Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16847/16.3T8LSB-B.L1-8
Relator: ISOLETA COSTA
Descritores: EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
DIREITO DE HABITAÇÃO
TERCEIROS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Em execução de garantia hipotecária, constituída e registada sobre propriedade plena de imóvel pode o credor exequente fazer intervir no processo ao abrigo do disposto no artigo 54º nº 2 do CPC, tanto o titular da nua propriedade, como o titular do direito de habitação posteriormente constituídos e registados sobre a coisa.

Os direitos reais constituídos e registados sobre a coisa hipotecada, se, posteriormente ao registo da hipoteca, são ineficazes em relação ao credor hipotecário, mercê da natureza erga omnes e da sequela que caracterizam a hipoteca conforme o artigo 686º do C.C.

O terceiro titular de um direito real constituído e registado posteriormente sobre um bem hipotecado é terceiro em relação à obrigação exequenda mas não é terceiro em relação ao processo executivo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do tribunal da Relação de Lisboa:


Nos presentes autos de execução hipotecária para pagamento de quantia certa,  a exequente C,   requereu a intervenção principal provocada, como executados, de L, M, C, e T, alegando que os dois primeiros constituíram hipoteca para garantia dos créditos da executada LJG, tendo depois feito doação do imóvel hipotecado aos segundos, seus filhos, com reserva de direito de habitação par si próprios.
(…)

Dos factos:
1. A fls. 14 a 25 está junta a escritura de ”Hipoteca”, datada de 30.09.2009, pela qual os requeridos L, e M, declararam que “pela presente escritura constituem a favor da Caixa Agrícola, (…) hipoteca sobre o seguinte imóvel”, descrito na C. R. P. de Lisboa, sob o nº.  (certidão do registo predial de fls. 55 a 60).
2. A hipoteca está registada, em 3.10.2009.
3. Da certidão do registo predial consta registada a aquisição em favor de C, e T, em 21.03.2016, sendo a “Causa: doação”, por parte de L, e outra.

Foi proferido despacho a indeferir  a intervenção como executados de L, e M, com fundamento no facto destes não serem titulares do direito de propriedade.

3.2. Foi admitida a intervenção dos demais requeridos com fundamento no seu direito de propriedade sobre o imóvel hipotecado e exequendo.

II Apelou a exequente da parte da decisão que indeferiu a intervenção como executados de L, e M, tendo lavrado as seguintes conclusões:
Os requeridos apenas doaram a nua propriedade do imóvel hipotecado aos filhos, pois reservaram para si o direito de habitação conforme registo Ap 1597 de 21.3.2016.

O direito de habitação é um direito de real de gozo previsto no artigo 1484 nº 2 do CC.

Atenta a natureza da hipoteca e o facto desta ser anterior ao registo deste ónus só com a presença dos seus titulares na execução é assegurada a coincidência do direito hipotecado e do direito executado.

Objecto do recurso:
Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2, 635º., nº. 4, 639º., n.os 1 a 3, 641º., nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.

Nesta senda a questão a resolver é de saber se no processo de execução hipotecária, contra o devedor,  pode o exequente fazer intervir os garantes hipotecários do imóvel que entretanto  doaram a terceiros reservando para si o direito de habitação do mesmo.

Conhecendo:

Fundamentação de facto:
Dá-se por reproduzida a factualidade supra.

Fundamentação de direito:
1- Em síntese o quadro fáctico pertinente ao recurso  em face do título exequendo aponta para que
2- A dívida da executada para com o exequente encontra-se provida de garantia real – hipoteca.
3- Esta hipoteca foi constituída pelos requeridos intervenientes que ao tempo eram os proprietários do imóvel.
4- O imóvel em data posterior ao registo da hipoteca e anterior ao registo da penhora foi doado a terceiros tendo os requeridos reservado para si o direito de uso e de habitação do mesmo.

A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor do prédio hipotecado, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686.º, do CC).

Posteriormente à constituição e registo da hipoteca os proprietários doaram o imóvel aos filhos e reservaram para si o direito de habitação. Ficou dividido o seu direito de propriedade em dois direitos: a nua propriedade e  o direito de  habitação.

Esse desdobramento da propriedade não afetou a hipoteca incidente sobre o imóvel visto que o seu  registo é  anterior ao registo dos direitos resultantes daquele desdobramento.

A hipoteca repercute-se de modo diverso em função do direito real do autor da hipoteca.  Se constituída  pelo proprietário pleno que, posteriormente, doou o mesmo bem a terceiros e constituiu um  direito real de gozo sobre o imóvel, esta cisão do direito, não prejudica a posição jurídica do credor hipotecário. Mercê da prioridade do registo, e atento o disposto no  artigo 696º do C. Civil (nos termos do qual “salvo convenção em contrário a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas sobre cada uma das partes que as constituam…”) a hipoteca incide sobre a propriedade plena, propriedade plena.

A hipoteca como direito real de garantia  que é, goza do atributo de sequela, pelo que e enquanto subsistir, acompanha as vicissitudes do bem sobre que incide  habilitando o seu titular a atingir a coisa onde esta se encontrar. O credor hipotecário tem o poder  atuar sobre a coisa que lhe foi afeta, sem lhe ser oponível titular de direito real posteriormente constituído e registado.

Consequência disto é que a sorte do direito hipotecário não se subordina à permanência do domínio do imóvel na mesma pessoa; é nas pretensões erga omnes que se manifesta com absoluta clareza o carácter real deste direito de garantia.

Assim, tem-se entendido que a hipoteca abrange o bem hipotecado em todas as suas transformações futuras.

Nos termos do disposto no artigo 686º, nº 1, do Código Civil, “A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.” A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional (artigo 686º, nº 2, do Código Civil).

Ora, no caso dos autos,  a hipoteca  incidiu sobre o bem na sua plenitude, ou seja, sobre a propriedade plena que engloba a nua propriedade e nomeadamente o direito de habitação este, que por lhe ser posterior, é em relação ao credor hipotecário ineficaz.

III No âmbito do processo executivo o artigo 10.º, n.º 5, do CPC  prescreve que “toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”. E o artigo 53.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, no que respeita à legitimidade na acção executiva dispõe que “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.

Sucede ainda que,  tal qual, vem afirmado no despacho recorrido, o artigo 818.º do C.C dispõe que: “O direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja precedentemente impugnado.”
E ainda, como se escreve no despacho recorrido, o n.º 2 do artigo 54.º do CPC prescreve: “A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor”.

Por sua vez, a intervenção de terceiros vem regulada no artigo 316.º do C.P.Civil, sendo este incidente articulado com as situações de pluralidade de partes reguladas nos art.ºs 30.º a 39.º, do C.P.Civil, caracterizada pela igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte principal a que se associa.

Ora na acção executiva, impõe-se coactivamente o direito pré-definido, num título munido de força executiva pelo qual se determina o fim, os limites e a legitimidade passiva, nos termos dos referidos art.s 10.º, n.º 5 e 53.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.

Salvador Da Costa in “Os Incidentes da Instância”, p. 137 sustenta que o incidente de intervenção de terceiros não é compatível com a acção executiva porque os fins de um e de outra são inconciliáveis, além do mais porque a acção executiva não comporta decisão condenatória, pressuposto essencial do incidente em análise.

Doutra banda quando o  exequente não demanda ab initio os devedores que figuram no título (ou os sucessores) tem-se entendido que pode sanar a situação fazendo-os intervir no processo. Neste sentido o Prof. Lebre de Freitas, in (A Acção. Executiva Depois da Reforma, 4.ª ed., 2004, p. 136 e  p. 139). Esta posição também foi a seguida pelo tribunal à quo que admitiu a intervenção dos novos proprietários do imóvel.

IV A questão que aqui, importa,  no entanto, refere-se mas ao titular do direito de habitação que não coincide com os novos titulares do direito de propriedade, já que este foi cindido  pela constituição deste novo direito.

Este direito que é um direito real de gozo segue um regime similar ao do usufruto «o direito do uso é, apenas, um usufruto mais restrito, quer quanto à extensão do direito, quer quanto à sua disponibilidade» (Luiz da Cunha Gonçalves, Da Propriedade e da Posse, edições Ática, 1952, pg. 165) (…) «o direito do uso extingue-se pelas mesmas causas que põem termo ao usufruto. Terminado esse direito, reverte a cousa usada ao proprietário, livre de tal encargo» ( idem, 167).

Extingue-se pelo mesmo modo do usufruto ( artº 1485º C. Civil) é intransmissível cfra artº 1488º do Código Civil, mesmo no âmbito de negócio jurídico inter vivos. Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela escrevem: «Ao contrário do que acontece com o usufruto, para o qual vigora o princípio da livre disposição (artº 1444º), o uso e habitação está sujeito à regra da intransmissibilidade. Não sendo transmissíveis, nenhum destes direitos poderá também ser onerado com qualquer garantia real ( penhor, hipoteca, etc)» ( Código Civil, anotado, vol. III, 1987, pg. 551).

Nos termos do art. 1490º C.C. são aplicadas aos direitos de uso e habitação as disposições que regulam o usufruto, quando conformes á natureza daqueles direitos.

Enquadrado o direito em causa podemos afirmar que a propriedade dos donatários não é total e não coincide com a propriedade hipotecada que é a plena.

A satisfação do direito do credor hipotecário cujo bem hipotecado foi posteriormente objecto da constituição de um direito real de habitação a favor de outrém que não o proprietário, tem em linha de conta que por um lado este novo direito é ineficaz em relação a si, credor hipotecário e por outro lado que com a venda na execução caducam todos os direitos reais de gozo registados sobre o imóvel. Trata-se de um efeito ope legis, artigo 824º nº 2 e 818º ambos do CC e 827º nº 2 do CPC.

Certo que o artigo 824º nº2 do CC prescreve: 1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em elação a terceiros independentemente de registo.

Ao recurso interessa o nº 2 na parte em que refere os direitos reais, uma vez que o direito de habitação é um direito real de gozo.

Todavia, como refere Lebre de Freitas in a Acção Executiva Depois da Reforma- Coimbra Editora 5ª ed-337  quanto à hipótese aplicável ao recurso (constituição de direito real de gozo posterior ao direito de garantia exequendo e anterior à penhora): «No campo dos direitos reais de gozo (…)de constituição ou registo posterior à do direito de garantia exequendo mas anterior à penhora (aqui a hipoteca) (…) «não oferece dificuldades o direito do exequente não pode ser limitado por um direito posterior, (…) que deu certamente lugar a uma execução movida nos termos do disposto no artigo 56º nº 4 (atual 54 nº 2) contra o  devedor e o terceiro» e in nota 26: “que, portanto nem será terceiro em face da execução, sendo-o apenas em face da obrigação exequenda. Se a execução não tiver sido movida também contra ele, poderá o titular do  direito real em questão procedentemente embargar de terceiro ou  recorrer à acção de reivinidicação”

A penhora, consequentemente, abrangeu a propriedade plena e é essa que é transmitida.

Donde que mercê da divisão inicial do direito de propriedade plena em dois direitos menores cada um dos seus titulares goza   de um estatuto real que, envolvendo posições relativas entre si, compreende sobretudo poderes absolutos, direitos com eficácia erga omnes.

A hipoteca  incidiu sobre o bem na sua plenitude, ou seja, sobre a propriedade plena que engloba a nua propriedade e o direito de habitação.

Legitima-se, pois a sua demanda na execução, enquanto terceiro, por ter adquirido e manter o direito de habitação sobre um bem já onerado com hipoteca  em benefício do exequente. À custa da coisa onerada, continua o credor (hipotecário) a poder realizar o seu direito de crédito, pois a prévia constituição da garantia real faz nascer sobre o imóvel um vínculo de natureza real oponível erga omnes, pelo que ao dirigir-se ao património do terceiro o credor não faz mais do que exercer uma faculdade que carateriza o seu direito real: a sequela e por outro lado deste modo salvaguarda os efeitos possíveis a que alude Lebre de Freitas na nota 26.pg 337.

Na verdade o único fim do processo é a obtenção da tutela judiciária pretendida pelas partes que para isso recorreram a tribunal, sendo que, na nossa opinião, quando o tribunal esteja na presença de uma situação duvidosa deve dar prevalência àquela que, respeitando os direitos das partes, melhor contribua para a realização do direito.

Admitindo-se a intervenção do titular do direito de habitação e do titular da nua propriedade do imóvel hipotecado permite-se a reunião do direito pleno de propriedade do prédio sobre que incide a hipoteca e assim  que a execução prossiga e que o credor obtenha mais fácil e rapidamente a satisfação do seu crédito. Atinge-se mais facilmente  o objectivo último do processo.

Sumário:
Em execução de garantia hipotecária, constituída e registada sobre propriedade plena de imóvel pode o credor exequente fazer intervir no processo ao abrigo do disposto no artigo 54º nº 2 do CPC, tanto o  titular da nua propriedade, como o titular do direito de habitação posteriormente constituídos e registados sobre a coisa.
Os direitos reais constituídos e registados sobre a coisa hipotecada, se, posteriormente ao registo da hipoteca, são ineficazes em relação ao credor hipotecário, mercê da natureza erga omnes e da sequela que  caracterizam a hipoteca conforme o artigo 686º do C.C.
O terceiro titular de um direito real constituído e registado posteriormente sobre um bem hipotecado é terceiro em relação à obrigação exequenda mas não é terceiro em relação ao processo executivo.

Segue deliberação:
Em face do exposto procede a apelação pelo que vai revogado o despacho recorrido, devendo este ser substituído por outro que admita o incidente com as consequências e tramitação legais.
Sem custas, atenta, a não oposição.



Lisboa, 4 de abril de 2019



Isoleta Almeida Costa
Carla Mendes
Octávia Viegas