Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23662/16.2T8LSB-A.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROVA PERICIAL
CELERIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Em processo de insolvência e em sede de oposição, não deve ser preterido - sem mais e em nome da celeridade processual - ao requerido o direito de requerer a realização de prova pericial porquanto tal decisão pode integrar uma restrição, inadmissível e desproporcional, ao seu direito à prova.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


..., SA requereu processo de insolvência de ...- Promoção Imobiliária e Turismo, SA, alegando que a Requerida não cumpriu as obrigações emergentes do plano especial de revitalização aprovado e homologado, sendo a requerida devedora da quantia de € 43.449.582,19. Alega a requerente que, pese embora o seu crédito esteja garantido por hipoteca sobre imóveis, o valor atual dos imóveis é inferior ao valor devido à requerente pelo que o ativo conhecido da requerida é inferior ao passivo.

Anteriormente, em 26.9.2013, foi proferido despacho de homologação relativo ao plano de recuperação conducente à revitalização da ... – Promoção Imobiliária e Turismo, SA (fls. 16 e 19).

Em 31.10.2016, foi ordenada a citação da requerida (fls. 48 v).

Em 3.11.2016, foi expedida citação da requerida (fls. 42), a qual veio arguir a nulidade da citação por a mesma não ter vindo acompanha dos documentos mencionados (fls. 39-41).

Em 6.2.2017, foi deferido o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento de atrono à ..., SA (fls. 50 v.).
A ..., SA requereu a realização de uma perícia ao valor do seu ativo e passivo, a fim de apurar se o ativo da requerida é superior ao passivo.

Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho:
«A fls. 465 e seguintes vem a requerida peticionar a realização de uma perícia ao valor do seu ativo e passivo, a fim de apurar se o ativo da requerida é superior ao passivo.
Muito embora, nos termos do art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, seja subsidiariamente aplicável ao processo de insolvência o Código de Processo Civil e, em abstrato, sejam admissíveis todos os meios de prova ali previstos, perícia incluída, essa aplicabilidade apenas de dá em “tudo o que não contrarie as disposições deste código.”

Os meios de prova são requeridos com os articulados - cfr. arts. 25° nº2 e 30° nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, como já bastamente se referiu - e este é um dos domínios em que a preocupação de celeridade do legislador mais se fez sentir.

Note-se que todas as testemunhas arroladas são a apresentar, o que simplifica os actos materiais subsequentes à marcação de julgamento e visa possibilitar o cumprimento, ao menos tendencial, do art. 35° nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - a audiência deve ser designada para um dos cinco dias seguintes, caso tenha havido oposição do devedor ou tendo a audiência sido dispensada.

A preocupação de celeridade vai mais longe ainda no próprio regime da audiência de julgamento - cfr. nºs 2 e 3 do referido art. 35°. Se o devedor ou seu representante não comparecer têm-se por confessados os factos alegados no requerimento inicial. Se, comparecendo o devedor, não comparecer o requerente ou seu representante, indiferentemente de qual seja a situação da requerida, tal falta equivale à desistência do pedido. Ou seja, erigido, claramente em objectivo fundamental está a celeridade processual.

E a verdade é que por muito sumária e rápida que seja uma perícia ela é absolutamente impossível de realizar entre o momento em que é deduzida a oposição e a marcação de julgamento, que não deve distar mais de 5 dias, segundo a lei.
Não podemos ignorar que o cumprimento deste prazo de cinco dias previsto no art. 35° nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é, na actual situação concreta do tribunal, impossível de cumprir.
E a pergunta impõe-se: sendo designada audiência de julgamento para data que possibilite a realização de diligências de prova como a perícia, deve o tribunal admiti-lo?
A resposta é negativa. Se não se pode fazer recair sobre as partes os ónus e desvantagens do deficiente funcionamento da máquina judiciária, entende-se que o mesmo não as pode beneficiar.
Ou seja, e em conclusão, a admissão de prova pericial, embora abstractamente possível, em processo de insolvência colide com a disposição do nº1 do art. 35° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e com uma das grandes linhas de orientação do diploma, razão pela qual, no concreto, não pode ser admitida e realizada.
Pelo exposto, indefiro a requerida realização de perícia.»

Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem na parte pertinente:
«I.–A Decisão ora Recorrida, fundamenta-se da necessidade de celeridade nos processos de insolvência, mais concretamente numa alegada incompatibilidade entre a realização de perícias, e a disposição.
II.–A P.I. foi apresentada em 27/9/2016 tendo a ora Recorrente em 17/11/2016 requerido apoio judiciário.
III.–Em 10/2/2017 foi a ora Recorrente notificada na concessão do referido apoio, tendo esta deduzido o incidente de nulidade da citação nos termos do artigo nº 191º do Código de Processo Civil o que o fez em 16/2/2017.
IV.–Em 17/05/2017 foi a Requerida citada com todos os documentos, ou seja, entre a dedução do incidente de nulidade da citação, o seu conhecimento e a notificação a Recorrente dos documentos, demoraram mais de três meses.
V.–A decisão Recorrida foi notificada a 7/7/2017, tendo sido marcada a audiência de discussão e julgamento para 20/09/2017, ou seja, volvidos quase um ano da interposição do requerimento inicial, invocar a disposição do artigo 35º do CIRE num processo de insolvência, que entre a apresentação da PI e a marcação da audiência de discussão e julgamento decorreu quase um ano, invocando-se a celeridade processual, carece de qualquer realidade processual.
VI.–O CIRE em nenhuma das suas normas permite a decisão ora Recorrida, ou seja, a denegação do direito a realização plena da prova mediante os mecanismos previstos no CPC.
VII.–Não se pode invocar a disposição do artigo 35º do CIRE para negar o direito a descoberta da verdade material, uma vez que no caso dos presentes autos, todos os prazos previstos no artigo 35º foram ultrapassados e muito.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR.
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, a questão a decidir consiste em determinar se é admissível a realização da prova pericial requerida.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A matéria de facto relevante para a apreciação de mérito é que consta do relatório que se dá por reproduzido.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
A decisão impugnada, acima reproduzida, rejeitou a realização da prova pericial requerida pela ..., SA, argumentando que a prova pericial, embora abstratamente possível em processo de insolvência, colide com o regime do nº1 do art. 35º do CIRE e com a linha de orientação de tal diploma consistente na celeridade.
Em abono da posição assumida pelo tribunal a quo, pronuncia-se Fátima Reis Silva, “Fase Instrutória do Processo Declarativo de Insolvência”, in Julgar, Nº 31, 2017, pp. 69-70, nos seguintes termos:
«Muito embora, nos termos do artigo 17º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, seja subsidiariamente aplicável ao processo de insolvência o Código de Processo Civil e, em abstrato, sejam admissíveis todos os meios de prova li previstos, perícia incluída, essa aplicabilidade apenas se dá em “tudo o que não contrarie as disposições deste código”, como já referido infra.
Os meios de prova são requeridos com os articulados – cfr. artigos 25º, nº2, e 30º, nº1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, como já bastamente se referiu – e este é um dos domínios em que a preocupação de celeridade do legislador mais se fez sentir. Note-se que todas as testemunhas arroladas são a apresentar, o que simplifica os atos materiais subsequentes à marcação de julgamento e visa possibilitar o cumprimento, ao menos tendencial, do artigo 35º, nº1, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas – a audiência deve ser designada para um dos cinco dias seguintes, caso tenha havido oposição do devedor ou tendo a audiência sido dispensada.
A preocupação de celeridade vai mais longe ainda no próprio regime da audiência de julgamento – cfr. nºs 2 e 3 do referido artigo 35º. Se o devedor, ou seu representante, não comparecer, têm-se por confessados os factos alegados no requerimento inicial. Se, comparecendo o devedor, não comparecer o requerente ou seu representante, indiferentemente de qual seja a situação da requerida, tal falta equivale à desistência do pedido. Ou seja, erigido, claramente, em objetivo fundamental está a celeridade processual.
E a verdade é que por muito sumária e rápida que seja uma perícia, seja colegial, seja por perito único, ela é absolutamente impossível de realizar entre o momento em que é deduzida oposição e a marcação de julgamento, que não deve distar mais de cinco dias, segundo a lei.
Não podemos ignorar que o cumprimento deste prazo de cinco dias previsto no artigo 35º, nº1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é, na situação concreta de muitos dos nossos tribunais, impossível de cumprir. E a pergunta impõe-se: sendo designada audiência de julgamento para data que possibilite a realização de diligências de prova como a perícia, deve o tribunal admiti-lo?
A resposta é negativa.Se não se pode fazer recair sobre as partes os ónus e desvantagens do deficiente funcionamento da máquina judiciária, entenda-se que o mesmo não as pode beneficiar.
Ou seja, e em conclusão, a admissão de prova pericial, embora abstratamente possível, em processo de insolvência colide com a disposição do nº1 do artigo 35º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas e com uma das grandes linhas de orientação do diploma, razão pela qual, no concreto, não pode ser admitida e realizada.»

Na jurisprudência, esta questão já foi objeto de decisão em sentido inverso pelo menos em dois arestos. Assim, no Acórdão da Relação de Évora de 13.3.2008, Manuel Marques, 213/08, www.colectaneadejurisprudencia.com, raciocinou-se assim:
«(…)  no CIRE não existe qualquer norma expressa a admitir ou não a produção de prova pericial.
Estabelece, porém, o art. 17º do CIRE que o "processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código".

Não obstante tal processo estar legalmente qualificado como um processo de execução (universal), na sua fase inicial até à prolação da sentença tem uma estrutura de cariz declarativo.
Consequentemente, tratando-se de um processo especial, haverá que recorrer ao disposto no art. 463º, nº 1, do CPC, que determina a aplicação das disposições gerais e comuns e, em tudo o que nelas não se achar estabelecido, as normas do processo ordinário.
Ora, a prova pericial é um dos meios de prova previstos na lei (arts. 568º a 591º do CPC), a qual tem por finalidade a percepção ou apreciação dos factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial - art 388º do CC.
Assim, em princípio tal meio de prova é admissível, a não ser que se conclua que o mesmo contraria as disposições do CIRE (vide art. 17º), máxime o art. 9º.
Analisemos a questão à luz deste normativo.
Prescreve o art. 9º, nº 1, do CIRE que o processo de insolvência tem carácter urgente.
O fomento da celeridade do processo de insolvência constitui um dos objectivos do diploma, como claramente flui do preâmbulo do Dec. Lei nº 53/2004, de 18/03.
Não obstante, deriva do disposto nos arts. 25º, nº 2, e 30º, nº 1, do CIRE que quer o requerente, quer o devedor devem oferecer com a p.i. e oposição "todos os meios de prova" de que disponham.
Assim, a lei não estabelece qualquer limitação quanto aos meios de prova de que é lícito as partes apresentarem.

O objectivo da celeridade foi promovida pelo legislador através de outras medidas como sejam:
- a consagração da natureza urgente, correndo o processo durante as férias judiciais (art. 144º, nº 1, do CPC);
- dispensa da audiência do devedor (art. 12º do CIRE)
- redução a dois do número de articulados;
- apresentação dos meios de prova logo com o requerimento inicial ou com a oposição (arts. 25, 30 e 35, nº 1, do CIRE);
- as testemunhas estão limitadas a dez - arts. 25º, nº 2, do CIRE e 789 do CPC)

Por outra via, do facto da lei (art. 35º) não prever a produção de prova antes do julgamento, contrariamente ao que ocorre na oposição por embargos (art. 41º, nº 4) não significa que a mesma não seja admissível, mas tão só que apenas é produzida no decurso do julgamento, o que se compreende, pois que pode tomar-se desnecessária como acontece nos casos em que o requerente, o devedor ou os seus representantes não comparecem a julgamento (art. 35º, nºs 2 e 3).

Ademais, mesmo nos casos dos procedimentos cautelares, igualmente de natureza urgente, as partes podem valer-se de todos os meios de prova, as quais são admissíveis em abstracto, sem prejuízo da possibilidade do juiz de recusar determinadas diligências, se as reputar dispensáveis (art. 386, nº 1 do CPC).

Por outro lado, a inadmissibilidade legal de produção de prova pericial nos processos de insolvência constituiria uma limitação intolerável do princípio constitucional da proporcionalidade e dos direitos de defesa e de acção. Seria colocar num patamar excessivamente elevado o valor da celeridade processual em detrimento dos valores do acesso aos tribunais e de defesa/protecção dos direitos dos cidadãos.»

No acórdão da mesma Relação de 16.6.2016, Conceição Ferreira, 436/14, discorreu-se sobre a questão nestes termos:
«Não se poderá aceitar que, por o processo revestir caracter de urgência, que as partes não possam dispor dos meios ao seu alcance e permitidos pela lei para provar a sua solvabilidade.
O direito à prova é um dos componentes do direito de acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos que está constitucionalmente consagrado – artº 20º da CRP. Este direito faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerem mais adequado tanto para a prova dos factos principais da causa, como também para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios.
E a utilização dos meios de prova não se destina apenas à prova dos factos que a parte tem o ónus de provar, como também para pôr em causa os factos que são desfavoráveis às suas pretensões que em princípio não terão o ónus de provar.

O exposto não significa que todas as diligências requeridas devam ser deferidas. Apenas o deverão ser desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório.
Cumpre referir antes de mais que é louvável a preocupação pela celeridade processual que é um valor importante a implementar, contudo, essa celeridade não pode ser obtida com atropelo de outros valores igualmente importantes ou até superiores como a justiça e a verdade material, pois o Tribunal não pode ficar com

dúvidas ao decidir.

O juiz não deve, como princípio, a não ser que o requerido seja ilegal e ofensivo das normas processuais ou manifestamente infundado, impertinente ou dilatório, rejeitar um meio de prova que a parte repute de indispensável para provar a sua solvabilidade, sob pena de cercear o direito material e impedir a obtenção de uma decisão judicial que aprecie o mérito da pretensão deduzida e a verdade material.


É evidente que se deve privilegiar o andamento célere do processo, e impedir, por questões de economia processual, as diligências e atos inúteis. Mas tais princípios não devem colidir com o princípio supremo da busca e descoberta da verdade material e da justa composição do litígio assim consignado no artº 6º e 411º do CPC.»
Na doutrina, Carvalho Fernandes, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., 2015, p. 237, afirma que «Tal qual sucede com o requerente, o devedor oponente deve, com o articulado de oposição, oferecer os meios de prova de que disponha, seja qual for a sua natureza.»
Afigura-se-nos que o enfoque destes arestos está correto e deve prevalecer. Com efeito, o objetivo de incutir celeridade ao processo de insolvência não pode ser absolutizado de forma a colidir, de forma irreversível, com o direito à prova por parte do requerido.
No preâmbulo do Decreto-lei nº 53/2004, de 18.3, o legislador afirmou expressamente que «O fomento da celeridade do processo de insolvência constitui um dos objetivos do presente diploma, introduzindo-se com essa finalidade inúmeros mecanismos, que se indicam sumariamente de seguida.» Nos pontos 13 a 17 são enumerados tais mecanismos, não se contando entre os mesmos a restrição dos meios de prova por parte do requerido. E, como sabemos, em sede de oposição, pode o devedor alegar que não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas ou, sendo esse o caso, que o seu passivo não é manifestamente superior ao ativo – cf. Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016, p. 111.
A celeridade processual tem de ser analisada à luz do conceito de prazo razoável da decisão vertido no Artigo 20º, nº4, da Constituição e no Artigo 6º, nº1, da CEDH. Segundo o TEDH, a razoabilidade do prazo deve ser apreciada em concreto em função de quatro critérios: a complexidade da causa; o comportamento da parte requerente; o comportamento das autoridades competentes e a especial importância do litígio para o requerente. No que tange a este último critério, pretende-se tutelar interesses objetivos tidos por importantes tais como bens jurídicos de personalidade, situações de urgência pura (v.g. esperança de vida curta) e considerável valor financeiro envolvido e conexo perigo de dano elevado. Segundo Rui Pinto, A Questão de Mérito na Tutela Cautelar, Coimbra Editora, 2009, p. 112, todas estas situações são reconduzíveis a «um critério objetivo e geral de urgência em que é determinantes a eminência de inutilidade total ou parcial pelo decurso do tempo processual dada a natureza dos bens jurídicos em litígio ou as circunstâncias especiais de facto ou de direito.»
No caso em apreço, apesar do valor elevado do crédito invocado pela requerente da insolvência, o mesmo está garantido por hipoteca sobre imóveis pelo que a urgência na conclusão do processo de insolvência fica relativizada.
O direito à prova está constitucionalmente consagrado no Artigo 20º da Constituição, como princípio geral do acesso ao direito e aos tribunais, que a todos é assegurado para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. O direito à prova pode genericamente definir-se como o “ direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspetos (…): o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exatidão ou inexatidão desses factos, através de qualquer meio de prova (o que implica, segundo o autor, a proibição de um elenco taxativo de meios de prova); o direito de participação na produção das provas.”[3] A propósito deste direito, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.6.2012 afirmou-se que: ” Este direito faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como também para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios. E a utilização dos meios de prova não se destina apenas à prova dos factos que a parte tem o ónus de provar, como também para pôr em causa os factos que são desfavoráveis às suas pretensões que em princípio não terão o ónus de provar.”[4]
Picó I Junoy define o direito à prova como o direito que assiste ao litigante em utilizar os meios probatórios necessários para formar a convicção do órgão jurisdicional sobre o que está em discussão no processo. O direito à prova tem como corolários: (i) o direito a que seja admitida a prova proposta pela parte, desde que seja lícita e respeite os condicionalismos legais de proposição da prova; (ii) que o meio de prova admitido seja praticado, admitindo-se a intervenção de uma parte na produção da prova pela contraparte e (iii) que o meio de prova admitido e praticado seja valorado pelo órgão jurisdicional.[5]
O direito à prova é um direito subjetivo processual cuja função é a de favorecer a realização dos direitos subjetivos substantivos.[6]E a restrição incomportável da faculdade de apresentação de prova em juízo pode impossibilitar a parte de fazer valer o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.[7] As garantias constitucionais do acesso ao direito e ao processo equitativo seriam meramente formais se não fosse facultada às partes a possibilidade de apresentar os meios de prova relevantes e pertinentes (desde que obtidos de forma lícita) para lograr provar os factos alegados e cuja prova lhe incumbe. Deste modo, o reconhecimento constitucional do direito à prova exige uma leitura flexível ou ampla das normas legais tendente a favorecer a máxima atividade probatória.[8]Tratando-se de um direito fundamental constitucionalizado, a sua interpretação deve ser ampla e flexível tendo em vista favorecer a sua máxima vigência.[9]
O direito à prova tem vindo a ser objeto de várias decisões do Tribunal Constitucional sobretudo a propósito de legislação fiscal que restringe a admissibilidade da prova testemunhal em certas situações. Reportamo-nos sobretudo ao Acórdão nº 157/2008, que fez uma recensão dos casos até então decididos, e aos Acórdãos nº 22/2013 e nº 187/2001, sendo deste último os parágrafos que extratamos:
«O direito à tutela judicial efetiva, como vincam Gomes Canotilho e Vital Moreira (…) ‘sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á, sobretudo, quando a não observância … de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar [e, acrescentar-se-á agora, de provar], daí resultando prejuízos efetivos para os seus interesses.

Também Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 190) referem que, muito embora disponha o legislador de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, não sendo incompatível com a tutela jurisdicional a imposição de determinados ónus processuais às ‘partes’, o que é certo é que o direito ao processo inculca que ‘os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva’.
Neste circunstancialismo, e perante situações em que, face ao normativamente consagrado, a demonstração dos factos – que, no entendimento da ‘parte’, conduzam à defesa do seu direito ou interesse legalmente protegido – não é possível, de todo, deixar de fazer-se através de prova testemunhal, desde que, repete-se, essa seja, nos termos gerais legalmente admissível, claramente que vai ficar afetada aquela defesa, porventura tornando inviável ou inexequível o direito de acesso aos tribunais.»
Flui deste excurso, com as devidas adaptações, que não deve ser preterido sem mais ao requerido, em processo de insolvência, o direito de requerer a realização de prova pericial porquanto tal decisão pode integrar uma restrição, inadmissível e desproporcional, ao seu direito à prova. Note-se que, no caso em apreço, sendo o património da requerida integrado por imóveis que estão hipotecados, a avaliação do respetivo valor atualizado implica a intervenção de perito, relevando o valor do ativo da requerida no juízo a formular sobre a necessidade e pertinência da decretação da sua insolvência. Em suma, a realização da perícia é pertinente, não assumindo caráter dilatório.

Termos em que o recurso deve proceder.

DECISÃO:
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho proferido em 6.7.2017 que indeferiu a realização da perícia, o qual deve ser substituído por outro despacho que ordene a realização da requerida perícia.
Custas pela apelada (art. 527º, nº2, do Código de Processo Civil).



Lisboa, 19.9.2017


                                  
(Luís Filipe Sousa)                                  
(Carla Câmara)                                  
(Higina Castelo)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3]Citação do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.7.2010, Carvalho Martins, 102/10.
[4]Sendo relatora Purificação Carvalho, 1336/09.
[5]El Derecho a la Prueba en el Proceso Civil, J. M. Bosch Editor, SA, Barcelona, 1996, pp. 18-25.
[6]Aurélie Bergeaud, Le Droit à la Preuve, LGDJ, Paris, 2010, p. 134.
[7]Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2009, Hélder Roque, 159/07.
[8]Joan Picó i Junoy, El Interrogatorio de Testigos, Bosch, Barcelona, 2008, p. 181.
[9]Rivera Morales, La Prueba: Un Análisis Racional y Práctico,
Marcial Pons, Madrid, 2011, p. 159.