevalece sobre crédito reclamado, e igualmente reconhecido, beneficiário da garantia de hipoteca – cf., artº. 686º, nº. 1, do Cód. Civil.

Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:

              
I–RELATÓRIO:


1– Por apenso aos autos de Execução comum nº. 551/13.7T2SNT, em que figura como Exequente AA…, e como Executada BB…, foram reclamados os seguintes créditos:

– Pelo ISS…,I.P., o valor de 4.058,43 € (quatro mil e cinquenta e oito euros e quarenta a três cêntimos), referente a contribuições e juros de mora, alegando, em súmula, o seguinte:
a)- Como contribuinte do Reclamante, a Executada encontra-se enquadrada no regime dos trabalhadores independentes ;
b)- Encontrando-se sujeita ao pagamento de contribuições, nos termos das disposições constantes do artº 29º do dec-lei nº 328/93, de 25 Setembro, do dec-lei nº 240/96 de 14 Dezembro, do dec-lei nº 159/01 de 18 Maio, do dec-lei nº 119/05 de 22 Julho, dos artºs 56º, 57º e 59º da lei 4/2007, de 16 Janeiro e dos artºs 150º e seguintes do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de ISS…I.P., aprovado pela lei nº 110/2009, de 16 Setembro (alterado pela lei nº 119/2009, de 30 Dezembro, pelo dec-lei nº 140-B/2010, de 30 Dezembro, pela lei nº 55-A/2010, de 31 Dezembro e pela lei nº 64-B/2011, de 30 Dezembro) ;
c)- Às quais acrescem os respectivos juros moratórios, às taxas apuradas nos termos do artigo 3º do DL nº 73/99, de 16 de Março (na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 3 - B/2010 de 28 de Abril, e pela Lei nº 55-A/2010 de 31 Dezembro) ;
d)- Perfazendo os juros vencidos até Fevereiro de 2018, o valor de 708,00 € ;
e)- O crédito do reclamante encontra-se garantido pelo privilégio mobiliário geral e por privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo (artº 10º e 11º do DL nº 103/80, de 9 Maio e artºs 204º e 205º do Código Regimes Contributivos Sistema IPSS…I.P., aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16 Setembro, alterada pela Lei nº 119/2009, de 30 Dezembro, pelo DL nº 140-B/2010, de 30 Dezembro, pela lei nº 55-A/2010, de 31 Dezembro e pela lei nº 64-B/2011, de 30 Dezembro).

– Pela CGD…,S.A., o valor de 38.361,13 € (trinta e oito mil trezentos e sessenta e um euros e treze cêntimos), referente a capital em dívida, na data de 08/02/2018, decorrente de mútuo bancário, alegando, em resumo, o seguinte:
a)- Celebrou com a executada e com J.P.F.B… um contrato de Mútuo com Hipoteca e Fiança, crédito jovem bonificado, no montante de 14.000.000$00, equivalente a 69.831,71 € ;
b)- Para garantia das obrigações assumidas no empréstimo, foi constituída hipoteca sob o imóvel identificado, que se encontra devidamente registada ;
c)- Tal prédio urbano encontra-se penhorado na execução ;
d)- O crédito reclamado, e respectivos juros, vencidos e vincendos, goza de garantia real sobre o bem penhorado, nos termos do artº. 686º, do Cód. Civil.

Concluem, no sentido da admissibilidade das reclamações apresentadas, devendo ser verificados, reconhecidos e graduados os créditos no lugar que, pela sua preferência, legalmente lhes competir, para serem pagos pelo produto da venda do bem penhorado.

2– Não tendo sido apresentadas impugnações, por despacho datado de 14/07/2018, foi determinada a notificação do Reclamante ISS…,I.P., para, querendo, pronunciar-se acerca da pretensão do Tribunal conhecer acerca da prescrição de parte dos créditos por este reclamados.
Cumprida tal notificação, nada veio o mesmo dizer.

3– Em 04/10/2018, foi proferida SENTENÇA, em cujo DISPOSITIVO concluiu-se julgar:

“V.I.– Verificada a excepção peremptória de prescrição dos créditos reclamados pelo ISS…,I.P., atinentes a Janeiro e Fevereiro de 2013, e, em consequência, absolvo, nesta parte, a executada reclamada S.P.G…, do conexo de verificação e graduação do crédito de contribuições e juros de mora reclamados.

V.II.– Sem prejuízo do fixado em V.I., procedentes as reclamações de crédito apresentadas por ISS…,I.P. e CGD…,S.A. quanto ao imóvel penhorado nos autos de execução de que a presente reclamação de créditos é apenso, reconhecendo-se os mesmos e graduando-o nos termos seguintes:
1.º- O crédito reclamado por ISS…,I.P..
2.º- O crédito reclamado por CGD…,S.A. garantido por hipoteca.
3.º- O crédito da exequente AA… garantido pela penhora.
***

Atento o parcial vencimento, o reclamante ISS…,I.P. suportará o encargo do pagamento das custas processuais, na proporção de 1/4 – artigos 527.º e 535.º, do Código de Processo Civil.
As demais custas da execução e da reclamação saem precípuas do produto do bem penhorado (artigo 541.º, do Código de Processo Civil), suportando os executados as custas da presente reclamação de créditos (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
***
Registe e notifique (artigos 153.º, n.º 4, 220.º, n.º 1, e 253.º, todos do Código de Processo Civil).
Dê conhecimento ao Senhor Agente de Execução”.

4– Inconformada com a decisão prolatada, veio a Reclamante CGD…,S.A., interpor recurso de apelação, no qual apresentou as seguintes CONCLUSÕES:
“a)- foram na Douta Sentença recorrida, elencados e reconhecidos quanto à sua legitimidade e ao seu montante, os créditos reclamados pelo ISS…,I.P., excepto os relativos a Janeiro e Fevereiro de 2013, já prescritos, pela CGD…,S.A., e o crédito exequendo da AA… .
b)- No que concerne à decisão sobre a natureza dos mesmos, foram vertidos os argumentos juridicamente correctos e invocadas as normas legalmente aplicáveis, quanto à classificação, tipo de privilégios e sua interpretação legal e consequente posição.
c)- Assim, o crédito do ISS…,I.P., com privilégio imobiliário geral – nº. 1 do artº. 747º do C.Civil, estando, no entanto a concorrer com hipoteca registada, atendendo à inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança (Ac. do T. Constitucional nº. 363/02 de 16/10) do entendimento que o privilégio imobiliário nos termos do artº. 751º do CC, preferiria à hipoteca e sendo tal entendimento perfilhado pelo Mmº Juiz “a quo”, o crédito do ISS…,I.P. com penhora, mas sem hipoteca, sempre teria que ser graduado em posição inferior ao crédito hipotecário da CGD…,S.A..
d)- No que tocante à hipoteca registada sobre o imóvel a favor da CGD…S.A., – prefere aos demais credores que não gozem de privilégio especial, ressalvando o argumento referente aos créditos da  ISS…I.P, que conforme vertido, goza de privilégio imobiliário geral.
e)- O crédito do exequente, garantido apenas por penhora e nos termos do artº. 822º do CC, tem direito a ser pago com preferência a quem não tiver garantia real anterior.
f)- Passando à Graduação propriamente dita, mostra-se correcta a graduação quanto ao 3º lugar, mas resulta contrária ao que largamente se expendeu, graduar em 1º lugar os créditos da ISS…I.P. à frente do crédito hipotecário, reclamado pela CGD…S.A., que na graduação consta em 2º lugar.
g)- Nesta conformidade e a favor da coerência dos argumentos vertidos no ponto IV da Douta Sentença em recurso, será de graduar em 1º lugar os créditos reclamados pela CGD…S.A., garantidos por hipoteca, abrangendo o montante máximo garantido e juros de 3 anos, 2º lugar os créditos reclamados pela ISS…I.P., detentores de penhora mas com privilégio imobiliário geral, nos termos conjugados dos artº 204º e 205º do CRCSPSS, Lei 110/2009 de 16/09 com nº. 1 do artº.  747º  e 748º do C. Civil, mantendo em 3º lugar o crédito exequendo apenas detentores de penhora, saindo precípuas as custas, salvo no valor do decaimento parcial do ISS…I.P., nos termos legais”.
Conclui, no sentido de provimento do recurso, devendo a sentença graduar devidamente o crédito reclamado, atenta a garantia hipotecária de que goza.

5– Não constam dos autos terem sido apresentadas quaisquer contra-alegações pelos Recorridos.

6– O recurso foi admitido por despacho datado de 11/12/2018.

7– Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II– ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO.

Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1– o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

2– Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a)-  As normas jurídicas violadas ;
b)- O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c)- Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.

Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pela Recorrente Reclamante, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede consubstancia-se em aferir acerca da ordem de graduação dos créditos reclamados, e reconhecidos, dos Reclamantes ISS…,I.P., e CGD…,S.A., pugnando esta que o seu crédito, graduado em 2º lugar, seja graduado em 1º, por troca com o crédito reclamado pelo ISS…,I.P..

O que implica, in casu, a análise da seguinte questão:
1)– Da natureza dos créditos em equação ;
2)– Da sua graduação.
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III–FUNDAMENTAÇÃO

A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade a considerar é a que resulta do iter processual supra exposto.
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B–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Na decisão apelada considerou-se que:

– O crédito exequendo, titulado pela Exequente AA…, gozava de penhora registada a seu favor em 13 de Novembro de 2013 ;
– O crédito reclamado pelo ISS…,I.P., beneficia de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre a Executada ;
– O crédito reclamado pela CGD…,S.A., beneficia de hipoteca registada a título definitivo, por inscrição datada de 11/02/2000.

Pelo que, tendo por base a natureza dos créditos em ponderação, graduou o crédito da Exequente – garantido pela penhora – em 3º lugar, o que não é questionado no presente recurso.

Tendo graduado o crédito do ISS…,I.P. – beneficiário de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral -, em 1º lugar, enquanto que o crédito reclamado pela CGD…,S.A. – garantido por hipoteca -, foi graduado em 2º lugar.

Ora, é esta ordem de graduação entre estes dois créditos que é questionada nas alegações recursórias apresentadas.

Do enquadramento jurídico

Estatuindo acerca da noção de privilégio creditório, prescreve o artº. 733º, do Cód. Civil [2], traduzir-se este na “faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”.

O normativo seguinte, enunciando acerca dos acessórios do crédito, refere que tal privilégio abrange “os juros relativos aos últimos dois anos, se forem devidos”, estando as suas espécies previstas no artº. 735º, ao consagrar que:
“1.– São de duas espécies os privilégios creditórios: mobiliários e imobiliários.
2.– Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente; são especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis.
3.– Os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais”.

No que concerne à ordem de graduação dos outros privilégios imobiliários, para além da que já subjaz aos artigos 743º e 744º, prescreve o artº. 748º que:
“1.– Os créditos com privilégio imobiliário graduam-se pela ordem seguinte:
a)- Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações;
b)- Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial”.

O normativo seguinte – 749º -, prevendo acerca do privilégio geral e direitos de terceiro, enuncia que:
“1– O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.
2– As leis de processo estabelecem os limites ao objecto e à oponibilidade do privilégio geral ao exequente e à massa falida, bem como os casos em que ele não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração da falência” [3].
Acrescenta o artº. 751º, ajuizando a propósito do privilégio imobiliário especial e direitos de terceiro, serem os privilégios imobiliários especiais “oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores” [4].

Por sua vez, concretizando a noção de hipoteca, aduz o nº. 1, do artº. 686º, que esta “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”, impondo o normativo seguinte – 687º - o seu registo, sob pena de não produzir efeitos, inclusive em relação às partes.

Por fim, atente-se ao disposto nos artigos 10º e 11º do DL nº. 103/80, de 09/05 (que aprova o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência), enunciando que:

“ARTIGO 10.º
(Privilégio mobiliário)
1- Os créditos das caixas de previdência por contribuições e os respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.
2- Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.

ARTIGO 11.º
(Privilégio imobiliário)
Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos  juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil”.

Referencie-se, ainda, o consagrado nos artigos 204º e 205º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de ISS…,I.P. [5], referenciando o primeiro dos normativos, acerca do privilégio mobiliário, que:
“1– Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil. 
2– Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”. 

O demais normativo – 205º -, equacionando acerca do privilégio imobiliário, dispõe que “os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil”.

Da natureza dos créditos e sua graduação

Refere Salvador da Costa [6] que os privilégios creditórios “já existiam na Roma clássica, com a designação de privilegium exigendi, consubstanciados na preferência de pagamento legalmente concedida a certos credores desprovidos de pignus e de hipoteca, em atenção à natureza do crédito em si (…), ou por haver produzido aumento de valor – privilegium causae – ou à qualidade do credor (…) – privilegium personae, gerando preferência de pagamento no caso de pluralidade de privilégios creditórios determinada em função da qualidade dos créditos em causa”.

Tendo, então, carácter pessoal, “não afectavam terceiros transmissários de bens, pelo que se não tratava, em rigor, de uma garantia acessória do cumprimento de obrigações”, pelo que só posteriormente, fruto da evolução da sua natureza, ocorreu transmutação desta, “de mera preferência de pagamento para garantia real com preferência sobre a hipoteca”, o que ocorreu no antigo direito francês.

Com a actual consagração legal no transcrito artº. 733º, resulta claramente que tal preferência de pagamento concedida pelo privilégio creditório tem fonte legal, sendo “insusceptível de constituição por negócio jurídico”, surgindo com a “constituição do direito de crédito que garante, mas a sua eficácia depende do acto de penhora sobre os bens que são objecto da sua incidência, o que significa que a sua constituição se verifica quando ocorrerem os actos ou os factos de que a lei faz depender a sua atribuição, e que se concretizam nos bens penhorados na acção executiva ou apreendidos no processo de falência”.

Conforme resultava da redacção inicial do nº. 3, do artº. 735º - os privilégios imobiliários são sempre especiais – o Código Civil não subdistinguia, “no quadro dos privilégios imobiliários, entre os gerais e os especiais, por, na concepção adoptada, todos eles incidirem sobre determinados bens imóveis”.

Todavia, “como posteriormente ao início da sua vigência foram criados alguns privilégios imobiliários gerais, deverá actualmente entender-se que também os privilégios imobiliários são gerais e especiais, consoante se reportem a todos ou a determinados bens imóveis do devedor em especial conexão com o crédito em causa” [7].

O que terá conduzido, inclusive, à alteração introduzida naquele nº. 3 pelo DL nº. 38/2003, de 08/03, no sentido de passar a constar que “os privilégios imobiliários estabelecidos neste código são sempre especiais”, contendo o sublinhado o aditamento introduzido.

Defende António Carvalho Martins [8]que os privilégios imobiliários, “sendo verdadeiros direitos reais de garantia (….), prevalecem sobre qualquer outra garantia incidente no mesmo imóvel, ainda que anterior (art. 751º do Código Civil), ao invés do que sucede com os privilégios mobiliários especiais, que apenas prevalecem sobre as garantias constituídas ulteriormente, ex vi do art. 750º do Código Civil”.

E, relativamente aos créditos pelas contribuições do Regime geral da Previdência, que gozam de privilégio imobiliário, independentemente da data da sua constituição, conforme o transcrito artº. 11º do DL nº. 103/80, pode afirmar-se terem “o seu nascimento com a constituição destes créditos, mas só se torna eficaz se o imóvel já existia no património das entidades patronais (devedoras) «à data da instauração do processo executivo» que, adiante-se, tanto pode ser a execução fiscal, como qualquer outro em que esse crédito possa vir a ser reclamado”, acrescentando que “não incidindo o privilégio imobiliário atribuído aos créditos da Previdência sobre bens certos e determinados não deverá recusar-se-lhe a categoria de direito real de garantia e o inerente direito de sequela”.

Na apreciação do artº. 751º, mas na sua versão originária, aduz Salvador da Costa [9] que “o privilégio imobiliário não afecta o direito de usufruto registado antes da sua constituição nem o direito de servidão constituído antes dele, exceptuando-se desse regime apenas a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção, ainda que anteriores, casos em que é este último que prefere, ou seja, os privilégios imobiliários em análise preferem á consignação de rendimentos, à hipoteca e ao direito de retenção, ainda que sejam de constituição anterior”.

Acrescenta o mesmo Autor [10] vir então a ser discutido se os créditos das instituições de segurança social, garantidos por privilégio imobiliário geral sobre os bens imóveis existentes no património dos empregadores, prefeririam ou não ao direito de hipoteca que incidia sobre esses bens, mencionando já ter sido “entendido que o artigo 751º do Código Civil contém um princípio geral insusceptível de aplicação a qualquer privilégio imobiliário geral, com o argumento de que os privilégios imobiliários gerais não eram conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil e de que, por não estarem sujeitos a registo, afectam gravemente os direitos de terceiros”.

Pelo que, na lógica de tal entendimento, “aos privilégios imobiliários gerais criados posteriormente ao início da vigência do actual Código Civil deveria aplicar-se o regime do artigo 749º do Código Civil, que rege para os privilégios mobiliários gerais, pelo que os créditos da segurança social derivados de taxa social única garantidos por privilégio imobiliário geral cederiam perante os créditos garantidos pelo direito de hipoteca”. O que determinaria que tais privilégios “traduzir-se-iam em meros direitos de prioridade que prevaleceriam, na execução de patrimónios debitórios, em relação aos credores comuns” (sublinhado nosso).

Acrescentando que não vinha sendo esse o entendimento jurisprudencial, aduz que “concorrendo um crédito garantido por um direito de hipoteca com um crédito garantido por um privilégio imobiliário geral, é este último que prevalecerá, nos termos do artº. 751º, do Código Civil.

Assim, os créditos das instituições de segurança social (…) que gozem de privilégio imobiliário geral preferem aos créditos garantidos pelo direito de hipoteca, ainda que este haja sido constituído anteriormente ao início da vigência do Decreto-Lei  nº. 103/80.

É certo que os privilégios imobiliários gerais não incidem sobre coisas certas e determinadas e, por isso, não podem ser qualificados de direitos reais, mas funcionam como se se trate de privilégios imobiliários especiais, pelo que prevalecem sobre anteriores direitos de terceiro, designadamente sobre o direito de hipoteca (artigo 751º do CC)”.

O entendimento supra sufragado veio, todavia, a ser colocado em causa pelo Tribunal Constitucional que, pelo Acórdão nº. 363/02, de 17/09/2002 – in DR I-A, de 16/10 -, decidiu “declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República, das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil”.

Escreveu-se em tal aresto vinculativo ter-se “por indiscutível que o legislador pretendeu dar alguma preferência aos créditos da segurança social ao determinar, nas normas questionadas, que os créditos aí consignados se graduem logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, referidos no artigo 748.º do Código Civil, e, bem assim, não se questionando que, face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas (como é o caso da segurança social, cuja expressão constitucional consta do artigo 63.º da lei fundamental), desse modo conferindo-se algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra do princípio da par conditio creditorum, nem, tão-pouco, que se crie um regime procedimental específico para a cobrança coerciva de tais créditos, o certo é que sempre se há-de perguntar que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, tem o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em sindicância.

«É que, por um lado [mais se escreveu], o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário”.

A que acresce, ainda, como argumento o facto do “princípio da confidencialidade tributária” impossibilitar “os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à segurança social”.

Ora, terá sido tal entendimento a justificar a já referenciada alteração introduzida no citado artº. 751º pelo DL nº. 38/2003, de 06/03, ao restringir a oponibilidade a terceiros dos privilégios imobiliários especiais, o que afasta tal solução às situações de privilégio imobiliário geral.

Nas palavras de Rui Pinto Duarte [11], “o motivo para a alteração foi o de harmonizar o preceito com a existência (resultante de leis posteriores à aprovação do CC) de privilégios imobiliários gerais que, tendencialmente, não são oponíveis a terceiros”, relacionando-se com a alteração introduzida no nº. 3 do artº. 735º.
Não deixa o mesmo Autor de referenciar, ainda, ser polémica, do ponto de vista de política legislativa, a solução, presentemente consagrada, de “preferência dos privilégios imobiliários especiais” especialmente no que concerne à hipoteca, apesar de, em seu favor, afirmar-se que “o valor económico que subtrai a essas outras garantias” ser “baixo, por os créditos dotados de privilégios imobiliários especiais tenderem a representar uma pequena fração do valor dos prédios”. O que questiona, para além de que a “oponibilidade do privilégio sempre perturbará o exercício dos direitos a ele subordinados”.

Aqui chegados, relembre-se que o bem objecto de penhora nos autos de execução, dos quais os presentes são apenso, trata-se de um imóvel.

Por outro lado, o crédito reclamado, e já reconhecido, pelo ISS…,I.P., beneficia, no que ora importa, de privilégio imobiliário geral, nos termos dos artigos 11º do DL nº. 103/80, de 09/05 - Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência – e 205º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de ISS…IP., reportando-se ao período de Março de 2013 a Março de 2015.

Acresce que  a hipoteca, que constitui a garantia do crédito reclamado pela credora CGD…,S.A., e já reconhecido, encontra-se registada definitivamente desde 11/02/2000.

Donde, decorrendo que:
– o “privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente” – cf., artº. 749º, nº. 1 ;
– a hipoteca de que beneficia o crédito da reclamante CGD…,S.A. (ora Apelante) confere ao credor o direito a ser pago, com preferência, “sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo” – cf., artº. 686º, nº. 1 ;
– para além de, inclusive, ser antecedente relativamente ao surgimento do privilégio creditório do Reclamante ISS…,I.P. (que surge com a constituição do direito de crédito que garante) ;
– necessariamente que terá que ser julgada procedente a presente apelação, devendo o crédito da Apelante CGD…,S.A., ser graduado em 1º lugar, enquanto que o crédito do ISS…,I.P. deverá ser graduado em 2º lugar (assim se invertendo a sua ordem de graduação).

Pelo que, sem outras delongas, num juízo de procedência da presente apelação, determina-se, consequentemente, a parcial alteração da sentença apelada, no sentido do crédito da Apelante CGD…,S.A., ser graduado em º lugar, enquanto  que o   crédito
do ISS...,I.P. deverá ser graduado em 2º lugar (assim se invertendo a sua ordem de graduação).
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, tendo a Apelante obtido vencimento, e inexistindo decaimento dos Apelados, que nem sequer apresentaram contra-alegações, decide-se pela não tributação da presente apelação.
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IV.–DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a)- Julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Reclamante CGD…,S.A. ;
b)- Em consequência, altera-se parcialmente a sentença recorrida/apelada, no sentido do crédito da Apelante CGD…,S.A.,
c)- ser graduado em 1º lugar, enquanto que o crédito do ISS…,I.P. deverá ser graduado em 2º lugar (assim se invertendo a sua ordem de graduação) ;
d)- Mantendo-se, no demais, a mesma sentença ;
e)- Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, tendo a Apelante obtido vencimento, e inexistindo decaimento dos Apelados, que nem sequer apresentaram contra-alegações, decide-se pela não tributação da presente apelação.

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Lisboa, 07 de Fevereiro de 2019


 
Arlindo Crua – Relator
   
Magda Geraldes – 1ª Adjunta
                            (em substituição)

Luciano Farinha Alves – 2º Adjunto
(em substituição)

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1]A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2]As disposições legais infra citadas, salvo expressa menção em contrário, reportam-se ao presente diploma.
[3]Redacção decorrente das alterações introduzidas pelo DL nº. 38/2003, de 08/03.
[4] Redacção decorrente das alterações introduzidas pelo DL nº. 38/2003, de 08/03.
[5]Aprovado pela Lei 110/2009, de 16/09, fruto de consequentes alterações.
[6]O Concurso de Credores, Almedina, 1998, pág. 170 e 171.
[7]Idem, pág. 174.
[8]Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, Coimbra Editora, 1996, pág. 111 a 113.
[9]Ob. cit, pág. 189 e 190.
[10]Idem, pág. 290 a 292.
[11]Código Civil Anotado, Coordenação Ana Prata, Vol. I,
Almedina, 2007, pág. 936 e 937.