Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10087/16.9T8LRS-B.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ARRENDAMENTO
TÍTULO EXECUTIVO
FIADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Não revestindo por si, o contrato de arrendamento, enquanto mero documento particular, a qualidade de título executivo, esta qualidade foi-lhe atribuída expressamente pelo artº 703 nº1 d) do C.P.C., sendo este título de natureza complexa, composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e fiador) dos montantes em dívida.
Do teor do artº 14-A do NRAU não se retira que o contrato de arrendamento acompanhado da respectiva comunicação não constitua título executivo contra o fiador, mas antes a intenção de “obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza quanto ao montante peticionado, tendo em conta a potencial vocação duradoura do contrato”.
A responsabilidade do fiador, salvo estipulação em contrário (artº 631, nº 1 do C.C.), molda-se pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado: não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (artº 798 do C.C.) ou a pena convencional que porventura se haja estabelecido (artigo 810 do C.C.).
Estando ambos vinculados pelo contrato de arrendamento e constando efectuada a comunicação ao fiador nos mesmos termos que a efectuada ao arrendatário, nenhuma razão existe para excluir o fiador deste título executivo.
O artº 14-A do NRAU abrange quer as rendas vencidas quer as rendas vincendas e a indemnização devida pela mora na entrega do locado, contendo a comunicação remetida todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia liquidação, a qual se resume a uma operação aritmética.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


           
Em 09/09/2016, a recorrente instaurou requerimento executivo contra os recorridos E... e P..., indicando como espécie execução sumária, o valor de € 5.844,15 e os seguintes factos:
“Em 2 de Agosto de 2016 o ora exequente intentou o procedimento extrajudicial pré-executivo, ao qual foi atribuído o nº 25179/16.6YLPEP, contra a ora executada - art. 5º da Lei nº 32/2014 de 30/5 - nos termos e com os fundamentos seguintes:

1. O requerente é o legítimo proprietário do seguinte imóvel: Prédio Urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Praceta dos N..., Lote ..., R/C ..., da freguesia de ... e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ....
2. O requerente e os requeridos celebraram o contrato de arrendamento habitacional cujo objecto foi o imóvel identificado no número anterior, em 1 de Abril de 2013 - cfr. doc. 1 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais e a seguir designado “contrato”.
3. O contrato foi celebrado pelo prazo de cinco anos (Cl.ª 2.ª n.º 1), com início em 1 de Abril de 2013.
4. No contrato foi convencionado domicílio convencional dos arrendatários (cfr. clª 9ª e artº 9.º n.º 7 al.ª c) da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro na redação da Lei 31/2012, de 14/8, adiante designado NRAU) - cfr. doc. 1. 
5. A renda mensal acordada no contrato, que se vencia no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeita (Cl.ª 4.ª n.º 1), foi de 325,00 Euros (trezentos e vinte e cinco euros).
6. Os requeridos não pagaram as rendas referente aos seguintes meses (vencidas no primeiro dia do mês anterior): Outubro e Novembro de 2013 e Janeiro, Fevereiro, Março, Maio, Julho e Outubro de 2014, no valor total de 2.600,00 Euros (dois mil e seiscentos euros).
7. O requerente procedeu à resolução do contrato de arrendamento, com fundamento no não pagamento das rendas referidas, mediante comunicação registada e enviada com A/R para a morada do locado (cfr. arts. 1083.º n.º 3 do Código Civil; artº 9.º n.º 7 al.ª c) do NRAU), resolução que produziu os seus efeitos em 30 de Setembro de 2014 - cfr. que ora se juntam como doc. 2 e se dá/dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
8. Das comunicações juntas como doc. 2 consta ainda que, não sendo efectuado o pagamento das rendas em dívida e a entrega efetiva do locado, os requeridos são ainda responsáveis pelos valores vincendos referentes à indemnização do art.º 1045.º n.º 2 do Código Civil.
9. O requerente não recusou o recebimento ou repeliu o recebimento de quaisquer valores, tendo os requeridos, após a carta de resolução supra-mencionada, pago ao requerente apenas o valor total de 1.137,50 Euros (mil cento e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos).
10. Os requeridos procederam à entrega do locado ao requerente em 13 de Maio de 2015.
11. No contrato, os requeridos fiadores renunciaram ao benefício da excussão prévia e obrigam-se a proceder ao pagamento ao requerente de "quaisquer importâncias que sejam devidas pela celebração, execução ou cessação do presente contrato, suas renovações e aditamento, incluindo indemnizações por não cumprimento" (clª 8º do contrato).
12. Os requeridos fiadores são responsáveis pelo pagamento dos valores em dívida nos mesmos termos dos requeridos arrendatários, tendo também sido interpelados pelo requerente por comunicação com o conteúdo supra-mencionado, incluindo quanto à indemnização prevista no art.º 1045.º n.º 2 do Código Civil - cfr. doc. 3 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - cfr. neste sentido, por todos Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/10/2015, Proc. 4156-13.4TBALM-B.L1-8, in www.dgsi.pt.
13. Conforme disposto no art.º 14.º-A do NRAU, "o contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário no montante em dívida, é título executivo para o pagamento de quantia certa correspondente às rendas e aos encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário".
14. Na presente data, os requeridos devem ao requerente as seguintes quantias: (i) rendas vencidas e não pagas no valor de 1.543,75 Euros (€ 325,00 x 4,75 meses) (ii) indemnização do art.º 1045.º/2 do C.C. no valor de 4.180,80 Euros ((€ 325,00 x 6 meses) + (€/dia 10,80 x 13 dias)) x 2 Num total de 5.724,55 Euros (cinco mil setecentos e vinte e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos).
15. Mais se requer que sejam também pagas pelos requeridos ao requerente as quantias vincendas desde a data do envio do procedimento e até entrega efetiva do locado, a título de indemnização, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 1045.º do C.C.
NESTES TERMOS, Requer-se a V. Exas que o presente procedimento prossiga contra os requeridos em virtude de os mesmos serem devedores das quantias supra mencionadas.
Ora, sucede que se pretende convolar o procedimento extrajudicial pré-executivo relativamente à executada nos presentes autos, por ser hoje devedora ao exequente da quantia de 5.724,55 Euros (cinco mil setecentos e vinte e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos).
Acrescida do montante pago a título de honorários do Agente de Execução designado no valor de 81,35 Euros (oitenta e um euros e trinta e cinco cêntimos), bem como, da taxa de justiça para entrada da presente execução no valor de 38,25 Euros (trinta e oito euros e vinte e cinco cêntimos) e dos honorários devidos ao Agente de Execução nomeado para tramitar a presente execução.
O que perfaz um montante global, até à presente data, de 5.844,15 Euros (cinco mil oitocentos e quarenta e quatro euros e quinze cêntimos).
Ao valor em dívida no montante de 5.724,55 Euros (cinco mil setecentos e vinte e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescem os honorários da Agente de Execução designada para elaboração do Pepex no valor de 81,35 Euros (oitenta e um euros e trinta e cinco cêntimos) e a taxa de justiça para dar entrada da presente execução no valor de 38,25 (trinta e oito euros e vinte e cinco cêntimos).”
Com o requerimento executivo juntou o exequente, contrato de arrendamento e cópia das cartas de interpelação ao arrendatário e ao fiador, datadas de 17/09/2014.

Com data de 21/11/2016, o tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão:

“S... S.A., identificado nos autos, instaurou acção executiva contra E... e P..., também identificados nos autos, para deles haverem o pagamento da quantia de 5 844,15 euros, consignando no requerimento executivo  reportar-se esse valor a rendas em dívida no valor de 1 543,75 euros , e a 4 180,80 euros a título de indemnização nos termos do artigo 1045º do C. Civil.
Para tanto deu à execução o contrato de arrendamento celebrado com o executado E..., no qual o executado Paulo se constituiu fiador, e a carta registada com aviso de recepção interpelando-os para procederem ao pagamento de 2 600,00 euros de rendas em dívida, apenas se encontrando assinado o A/R relativo ao executado E...
Mais consignou que após o envio da carta foi paga a quantia de 1 137,50 referentes a essas rendas.
Dispõe o artigo 14 º A, do NRAU, que o contrato de arrendamento é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos e às despesas que contam por conta do arrendatário  quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida. 
Deste modo em face do título dado à execução  - que integra o contrato de arrendamento e a notificação interpelando o arrendatário e o fiador para proceder ao pagamento de 2 600,00 euros de rendas em dívida – o Exequente apenas pode reclamar do executado E... a quantia de 1 462,75  euros (correspondente à diferença entre o valor reclamado na carta e o valor pago referente a essas rendas), nada podendo reclamar do executado P...
Na verdade os Exequentes não possuem título executivo quanto ao executado P..., fiador do arrendatário.
Na verdade, “o preceito apenas admite que a comunicação seja realizada ao arrendatário” e por isso “ o título executivo apenas se pode formar contra o próprio arrendatário, o que significa que o mesmo não se estende ao fiador que seja responsável pelo pagamento das rendas em dívida “ (in Leis do Arrendamento Anotadas, coordenação Menezes Cordeiro, 2014 ,pág. 406 )
Assim impõe-se a rejeição parcial do requerimento executivo quanto ao executado P... por ser manifesta a falta de título executivo quanto àquele – artigo  726º ,n.º 2 al. a) , b), e n.º 3, do C.P.C. . 
Por outro lado, e no que respeita ao executado E.., apenas as rendas no montante de 600,00 euros, que foram comprovadamente comunicadas ao arrendatário, estão cobertas pelo título executivo e podem fundar acção executiva, não possuindo título executivo quanto ao remanescente, sem prejuízo de se proceder ao abatimento do valor que o exequente veio consignar já ter sido pago.
Assim impõe-se a rejeição parcial do requerimento executivo quanto ao pedido de condenação no valor excedente aos 1 462,50 euros, por ser manifesta a falta de título executivo quanto àquela quantia – artigo 726º ,n.º 2 al. a) e n.º 3 , do C.P.C. . 
Pelo exposto rejeito parcialmente o requerimento executivo, por manifesta falta de título, quanto ao executado P..., e rejeito parcialmente o requerimento executivo relativamente ao executado E..., por manifesta falta de título, quanto ao pedido de pagamento da quantia de 4 381,65 euros, e respectivos juros.
Custas pelo exequente na proporção de 4/5.
Notifique e registe .D.N.”

Não se conformando com a decisão, dela apelou a exequente, ora recorrente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“III – Conclusões
1. O Exequente intentou requerimento executivo contra os Executados, na sequência de um procedimento extrajudicial pré-executivo, com vista à cobrança coerciva do valor total de 5.844,15 Euros (cinco mil oitocentos e quarenta e quatro euros e quinze cêntimos). 
2. Valor que corresponde a rendas vencidas e não pagas no valor de 1.543,75 Euros (€ 325,00 x 4,75 meses); à indemnização do art. º 1045.º/2 do C.C no valor de 4.180,80 Euros ((€ 325,00 x 6 meses) + (€/dia 10,80 x 13 dias)) x 2. Acrescidos das custas processuais. 
3. Na sequência do contrato de arrendamento habitacional celebrado em 1 de Abril de 2013, o Exequente procedeu à resolução do contrato de arrendamento, com fundamento no não pagamento das rendas, mediante comunicação registada e enviada com A/R para a morada do locado em 17/09/2014 e recebida pelo Executado arrendatário, E..., a 19/09/2014.
4. O Executado arrendatário procedeu apenas ao pagamento de três rendas e meia no valor de 1.137,50 Euros (mil cento e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos), ficando por liquidar quatro rendas e meia no valor de 1.462,50 Euros (mil quatrocentos e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos), acrescidas da mora respeitante a 50% pelo atraso no seu pagamento, nos termos do disposto pelo artigo 1041º nº 1 do Código Civil. 
5. Não tendo o Executado arrendatário liquidado a totalidade das rendas em falta, bem assim da mora respeitante a 50% pelo atraso no seu pagamento, no período mediado entre 19.09.2014 (data de receção do AR) e 19.10.2014, não se encontra verificada a situação prevista no n. º 3 do artigo 1084.º do C.C, e em consequência a resolução produziu retroativamente os seus efeitos a 19.09.2014. 
6. O contrato cessou todos os seus efeitos nessa data, momento em que o Executado arrendatário deveria ter procedido à entrega do locado. 
7. Foi na sequência da recusa em proceder à entrega do mesmo, que o Exequente foi obrigado a lançar mão do competente procedimento especial de despejo, ao qual foi atribuído o número de procedimento 641/15.1YLPRT.
8. O despejo foi efetuado a 13 de Maio de 2015.
9. Portanto, além das rendas vencidas e não pagas à data da resolução do contrato de arrendamento o Exequente peticionou ainda que lhe fossem pagas pelos Executados as quantias vincendas desde a data da resolução e até entrega efetiva do locado, a título de indemnização, nos termos do disposto no n. º 2 do art. º 1045.º do C.C.
10. O Tribunal a quo entendeu que o valor da indemnização não deveria proceder, pelo que rejeitou parcialmente o requerimento executivo quanto ao pedido de pagamento da quantia indemnizatória e respetivos juros. 
11. O que o Exequente não pode aceitar, salvo o devido respeito pelo entendimento perfilhado, uma vez que a exequibilidade do título é extensiva às rendas que se vencerem entre a comunicação efetuada às partes e a efetiva entrega do locado. 
12. Na referida interpelação que constitui título executivo, pode ler-se que, não sendo entregue o locado na sua data de cessação, será peticionado, “o valor referente à indemnização correspondente ao valor da renda, elevada ao dobro em caso de mora, desde o momento em que o contrato cessou e até efetiva entrega do locado (cfr. Art.º 1045.º, n. ºs 1 e 2 do C.C.). Ora,  
13. O valor em causa é apurado com base num simples cálculo aritmético.    
14. Nos termos do disposto pelo artigo 14.º – A do NRAU existe, de facto, título executivo contra o Executado fiador P...
15. Atendendo ao regime substantivo da própria fiança e ao que dela está implícito, a posição do fiador no contrato é a de garante da obrigação principal com o seu património pessoal, por um lado e, por outro lado, também das consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor principal.  
16. No contrato, o fiador renunciou ao benefício da excussão prévia e obrigou-se a proceder ao pagamento ao senhorio de "quaisquer importâncias que sejam devidas pela celebração, execução ou cessação do presente contrato, suas renovações e aditamento, incluindo indemnizações por não cumprimento" (clª 8º do contrato).”.
17. O fiador é responsável pelo pagamento dos valores em dívida nos mesmos termos dos arrendatários, tendo também sido interpelado pelo senhorio por comunicação enviada a 17.09.2014, incluindo quanto à indemnização prevista no art. º 1045.º n. º 2 do C.C. (neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/10/2015, Proc. 4156-13.4TBALM-B.L18, in www.dgsi.pt.).
18. O contrato de arrendamento, enquanto documento particular que importa a constituição de obrigações pecuniárias, por si só, já seria título executivo, em termos gerais, logo contras todas as partes nele obrigadas, quer arrendatários, quer fiadores. 
19. A norma do NRAU apenas restringe a sua exequibilidade instrínseca ao exigir a apresentação do comprovativo de notificação ao arrendatário junto com o contrato de arrendamento. 
20. O fiador é, desta forma, diretamente responsável pelas consequências patrimoniais associadas ao incumprimento pelo arrendatário, portanto não se vislumbra qualquer motivo suficientemente forte e relevante para não ser abrangido pela previsão da norma do artigo 14.º - A do NRAU.
Nestes termos,
Devem V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar a douta sentença recorrida, fazendo-se assim a ACOSTUMADA JUSTIÇA!”

Foram dispensados os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores-Adjuntos.

Cumpre decidir.

QUESTÕES A DECIDIR.
Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Tendo este preceito em mente, a questão a decidir prende-se com:
a) a interpretação do artº 14-A do NRAU, nomeadamente se o contrato de arrendamento acompanhado da carta de interpelação ao devedor constitui apenas título executivo contra o arrendatário ou também contra o fiador;
b) se neste título estão abrangidos as rendas em dívida até à restituição do locado e respectiva indemnização.

MATÉRIA DE FACTO.
A matéria relevante para decisão do presente recurso é a que consta do relatório acima elaborado.

DO DIREITO.
Alega a recorrente como fundamentos da sua dissidência face ao decidido pelo tribunal recorrido, em síntese, que:
a exequibilidade do título é extensiva às rendas que se vencerem entre a comunicação efetuada às partes e a efetiva entrega do locado;
na interpelação que constitui título executivo, pode ler-se que, não sendo entregue o locado na sua data de cessação, será peticionado, “o valor referente à indemnização correspondente ao valor da renda, elevada ao dobro em caso de mora, desde o momento em que o contrato cessou e até efetiva entrega do locado”, sendo este valor calculado de forma aritmética;
o disposto no artº 14-A do NRAU estende-se ao fiador, garante principal da obrigação;
o contrato de arrendamento já seria título executivo, enquanto documento particular contra todos os obrigados.

Decidindo      
a) Da interpretação do artº 14-A do NRAU, nomeadamente se o contrato de arrendamento acompanhado da carta de interpelação ao devedor constitui apenas título executivo contra o arrendatário ou também contra o fiador;

A decisão da presente apelação prende-se basicamente com a interpretação a conferir ao artigo 14º-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o aditamento resultante da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto (corresponde ao anterior artigo 15º, nº 2, do mesmo diploma legal.)

Refere este artigo 14-A que: “O contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.
A interpretação deste artigo não tem sido pacífica, inclinando-se a doutrina para a tese de que o fiador estaria excluído deste preceito legal, formando-se título executivo contra o próprio arrendatário (para além da citada na decisão recorrida, temos ainda as posições de Fernando Gravato de Morais, in “Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano”, pags. 77 a 81; Cadernos de Direito Privado, nº 27, pags. 57 a 63, e in “A jurisprudência no triénio posterior à entrada em vigor do NRAU”, publicado na revista “Direito e Justiça – Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, pags. 512 a 513 e Rui Pinto, in “Manual de Execução de Despejo”, a páginas 1164 a 1165).

Também na jurisprudência se tem debatido esta questão com posições no sentido da exclusão do fiador, de que são exemplos os Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Novembro de 2007 (relator José Eduardo Sapateiro); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Setembro de 2014 (relator Ezaguy Martins); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Março de 2009 (relatora Ana Resende); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Abril de 2014 (relator Aristides de Almeida), proc. nº 869/13.9YYPRT.P1todos publicados in www.dgsi.pt.

Em sentido oposto, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2014 (relator Granja da Fonseca), Proc. nº 1442/12.4TCLRS-B.L1.S1; decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Dezembro de 2008 (relator Tomé Gomes); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2013 (relatora Anabela Dias da Silva); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Junho de 2009 (relator Cândido Lemos); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Março de 2009 (relatora Catarina Arêlo Manso), acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Maio de 2011 (relator Rui Moura); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Outubro de 2009 (relator Henrique Antunes); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Junho de 2010 (relatora Fátima Galante); acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Abril de 2009 (relatora Sílvia Pires); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Maio de 2010 (Rodrigues Pires); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Maio de 2009 (relator Guerra Banha); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Outubro de 2011 (relatora Cecília Agante), proc. nº 8436/09.5TBVNG-A.P1, acórdão de 07/07/2016, relatora Maria do Rosário Morgado, Proc. nº 13257/15.3T8LSB-A.L1-7acórdão de 07/06/2016, relator Luís Espírito Santo, proc. nº 5356/12.0TBVFX-B.L1-7, acórdão da Relação de Lisboa de 10/11/16, relator Vaz Gomes, proc. nº 4633/08.9YYLSB-B.L1-2, todos publicados in www.dgsi.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de Março de 2013 (relator Bernardo Domingos), publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVIII, Tomo II, pags. 251 a 254; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Março de 2012 (relator Ilídio Sacarrão Martins) – sumário – publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVII, Tomo II, página 301; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Outubro de 2015 (relator Rui da Ponte Gomes); acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Maio de 2012 (relatora Maria da Purificação Carvalho), ambos publicitados in www.jusnet.pt.

Sendo questão controversa quer na doutrina, quer na jurisprudência, conforme acima referido, a nosso ver, do teor do artº 14-A do NRAU não se retira que o contrato de arrendamento acompanhado da respectiva comunicação não constitua título executivo também contra o fiador.

Não revestindo por si, o contrato de arrendamento, enquanto mero documento particular, a qualidade de título executivo, esta qualidade foi-lhe atribuída expressamente pelo artº 703 nº1 d) do C.P.C., sendo este um título de natureza complexa, composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e fiador) dos montantes em dívida.

Com efeito, existindo fiadores, estes também poderão ser demandados, desde que tenham sido notificados pelo senhorio do montante em dívida. (neste sentido vidé ainda Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A acção executiva Anotada e Comentada, págs. 147)

Não se pode extrair da menção efectuada neste preceito à exigência de comunicação ao arrendatário dos montantes em dívida, como uma exclusão da sua extensão ao fiador, mas antes a de “obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza quanto ao montante peticionado, tendo em conta a potencial vocação duradoura do contrato” (Decisão singular desta Relação, proferida em 12.12.2008, Relator Manuel Tomé Soares Gomes, www.dgsi.pt)
Assim sendo, neste contrato/título constam como obrigados/executados os nele contraentes devedores, ambos responsáveis pelo pagamento das rendas devidas ao credor senhorio.

Nem na letra do preceito nem nas razões para a criação deste título executivo, se vê qualquer motivo para afastar o fiador do seu âmbito, de acordo aliás com o disposto nos artºs 627, 631 e 634 do C.C. que consagra a responsabilidade do fiador de assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respectivo credor.

Com efeito, os traços básicos do regime jurídico deste instituto exprimemse sinteticamente por duas características: a acessoriedade e a subsidariedade.

O artigo 627º, nº 2, do C.C. estabelece esta acessoriedade ao declarar que “A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”. Essa acessoriedade projectase em várias disposições dos artigos seguintes. Assim, quanto à forma, o artigo 628 preceitua que a vontade de prestar fiança deve ser declarada pela forma exigida para a obrigação principal; quanto ao conteúdo, o artigo 631 estabelece que não pode exceder o da dívida principal, nem a fiança ser contraída em condições mais onerosas; quanto à validade, está dependente, por força do artigo 632º, da obrigação principal; quanto à extinção, o artigo 651 prescreve que se verifica pela extinção da obrigação principal.

Por outro lado, como acessória, a obrigação do fiador é uma obrigação distinta da do devedor, embora tenha o mesmo conteúdo.

A obrigação assumida pelo fiador revelase não só acessória, mas ainda, normalmente, subsidiária da dívida principal. Com efeito, na medida em que a regra se afirme, o seu cumprimento só pode ser exigido quando o devedor não cumpra nem possa cumprir a obrigação a que se encontra adstrito.

A subsidariedade da fiança concretizase no benefício da excussão que consiste no direito que pertence ao fiador de recusar o cumprimento enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal.

Há, todavia, situações em que o fiador não goza do benefício da excussão prévia dos bens do devedor, conforme resulta à saciedade do disposto no artº 640 do C.C.

Nos termos da alínea a) deste preceito legal, o fiador não pode invocar os benefícios constantes dos artigos anteriores quando houver renunciado ao benefício da excussão e, em especial se tiver assumido a obrigação de principal pagador.

Consoante se aplique ou não o regime do benefício da excussão, assim se diz em doutrina, que a fiança é simples ou solidária.

Ora, a qualificação da fiança como solidária, demonstra que a expressão "solidariedade" não é, necessariamente, utilizada para designar o seu sentido corrente  a pluralidade real de devedores.

É pela interpretação da vontade das partes, e pelos termos empregues no contrato que é possível saber se se quis ou não constituir uma fiança e os termos da mesma (cfr. Vaz Serra, Fiança e figuras análogas, nº 1; Bol.nº 71).

No caso dos autos, inferese do teor do termo de fiança inserto no contrato de arrendamento em apreço que o executado Paulo pretendeu constituir-se fiador do arrendatário, como aliás o comprova o próprio termo "fiador" utilizado no contrato. Significam os termos empregues no aludido contrato que a presente garantia tem o conteúdo e o âmbito legal de uma fiança solidária, incluindo a assunção das obrigações do afiançado, nos precisos termos constantes desta clausula 8ª.

Dado ter sido outorgada a prestação de fiança, ainda que solidária, esta, como foi atrás explicitado, deve acompanhar a obrigação principal, cujo cumprimento garante, precisando ainda a lei que “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor” (artº 634). Daqui se conclui, portanto, que a responsabilidade do fiador, salvo estipulação em contrário (artº 631, nº 1), se molda pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado: não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (artº 798) ou a pena convencional que porventura se haja estabelecido (artigo 810). Com efeito, quem garante certa obrigação como fiador, pretende, em regra, dar ao credor a segurança de que ele obterá o resultado do cumprimento dessa obrigação. Nestes termos, o fiador, se não estipulou o contrário, responde, não só pela prestação devida pelo devedor, mas também pelo equivalente pecuniário dela e pelos danos causados ao credor pelo não-cumprimento.

Constituída a fiança passam a existir duas obrigações, a do devedor (principal) e a do fiador, que é acessória da daquele – n.º 2 do art. 627º do Cód. Civil. Porém quando o fiador se obriga como fiador e principal pagador quer dizer que renuncia ao benefício da excussão e que a sua garantia acompanhará o arrendatário até ao fim do arrendamento (cfr. Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 6ª ediç., Almedina, pág. 183). Consequentemente, arrendatário e fiador respondem solidariamente pela prestação inicial, bem como pelas consequências legais e contratuais do não cumprimento, incluindo a mora.

Estando ambos vinculados pelo contrato de arrendamento e constando efectuada a comunicação ao fiador nos mesmos termos que a efectuada ao arrendatário, nenhuma razão existe para excluir o fiador deste título executivo, não se podendo considerar que é este a parte mais desprotegida, sem verdadeiro conhecimento ou controlo do cumprimento do contrato (como defendido por Fernando Gravato de Morais, in “Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano”, pags. 77 a 81).

Aliás a exigência do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida não tem em vista demonstrar a constituição da dívida exequenda, pois ela decorre do próprio contrato, nem se destina a interpelar o devedor, já que se está perante uma obrigação pecuniária de montante determinado e prazo certo (renda – cfr. art. 805.º, n.º 2, al. a) do Cód. Civil), mas destina-se a obrigar o exequente a proceder à liquidação prévia das rendas em dívida, de forma a conferir um grau de certeza quanto ao montante da dívida exequenda, face à vocação tendencialmente duradoura do contrato de arrendamento e ao carácter periódico das rendas.

Concluindo, não restringindo a norma do NRAU o título ao arrendatário, deve entender-se que também existe título contra o fiador que tenha intervindo no contrato, assim se poupando a necessidade de instauração de uma acção declarativa contra o fiador. (Ac. deste Tribunal da Relação de 27/10/16, proferido no Proc. nº 4960/10.5TCLRS.L1-6, relator Eduardo Petersen Silva; José Henrique Delgado de Carvalho, Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa, Quid Juris, pág. 263)

Volvendo à 2ª questão objecto de recurso.
c) se neste título estão abrangidos as rendas em dívida até à restituição do locado e respectiva indemnização.

Também na nossa jurisprudência, a questão da inclusão das rendas e indemnizações vincendas não tem sido pacífica, tendo sido entendido que podendo este título abranger também as rendas vincendas até à resolução do contrato e as indemnizações devidas após a resolução e até entrega do locado, para a sua fixação haverá que recorrer ao incidente de liquidação previsto no artigo 805º do CPC (actual 716º), quer esteja dependente de simples operação aritmética ou não (neste sentido vidé Ac. de 22/05/2014, proferido no proc. nº 8960/12.2 TCLRS-B.L1-6)

Tem sido igualmente entendido que o título abrange as rendas vincendas mas não a indemnização devida, reportando-se este artigo 14-A, apenas às rendas e encargos.

Ora, o título executivo deve ser preciso e conter com rigor todos os termos da obrigação, não podendo a obrigação exequenda sair do âmbito aí delimitado e estabelecendo o artigo 10 nº 5 (anterior artº 45º) do CPC, em conformidade, que “toda a execução tem por base num título, pelo qual determinam o fim e os limites da acção executiva”.

Ora, neste caso, quer o arrendatário quer o fiador, foram notificados do valor das rendas em dívida, que constam aliás especificadas no contrato, decorrendo igualmente da lei o valor da indemnização devida. A fixação concreta do valor destas rendas vincendas depende da data em que o locado for (ou foi) entregue e o valor devido pelo atraso na restituição do locado está também avisado na notificação realizada: - é o dobro da renda devida, conforme decorre do disposto no artº 1045 do C.C.

Em suma, “sendo conhecido o valor da renda, derivando da lei o prazo de entrega do locado após a declaração de resolução, e dependendo este da data concreta em que a entrega seja feita, e em caso de ultrapassar o prazo, tendo havido aviso de que seria devido o pagamento da renda em dobro, os concretos valores devidos podem, com mediana clareza, ser alcançados, compreendidos e estabelecidos, em suma podem, pelo notificado, ser liquidados por dependerem de simples cálculo aritmético a partir da data de entrega do locado.

De resto, a interpretação segundo a qual “o montante em dívida” tem de ser indicado por referência numérica expressa seria incompatível com os casos em que estivessem em curso efeitos ainda não concretamente fixados, mas fixáveis, designadamente rendas vencidas após a notificação judicial avulsa.” (mencionado Acordão desta Relação de 27/10/16; neste sentido vidé ainda o Ac. de 18/12/2014, T.R. Coimbra 182/13.1TBCTB-A.C1)

Estando a indemnização liquidada pela própria lei, e constando da comunicação que seriam peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, estão tais valores abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia e extraprocessual liquidação através da comunicação efectuada ao arrendatário.

De facto, neste caso, a liquidação resume-se a uma operação aritmética, por forma a que a iliquidez desaparece em função dos montantes já indicados pelo exequente, que acaba por formular um pedido líquido.

DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos pelo valor indicado à execução e também contra o fiador.
Sem custas pela apelante, por não ter decaído no recurso.



Lisboa 18 de Janeiro de 2018


                                  
Cristina Neves
Manuel Rodrigues
Ana Paula A.A. Carvalho

Decisão Texto Integral: