Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
22537/18.5T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: CONTRATO
CRÉDITO AO CONSUMO
NULIDADE
ARGUIÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - O autor incorre em abuso de direito ao invocar a nulidade do contrato de crédito ao consumo, na modalidade de cartão de crédito -  em virtude da sua não redução a escrito assinado por ambas as partes e por falta de entrega de um exemplar - num contexto em que, durante mais de 16 anos, o autor utilizou tal cartão de crédito em compras que totalizaram mais de € 45.000, sem que nesse período o autor tenha suscitado qualquer questão quanto à validade do contrato executado pelas partes, tendo a entidade financeira assegurado os pagamentos das operações feitas com o cartão na expetativa de obter a remuneração do capital facultado, sendo que a arguição intempestiva da invalidade formal do contrato é idónea a gerar prejuízos ao réu consistentes na privação da remuneração do capital facultado e/ou de parte deste.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
 AA  intentou acção declarativa, com processo comum, contra BB, SA, pedindo  que (i) seja declarada a nulidade do contrato de concessão de crédito celebrado em 09 de Abril de 1999 e (ii)  e seja o banco réu condenado a restituir ao autor a quantia de 21.905,46 euros, acrescidos de juros à taxa legal a contar da citação.
O Autor ampliou tal pedido inicial, passando a pedir a restituição da quantia de € 22.956,77 (fls. 241-242), igualmente acrescida de juros legais a contar da citação, ampliação essa já admitida por despacho proferido em sede de audiencia prévia, conforme decorre da acta de fls. 290 dos autos.
O Autor fundamentou as suas pretensões no facto de , em 1999, ter subscrito uma proposta de adesão fornecida pelo CC, destinada à aquisição de um cartão Visa, cartão esse que lhe veio a ser fornecido pelos serviços do CC, tendo-lhe apenas sido entregue cópias do impresso de adesão preenchido, mas nunca lhe tendo sido entregue qualquer documento que titulasse tal contrato, onde estivessem fixados os termos e condições de concessão do crédito através do mencionado cartão, designadamente TAEG e restantes condições de reembolso. Alega ainda que, até 2009, o CC lhe enviava extractos mensais, com discriminação dos movimentos a crédito e a débito, e que, a partir de 2010, a actividade do CC passou a ser realizada pelo BarclaysBank, entidade que passou a cobrar também um “prémio plano proteção financeira”, sem autorização do Autor. Alega também que, em 2017, o negócio do cartão passou a ser gerido pelo Banco ora réu, o qual apenas lhe remeteu cartas de interpelação para pagamento de valores alegadamente em dívida e, apesar de ter solicitado, nunca lhe remeteu quaisquer documentos relativos às condições de utilização do cartão e os documentos justificativos dos pagamentos reclamados, nem lhe remete os extractos mensais desde meados de 2017, sendo que, desde Agosto de 2017, tem depositado mensalmente € 150,00 na conta do banco réu.
Conclui assim que, quer à luz do DL 359/91 de 21.9 em vigor à data da subscrição da proposta de adesão ao Cartão, e face à inobservancia dos requisitos aí fixados, quer ao abrigo do regime das CCG, é nulo o contrato de concessão de crédito ora em causa, nulidade que é invocável a todo o tempo e que tem efeito retroactivo, pelo que tem direito ao reembolso de todas as quantias que pagou a mais, por excederem o valor de capital emprestado pelo Banco, quer através da compra de bens , quer através de crédito concedido, o qual ascendeu apenas a € 45.188,40, devendo por isso ser restituido nos montantes supra aludidos, que excedem tal valor de capital já reembolsado.
O réu foi citado e apresentou contestação, na qual pugnou pela falta de fundamento da acção, defendendo-se por impugnação, negando que as condições essenciais do crédito não estivessem plasmadas na documentação fornecida ao A., e salientando que o mesmo utilizou o cartão de abril de 1999 até novembro de 2016, efectuando sempre o pagamento dos valores mínimos de reembolso constantes nos extractos remetidos, e revelando conhecimento das condições contratuais ao longo da vigencia do contrato, designadamente nos contactos telefónicos havidos entre as partes.
Alega ainda que o Autor entrou em incumprimento em meados de 2016, incumprimento esse que levou ao envio de várias cartas ao A. para que este procedesse à regularização dos valores em dívida, e bem assim a diversos contactos telefónicos, que se revelaram infrutíferos, nunca tendo porém o Autor suscitado qualquer dúvida sobre as condições contratuais, informando apenas que se encontrava numa situação de sobre-endividamento por ter outros créditos contraidos junto da Banca em simultaneo. Conclui que o contrato ora em causa é válido, que foi cumprido pelo Autor durante mais de 19 anos, e que estamos perante uma situação de manifesto abuso de direito por parte do Autor.
Notificado para o efeito, o Autor respondeu à contestação e ampliou o seu pedido inicial quanto ao valor a restituir pelo réu, conforme supra mencionado.
Findos os articulados, foi designada data para a realização da audiência prévia. Na sequencia do último despacho proferido em sede de audiência prévia, as partes responderam ao convite aí formulado e ambas vieram alegar por escrito, reiterando a posição já assumida nos respectivos articulados e citando jurisprudência para sustentar as respectivas posições.
Foi proferido saneador-sentença que julgou a ação totalmente improcedente.
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Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«A. Impugnação da decisão de facto:
1. Não existindo acordo entre as partes nos articulados, nem confissão do Autor, não podia o Tribunal recorrido dar como provado facto 19. A carta junta como documento 9 anexa à contestação apenas exprime a posição do banco réu, sendo, por si só, insuficiente para permitir concluir que houve «incumprimento reiterado» do autor e que este era devedor da quantia reclamada. Acresce que nem se provou a existência do dito Acordo de utilização do cartão de crédito 4194 0337 6565 2002, como resulta dos factos provados, sendo ainda que o facto provado 19 está em frontal oposição com os factos provados 12, 16 e 17 nos quais, justamente, se regista os pagamentos efetuados pelo Autor;
2. Aceitando o banco réu os factos alegados pelo autor nos artigos 26°, 27° e 30° da petição inicial (art. 8° da contestação) e não tendo deduzido oposição à alteração da causa de pedir e do pedido, deveria o Tribunal recorrido ter considerado provados os seguintes factos:
26o. Com os extratos de que dispõe o autor pode apurar que entre 09 de abril de 1999 e a presente data foram realizados os seguintes movimentos:
27°.Compras e crédito concedido ao autor no valor total de 45.188,40 euros;
30o. Pagamentos efetuados pelo autor no valor total de 68.145,17. euros (inclui alteração da causa de pedir).
1. Os factos referidos em 2 são relevantes para a boa decisão da causa.
B. Impugnação da decisão de direito:
4. Tendo-se apenas dado como provado que no dia 9 de abril de 1999, o autor subscreveu uma proposta de adesão fornecida pelo CC, destinada à obtenção de um cartão Visa Prata (facto provado 1), a referida proposta de adesão não configura, por si só, um contrato de mútuo, na modalidade de utilização de cartão de crédito, regulado pelo Decreto-lei 359/91 de 21 de setembro;
5. Acresce que o Tribunal recorrido, na sua douta sentença, não considerou provado que entre as partes foi celebrado o Acordo de utilização do cartão de crédito, junto pelo banco réu como documento 3 anexo à contestação, sendo, portanto, juridicamente inexistentes as cláusulas constantes do referido acordo nos termos do art. 8°, d), do Decreto-lei 446/85, de 25 de outubro, o que significa que o invocado contrato de mútuo carece de objeto;
6. As faturas enviadas ao autor pelo banco réu, que apenas refletem movimentos a débito e a crédito num determinado período de tempo, por si só, não consubstanciam documento idóneo para provar a existência de um contrato nos termos exigidos pelo Decreto-lei 359/91 de 21 de setembro;
7. Não estando provada a existência de acordo de vontades nem o conjunto de direitos e obrigações a que a partes se vincularam, nos termos exigidos pelo Decreto-lei 359/91 de 21 de setembro e do Decreto-lei 446/85, de 25 de outubro, não existe juridicamente o contrato de mútuo, na modalidade de atribuição de cartão de crédito, invocado na douta sentença recorrida;
8. Para além da inexistência jurídica do contrato invocado na douta sentença recorrida, na parte respeitante às cláusulas contratuais gerais, referidas no doc. n°. 3, anexo à contestação, não logrou o réu provar que foi entregue um exemplar do referido documento ao autor. Nem que a este foram facultadas as informações a que o réu estava obrigado, nos termos dos arts. 5° e 6° do Decreto Lei 446/85, de 25 de outubro;
9. Não é possível convocar-se o abuso de direito com o objetivo de legitimar um contrato juridicamente inexistente e com o objetivo de legitimar, em simultâneo, a conduta ilícita da entidade - o banco réu - que incumpriu todas as normas de interesse público a que estava obrigado, que regulam a atividade de concessão de crédito previstas no Decreto-lei 359/91 de 21 de setembro e no Decreto-lei 446/85, de 25 de outubro, normas essas que não estão na disponibilidade dos contraentes;
10. A inexistência jurídica não é suscetível de ser sanada, designadamente pelo mero decurso do tempo - maior ou menor - nem por ação e/ou vontade expressa ou presumida das partes, sendo matéria do conhecimento oficioso do Tribunal que, verificando os respetivos pressupostos, tem a obrigação de a declarar, independentemente da vontade das partes e com todas as suas consequências legais, designadamente as previstas no art. 289° do CC;
11. Uma vez declarada a inexistência jurídica do negócio (e/ou a nulidade), os seus efeitos retroagem- se no passado (dever de restituir o que tiver sido prestado desde o momento da celebração do negócio) e para o futuro (ficam prejudicados os créditos reclamados que não se incluam no dever de restituição). Ou seja, o dever de restituir abrange tudo o que tenha sido entregue pelas partes uma à outra desde o início, nos termos do art. 289° do CC;
12. Consequentemente, a douta sentença recorrida, violou o disposto nos preceitos identificados nas conclusões anteriores.
Nestes termos e nos demais de direito deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser proferido douto Acórdão que revogue a douta sentença recorrida e condene o banco réu no pedido.»
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Contra-alegou o apelado, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Impugnação da decisão de facto;
ii. Reapreciação de mérito (existência de abuso de direito).
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1- No dia 09 de Abril de 1999, o autor subscreveu uma proposta de adesão fornecida pelo CC, destinada à obtenção de um cartão Visa Prata.
2- Pelos serviços do CC, foi entregue ao A. uma fotocópia simples da proposta referida no ponto 1- e junta como documento 1, com a petição inicial, dando-se aqui por reproduzido o respectivo teor.
3- No dia 19 de abril de 1999, os serviços do CC entregam ao autor fotocópia simples do formulário junto como documento 2 com a petição inicial, dando-se aqui por reproduzido o respetivo teor.
4- Em data subsequente à referida em 3-, os serviços do CC enviaram um cartão de crédito ao autor com o número (…)2002.
5- Desde abril de 1999 até ao final de 2009, o CC enviava ao autor um extrato mensal, no qual figuravam os movimentos a débito realizados pelo autor (compras e levantamentos a crédito) e os movimentos a crédito do CC, pagamentos, juros, anuidades, comissões, impostos e outros encargos, extratos esses cujas cópias foram juntas aos autos como doc.4 com a contestação, a fls.34 vº a 94 dos autos, dando-se aqui por reproduzido o respetivo teor.
6- A partir de 2010, a atividade do CC passou para a ser realizada pelo DD, através da marca DDcard, que continuou a enviar extratos mensais, de composição idêntica à mencionada em 5-, extratos esses cujas cópias foram juntas aos autos como doc.4 com a contestação, a fls.94 vº a 204 dos autos, dando-se aqui por reproduzido o respetivo teor.
7- O autor recebeu uma circular do banco réu, na qual este informou que o negócio do DDcard iria passar a ser gerido pelo banco réu, carta essa cuja cópia foi junta como doc.3 com a petição inicial, dando-se aqui por reproduzido o respetivo teor.
8- Em 17 de Maio de 2017, o banco reu remeteu uma carta ao autor nos termos da qual reclamava o pagamento de 2.574,27 euros, carta essa cuja cópia foi junta como doc.4 com a petição inicial, dando-se aqui por reproduzido o respetivo teor.
9- Em 25 de Maio de 2017, o autor remeteu ao réu, carta registada com A/R, cuja cópia foi junta como doc.5 com a petição inicial, dando-se aqui por reproduzido o respetivo teor.
10- O R. respondeu por carta de 20 de Junho de 2017, cuja cópia foi junta como doc.6 com a petição inicial, dando-se aqui por reproduzido o respectivo teor.
11- O mandatário do A. remeteu ao R., as cartas de 16.5.2018 e de 22.6.2018, cujas cópias foram juntas como docs.7 e 8 com a petição inicial, dando-se aqui por reproduzido o respectivo teor.
12- O autor, desde Agosto de 2017, mensalmente, deposita na conta do banco réu 150,00 euros.
13- O DD PLC procedeu à alienação do negócio de cartões de crédito denominado `DDCARD” à entidade BB, S.A.
14- O BB, S.A – Sucursal em Portugal sucedeu na posição jurídica do DD PLC, com efeitos a partir de 11 de Novembro de 2016, passando esta entidade a ser credora dos montantes em divida referente a inúmeros créditos, nomeadamente o crédito em causa nestes autos.
15- Todos os clientes do produto bancário denominado `DDcard” foram notificados da realização deste negócio, incluindo o Autor, conforme resulta da comunicação remetida para a morada contratual deste, a 14 de Novembro de 2016 , cuja cópia foi junta como doc. 1 com a contestação , dando-se aqui por reproduzido o seu teor.
16-O Autor, enquanto cliente, não só utilizou o cartão que lhe foi atribuído na altura pelo CC , como foi amortizando os respectivos valores decorrentes de tal utilização, no período que decorreu entre Abril de 1999 a Novembro de 2016, utilização essa plasmada nos extractos dos anos de 2001 a 2017, juntos como doc.4 com a contestação, dando-se aqui por integralmente reproduzido o respectivo teor.
17- Os pagamentos mensais efectuados pelo Autor , através do Multibanco, correspondiam, em regra, ao valor mínimo do saldo em dívida por conta da utilização do cartão de crédito, conforme decorre do teor dos aludidos extractos.
18- O banco réu remeteu ao A. as cartas, cujas cópias foram juntas como docs. 6,7, 8 e 9 com a contestação, dando-se aqui por reproduzido o seu teor.
19- Face ao incumprimento reiterado por parte do Autor no que tange às obrigações de pagamento reclamadas pelo réu, no dia 17 de Julho de 2017, foi remetida uma carta para a morada contratual deste, onde é dado conhecimento que o “Acordo de Utilização do Cartão de Crédito (…) 2002” encontrava-se resolvido, sendo a partir desta data devido o pagamento do montante total em dívida, o qual ascendia a €14.825,54, conforme carta junta como doc.9, dando-se aqui por reproduzido o seu teor.
20- A partir da data mencionada em 19-, o réu deixou de remeter os extractos mensais relativos ao cartão de crédito.
21- Em 3.7.2018. o réu remeteu ao A. a carta cuja cópia foi junta como doc.10 com a contestação, dando-se aqui por reproduzido o seu teor.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Impugnação da matéria de facto.
A decisão sob impugnação integra um saneador-sentença, em que o tribunal a quo enunciou os factos provados tendo por base o acordo das partes e os documentos juntos.
O tribunal a quo considerou provado o facto 19 com o seguinte teor:
19-  Face ao incumprimento reiterado por parte do Autor no que tange às obrigações de pagamento reclamadas pelo réu, no dia 17 de julho de 2017, foi remetida uma carta para a morada contratual deste, onde é dado conhecimento que o “Acordo de Utilização do Cartão de Crédito (…) 2002” encontrava-se resolvido, sendo a partir desta data devido o pagamento do montante total em dívida, o qual ascendia a €14.825,54, conforme carta junta como doc.9, dando-se aqui por reproduzido o seu teor.
Sustenta o apelante que inexiste acordo das partes quanto a tal facto, sendo que a carta, que constitui o documento nº 9 junto com a contestação, é insuficiente para permitir concluir que houve incumprimento reiterado do autor e que este era devedor da quantia reclamada. Mais sustenta que nem se provou a existência do Acordo de utilização do cartão de crédito, sendo ainda que o facto provado sob 19 está em oposição com os factos provados sob 12, 16, e 17.
Apreciando.
O facto 19 deriva da alegação do art. 36º da contestação, com o seguinte teor: « Face ao incumprimento reiterado por parte do Autor no que tange ao cumprimento das obrigações de pagamento, no dia 17 de Julho de 2017 foi remetida uma carta para a morada contratual deste, onde é dado conhecimento que o “Acordo de Utilização do Cartão de Crédito (…) 2002” encontrava-se resolvido, sendo a partir desta data devido o pagamento do montante total em dívida, o qual ascendia a €14.825,54, conforme carta que se junta como doc.9 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.»
Sobre tal documento veio o autor/apelante a pronunciar-se por subsequente requerimento avulso nestes termos: «8º - O documento 5 é constituído por um conjunto de cartas alegadamente enviadas pelo réu ao autor, entre 23 de novembro de 2016 e 17 de julho de 2017
Todavia, na petição inicial, o autor alegou o seguinte:
26º.
Com os extratos de que dispõe o autor pode apurar que entre 09 de abril de 1999 e a presente data foram realizados os seguintes movimentos:
 27º.
Compras e crédito concedido ao autor no valor total de 45.188,40 euros; (doc. 9)
 28º.
Juros cobrados pelo banco réu e entidades que o antecederam, no valor de 21.904,97 euros; (doc. 9)
 29º.
Imposto de selo e outros encargos cobrados pelo banco réu e entidades que o antecederam no valor total de 9.927,94 euros; (doc. 9)
 30º.
Pagamentos efetuados pelo autor no valor total de 67.093,86 euros. (doc. 9)
 Ou seja, na alegação do autor ocorreram compras, juros e encargos/imposto de selo no valor total de € 77 021,31, tendo o autor efetuado pagamentos no valor de € 67 093,86, sobrando a diferença de € 9 927,41.
Assim sendo, não pode afirmar-se que exista acordo das partes quanto ao facto 19 na redação que lhe foi dada pelo tribunal a quo porquanto tal alegação está contraditada pela petição considerada no seu conjunto (cf. Artigo 574º, nº2, do Código de Processo Civil).
Assim, a redação do facto 19 deve ser modificada para:
«19. No dia 17 de julho de 2017, o réu remeteu ao autor a carta correspondente ao documento nº 9 junto com a contestação a fls. 237, para a morada do autor, nos termos da qual o réu afirmou o seguinte: «Na sequência do incumprimento das obrigações de pagamento do cartão de crédito acima indicado, razão pela qual cancelámos o cartão, informamos que o montante total de € 14.825,54 se encontra, a esta data, ainda em dívida. / O Acordo de Utilização do Cartão de Crédito acima indicado encontra-se resolvido com efeitos a partir de 17.7.2017. Deste modo, é devido o pagamento imediato do montante total em dívida acima indicado
A alteração deste facto não assume especial relevância porquanto a reconvenção deduzida pelo réu não foi admitida, consoante resulta da ata da audiência prévia, sem que a o réu tenha impugnado tal despacho.
Pretende, ainda, o autor que a alegação por si feita nos artigos 26º, 27º e 30º da petição (cf. supra) passe a integrar os factos provados porquanto se trata de factualidade aceite pelo réu na contestação.
E, na verdade, no artigo 8º da contestação, o réu afirmou o seguinte: «Sucede que o aqui Autor enquanto cliente, não só utilizou o cartão que lhe foi atribuído na altura pelo CC - confissão essa plasmada nos artigos 5.º, 6.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º e 30.º da P.I, a qual se aceita para não mais ser retratada ou retirada».
Posteriormente, o autor ampliou o pedido inicial implicando a alteração da quantia por si paga para € 68.145,17, o que não foi objeto de oposição do Réu, sendo admitido por despacho proferido na audiência prévia.
Assim sendo, é inequívoco o acordo das partes quanto à ocorrência do descrito nos artigos 26º, 27º e 30º da petição, os quais passam a integrar os factos:
22- Com os extratos de que dispõe o autor pode apurar que entre 09 de abril de 1999 e a presente data foram realizados os seguintes movimentos:
23- Compras e crédito concedido ao autor no valor total de 45.188,40 euros;
24- Pagamentos efetuados pelo autor no valor total de 68.145,17. Euros.
Reapreciação de mérito (abuso de direito).
O tribunal a qual julgou a ação improcedente, entendendo que a pretensão do autor não deve proceder porquanto este incorre em abuso de direito.
No essencial, a fundamentação adotada pelo tribunal a quo foi a seguinte:
«Ora, independentemente do vício de forma verificado na génese do contrato, o certo é que o A. aceitou os seus efeitos, beneficiando durante 18 anos, do crédito para adquirir todo o tipo de bens de consumo, e dispondo-se a cumprir, como efectivamente cumpriu, a sua prestação durante um período de tal forma dilatado, que cria na contraparte a justa expectativa de que a nulidade não viria mais a ser invocada.
Assim, com a interposição da presente acção, na sequencia da resolução do contrato de concessão de crédito por parte do réu face ao incumprimento reiterado desde 2017 por parte do autor, verifica-se que é abalada a confiança criada no réu de estabilidade da relação contratual existente induzida pelo anterior comportamento do A..
Note-se, quanto à conclusão antecedente, que o A. não alegou, nem sequer há qualquer registo que alguma vez, ao longo dos referidos 18 anos de vigência do contrato, o A tenha demonstrado o ensejo de revogar o contrato ou manifestado à Banco o seu desconhecimento face ao conteúdo contratual, nem de qualquer reacção ou perplexidade perante as obrigações para si decorrentes, não se vendo, pois, que a eventual preterição de formalidades aquando da celebração do contrato tenha tido influência no comportamento do cliente/consumidor/mutuário, pois este subscreveu a proposta para obtenção do cartão de crédito, recebeu-o, utilizou-o regularmente e manteve-se fiel às suas obrigações contratuais durante 18 anos.
Assim sendo, a arguição de nulidade/inexistência, neste caso, afasta-se da finalidade prevista pela lei ao estabelecer tal sanção, servindo não apenas como um meio de obstar ao pagamento de valores em dívida, mas ainda como uma forma ostensivamente abusiva de obter o reembolso de quantias já pagas ao longo da vigência do contrato.
É, pois, de concluir que a invocação da nulidade/inexistencia do contrato, nas presentes circunstâncias, constitui um claro abuso do direito, pelo que, deve ter-se por inadmissível.»
Analisando.
Em 9.4.1999, encontrava-se em vigor o Decreto-lei nº 359/91, de 21.9, nos termos do qual:
Artigo 6º, nº1: «O contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respetiva assinatura
Artigo 7º
 1 - O contrato de crédito é nulo quando não for observado o prescrito no n.º 1 ou quando faltar algum dos elementos referidos nas alíneas a), c) e d) do n.º 2, nas alíneas a) a e) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo anterior.
2 - O contrato de crédito é anulável quando faltar algum dos elementos referidos nas alíneas b), e), f) e h) do n.º 2 do artigo anterior.
3 - A não inclusão dos elementos referidos nas alíneas g) do n.º 2 e f) do n.º 3 do artigo anterior determina a respetiva inexigibilidade.
4 - A inobservância dos requisitos constantes do artigo anterior presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor.
5 - O consumidor pode provar a existência do contrato por qualquer meio, desde que não tenha invocado a nulidade.
(…)
Atenta a factualidade provada sob 1 a 5 infere-se que não foi observada a forma escrita prescrita por lei porquanto inexiste documento único a que tenham sido apostas as assinaturas das partes, com enunciação das cláusulas contratuais, ou dois documentos em que constem tais assinaturas e cláusulas. Donde decorre que estamos perante um vício de nulidade (art. 7º, nº1, do referido Decreto-lei e art.  220º do Código Civil). Acresce que, inerentemente, não se encontra demonstrada a entrega de um exemplar do contrato completo ao autor.
Ao contrário do que sustenta o apelante, o vício em causa não é o da inexistência. Esta só ocorre quando não foi de todo celebrado qualquer negócio por falta de consenso (dissenso), por inexistência de ação negocial (inexistência ôntica), não sendo esse o caso porquanto houve uma atuação negocial embora incompleta formalmente. Também não ocorre uma inexistência qualificativa, à semelhança do art. 2º da LULL ou mesmo uma inexistência por imposição da lei, v.g. art.  1628º do Código Civil (cf. Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed., 2012, pp. 627-629). Na expressão de Carlos Mota Pinto, a inexistência só ocorrerá quando «nem sequer aparentemente se verifica o corpus de certo negócio jurídico (a materialidade correspondente à noção de tal negócio), ou, existindo embora essa aparência material, a realidade não corresponde a tal noção» (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., p. 617).
Nas conclusões 5 e 8, o apelante sustenta a inexistência das cláusulas constantes do acordo em virtude do regime dos arts. 5º, 6º, e 8º, al. d), do Decreto-lei nº 446/85, de 25.10. Trata-se de uma questão nova que não foi suscitada pelo autor nem na sua petição inicial nem na ampliação do pedido e da causa de pedir ( fls. 241-242) e, como tal, não é suscetível de ser apreciada em recurso (cf. supra). Todavia, sempre se dirá que – mesmo que ocorresse tal exclusão – daí não derivaria a inexistência de contrato, mas a sua sujeição ao regime do art. 9º do Decreto-lei nº 446/85, de 31.10.
Pese embora o vício originário do contrato (nulidade por vício de forma), a questão que emerge é a de saber se a pretensão do autor/apelante deve ser neutralizada pelo instituto do abuso de direito (entendimento seguido pelo tribunal a quo) ou se a tutela do consumidor obsta à atuação do abuso de direito.
A questão tem dado azo a jurisprudência desencontrada.
Assim, alguns arestos têm entendido que a entidade financeira não pode neutralizar a pretensão do consumidor com base no instituto do abuso de direito, sendo de destacar os seguintes:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.4.2009, Fonseca Ramos, 2/09: A pretensão do aderente não deve ser paralisada pela invocação do abuso do direito, por parte do proponente, por nas relações de consumo a regra ser a proteção do consumidor, só devendo ser desconsiderada, em casos de conduta, a todos os títulos censurável e injustificada, com grave prejuízo da contraparte, o que aqui não é evidente, sendo de acentuar que a atuação da Autora evidencia grosseira violação das regras da boa-fé o que conduz a considerar que a atuação do Réu não cai na alçada daquele moderador instituto.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.9.2016, Alexandre Reis, 1262/14: O «factum proprium» apto a violar a boa-fé ou a confiança da recorrente e a constituir o aqui invocado exercício abusivo do direito pela embargante pressuporia, enquanto facto voluntário, a ciência e a vontade dessa violação. Ora, no caso, a exequente não provou ter propiciado à embargante o efetivo conhecimento da discutida cláusula, pelo que, no contexto, assim configurado, do incumprimento dos deveres de comunicação e de informação que sobre ela impendiam, não podem ser avocados os (inverificados) pressupostos cognitivos da liberdade de contratar por parte da embargante, que integrariam, simultaneamente, o elemento subjetivo da putativa violação da confiança. / Por consequência, não podendo ser subjetivamente imputado à embargante o alegado comportamento anterior, ou a referida conduta voluntária, fica arredada a invocada violação da expectativa ou confiança supostamente gerada na recorrente.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.12.2013, Clara Sottomayor, 306/10: Não constitui abuso do direito a situação do segurado que, decorridos seis anos após a celebração do contrato de seguro, invoca a exclusão de uma cláusula por falta do cumprimento dos deveres de comunicação e de informação, sendo completamente natural e nada contraditório, que o cidadão assine o contrato, confiando que não vai encontrar percalços na sua execução, e reaja apenas quando esses percalços, normalmente imprevisíveis na data da celebração do contrato, surgem.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.4.2016, Jorge Leal, 187/14: Sendo a nulidade um vício cognoscível a todo o tempo, em que a passagem do tempo não interfere com a operatividade da omissão ocorrida (falta de entrega de um exemplar do contrato de mútuo ao mutuário), e emergindo a nulidade de atuação imputável ao financiador, cujo investimento no negócio é, afinal, contemporâneo da nulidade, dificilmente se poderá encontrar, da parte do financiador, um “investimento de confiança”, decorrente da inércia da contraparte na arguição da nulidade, que justifique a proteção do financiador (com invocação do abuso de direito), em detrimento do consumidor, derrogando-se os mecanismos de proteção do consumidor à luz do padrão da boa-fé.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.12.2009, Ezaguy Martins, 1067/2001: nos casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer atuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excecionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium. / A confiança só se mostra digna de proteção jurídica, desde logo, se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjetivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium se encontrava vinculado a adotar a conduta prevista e se, ao formular tal convicção tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico. /  O que de forma alguma – e em sede de invocação das nulidades formais – é de conceder relativamente a sociedades comerciais, e designadamente instituições de crédito, que obviamente suportadas por uma retaguarda de serviços de contencioso e jurídicos, se apresentam perante consumidores/pessoas singulares, cuja modéstia de recursos e de conhecimentos nestas matérias, bem como a privação de efetiva possibilidade de ponderação, se ilustram no circunstancialismo alegado pelos AA., que aliás litigam com o benefício do apoio judiciário.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.102016, Pedro Martins, 28382/15: Não constitui abuso de direito a conduta do aderente do contrato que, decorridos vários anos após a celebração do contrato, invoca a anulabilidade do mesmo por falta de um elemento imposto por lei ou a exclusão de cláusulas contratuais gerais por falta do cumprimento dos deveres de comunicação e de informação, “sendo completamente natural e nada contraditório, que o cidadão assine o contrato, confiando que não vai encontrar percalços na sua execução, e reaja apenas quando esses percalços, normalmente imprevisíveis na data da celebração do contrato, surgem.”
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5.5.2015, Conceição Saavedra, 2107/08: estando em causa nulidade do contrato fundada na violação do regime das cláusulas contratuais gerais, logo, de conhecimento oficioso, não pode convocar-se o instituto do abuso de direito.
Em sentido oposto, foi admitida a arguição do abuso de direito nomeadamente nos seguintes arestos:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.3.2011, Álvaro Rodrigues, 4849/05: «a situação objetiva, denunciadora da confiança que poderá ter suscitado na Autora [sociedade financeira mutuante], teve como seu sujeito ativo exclusivo a conduta da Ré, inicialmente descrita, e não consta que da parte da Autora se possa contrapor conduta lesiva dos princípios da boa fé, de modo que só lhe era expectável que a demandada, mantendo a coerência com o seu anterior procedimento, continuasse a cumprir o contrato e não invocasse a sua nulidade./Assim, não nos merece censura, quanto a este aspeto, o Acórdão recorrido, que considerou que a Ré agiu com abuso do direito e, na sequência, não declarou a nulidade do contrato de crédito.»
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.12.2009, Filipe Caroço, 1179/08: Abusa de direito o mutuário-consumidor que invoca a nulidade de um contrato de adesão celebrado com uma entidade financeira por não lhe ter sido entregue um exemplar do contrato no momento da respetiva assinatura, quando, na realidade, sobre a data do negócio decorreu um período de tempo que lhe permitiu fazer, e fez, o pagamento de 20 das 60 prestações mensais fixadas para o integral cumprimento do contrato, ao mesmo tempo que, pela via da referida exceção, pretende, contraditoriamente, que se produza o efeito previsto na al. b) do nº6 do art. 7º do DL nº 359/91, de 21.09, ou seja, que o pagamento seja reduzido ao montante do crédito concedido.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.10.2016, Luís Cravo, 40130/15: agem com abuso de direito os Réus mutuários que, na contestação, invocam a invalidade das cláusulas contratuais do contrato de abertura de crédito em conta corrente, por falta de comunicação e explicação das cláusulas gerais, depois de terem obtido o financiamento através desse contrato, utilizando-o nos termos que tiveram por convenientes, procedendo ao pagamento das prestações acordadas por um período longo de mais de 6 anos.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.11.2014, Anabela Dias da Silva, 9734/11: Age em abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” o executado/apelante que depois de ter cumprido o contrato durante quase de dois anos, e mesmo quando já em incumprimento quanto às obrigações decorrentes do contrato assumido, quando interpelado pela exequente para cumprir, nada fez, pelo que só agora (em sede de oposição à execução) vem invocar a nulidade por violação do dever de entrega de um exemplar à data da assinatura, não está a atuar como uma pessoa de bem, honestamente e com lealdade, mesmo que disso não tenha consciência.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.7.2015, Rosário Morgado, 1391/13: A invocação da nulidade do contrato de crédito, por falta de entrega de um exemplar, no momento da assinatura, decorridos três anos sobre a sua vigência do contrato e quando já se encontravam pagas 35 das 48 prestações acordadas, constitui abuso de direito e neutraliza os efeitos decorrentes da nulidade.
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.9.2015, Cristina Duarte, 162/07: O mutuário/comprador age em abuso de direito quando invoca a nulidade do contrato de crédito com fundamento na falta de informação e explicitação de cláusulas, 7 anos após a outorga do mesmo, nunca antes tendo invocado qualquer incompreensão das ditas cláusulas, nem ela tendo qualquer relação com o incumprimento contratual, que se ficou a dever a defeitos na viatura que, apesar disso, acabou por ser entregue para abatimento na dívida perante o credor.
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27.10.2011, Amílcar Andrade, 693/10: Tendo a executada comprado um veículo com o financiamento concedido, pago algumas das prestações acordadas e usado o veículo durante cerca de onze meses sem nunca ter manifestado considerar o contrato como lesivo dos seus interesses nem ter diligenciado no sentido de o revogar, a ele aderindo e aproveitando as vantagens dele emergentes, a invocação que agora faz da nulidade emergente da falta de entrega do exemplar do contrato, decorridos cerca de três anos sobre a celebração do contrato, traduz um comportamento abusivo e contrário ao direito e à boa fé.
Na doutrina, são assíduas as vozes que sustentam a admissibilidade da invocação do abuso de direito em circunstâncias similares.
Assim, Gravato Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007, p. 111, afirma: «De todo o modo, parece-nos poder concluir-se que a nulidade do contrato de crédito encontra no instituto do abuso do direito um obstáculo legítimo e efetivo à sua invocação.» Posteriormente, em Crédito aos Consumidores, Almedina, 2009, p. 67, afirmou: «No entanto, apesar da nulidade do contrato, é possível discutir o recurso pelo financiador ao abuso (individual) do direito. Assim, é legítima a pretensão do financiador que, v.g., sustenta que a arguição da nulidade formal ou procedimental pelo consumidor configura um venire contra factum proprium já que o direito está a ser exercido em contradição com a sua conduta anterior (por exemplo, o pagamento das prestações do mútuo durante um longo período seguido da arguição da nulidade).»
Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, Reflexão Sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, Almedina, 2012, p. 385, analisa a questão nestes termos:
«Se, apesar da nulidade do contrato, o montante do crédito vier a ser concedido ao consumidor e este agir posteriormente em conformidade com uma celebração válida do contrato, admite-se que o financiador possa recorrer à figura do abuso de direito, se se verificarem os pressupostos do artigo 334º do Código Civil (…). Esta faculdade apenas deve ser conferida ao financiador em situações extremas e em que a sua conduta aquando da celebração do contrato e da inobservância da forma e das formalidades legalmente prescritas não tenha sido, por sua vez, atentatória da boa fé. Isto porque a nulidade do contrato também constitui uma sanção para o financiador, não podendo depois vir a ser beneficiado pela circunstância de o consumidor ter agido como se o contrato fosse válido, em especial nos casos em que desconhece essa invalidade no momento da celebração do contrato.»
Ânia Marques Florença, O Abuso de Direito no Direito do Consumo, FDUNL, 2015, p. 60, conclui assim:
«Em conclusão, recorrendo à figura das inalegabilidades formais com base na análise do fim da norma, tutela-se um dos maiores princípios do Direito Privado: autonomia privada. Ao manifestarem vontade de celebrar contrato, as partes têm de o cumprir. Se o consumidor não se depara com algo que desconhecia, não há justificação para sacrificar a relação jurídica, independentemente de o credor ter atuado de má fé no momento da celebração do contrato. O próprio consumidor, após conhecer bem os termos do contrato, ao continuar a cumpri-lo, demonstra que mesmo que o credor lhe tivesse entregado um exemplar, teria celebrado o contrato na mesma.
Se o consumidor invocar a nulidade do contrato, não porque se deparou com uma condição com a qual não tinha acordado, mas sim porque quer se desvincular da relação jurídica sem fundamento, deixa de ser relevante se gerou ou não confiança no credor, havendo abuso do direito. A autonomia privada e a confiança no tráfico jurídico têm de ser tuteladas.
Reconhecido o abuso do direito, a invocação da nulidade não produz efeitos, mantendo-se o contrato válido e eficaz.»
José Engrácia Antunes, Direito do Consumo, Almedina, 2019, p. 81, afirma com pertinência o seguinte:
«(…) o direito do consumo padece da mácula original fundamentalista – a fórmula mântrica ou vaca sagrada do consumidor “débil”, uma espécie de versão contemporânea da epopeia bíblica de David e Golias. Sucede, porém, que as fronteiras entre o consumidor débil e o consumidor sonso ou finório nas atuais sociedades de consumo são cada vez mais ténues e difíceis de traçar com rigor, não sendo infrequentes as situações em que o exercício de tais direitos excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pela finalidade económico-social subjacente, expondo assim os empresários ou profissionais a sacrifícios desproporcionais e injustificados.
Isso mesmo foi expressamente reconhecido pelo legislador ao referir que o consumidor é livre de exercer quaisquer dos seus direitos “salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito” (art. 4º, nº5 da LVBC). Ora, apesar de tal disposição se encontrar apenas prevista a respeito da venda de bens de consumo e direitos conexos, não vemos como evitar considerar a figura do abuso do direito como limite geral aplicável ao exercício de todos os demais direitos e prerrogativas consagrados a favor daquele.»
Feito este périplo pela jurisprudência e doutrina, há que reverter novamente para o caso em apreço.
Perscrutando a factualidade provada, verifica-se que o autor e as sucessivas instituições financeiras atuaram, no período entre abril de 1999 e 2017, sem sobressaltos, no pressuposto da vigência entre ambos de um contrato de crédito ao consumo na modalidade de emissão de cartão de crédito. Conforme ficou agora provado, entre 1999 e a propositura da ação (11.10.2018), o autor – com recurso ao cartão em causa – fez compras no valor total de € 45.188,40, tendo efetuado pagamentos no valor total de € 68.145,17.
Nesse período, não há notícia que o autor tenha evidenciado dúvidas sobre se estava vinculado, em que termos e por que razão.
Sucede que, em 17.5.2017, o réu remeteu carta ao autor reclamando o pagamento de € 2 574,27, carta essa que deu azo a uma acesa troca de correspondência entre as partes. Essa troca de correspondência culminou, em 17.7.2017, com o envio da carta de resolução pelo Réu, em que este se arrogou credor do autor pelo valor de € 14.825,54. De relevar ainda que, após essa resolução e desde agosto de 2017, o autor deposita mensalmente € 150 na conta do réu (12), o que demonstra que o autor se reconhece devedor do réu em decorrência dos débitos emergentes do contrato em causa.
À revelia de todo o quadro factual precedente, veio o autor instaurar a presente ação, em 11.10.2018, arrogando-se o direito de receber a quantia de € 21.905,46 com fundamento na nulidade do contrato de concessão de crédito, celebrado em 1999.
Atento o que fica dito, é manifesto que o autor atua com o desiderato de, em primeira linha, se eximir ao pagamento de quantia que seja devida ao réu, vindo a juízo apenas após a resolução feita pelo réu e num contexto em que o réu se arrogou credor do autor. Não está demonstrado que o autor se tenha deparado com uma condição com a qual não tinha acordado ou que o tenha surpreendido (cf. doutrina e jurisprudência supra).
Ademais, o longo período em que foi executado o contrato é manifestamente superior a muitos outros casos decididos em que se concluiu pela verificação do abuso de direito.
Estão, pois, verificados os pressupostos do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, a saber:
i. Uma situação de confiança, traduzida numa boa fé subjetiva;
ii. Uma justificação para essa confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis;
iii. Um investimento de confiança, consistente no facto de a destruição da situação de confiança gerar prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido atividades jurídicas em virtude dessa situação;
iv. A imputação da situação de confiança criada a outrem, levando a que este possa ser considerado responsável pela situação (cf., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, Fernandes do Vale, 116/07).
Com efeito, o longo período de execução do contrato (mais de 16 anos), durante o qual o autor nenhuma questão suscitou quanto à sua validade ou termos da sua vinculação, gerou objetivamente no réu a convicção de que não seria posteriormente arguido qualquer vício do mesmo. Com base nessa convicção, o réu disponibilizou ao autor uma quantia significativa ao longo de tal período (mais de quarenta e cinco mil euros) na expetativa de obter a remuneração do capital facultado, sendo que a arguição intempestiva da invalidade formal do contrato é idónea a gerar prejuízos ao réu consistentes na privação da remuneração do capital facultado e/ou de parte deste.
Termos em que é de manter a decisão da primeira instância radicada no instituto do abuso de direito.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 5.5.2020
Luís Filipe Sousa
Carla Câmara
José Capacete
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14.