Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1015/18.8T9ALM.L1-5
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: PRONÚNCIA
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
NULIDADE DE INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Se do universo de denunciados, perante despacho do Ministério Público de arquivamento do inquérito, o assistente opta por requerer a abertura de instrução apenas quanto a parte deles, não poderá deixar de concluir-se que quanto aos demais denunciados, o arquivamento constituirá caso decidido. O despacho de arquivamento constituirá nesses casos decisão que põe termo à causa, sendo certo que o conhecimento das invalidades processuais – mesmo as que configuram nulidades insanáveis – apenas pode ter lugar enquanto durar o processo.
II- O expediente de, em sede de instrução requerida contra outros arguidos, se vir arguir a nulidade do inquérito relativamente a denunciado não incluído no RAI, não encerra qualquer potencialidade reparadora da deficiente atuação processual do assistente ao requerer a abertura da instrução.
III- A possibilidade de proceder à separação de processos é excecional, estando as hipóteses que a lei prevê enunciadas de modo taxativo no artigo 30º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – relatório
1. No Juízo de Instrução Criminal de Almada, decorreu a fase de instrução do Processo nº …ALM, requerida pela assistente HB e, após realização de debate instrutório, foi proferida em 24 de fevereiro de 2022 a seguinte decisão:
“Face a todo o exposto, ao abrigo do art.º 119.º, al. b), e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, declara-se parcialmente nulo o despacho final do Ministério Público de fls. 716 a 719, na parte em que falta a promoção do Ministério Público pelos factos e crimes supra elencados, bem como todos os actos subsequentes que dele dependiam, pelo que, sanada a invalidade nos termos supra referidos, devem prosseguir os autos os termos legais e processuais.
Notifique.”

2. Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a assistente HB, circunscrevendo-o à parte do despacho que:
i) decide quanto à improcedência da nulidade suscitada e/ou qualquer outra nulidade, quanto ao denunciado AMO;
ii) não determina as diligências instrutórias no que respeita ao crime denunciado de denúncia caluniosa p. p. pelo art.º 365º, nº 1 e nº 2 do Código Penal, relativamente ao arguido JP; e
pedindo que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a “produção da prova admitida”.
Extraiu a recorrente da sua motivação de recurso as seguintes
Conclusões:
A. O presente recurso tem por objeto a douta decisão instrutória proferida pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal em 2022.02.24, e notificado à assistente através de correio eletrónico expedido em 2022.02.25 (não tendo a decisão ficado disponível antes), que ao abrigo do disposto no art.º 119.º, al. b), e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, declara parcialmente nulo o despacho final do Ministério Público de fls.716 a 719, na parte em que falta a promoção do Ministério Público pelos factos e crimes denunciados e que elenca na sua decisão, bem como todos os actos subsequentes que dele dependiam, mas circunscrito ao duplo segmento decisório.
B. Assim, este recurso apresentado pela assistente, circunscreve-se à parte da sentença instrutória em que decide quer quanto à improcedência da nulidade suscitada e/ou qualquer outra nulidade, quanto ao denunciado AMO, quer ao não determinar as diligencias instrutórias no que respeita ao crime de denuncia caluniosa p.p. pelo art.º 365º n.1 e 2 do CP relativamente ao arguido JP.
C. A Recorrente apresentou em 2018.03.16 queixa crime contra as várias pessoas singulares, todos à data funcionários e a prestar serviço na Autoridade para as Condições de Trabalho, entre estas JP (…) pela prática dos crimes de abuso de poder sob a forma continuada, p.p. pelo art.º 382º do Código Penal, crime de denúncia caluniosa, p.p. pelo art.º 365º nº 2 do Código Penal, crime de difamação sob a forma continuada e agravado, p.p. pelo art.180º. e 184º do Código Penal e ainda pela prática do crime de ofensas corporais, p.p. pelo art.º 143º do Código Penal, peticionando, como diligências de prova a notificação à ACT para remeter aos autos "...cópia integral devidamente certificada do processo disciplinar (...)"de que foi alvo e melhor identificado, "...bem como a identificação completa de todos os funcionários denunciados e/ou participados e das testemunhas que sejam funcionários" atendendo a que neste processo é visível a conduta criminosa dos denunciados, e que não se reconduz ao mero exercício do poder disciplinar.
D. Em 2018.06.15 e a fls. 93 e seguintes dos autos de inquérito, a Recorrente juntou aos autos um acervo de documentos probatórios, no seu entender, adequados a sustentar a factualidade vertida na queixa, indicando, sempre que possível, os documentos por referência à enumeração dos factos como os alinhou (e-mails trocados com as técnicas dos processos de contraordenação laborais (COL) do CLPS da ACT, participação disciplinar contra si efetuada em 2017.05.04 pelo arguido JP, e o auto de declarações deste e de várias das participadas, Fotografia da instalação de programa informático nos computadores do Centro Local da Península de Setúbal da Autoridade para as Condições do Trabalho).
E. Em 2018.11.30 a Recorrente carreou para o inquérito, não só ampliação e concretização da factualidade cuja autoria imputava diretamente também ao denunciado AMO, mas também elementos probatórios emitidos pela própria ACT como seja o relatório final do processo disciplinar que lhe fora instaurado e a indicação das concretas provas que no seu entender, sustentavam a queixa e aditamento que havia oportunamente apresentado (fls. 381 a 412 dos autos).
F. Após o regresso ao trabalho no CPLS da ACT, onde exercia com a categoria de inspetora de trabalho, em resultado da decisão da Junta Médica da ADSE e após baixa prolongada decorrente de acidente de trabalho, a Recorrente encontrou no seu posto de trabalho, várias caixas de cartão contendo os processos inspetivos que alegadamente havia feito desaparecer, e factualidade que foi enquadrada e sancionada como ilícito disciplinar por determinação do arguido JP.
G. Acontecimento que determinou que em 2019.05.31 a Recorrente tivesse informado o inquérito crime juntando prova documental e requerendo ainda a inquirição da testemunha PATC, seu colega de gabinete, indicando sobre que matéria deveria incidir a sua inquirição - estes novos factos confirmativos da factualidade integrante dos crimes denunciados (de fls. 681 e seguintes dos autos) e que davam inquestionavelmente corpo ao crime de denuncia caluniosa, bem como requereu tomada de declarações a si própria — o que até à data não ocorreu, tendo junto um documento que consubstanciava a listagem elaborada e rubricada pelo arguido JP enumerando os processos que deixou no posto de trabalho da Recorrente no dia 2018.12.11 — os quais foram objeto da nota de culpa e acusados à Recorrente por os ter feito desaparecer - 39 processos de inspeção que estavam ao seu cuidado e pese embora interpelada para o efeito, não os entregara nem justificara a sua conduta.
H. Não só houve a participação disciplinar, mas a sua entidade patronal também participou criminalmente contra a Recorrente, por esta desde agosto de 2017 não entregar os 39 processos inspetivos que estariam ao seu cuidado, nem de ter justificado esta sua impetrada conduta, o que configurava a prática do crime de subtração de documento público p.p. pelo art.º 259º nº 1 do Código Penal e que deu origem ao processo de inquérito nº. …T9ALM distribuído á 5a secção do DIAP de Almada, e que foi objeto de arquivamento determinado 2019.12.08 por ausência de indícios suficientes da prática do crime.
I. Sendo manifesto para todos à data em que a denuncia foi apresentada contra a Recorrente, e principalmente para o arguido JP, que não era a Recorrente quem detinha os processos inspectivos, pelo que nunca os poderia ter entregue, o que o arguido bem sabia, não se abstendo de dar essa ordem (ilegítima) e de ter avançado com a denuncia crime contra a Recorrente.
J. Em 2019.09.02 foi proferido despacho de arquivamento que, em passo apressado, concluiu pela inexistência de indícios da verificação dos elementos objetivos somente do crime de denúncia caluniosa, dizendo ainda que "...foram levadas a efeito as diligências tidas corno necessárias e convenientes, nomeadamente, foi junto aos autos cópia do procedimento disciplinar movido contra a aqui denunciante que propõe a aplicação da sanção disciplinar, demissão...".
K. A tal despacho de arquivamento, reagiu a Recorrente requerendo a abertura de instrução (de fls.734 a 791) através da qual, veio requerer atos de instrução, que foram deferidos (inquirição de 4 testemunhas, notificação à ACT para juntar os 15 processos ou certidões de teor integral dos mesmos, que identifica pela respetiva numeração, e para juntar os objetivos fixados aos inspetores do CLPS no biénio de 2015/2016, para juntar o processo disciplinar ou certidão integral do mesmo e o título de provimento dos denunciados JP e de BPR;
L. E pelos motivos de facto e de direito que ali constam, no final daquele requerimento, pediu que os arguidos JP, BPR, PCF e MCA, MAN, MIC e MLA e NL, fossem pronunciados pela prática dos seguintes crimes:
- O arguido JP, pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP;
A arguida BPR, em concurso real, pela prática de um crime de prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, n.º 1, e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do CP;
 a arguida PCF, em concurso real pela prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1 e de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do CP;
 a arguida MCA, MAN, MIC, MLA e NL, pela prática, cada um, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do CP.
M. Por despacho de 2021.03.07 foi declarada aberta a instrução e admitidas as diligencias de prova requeridas.
N. Por requerimento datado de 29-04-2020 (cfr originais de fls. 836-846) a Recorrente arguiu, para o que aqui importa e em suma, o seguinte: quanto à factualidade participada que, em tese, terá a virtualidade de integrar os crimes de abuso de poder, denegação de justiça e prevaricação, de violação de domicílio, de injúrias e do crime de denúncia caluniosa (factualidade aportada no aditamento da queixa de 2019.05.31) arguiu a nulidade insanável prevista na alínea d) do art.º 119.º do Código de Processo Penal por absoluta falta de inquérito, atendendo que nenhum ato de inquérito foi praticado; Arguiu a nulidade insanável do art.º 119º, al. b), do CPP, do despacho do Ministério Público de encerramento do inquérito que procede ao arquivamento e que não se pronuncia quanto a um dos denunciados AMO, o que salvo melhor entendimento, implicará a extração de certidão para prosseguimento da investigação em separado quanto a este:
O. Por despacho datado de 26-06-2020 (cfr fls. 853) a Mma. Juiz do tribunal a quo considerou como não escrito tudo o invocado pela Recorrente no requerimento de fls. 836 e seguintes no que concerne às nulidades invocadas, estando ainda pendente recurso, que subirá a final e com eventual recurso que venha a ser interposto da decisão instrutória, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
P. Por essa razão, após ter sido declarada aberta a instrução (despacho de fls. 932) e deferida a inquirição de testemunhas e determinado que se oficiasse à ACT algumas informações/documentos, e designada data para inquirição de testemunhas e realização de debate instrutório, a Recorrente apresentou novo requerimento (cfr fls. 1118-1120) reiterando e dando como reproduzidas as arguidas nulidades do inquérito (em 29-04¬2020 a fls. 836 e segs.).
Q. Foi designada data para inquirição de testemunhas e realização de debate instrutório, contudo, as testemunhas não foram ouvidas e procedeu-se ao debate instrutório, após o que o tribunal a quo emitiu a sentença instrutória, reconhecendo que a Recorrente efetuara queixa/participação crime, contra JP, também pela factualidade integradora do crime de denúncia caluniosa,
R. Reconhecendo a Mma. Juiz de Instrução Criminal que ainda em 31-05-2019 a Recorrente efectuara um novo requerimento ao processo (cfr fls. 681-687), alegando factos e meios de prova, às queixas anteriormente apresentadas, contra o denunciado JP, relatando o facto do denunciado ter na sua posse mais de metade dos processos inspetivos que a Recorrente foi acusada (e condenada) no processo disciplinar de os possuir/subtrair à disponibilidade de ACT, e bem sabia o denunciado JP que a mesma os não detinha na sua posse.
S. Como salienta a decisão instrutória, a Recorrente voltara a referir a imputação de que o denunciado JP quisera efetuar uma participação (seja pela negligente análise e atuação na tramitação dos processo de contra-ordenação por banda da assistente e não cumprimento de prazos e de "referencial da ação inspetiva", seja pela guarda/subtração de processos inspetivos), com vista à instauração de processo disciplinar com todos os prejuízos dai decorrentes contra a Recorrente, bem sabendo que o que ali participava não tinha correspondência com a verdade/realidade.
T. No entanto, considerando o Tribunal a quo na sua decisão que o requerimento de abertura de instrução de um assistente contra um despacho de arquivamento do Ministério Publico, delimita os arguidos no processo (os arguidos que pretende ver pronunciados e serem sujeitos a julgamento) e delimita objecto do processo (quais os factos e os crimes pelos quais pretende que os arguidos sejam pronunciados e consequentemente sujeitos a julgamento), apreciou as nulidades dentro destes limites, considerando ter a sua competência delimitada pelos arguidos e objeto do processo indicados no requerimento de abertura de instrução.
U. Em consequência, toma duas decisões com as quais a Recorrente não se consegue conformar e que são objecto deste recurso:"...relativamente à queixa apresentada em 30-11-2018 contra o denunciado AMO ... que inexiste qualquer nulidade (seja sanável, seja insanável) do inquérito que importe neste momento declarar e que quanto a este existe caso julgado, e relativamente ao crime de denuncia caluniosa que a Recorrente imputa ao arguido JP, entende que "...Se a Assistente não requereu, no RAI que apresenta a pronúncia por todos os crimes pelos quais apresentou queixa ..., tem que ser entendido que se conformou com a decisão de arquivamento (expressa ou implícita) .... e fixou o objecto do processo, pelos factos e crimes sobre os quais pretende pronúncia e consequente submissão dos mesmos a julgamento".
V. É inquestionável que no requerimento de abertura de instrução a Recorrente não se reporta ao denunciado AMO, escrevendo o seu nome nem aos pedaços da vida por este protagonizados e que consubstanciam a prática de crimes, tal como o inquérito nunca se chegou a debruçar sobre este ou sobre a factualidade criminosa ao mesmo imputada, mas apresentou participação crime também contra o denunciado AMO, pelos crimes de denegação de justiça e de prevaricação.
W. Sendo atribuição do Ministério Público a direção do inquérito, que assistido pelos órgãos de polícia criminal, deverá praticar todos os atos necessários à realização das finalidades previstas no art.º 267º do Código do Processo Penal, com exceção daqueles que estão reservados ao juiz de instrução criminal (cfr. art.º 268º do Código do Processo Penal) devendo além de praticar as referidas diligências, proceder a análise critica de toda a prova produzida que o habilitasse a, fundamentadamente, proferir despacho de acusação ou de arquivamento. O que não ocorreu, tendo violado grosseiramente este seu poder-dever.
X. Ao arguir a nulidade do inquérito, já em sede de instrução, a Recorrente pediu que fosse conhecida a nulidade insanável consubstanciada na falta de qualquer diligencia de inquérito tendente a apurar a eventual responsabilidade criminal do denunciado AMO, ou que fosse ordenada extração de certidão para prosseguimento da investigação em separado quanto a este (neste sentido suportando o pedido no entendimento perfilhado pelo Ac. Tribunal da Relação do Porto de 20-06-acessível em www.dgsi.pt);
Y. Como decorre do art.º 308.º, n.º 3, do CPP, antes de proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia o juiz tem que decidir todas as questões prévias ou incidentais de que possa conhecer e nesse Saneamento preliminar, tem que apreciar os pressupostos processuais, bem como conhecer das nulidades ou eventuais questões prévias incidentais, conforme resulta do Acórdão da Tribunal da Relação de Évora, de 23-02¬2010, prolatado no processo 300/13.0TBSTC e acessível em www.dgsi.pt .
Z. O processo, mormente o inquérito não transitou em julgado — ainda que não tenha sido considerado no RAI o denunciado AMO, o processo em virtude do saneamento realizado, regressa ao Ministério Público para inquérito onde se impõe que investigue os factos e crimes denunciados também contra AMO, sob pena de nada se fazendo, nada se investigando, se formar caso julgado.
AA. Em mera tese naturalmente que aceitamos como bem refere a decisão instrutória, que "...A partir do trânsito em julgado/definitividade de uma decisão, a existência de qualquer nulidade (ainda que insanável) cessa." Mas, nunca existiu qualquer decisão contra AMO, sendo certo que quanto a este não pode haver caso julgado, pois que nada se apreciou ou julgou no inquérito e o conhecimento das invalidades processuais -  mesmo as que configuram nulidades insanáveis - pode ter lugar enquanto durar o processo, isto é, o procedimento que conduz até à decisão final não transitada em julgado.
BB. Considerando estar já transitado em julgado a factualidade denunciada quanto a AMO, quando nenhum despacho recaiu sobre a mesma, o que foi tempestivamente objecto de arguição de nulidade, ainda que no âmbito e no prazo processualmente admitido — até ao encerramento do debate instrutório, configura uma violação da lei e uma grave afronta ao direito de acesso à justiça que é, um direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias.
CC. Por força do disposto no artigo 17.º da CRP, o direito de acesso à Justiça beneficia do regime específico dos direitos, liberdades e garantias. Jorge Miranda refere-se a isso mesmo: "Quanto aos direitos de natureza análoga constantes do título I da parte I (como direito de acesso a tribunal), por eles serem incindíveis de princípios gerais com imediata projeção nos direitos, liberdades e garantias, aplicam-se-lhes todas as regras constitucionais pertinentes" em MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional Tomo IV Direitos Fundamentais. 3.aedição. Coimbra Editora 2000. Pág. 153
DD. Não se pode, como fez a Meritíssima Juiz do Tribunal de Instrução Criminal, chamar à fundamentação do despacho "...as garantias de defesa do arguido, em processo penal (art.º 32.º da CRP), permitir conhecer de uma nulidade insanável nos termos do art.º 119.º do CPP relativamente a um denunciado, no âmbito de uma instrução em que o mesmo não é arguido e consequentemente desconhece que tenha sido requerida a abertura de instrução, pois o mesmo não é arguido, logo o respetivo estatuto processual não se lhe aplica.
EE. Voltando o processo à fase de inquérito, caberá ao Ministério Público decidir livremente e de acordo com a lei, se deverá ou não constituir AMO como arguido e dar-lhe a possibilidade de ser ouvido quanto às denuncias contra si apresentadas, não devendo em sede de Instrução, e mormente no saneamento do processo que teve lugar na instrução, tomar-se essa decisão, que é ilegal, devendo assim ser revogada a decisão nesta parte.
FF. Por outro lado, não foram realizadas as diligencias instrutórias no que respeita à factualidade que integra o crime atempadamente denunciado de denúncia caluniosa p.p. pelo art.º 365º n.1 e 2 do CP relativamente ao arguido JP, devendo ter sido.
GG. A imputação factual respeitante ao crime de denúncia caluniosa, pois que verteu a Recorrente a seguinte imputação factual ao arguido JP no requerimento de abertura de instrução nos pontos dos artigos 52 a 59 que se dão por reproduzidos,
HH. Ainda de forma incipiente e porventura sumária, se comparada com a denunciada, a Recorrente alegou no requerimento de abertura de instrução, factualidade que integra o crime de denuncia caluniosa, mormente o tipificado no nº 2 do artigo 365º do CP que prevê e pune a conduta de quem, tendo consciência da falsidade da imputação, imputar falta disciplinar perante autoridade, e que deveria ter sido objeto de despacho de diligencias instrutórias, mormente de prova testemunhal e cotejada a mesma com a prova documental constante nos autos.
II. De facto, contra a Recorrente foi em 2019.02.25 apresentada participação crime com fundamento no desaparecimento dos processos que o arguido JP estava ciente de não estarem na posse da Recorrente — o que em abstrato configurava a prática do crime de subtração de documento público p.p. pelo art.º 259º nº 1 do Código Penal e que deu origem ao processo de inquérito nº. …T9ALM distribuído à …ª secção do DIAP de Almada, e que foi objeto de arquivamento bem fundamentado e determinado em 2019.12.08 por ausência de indícios suficientes da prática do crime.
JJ. No âmbito deste inquérito, foi a Recorrente constituída arguida em 2019.06.06 e nessa qualidade interrogada, tendo explicado o ocorrido e bem assim aludido à existência de prova documental donde decorre que os processos que o arguido JP, e a sua entidade patronal, lhe imputavam ter descaminhado e desaparecimento que determinou a aplicação da pena de suspensão — sem que até à data tenha sido executada, estando ainda pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, l a UO, a acção judicial administrativa de impugnação da decisão disciplinar - processo ….BEALM.
KK. Portanto, a Recorrente levou a factualidade integrante do crime em causa, requereu diligencias de prova indiciárias que foram admitidas, incluindo a sua própria inquirição e de testemunhas, bem como a análise de documentação eu havia sido diligenciada ser junta em sede instrutória, e que não veio a ser produzida, e tanto assim foi que no artigo 61 do seu requerimento de abertura de instrução se refere ao concurso real. pretendendo ao invocar a existência de concurso real, expressamente referir que o crime em causa estaria em concurso com o crime de denúncia caluniosa.
LL. Entendendo-se que a factualidade foi alinhada no requerimento instrutório, deveria nos termos do previsto no artigo 290º n.1 do Código de Processo Penal, a Meritíssima Juiz de Instrução ter, e em consequência, sanear o processo e determinado a separação quanto a este crime e quanto a este arguido em concreto, para que a instrução prosseguisse — não existindo nulidade, levando a cabo os actos de instrução que havia admitido.
MM. Ao não ter procedido como expomos, e tendo decidido, sem mais julgar improcedente qualquer nulidade do inquérito e/ou do despacho final quanto aos factos denunciados e quanto ao crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP, porquanto entendeu que "...compulsado o despacho final de inquérito, verifica-se que foi feita uma apreciação global da conduta do denunciado JP quanto à participação que fez (no seu todo) que levou à instauração do processo disciplinar à Assistente, considerando o Ministério Público que não existiam indícios suficientes de aquela conduta merecer censura penal (no que respeita ao crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP), não existiu verdadeira instrução no processo.
NN. Sendo certo que a conduta do arguido JP que foi denunciada, excedia claramente o facto de ter promovido o processo disciplinar e o inquérito crime contra a Recorrente, mormente com a segunda participação disciplinar que apresentou em 04.08.2017 por email e "em resposta" à exposição (diríamos mesmo ao atrevimento) efetuada pela Recorrente ao Inspector Geral do Trabalho em 27.07.2017, bem sabendo que esta nada fizera merecedor de censura disciplinar ou criminal,
OO. Nesta conformidade, entendemos que neste segmento decisório, há erro manifesto que inquina a decisão, havendo clara violação do direito constitucional de instrução, que havia sido legitimamente admitida, não sendo impedimento a tal pretensão, a existência e verificação de nulidades no que aos demais crimes — não prescritos, foi declarada, pelo que se impõe a sua revogação e em sua substituição, ser decidido a produção da prova admitida, e assim se repondo a JUSTIÇA.”

3. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

4. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela assistente, pugnando pela sua improcedência, o que fez nos seguintes termos:
“Nos presentes autos o assistente HB interpôs recurso do douto despacho, de fls. 1215 e seguintes, na parte em que decidiu pela improcedência da nulidade, por si suscitada, ou qualquer outra nulidade por em seu entender se verificar a mencionada nulidade — cf. motivação de fls.1253 e seguintes.
No douto despacho recorrido, a Exma. Juiz de Instrução Criminal refere e conclui que o despacho final "é (...) válido, na medida em que inexiste qualquer nulidade do mesmo quanto aos factos e crime de denúncia caluniosa que ali foi apreciado e decidido arquivar e nessa matéria é intocável".
É manifesto que o alegado pelo recorrente, nas suas alegações, não coloca minimamente em crise os fundamentos que sustentaram a decisão proferida no douto despacho recorrido para o qual por isso remetemos, aqui o dando por integralmente reproduzido.
Deve, pois ser rejeitado o recurso interposto e mantido o douto despacho recorrido.”

5. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, tendo emitido parecer no seguinte sentido:
“Vem o presente recurso interposto pela Assistente, HB, relativamente á decisão proferida pela Mmª JIC em 24/2/022 na sequência do debate instrutório realizado.
A Assistente impugna a decisão proferida na parte da decisão instrutória em que a Mmª JIC decide:
- determinar a improcedência da nulidade suscitada e/ou qualquer outra nulidade, quanto ao denunciado AMO;
- não determinar a realização de diligencias instrutórias no que respeita ao crime de denuncia caluniosa p.p. pelo art. 365º n.l e 2 do CP relativamente ao arguido JP.
O Exmº. Procurador da República em 1ª instância, pugnou pelo acerto da decisão proferida, face à sua fundamentação.
E assim, também nós, tendo em atenção a douta decisão proferida, pela sua clareza e argumentação jurídica, a ela aderimos.
E, aqui transcrevendo um excerto da mesma, acompanhamos a respectiva conclusão:
“Desta feita, entendemos que se encontra “cessada” a nulidade do inquérito e/ou do despacho final de arquivamento referentes a todos os factos e crimes imputados nas queixas, relativamente aos quais tais factos e crimes não constam do requerimento de abertura de instrução, porque fazem parte do “caso decidido”, na medida em que não configuram o objecto da presente instrução.”
“Assim, improcede as suscitadas nulidades relativamente a todos os factos/crimes denunciados pela assistente, contra os vários denunciados/arguidos, que não constam indicados no requerimento de abertura de instrução contra os especificados arguidos.”
Face ao exposto, somos de parecer que o presente recurso deve ser julgado improcedente.”.


8. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II – questões a decidir.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a decisão proferida nos autos em 24 de fevereiro de 2022 –, as questões a examinar e decidir são as seguintes:
- saber se deverá concluir-se pela improcedência da nulidade suscitada (e/ou qualquer outra nulidade) quanto ao denunciado AMO, como entendeu o Tribunal a quo ou se, pelo contrário, como pretende a recorrente, se deverá concluir pela procedência daquela arguição, uma vez que nenhum despacho recaiu sobre a matéria imputada ao denunciado AMO, tendo essa omissão sido tempestivamente objecto de arguição de nulidade;
- saber se a Sra. Juiz de Instrução Criminal deveria ter determinado a separação do processo referente ao crime de denuncia caluniosa p. p. pelo art. 365º nrs. l e 2 do Código Penal imputado ao arguido JP, bem como o prosseguimento da instrução nessa parte, por não afetada por nulidade, levando a cabo os actos de instrução que havia admitido.
*
III – Transcrição da decisão recorrida. 
Da decisão recorrida consta o seguinte:
“(…)
O Ministério Público em 11-11-2019 proferiu despacho de arquivamento relativamente aos denunciados JP, BFR, PCF, MCA, MAN, MIC e MCA e NL, nos exactos termos que constam a fls. 716-719, concluindo que inexistem indícios da verificação dos elementos do crime de denúncia caluniosa, determinando o arquivamento nos termos do disposto no art.º 277.º, n.º 2, do CPP.
*
HB, na qualidade de assistente, veio em 09-12-2019 requerer a abertura de instrução, nos termos que constam a fls. 766 a 791 pelos motivos de facto e de direito que ali constam, requerendo, no final daquele requerimento, que os arguidos JP, BFR, PCF, MCA, MAN, MIC e MCA e NL, sejam pronunciados pela prática dos seguintes crimes:
- O arguido JP, pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP;
- A arguida BFR, em concurso real, pela prática de um crime de prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, n.º 1, e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do CP
- A arguida PCF, em concurso real pela prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1 e de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do CP;
- A arguida MCA, MAN, MIC e MCA e NL, pela prática, cada um, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do CP.
Foram indicadas quatro testemunhas, juntos dois documentos e requerido um conjunto de diligências a várias Entidades.
Por requerimento de 13-01-2020 o Ilustre mandatário da assistente veio renunciar ao mandato forense (cfr. fls. 806).
Em 14-01-2020 a Assistente HB, subscrito pela própria, veio apresentar um requerimento (fls. 810 a 811) dirigido ao Juiz de Instrução onde suscita vários omissões e incorreções relativo ao despacho de arquivamento do Ministério Público e termina requerendo a devolução do processo ao Ministério Público para os devidos e legais efeitos.
Em 10-02-2020 a Assistente vem juntar nova procuração forense (cfr fls. 813/814).
Em 14-02-2020 foi proferido despacho no sentido de ser notificada a Assistente para vir esclarecer o que pretende com o requerimento de fls. 810 e informar se, face ao teor do mesmo, se mantém interesse na abertura de instrução (cfr fls. 815).
A assistente, em resposta ao solicitado, vem, por requerimento datado de 29-04-2020 (cfr originais de fls. 836-846) arguir, em suma, o seguinte:
“(…) Assim, à luz dos citados preceitos, e tendo em conta o requerido pela assistente no requerimento de abertura de instrução, e por estar em tempo (ao abrigo do disposto no n.º 3 alínea c) do art.º 120.º do Código de Processo Penal), expressamente vem:
i) Quanto à factualidade participada que, em tese, terá a virtualidade de integrar os crimes de abuso de poder, denegação de justiça e prevaricação, de violação de domicílio, de injúrias e do crime de denúncia caluniosa (factualidade aportada no aditamento da queixa de 2019.05.31) arguir a nulidade insanável prevista na alínea d) do art.º 119.º do Código de Processo Penal por absoluta falta de inquérito, atendendo que nenhum ato de inquérito foi praticado;
ii) Arguir a nulidade insanável do art.º 119º, al. b), do CPP, do despacho do Ministério Público de encerramento do inquérito que procede ao arquivamento e que não se pronuncia quanto a um dos denunciados AMO, o que salvo melhor entendimento, implicará a extração de certidão para prosseguimento da investigação em separado quanto a este (neste sentido o Ac. Tribunal da Relação do Porto de 20-06-acessível em www.dgsi.pt );
iii) Subsidiariamente, e para a eventualidade de se entender que existe mera insuficiência de inquérito face ao alegado em a) deste artigo, arguir a nulidade (sanável) decorrente da insuficiência do inquérito por não terem sido praticadas as diligências de inquérito essenciais para a descoberta da verdade, como sejam a junção do processo disciplinar - apesar de no despacho de arquivamento ser dito que foi, bem como a análise deste e dos demais elementos de prova carreados para o inquérito pela assistente bem como a tomada de declarações à assistente, e que permitiram ao Ministério Público recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação ou arquivamento quanto à factualidade denunciada;
iv) Arguir a nulidade decorrente da falta de interrogatório como arguidos, no inquérito, de todas as pessoas indicadas e determinadas na queixa e seus aditamentos, pois que sendo possível a sua notificação e havendo fundadas suspeita da prática de crime, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código do Processo Penal; Na fase de inquérito, o único acto legalmente obrigatório é o interrogatório do arguido, se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Penal, ou seja, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e desde que seja possível notificá-la, neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-12-2008, acessível em www.dgsi.pt ;
Termina o requerimento requerendo que seja mantida a instrução oportunamente requerida, por quem tinha legitimidade e arguindo-se agora nos termos expostos os vícios existentes no inquérito, incluindo no despacho que o encerra, que devem ser declarados com as devidas consequências e ordenando-se todas as diligências de instrução requeridas.”
Por despacho datado de 26-06-2020 (cfr fls. 853) considerou-se como não escrito tudo o invocado pela assistente no requerimento de fls. 836 e seguintes na parte em que excede aquilo para que havia sido notificada, designadamente, no que concerne às nulidades ali invocadas.
A Assistente, inconformada com tal despacho, em 15-09-2020 interposto recurso do mesmo despacho (cfr fls. 856-864).
O recurso, por despacho de fls. 864, foi admitido a subir de imediato, em separado e com efeito suspensivo.
Por decisão sumária datada de 13-01-2021, da 3ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 1015/18.8T9ALM-A.L1, foi alterada a sua admissão, subindo somente a final e com eventual recurso que venha a ser interposto da decisão instrutória, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Por despacho de fls. 932 foi admitido o recurso interposto pela assistente o qual subirá a final e em conjunto com eventual recurso que venha a ser interposto da decisão instrutória.
No despacho de fls. 932 foi declarada aberta a instrução, deferida a inquirição de testemunhas e determinado que se oficiasse à ACT algumas informações/documentos.
Por despacho de fls. 977, datado de 04-05-2021, foi designado data para inquirição de testemunhas e realização de debate instrutório para 14-09-2021.O qual foi reagendado para 27-10-2021.
Por requerimento datado de 26.10.2021, cfr fls. 1118-1120, a Assistente, entre outros pedidos vem “reiterar e dar como reproduzidas as arguidas nulidades do inquérito nos termos expendidos em 29-04-2020 (a fls. 836 e segs.), que aqui se dão como reproduzidas e arguidas, na eventualidade de se considerar que as mesmas podem ser arguidas até ao encerramento do debate instrutório (…)”.
Por despacho de 27-10-2021 (cfr fls. 1122 a 1126) foi declarado extinto o procedimento criminal, por prescrição, relativamente ao crime de injúria imputado, no requerimento de abertura de instrução, aos arguidos PCF, MCA, MAN, MIC e MCA e NL. Mais foi determinado o exercício do contraditório quanto às nulidades suscitadas pela Assistente e dado sem efeito as diligências de instrução e o debate instrutório.
O Ministério Público pronunciou-se a fls. 1127 no sentido de concordar com o teor do requerimento da Assistente, considerando que tal constitui uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, al. b) do CPP, requerendo que se extaria certidão de todo o processado para em inquérito autónomo apurar de todos os factos e crimes ali mencionados, assim como a respetiva autoria.
A arguida BFR pronunciou- se a fls. 1140-1142 no sentido de inexistir qualquer nulidade invocada pela Assistente.
A arguida PCF pronunciou- se a fls. 1148-1150 no sentido de inexistir qualquer nulidade insanável invocada pela Assistente.
O arguido JP pronunciou-se a fls. 1154 relativamente ao promovido pelo Digno Magistrado do Ministério Público, alegando que “o doutamente promovido teria por consequência que, em simultâneo, corresse termos a presente instrução (a qual foi requerida relativamente a toda a factualidade e a todas as incriminações constantes do requerimento de abertura de instrução) e inquérito tendo por objecto a mesma factualidade. Tal circunstância consubstanciaria manifesta situação de litispendência, absolutamente inadmissível)”.
Foi designado dada para inquirição de testemunhas e realização de debate instrutório.
Não foram ouvidas as testemunhas e procedeu-se ao debate instrutório, o qual decorreu com observância estrita das formalidades legais, conforme se alcança da acta respectiva.
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O Tribunal é o próprio.
A Assistente tem legitimidade para requerer a abertura de instrução
Importa conhecer das Nulidades suscitadas:
Compulsados os autos, conforme resulta da participação crime de fls. 1 a 29, constata-se que em 16-03-2018, HB efectuou queixa/participação crime, contra JP, BFR, PCF, MCA, MAN, MIC, MCA e NL imputando-lhes um conjunto de factualidade e os seguintes crimes:
Quanto ao denunciado JP imputava factos (art.ºs 1 a 146 dessa queixa) que considerava integradores da prática dos seguintes crimes:
crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP;
crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP;
crime de difamação – art.º 180.º e 184.º e ainda
crime de ofensa à integridade física – art.º 143.º, n.º 1
Quanto à denunciada BFR imputava factos (art.ºs 147 a 180 dessa queixa) que considerava integradores da prática do crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, do CP
Quanto à denunciada PCF imputava factos (art.ºs 181 a 229 dessa queixa) que considerava integradores da prática dos seguintes crimes:
- denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP;
- denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, do CP e/ou crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP,
- violação de domicílio, p. e p. 190.º do CP,
- ofensa corporais simples art.º 143.º,
- violação de correspondência art.º 194.º, n.ºs 1 e 3 do CP e
- injuria e difamação art.ºs 180.º e 181.º e 182.º, agravados nos termos do art.º 184.º todos do CP.
Quanto às denunciadas MCA, MAN, MIC e MCA imputava factos (art.ºs 217 a 229 dessa queixa) que considerava integradores a prática dos seguintes crimes:
- violação de correspondência art.º 194.º, n.ºs 1 e 3 do CP e
- injúria e/ou difamação art.º 180.º, 181.º e 182.º, todos do CP.
Quanto ao denunciado NL imputava factos (art.ºs 227 e 229 dessa queixa) que considerava integradores a prática de um crime de injuria ou difamação art.ºs 180º, 181.º e 182.º, agravados nos termos do art.º 184.º, todos do CP
A fls. 381-411, datado de 30-11-2018, fez juntar aos autos de inquérito um “complemento de denúncia e participação” contra AMO (em co-autoria com BFR), imputando-lhe um conjunto de factos que considera integradores da prática do crime de denegação de justiça e prevaricação p. e p. pelo art.º 369.º, do CP.
Ainda em 31-05-2019 a Assistente efetuou um novo requerimento ao processo (cfr fls. 681-687), alegando factos e meios de prova, que apelida de “novos” em relação às queixas anteriormente apresentadas, contra o denunciado JP. Em suma, é ali relatado o facto do denunciado ter na sua posse mais de metade dos processos inspectivos que a denunciante foi acusada (e condenada) no processo disciplinar de os possuir/subtrair à disponibilidade de ACT, alegando a assistente que bem sabia o denunciado JP que a mesma os não detinha na sua posse.
Cumpre referir que neste requerimento a Assistente volta a referir que o denunciado quis efectuar uma participação (seja pela negligente análise e actuação na tramitação dos processos de contra-ordenação por banda da assistente e não cumprimento de prazos e de “referencial da acção inspectiva”, seja pela guarda/”substração” de processos inspectivos), com vista a instauração do processo disciplinar com todos os prejuízos daí decorrentes contra a denunciante, bem sabendo que o que ali participava não tinha correspondência com a verdade/realidade.
Antes de entrarmos na análise e apreciação do despacho de arquivamento proferido em 11-11-2019 pela Digna Magistrada do Ministério Público e se o mesmo padece ou não de alguma nulidade, mormente nulidade insanável prevista no art.º 119.º, als. b) e/ou d) do CPP, cumpre, antes do mais, delimitar a esfera de actuação do Juiz de Instrução Criminal.
Vejamos.
Nos termos do art.º 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, e na parte que ora releva, a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação do arquivamento, pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. Preceitua o n.º 2 que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação.
Assim, de acordo com o art.º 287.º, n.º 1, al. b) do CPP “o requerimento do assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito consubstancia materialmente uma acusação que, nos mesmos termos de uma acusação formalmente deduzida, traça o objecto do processo, condiciona substancialmente os poderes de cognição do juiz, nomeadamente a liberdade de investigação, delimita a extensão do princípio do contraditório e a subsequente decisão instrutória (art.ºs 286.º, n.ºs 1 e 2, 287.º, n.º 1, al. b), 283.º, n.º 3, als. b) e c), ex vi n.º 2 do art.º 287.º, 288.º, n.ºs 1 e 4, e 307.º, n.º 1, in fine, todos do CPP).” [ac. STJ, Rel. Raúl Borges, 19-02-2020, Proc. n.º 72/18.1TRCBR.S1 - 3.ª Secção].
Ou dito de outro modo, o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente consiste numa acusação alternativa que vai, consequentemente, ser sujeita a comprovação judicial. Para além da delimitação da temática factual do objecto da fase de instrução, também é crucial para garantir o contraditório. Conforme se afirma no ac. STJ, Rel. Sénio Alves, 13-01-2021, Proc. n.º 8/19.2TRGMR.S2 - 3.ª Secção[1] “É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa. Daí que o cumprimento do estatuído nas als. b) e c) do n.º 3 do art.º 283º do CPP (ex vi do art.º 287.º, n.º 2 do mesmo diploma) tenha em vista, em última instância, a tutela dessas garantias de defesa: perante um requerimento de abertura de instrução onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, carece este de elementos suficientes em ordem a organizar a sua defesa.”
Assim, o requerimento de abertura de instrução de um assistente contra um despacho de arquivamento do Ministério Publico, delimita os arguidos no processo (os arguidos que pretende ver pronunciados e serem sujeitos a julgamento) e delimita objecto do processo (quais os factos e os crimes pelos quais pretende que os arguidos sejam pronunciados e consequentemente sujeitos a julgamento).
Desta feita, as nulidades a apreciar moldam-se dentro destes limites. Ou seja, o Juiz de instrução tem a sua competência delimitada pelos arguidos e objecto do processo indicados no requerimento de abertura de instrução.
Dito isto, importa desde já referir que relativamente à queixa apresentada em 30-11-2018 contra o denunciado AMO entendemos que inexiste qualquer nulidade (seja sanável, seja insanável) do inquérito que importe neste momento declarar.
Dispõe o art.º 119.º do CPP:
al. b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art.º 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respetiva comparência;
al. d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
A Assistente não requereu a abertura de instrução contra o denunciado AMO, ou seja, não requereu a pronúncia do mesmo pela prática de qualquer crime, não tendo reagido ao despacho de arquivamento relativamente a este denunciado, pelo que o mesmo não figura como arguido na instrução.
A partir do momento em que relativamente a este denunciado a Assistente decidiu não reagiu ao despacho de arquivamento, seja fazendo intervir o superior hierárquico do Ministério Público, através do instituto da intervenção hierárquica prevista no art. 278.º do CPP, seja, através do requerimento de abertura de instrução contra o mesmo, nos termos do art.º 287.º do CPP, ou seja a requerer ao titular do inquérito, em requerimento autónomo, no prazo supletivo dos 10 dias, a nulidade do despacho de arquivamento (por falta e/ou insuficiência de inquérito) relativamente a este denunciado, entendemos que relativamente a este denunciado se tornou caso decidido (ou seja, mutatis mutandis, considera-se transitado em julgado este despacho de arquivamento para quem era denunciado nos autos). Desta feita, face ao caso decidido, entendemos que ficou precludido o direito da assistente de arguir qualquer nulidade do inquérito e/ou do despacho de arquivamento relativamente àquele denunciado, na medida em que não reagiu ao despacho de arquivamento contra o denunciado, sendo que inexistiu requerimento de abertura de instrução contra aquele.
As nulidades insanáveis, apenas são insanáveis enquanto o processo não se encontra definitivamente decidido. A partir do trânsito em julgado/definitividade de uma decisão, a existência de qualquer nulidade (ainda que insanável) cessa.
E, no caso, entendemos que a partir do momento em que o denunciado AMO não figura como arguido na instrução, por opção da Assistente, o inquérito, em relação ao mesmo fez caso decidido e a possibilidade de conhecer a nulidade “cessou” pela definitividade, em relação àquele denunciado, do despacho final de arquivamento do processo, dada a tomada de posição da Assistente, na medida em que contra este denunciado não reagiu contra ao despacho de arquivamento, nos termos e prazos que a lei lhe concede (ou através da intervenção hierárquica do art.º 278.º ou requerendo a abertura de instrução do art.º 287.º do CPP, ou no prazo supletivo legal, dos 10 dias, a contar do despacho de arquivamento invocar a nulidade insanável por falta de promoção do MP e/ou falta de inquérito, nos termos do art.º 119.º, als. b) e d) do CPP).
Se tivesse requerido a abertura de instrução contra este denunciado AMO (e pelos crimes que contra este pretendesse a sua pronúncia), já entendemos que aquele despacho de arquivamento e as nulidades que contivesse podiam ser conhecidas e sindicadas (isto é, não fazia caso decidido), mas tal situação não aconteceu.
Cumpre referir que inclusive há jurisprudência dos Tribunais Superiores que entende que quando estamos perante uma situação de alegação de nulidade insanável por falta de inquérito e/ou falta de promoção do MP, nos termos do art.º 119.º, als. b) ou d), do CPP nem é possível requerer a abertura de instrução, mas sim apenas a intervenção hierárquica, nos termos do art.º 278.º do CPP[2], porém, não perfilhamos de tal entendimento.
Consideramos que é possível requerer a abertura de instrução arguindo a nulidade do inquérito nos termos do art.º 119.º, als. b) e/ou d), do CPP, mas apenas limitado àqueles que são arguidos, indicados no RAI, e contra o universo de factos e crimes constantes do RAI (quanto aos quais pretende a pronúncia dos arguidos).
Acresce que o denunciado AMO não foi constituído arguido, porque não houve requerimento de abertura de instrução contra o mesmo (art.º 57.º, n.º 1, do CPP)[3], pelo que uma interpretação que permitisse estender e conhecer a nulidade insanável do inquérito relativamente ao mesmo, violaria claramente o principio do contraditório e as garantias de defesa do mesmo (previstas no art.º 32.º da CRP), porque este como não é arguido não se pôde defender, e em momento algum esteve presente e teve conhecimento da instrução e do debate instrutório, mormente não pôde tomar posição sobre a alegada nulidade.
Para além do que atrás se referiu, não se afigura uma interpretação consentânea com as garantias de defesa do arguido, em processo penal (art.º 32.º da CRP), permitir conhecer de uma nulidade insanável nos termos do art.º 119.º do CPP relativamente a um denunciado, no âmbito de uma instrução em que o mesmo não é arguido e consequentemente desconhece que tenha sido requerida a abertura de instrução.
O requerimento de abertura de instrução contra um arguido não se pode estender/aproveitar a quem não é arguido. O art.º 307., n.º 4, do CPP apenas tem aplicabilidade quando aproveita aos arguidos, e não quando aproveita à Assistente.
Desta feita, o facto de a assistente ter vindo requerer a abertura de instrução em relação a uns arguidos, entendemos que em nada afecta a definitividade do despacho de arquivamento em relação àqueles denunciados para os quais não requereu a abertura de instrução.
Se entendêssemos que a instrução serviria para apreciar tudo o que foi tramitado no inquérito (quanto a factos denunciados), sem quaisquer limites de actuação do Juiz de Instrução, mormente não delimitado aos arguidos e ao objecto sobre que incide a instrução, então o requerimento de abertura de instrução não poderia ter os pressupostos que a lei exige que tenha - de acusação alternativa contra arguidos identificados em concreto e com indicação de factos e crimes imputados (art.º 287.º, n.º 2 e art.º 283.º, n.º 3, al. b) e c) ambos do CPP).
Não pode a Assistente com este procedimento - arguir nulidade insanável no decurso da instrução quanto a um denunciado, não arguido no requerimento de abertura de instrução - conseguir que o processo «volte» ao inquérito e lhe seja atribuída uma nova oportunidade de requerer a abertura de instrução, agora contra este denunciado (caso haja novo despacho de arquivamento), quando teve oportunidade de reagir contra este denunciado, em tempo, e não o fez.
Assim existindo a nulidade quando foi notificada do despacho de arquivamento e optou por não reagir quanto ao mesmo, mormente requerendo a intervenção hierárquica nos termos do art.º 278.º do CPP e/ou requerer a abertura de instrução também contra este denunciado, fazendo-o intervir como arguido na instrução e imputando-lhe factos e crimes, essa postura processual que adoptou é sibi imputet.
Deste modo, a eventual falha no instituto processual optado e ou as eventuais falhas do requerimento de abertura de instrução, não contemplando todos os arguidos/denunciados, como devia, ou não contemplando todos os factos e crimes que pretendia a pronúncia dos arguidos, não podem ser colmatadas com a declaração de nulidade insanável prevista no art.º 119.º al. b) e d), do CPP, como se a instrução não tivesse um objecto processual (que delimita o Juiz de Instrução na sua actuação) e não fosse tramitada contra arguidos.
Assim, quanto a este denunciado em que não foi requerida abertura de instrução quanto ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, entendemos que no presente momento não se impõe declarar qualquer nulidade (insanável ou sanável) do inquérito e consequentemente do despacho final de inquérito, na medida em que essa nulidade “cessou” pelo decurso do tempo, ou seja, porque, em tempo, e nos termos e nos prazos que a lei lhe concede, não houve reação da assistente relativamente ao mesmo e ficou definitivamente decidido o inquérito relativamente a este denunciado[4].
Pelo exposto, improcede a nulidade suscitada e/ou qualquer outra nulidade, quanto ao denunciado AMO.
Dado que a Assistente no seu requerimento de fls. 836-846 e repetido a fls. 1119 em que vem arguir nulidades, invoca que não foram realizadas várias diligências de prova e não foram atendidos vários documentos juntos aos autos, ao contrário do que optou, em requerer a abertura de instrução, devia ter requerido a intervenção hierárquica a que alude o art.º 278.º do CPP. Veja-se neste sentido, entre outros, o ac. STJ, Rel. Manuel Braz, 28-05-2014, Proc. n.º 13/13.2YGLSB.S1 - 5.ª Secção[5]: “O assistente ou entende que, perante os elementos de prova recolhidos no inquérito, a decisão do MP deve ser de acusação e não de arquivamento ou considera que as diligências realizadas não são suficientes. Só no primeiro caso pode requerer a abertura de instrução. Colocando-se na última posição, como no caso, o assistente só tem um caminho a seguir: o previsto no art.º 278.º, n.ºs 1 e 2, requerendo ao superior hierárquico do titular do inquérito que determine o prosseguimento das investigações.”
Se a Assistente não requereu, no RAI que apresenta a pronúncia por todos os crimes pelos quais apresentou queixa nem contra todos os denunciados, tem que ser entendido que se conformou com a decisão de arquivamento (expressa ou implícita) quanto a não submeter todos os denunciados a serem pronunciados e fixou o objecto do processo, pelos factos e crimes sobre os quais pretende pronúncia e consequente submissão dos mesmos a julgamento.
A Assistente ao fixar o objecto do processo no seu requerimento de abertura de instrução a certos arguidos e a certos factos/crimes que lhes imputa, limitou o objecto a tal e consequentemente ficou caso decidido (mutatis mutandis transitado em julgado) em relação aos outros factos/crimes que não constam do RAI e que havia denunciado. A inclusão no requerimento de abertura de instrução de certos factos e crimes imputados, faz caso decidido relativamente aos demais factos/crimes não imputados e (inicialmente denunciados), e consequentemente com esse caso decidido cessou a existência de qualquer nulidade (insanável ou sanável) no inquérito (e no despacho final de inquérito) que estivesse relacionado com esses factos e crimes (denunciados).
Desta feita, entendemos que se encontra “cessada” a nulidade do inquérito e/ou do despacho final de arquivamento referentes a todos os factos e crimes imputados nas queixas, relativamente aos quais tais factos e crimes não constam do requerimento de abertura de instrução, porque fazem parte do “caso decidido[6]”, na medida em que não configuram o objecto da presente instrução.
Assim, improcede as suscitadas nulidades relativamente a todos os factos/crimes denunciados pela Assistente, contra os vários denunciados/arguidos, que não constam indicados no requerimento de abertura de instrução contra os especificados arguidos.
Cumpre referir que relativamente ao crime de denúncia caluniosa, para além do mesmo não vir imputado no requerimento de abertura de instrução relativamente a qualquer arguido ali indicado e, nessa medida, também não integra o objecto do processo, também cumpre referir que o despacho de arquivamento de 11-11-2019 relativamente aos factos denunciados e crime imputado de denúncia caluniosa, o mesmo não padece de qualquer nulidade, na medida em que durante o inquérito foram realizados actos de inquérito (diligências de prova sobre o mesmo) e no despacho final foi emitida pronúncia/promoção seja quanto aos factos denunciados seja quanto à sua integração jurídica (p. e p. pelo art.º 365.º do CP).
Cumpre referir que entendemos que os factos constantes no requerimento da Assistente de 31-05-2019 de fls. 681-687 foram apreciados e abrangidos no despacho de arquivamento proferido em 11-11-2019, porque neste despacho foi apreciada a conduta (no seu todo) do denunciado quanto ao facto do mesmo ter apresentado participação da Assistente para instauração de processo disciplinar e nessa medida, nenhuma omissão ou insuficiência de pronúncia ocorreu por parte do Ministério Público.
Não se impõe ao Ministério Público aquando do despacho de arquivamento, fazer uma identificação exaustiva de todos os factos denunciados, ponto por ponto. Cabe ao MP no despacho final de inquérito, a apreciação da factualidade subjacente à queixa e a sua integração jurídica, considerando existir ou não existir indícios suficientes da prática do crime.
E compulsado o despacho final de inquérito, verifica-se que foi feita uma apreciação global da conduta do denunciado JP quanto à participação que fez (no seu todo) que levou à instauração do processo disciplinar à Assistente, considerando o Ministério Público que não existiam indícios suficientes de aquela conduta merecer censura penal (no que respeita ao crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP).
Assim, julgo improcedente qualquer nulidade do inquérito e/ou do despacho final quanto aos factos denunciados e quanto ao crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP.
Cumpre referir que quanto ao crime de injúria imputado aos vários arguidos, para além de inexistir qualquer nulidade do inquérito e/ou do despacho de arquivamento, na medida em que o Ministério Público emitiu pronúncia quanto a eles no despacho de arquivamento ao referir. “Sempre se dirá que quaisquer factos que as denunciantes consideram integrarem a prática pelos denunciados de crimes de Injúria Agravada, à data em que a mesma apresentou a queixa aquela se mostrava completamente extemporânea porque decorridos mais de seis meses do seu alegado cometimento.”
Acresce que também já se encontra declarado extinto o procedimento criminal, por prescrição, quanto à prática do crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do CP que vinham imputados, no RAI, aos arguidos PCF, MCA, MAN, MIC, MCA e NL, e, nessa medida, dada a extinção da responsabilidade penal quanto a estes factos, é inoperante e cessou a existência de qualquer eventual nulidade.
Assim, e tendo presente o objecto do processo nesta fase de instrução, importa verificar se existe ou não nulidade do despacho final de inquérito, por referência aos factos e crimes imputados no requerimento de abertura de instrução e os factos e crimes denunciados.
Entendemos que sim.
Senão vejamos.
No requerimento de abertura de instrução a assistente imputa ao arguido JP, em autoria material e na forma consumada, um conjunto de factos reportados ao crime de abuso de poder, p. e p. 382.º do CP.
A assistente, entre outros crimes, imputa ao denunciado JP na queixa apresentada a prática de um crime de abuso de poder na forma continuada, entre os factos 1.º a 146.º, mormente considerando que o arguido JP violou deveres inerentes às suas funções com o intuito de prejudicar a assistente, designadamente pelos inúmeros despachos exarados nos processos de Contra-Ordenação Laboral (COL) e pelos despachos de não concordância dos despachos finais proferidos pela Assistente nesses mesmos processos de COL, em violação da lei (ex. violando o estabelecido no art.º 26.º,31.º e 34.º do Dec-Lei n.º 108/2009, de 15-05 e art.º 23.º do DL n.º 503/90, de 20-11) e pelas determinações escritas enviadas por correio registado para casa da denunciante, em violação do estabelecido na lei, bem sabendo que contrariava a lei.
Dispõe o art.º 382.º do CP “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Conforme acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15-11-2017, proferido no proc n.º Proc. 77/13.9TELSB-B.L1, 3ª Secção[7] “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público tem que se aferir por relação a crimes que são subsumíveis os factos de que há noticia.”
Compulsado o despacho de arquivamento datado de 11-11-2020, verifica-se que apenas foram apreciados os factos que são imputados nas queixas referente a JP como integradores da prática do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP. E feitas diligências de prova referente a esta realidade.
Senão vejamos o que ali é expressamente referido:
“Os presentes autos iniciaram-se com a queixa apresentada pela aqui denunciante, HB, contra os denunciados, JP, BFR, PCF, MCA, MAN, MIC, MCA e NL, por factos susceptíveis de integrarem, em seu entender, a prática do Denúncia Caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP.” E termina o despacho “(…) Inexistindo indícios da verificação dos elementos objectivos do crime de denúncia caluniosa, determina-se o arquivamento dos presentes autos, nos termos do disposto no art.º 277.º, n.º 2, do CPP.”
Temos como certo que o Ministério Público apreciou a conduta do arguido JP no que se refere à sua participação contra a Assistente com vista a instauração do processo disciplinar e que ali toma posição quanto a entender que o arguido JP agiu dentro dos seus poderes de “hierarquia” e que também referiu que “qualquer atropelo à lei por parte dos superiores hierárquicos permite que o funcionário não cumpra tais ordens fundamentando essa recusa por escrito e impugnando-as em sede própria” e “que não concordar com a proposta de despacho apresentada pela denunciante referindo que está mal fundamentada é o exercício da função e de um dever do superior hierárquico”. Porém entendemos que apenas extraia estes considerandos para concluir que inexiste nesta conduta quaisquer factos que integrem o crime de denúncia caluniosa.
Compulsado o despacho de arquivamento, entendemos que o mesmo é omisso, nada se referindo na perspectiva do crime denunciado – abuso de poder previsto no art.º 382.º do CP (eventualmente concluindo que inexistiam indícios suficientes de que com aquela actuação tenha ocorrido violação por banda do arguido JP dos deveres inerentes às suas funções).
Temos consciência que o Ministério Público é livre na apreciação dos factos e da sua integração jurídica (qualificação jurídica), e que neste caso apenas integrou os factos na qualificação jurídica do crime de denúncia caluniosa.
Todavia, dado que Assistente na queixa apresentada denunciava a prática de factos que, em abstracto, podiam ser subsumidos a um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP, e dado que nenhuma pronúncia houve relativamente a este crime imputado, entendemos que se impunha (poder-dever) ao Ministério Público no despacho final de inquérito, emitir pronúncia/promoção quanto a este crime de abuso de poder, e nessa medida entendemos que ocorreu omissão de pronúncia/promoção (arquivar ou acusar) quanto a estes factos/ crime, por banda do Ministério Público.
No requerimento de abertura de instrução a assistente imputa à arguida BFR, em autoria material e na forma consumada, um conjunto de factos, reportados ao crime de prevaricação p. e p. pelo art.º 369.º, n.º 1 do CP e ao crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º, do CP.
A assistente imputa à denunciada BFR na queixa apresentada a prática de um crime de prevaricação previsto no art.º 369.º, n.º 1 e 2 do CP, nos factos 147.º a 180.º.
Dispõe o art.º 369.º do CP “1 - O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos.”
A assistente na queixa apresentada imputa um conjunto de factos praticados pela arguida BFR, seja no âmbito do inquérito disciplinar seja no âmbito do processo disciplinar, que entende violadores das funções que estava a desempenhar, agindo contra o direito e colocando em causa a administração da justiça, prejudicando a assistente. Alega contra este arguida, nomeadamente que enquanto instrutora do inquérito disciplinar não ter feito uma análise cuidada e diligencias necessárias para apurar os factos relatados na participação feita por JP (art.º 9.º do Despacho n.º 22726-B/2007), levando a que fosse de imediato desencadeado o processo disciplinar; enquanto instrutora do processo disciplinar elaborou acusação contra a assistente, sem obediência aos princípios de imparcialidade e isenção, repleta de juízos de valor e conclusões; recusa por banda da mesma a entregar certidão integral do processo, depois de deduzida a acusação, em violação do art.º 200.º da Lei Geral do Trabalho em Funções públicas; impedimento da arguida (BFR) como instrutora do processo disciplinar por ter categoria profissional inferior à assistente e propôs um colega em substituição.
Compulsado o despacho de arquivamento proferido em 11-11-2019, estes factos não foram analisados e nada é referido, em concreto, quanto à conduta da denunciada BFR, no que ao crime denunciado – crime de prevaricação previsto no art.º 369.º do CP - diz respeito.
Apenas é apreciada genericamente a conduta da denunciada BFR no âmbito da instauração do processo disciplinar e não quanto às condutas praticadas pela mesma mormente durante o período em que foi instrutora do inquérito disciplinar e do processo disciplinar.
Mais uma vez repetimos que o MP tem liberdade de actuação e de apreciação quanto aos factos denunciados e de livre qualificação jurídica dos mesmos, mas tendo em consideração que os mesmos, em abstracto e em tese, poderiam ter a suscetibilidade de integrar o crime de prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º do CP, expressamente imputado à arguida BFR. O Ministério Público ao omitir no despacho de arquivamento qualquer referência àquelas condutas e crime denunciado, entendemos que omitiu pronúncia/promoção sobre o mesmo.
A assistente, para além de outros crimes, imputa à denunciada PCF na queixa apresentada, a prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1, do CP, nos factos 194.º a 202.º, mormente pelo facto de no dia 18-09-2017 a denunciada PCF, contra a sua vontade, ter entrada no portão da sua residência, com o propósito de forçar a entrada no interior da sua habitação, só tendo saído para fora do portão depois da intervenção do seu marido.
Compulsado o despacho de arquivamento, nada é referido quanto a tal factualidade e quanto ao crime denunciado de violação de domicílio. Verifica-se assim que o Ministério Publico também omitiu pronúncia/promoção quanto a estes factos e quanto a este crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º do CP.
Pelo exposto, entendemos que assiste razão à Assistente, pois tendo em conta o objecto do requerimento de abertura de instrução (que fixa o objecto dos factos e crimes imputados e pelos quais quer a pronúncia dos arguidos e sujeitá-los a julgamento) e a factualidade participada que, em tese e em abstracto, poderá ser susceptível de integrar os crimes de abuso de poder, previsto no art.º 382.º do CP quanto ao arguido JP, o crime de denegação de justiça e prevaricação previsto no art.º 369.º do CP quanto à arguida BFR e o crime de violação de domicílio, previsto no art.º 190.º, n.º 1, do CP quanto à arguida PCF, verifica-se que o Ministério Público não se pronunciou no despacho final de inquérito, havendo quanto a estes factos/crimes que haviam sido denunciados, falta de promoção do Ministério Publico.
Nos termos do art.º 48.º do Código de Processo Penal incumbe ao Ministério Público a promoção do processo, sendo que no encerramento do inquérito e nos termos do art.º 276.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, deverá arquivar ou deduzir acusação.
Quando o Ministério Publico em relação a factos e crimes denunciados, de natureza semi-pública e/ou pública não emite pronúncia, arquivando ou deduzindo acusação em relação aos mesmos, entendemos que estamos perante uma falta de promoção do Ministério Publico, que integra a nulidade insanável a que alude o art.º 119.º, al. b), do CPP.
Cumpre referir que entendemos que, no caso, não estamos perante qualquer nulidade por falta de inquérito, a que alude o art.º 119.º, al. d), do CPP, porque houve inquérito. Ainda que possam não ter sido praticados todos os actos de inquérito, foi recolhida prova documental e foram ouvidas várias testemunhas, pelo que houve inquérito e, nessa medida, inexiste a nulidade prevista no art.º 119.º, al. d), do CPP
O Ministério Público no seu despacho final de inquérito apenas se pronunciou/promoveu sobre os factos integradores do crime de denúncia caluniosa, e quanto a apreciação destes factos e crime, o despacho, claro está, não padece de qualquer nulidade.
Porém, aquele despacho final de arquivamento padece de nulidade (parcial), na medida em que não se pronunciou sobre tudo o que podia e devia e, nessa medida, padece de falta de promoção do Ministério Público sobre os factos (e respetivos crimes), nos termos do art.º 119.º, al. b), do CPP que haviam sido participados pela ofendida/assistente HB e que constituem actualmente o objecto do processo.
Temos consciência que existe doutrina e jurisprudência[8] que diverge deste entendimento. Ou seja, que entende que a omissão, no despacho final de inquérito, de promoção quanto a alguns factos e alguns crimes denunciados, acusando e/ou arquivando por outros factos e crimes, não integra a nulidade insanável da falta de promoção do MP, prevista no art.º 119.º, n.º1, al. b) do CPP, entendendo que “nestes casos, apesar de tudo o MP acabou por exercer a acção penal”. Veja-se, neste sentido, João Conde Correia in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Art.ºs 1.º a 123.º, Almedina, Anotação ao art.º 119.º., §24, pág. 1233. E também Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, anotação ao art.º 120.º, § 6, pág. 321 que entende que “a omissão de pronúncia pelo MP no despacho final do inquérito sobre um crime denunciado, integra a nulidade sanável prevista no art.º 120.º, n.º 1, al. d) do CPP”, por entender que se trata de uma insuficiência de inquérito por não ter sido praticado um acto legalmente obrigatório.
Porém não partilhamos de tal entendimento, seguindo muita da jurisprudência dos Tribunais Superiores que entende que sempre que no despacho final de inquérito, há total omissão de referência a alguns factos denunciados e não é feito qualquer enquadramento jurídico (subsunção jurídica) sobre esses factos, mormente tendo em conta os crimes denunciados, estamos perante uma nulidade insanável, por falta de promoção do MP sobre esses factos e crimes, nos termos do art.º 119.º, al. b), do CPP.
Neste sentido, veja-se entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo: 97/12.0GAVFR.P1, de 08-03-2017[9], em que defende “A omissão do MºPº do despacho final de encerramento do inquérito sobre um procedimento por crime semipúblico integra a nulidade insanável do art.º 119º al. b) CPP: falta de promoção do processo nos termos do art.º 48º CPP, ao não se pronunciar sobre a totalidade do objecto do inquérito. II - O Tribunal de Instrução Criminal ao declarar tal nulidade e ordenar o suprimento de tal nulidade cometida em inquérito não viola o princípio da autonomia do MºPº para exercer a acção penal.”
Aderimos por completo ao referido neste acórdão, que por se concordar na integra transcrevemos o que consideramos essencial: “A nulidade insanável prevista no dito art.º 119, al. b) do CPPenal – “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º”, como exemplarmente se consignou no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/02/2014, proc. 154/11.0GBCVL.C1, sendo dele relatora a desembargadora MARIA PILAR DE OLIVEIRA, considera duas concretas hipóteses, “não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o MP acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido”. No mesmo sentido se orienta o acórdão da mesma Relação, de 22/04/2015, proc. 43/13.4TASBG-B.C1, sendo relator o desembargador Luís Teixeira, onde expressamente se fez consignar: “Da forma como interpretamos o poder/dever de promoção processual do MP, entendemos que o vício de falta de promoção deve ser o mesmo quer nos crimes públicos, quer nos crimes semi-públicos quer nos crimes particulares. Para todos eles existem regras específicas que têm que ser observadas. Se é de entender que nos crimes públicos e nos crimes semi-públicos a falta de acusação pelo MP corresponde a uma falta de promoção processual, logo, constitui a nulidade do artigo 119º, alínea b), do CPPenal, também a falta de promoção do MP com vista à dedução de acusação particular pelo assistente, tem de conduzir ao mesmo vício e resultado”. Ou seja, o aresto deste Tribunal que conforta o recorrente, acórdão de 18/02/2012, relatado pelo desembargador Fernando Monterroso aprecia, em exclusivo, a segunda vertente interpretativa supra indicada, quando outrem exercer a acção penal em vez do MºPº, já não a primeira daquelas. Na realidade, o MºPº no despacho de encerramento do inquérito, porque em causa estava um crime de natureza semi-pública, nos termos do art.º 48 do CPPenal, competia-lhe exercer a acção penal. Ou seja, o MºPº tinha legitimidade exclusiva para o exercício de tal dever e não a exercitou. Ao fazê-lo, ao omitir tal acto, praticou, efectivamente, uma omissão tida como nulidade insanável. E a ordem de remessa do inquérito para o MºPº, nestas precisas circunstâncias, não constitui uma intromissão no acusatório por parte do julgador, antes sendo uma decorrência normal do trânsito em julgado de uma decisão judicial que fez luz sobre a existência de um vício capital, insanável, verificado no inquérito. Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Évora, de 29/05/2012, proc. 1.7TASTB-A.E1, sendo relator o desembargador SÉNIO ALVES: “ Ao declarar-se a nulidade de falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público, a consequência lógica é a remessa dos autos ao Ministério Público, para que este realize as diligências que entenda serem de levar a cabo, dentro das funções do mesmo (artigos 262º e 263º do Código de Processo Penal)”.
No mesmo sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Processo n.º 679/14.6GCBRG-B.G1, datado de 12-07-2016[10], que decidiu: I) Decorre do artº 48º do CPP que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao Mº Pº, com as restrições dos artºs 49º a 52º, do mesmo diploma. O Mº Pº, titular da acção penal, promove-a, oficiosamente, (nos crimes públicos) mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução de acusação particular (nos crimes particulares). II) Havendo notícia e queixa por um crime de natureza semipública, o Mº Pº tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes. III) Terminado o inquérito, ao Mº Pº cabe, em exclusivo, a legitimidade exclusiva para tomar uma das posições previstas no art.º 276º, nº 1 do CPP: o arquivamento (nas modalidades previstas no art.º 277º, do CPP) ou de acusação. IV) In casu, é inequívoco que ao longo do inquérito e no despacho de encerramento de inquérito a que se reportam os presentes autos, houve absoluta omissão de pronúncia do magistrado do Mº Pº sobre um crime semipúblico que lhe tinha sido denunciado pelo ofendido. V) Nestes termos, verifica-se uma nulidade que afecta todos o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (art.º 122º, nº 1, do CPP) devendo o procedimento ser retomado pelo Mº Pº, nos termos em que o magistrado titular entender adequados.”
Tomámos a liberdade, face à sua clareza de o citar nas partes que entendemos mais relevante: “Decorre do artigo 48º do Código de Processo Penal que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao MP, com as restrições dos artigos 49º a 52º, do mesmo diploma. O MP, titular da acção penal, promove-a, oficiosamente, (nos crimes públicos), mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução que acusação particular (nos crimes particulares). Havendo notícia e queixa por um crime de natureza semipública, o Ministério Público tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes. Terminado o inquérito, ao MP cabe, em exclusivo, a legitimidade exclusiva para tomar uma das posições previstas no artigo 276º, nº1 do Código de Processo Penal: de arquivamento (nas modalidades previstas no artigo 277º do Código de Processo Penal) ou de acusação. Afigura-se-nos como inequívoco que ao longo do inquérito e no despacho de encerramento de inquérito a que se reportam os presentes autos, houve absoluta omissão de pronúncia do magistrado do MP sobre um crime semipúblico que lhe tinha sido denunciado pelo ofendido. No artigo 119º, al. b), do Código de Processo Penal, a lei adjectiva qualifica expressamente a falta de promoção do processo penal pelo Ministério Público como uma nulidade insanável. Salvo o devido respeito por diferente entendimento, a lei não restringe a previsão à situação em que o inquérito tenha sido promovido ou impulsionado por outra entidade e aplica-se sempre que se verifique falta de promoção pelo titular da acção penal. Apesar de o processo ter vindo da fase de inquérito, não se vislumbra fundamento que afaste a aplicabilidade pelo juiz do regime geral das invalidades processuais constante dos artigos 118.º a 123.º do Código do Processo Penal. Nestes termos, verifica-se efectivamente uma nulidade que afecta todo o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artigo 122.º n.º 1 do Código do Processo Penal) e deve o procedimento ser retomado pelo MP, nos termos em que o magistrado titular entender adequados .A aplicação estrita das normas referentes às nulidades processuais não significa a imposição pelo juiz de um concreto destino do inquérito, nem envolve qualquer intromissão na esfera dos poderes do Ministério Público, enquanto magistratura autónoma a quem compete o exercício da acção penal, assim se contendo no respeito pelo princípio do acusatório, constitucionalmente garantido.”
No mesmo sentido veja-se, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Processo: 471/13.5TAGMR.G1, de 30-11-2015[11] “I - Findo o inquérito, se o Ministério Público não se pronuncia sobre os crimes de natureza pública e semi-pública denunciados pelo Assistente, comete a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. b) do Código de Processo Penal, por falta de promoção do processo.”
No mesmo sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-05-2021, proferido no Proc. n.º 645/17.0GASXL-A.E1[12] “Integra a nulidade prevenida no primeiro segmento da alínea b), do artigo 119º, do Código de Processo Penal, a omissão de pronúncia por parte do titular da acção penal, o Ministério Público, em sede de despacho final de encerramento do inquérito sobre a totalidade do seu objecto, ou seja, sobre um procedimento por crime de natureza pública ou semi-pública ou de acusação particular nos casos de crime de natureza particular. E tal nulidade é oficiosamente cognoscível e pode ser declarada pelo Juiz quer em sede instrução, quer em fase de julgamento – cfr. artigos 308º, nº 3 e 311º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal.”
Face à omissão do Ministério Publico sobre alguns factos e crimes (públicos e semi-públicos) denunciados pela Assistente em confronto com o objecto do requerimento de abertura de instrução, impõe-se declaração de nulidade (parcial) insanável por falta de promoção do Ministério Público, nos termos do art.º 119.º, al. b) do CPP quanto ao despacho final do inquérito, no que respeita aos factos e crimes que acima referimos.
Porém, conforme supra referimos, o despacho final de inquérito é parcialmente válido. É válido, na medida em que inexiste qualquer nulidade do mesmo quanto aos factos e crime de denúncia caluniosa que ali foi apreciado e decidido arquivar e, nessa matéria, é intocável.
Todavia, o despacho final de inquérito, na parte em que omite pronúncia/promoção sobre os vários factos e crimes denunciados pela Assistente e que acima fizemos referência, padece de nulidade insanável, por falta de promoção do MP, nos termos do art.º 119.º, al. b), do CPP.
Na verdade, entendemos que uma declaração da nulidade, nestes casos, não “belisca” o princípio do acusatório, já que não é dada nenhuma “directriz” no sentido da acusação ou do arquivamento.
Caberá ao Ministério Público proferir um despacho final de inquérito (e eventualmente a realização de diligências de inquérito que entender por adequadas e necessárias) em complemento ao despacho de inquérito proferido a fls. 716 a 719 onde promova – acusando ou arquivando-os factos e os crimes participados pela Assistente (por referência ao objecto actual do processo), a saber:
Crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP relativamente ao arguido JP;
Crimes de prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º do CP relativamente à arguida BPR;
Crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º do CP relativamente à arguida PCF;
Face a todo o exposto, ao abrigo do art.º 119.º, al. b), e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, declara-se parcialmente nulo o despacho final do Ministério Público de fls. 716 a 719, na parte em que falta a promoção do Ministério Público pelos factos e crimes supra elencados, bem como todos os actos subsequentes que dele dependiam, pelo que, sanada a invalidade nos termos supra referidos, devem prosseguir os autos os termos legais e processuais.
Notifique.
Almada, d.s. (24-02-2022) (…)”.
*
iv – Fundamentação.
iv.1. Da consolidação do despacho de arquivamento ou da necessidade de conhecimento da arguição de nulidade insanável desse despacho por falta de inquérito quanto ao denunciado AMO.
A primeira questão que cumpre enfrentar prende-se com a consolidação do despacho de arquivamento do inquérito quando o assistente não reage contra essa decisão do Ministério Público.
Vejamos.
Importa, em apertada síntese, traçar o iter processual relevante para a apreciação da questão:
i. A ora assistente HB apresentou participação crime contra diversas pessoas e entre elas também contra o denunciado AMO, imputando a este o cometimento dos crimes de denegação de justiça e de prevaricação.
ii. O Ministério Público decidiu encerrar o inquérito com despacho de arquivamento proferido em 11 de novembro de 2019, nos exatos termos que constam a fls. 716 a 719 dos autos[13].   
iii. Contra esse despacho de arquivamento reagiu a assistente requerendo a abertura de instrução, em 9 de dezembro de 2019, nos termos que constam de fls. 766 a 791, alegando os motivos de facto e de direito que ali constam e requerendo, no final daquele requerimento, que os arguidos JP, BFR, PCF, MCA, MAN, MIC, MCA e NL, sejam pronunciados pela prática dos seguintes crimes:
- O arguido JP, pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º do CP;
- A arguida BFR, em concurso real, pela prática de um crime de prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, n.º 1, e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do CP
- A arguida PCF, em concurso real pela prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1 e de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do CP;
- A arguida MCA, MAN, MIC e MCA e NL, pela prática, cada um, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do CP.
iv. No seu requerimento de abertura de instrução a assistente não se reportou ao denunciado AMO – como a própria reconhece neste recurso, não escreveu o seu nome, nem alegou os “pedaços da vida por este protagonizados e que consubstanciam a prática de crimes”.
Dessa inacção da assistente decorreu, nos termos da decisão recorrida, a consolidação do despacho de arquivamento do inquérito no que se reporta ao denunciado AMO.
Pelo contrário, no entendimento da assistente, porque veio arguir, já em sede de instrução, a nulidade do inquérito, pedindo que fosse conhecida a nulidade insanável consubstanciada na falta de qualquer diligência de inquérito tendente a apurar a eventual responsabilidade criminal do denunciado AMO, ou que fosse ordenada extração de certidão para prosseguimento da investigação em separado quanto a este, não se pode considerar consolidado o arquivamento quanto a tal denunciado.
Vejamos.
O cerne da fundamentação da decisão recorrida é o seguinte:
“A partir do momento em que relativamente a este denunciado a Assistente decidiu não reagir ao despacho de arquivamento, seja fazendo intervir o superior hierárquico do Ministério Público, através do instituto da intervenção hierárquica prevista no art.º 278.º do CPP, seja, através do requerimento de abertura de instrução contra o mesmo, nos termos do art.º 287.º do CPP, ou seja a requerer ao titular do inquérito, em requerimento autónomo, no prazo supletivo dos 10 dias, a nulidade do despacho de arquivamento (por falta e/ou insuficiência de inquérito) relativamente a este denunciado, entendemos que relativamente a este denunciado se tornou caso decidido (ou seja, mutatis mutandis, considera-se transitado em julgado este despacho de arquivamento para quem era denunciado nos autos). Desta feita, face ao caso decidido, entendemos que ficou precludido o direito da assistente de arguir qualquer nulidade do inquérito e/ou do despacho de arquivamento relativamente àquele denunciado, na medida em que não reagiu ao despacho de arquivamento contra o denunciado, sendo que inexistiu requerimento de abertura de instrução contra aquele.
As nulidades insanáveis, apenas são insanáveis enquanto o processo não se encontra definitivamente decidido. A partir do trânsito em julgado/definitividade de uma decisão, a existência de qualquer nulidade (ainda que insanável) cessa.
E, no caso, entendemos que a partir do momento em que o denunciado AMO não figura como arguido na instrução, por opção da Assistente, o inquérito, em relação ao mesmo fez caso decidido e a possibilidade de conhecer a nulidade “cessou” pela definitividade, em relação àquele denunciado, do despacho final de arquivamento do processo, dada a tomada de posição da Assistente, na medida em que contra este denunciado não reagiu contra ao despacho de arquivamento, nos termos e prazos que a lei lhe concede (ou através da intervenção hierárquica do art.º 278.º ou requerendo a abertura de instrução do art.º 287.º do CPP, ou no prazo supletivo legal, dos 10 dias, a contar do despacho de arquivamento invocar a nulidade insanável por falta de promoção do MP e/ou falta de inquérito, nos termos do art.º 119.º, als. b) e d) do CPP).”.

Esta dimensão de caso decidido quanto a determinado suspeito constitui limite inultrapassável, a que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem feito repetidas alusões.
O denunciante/ofendido não poderá deixar de gozar de garantia da possibilidade de se constituir assistente e reagir contra despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito com o qual não se conforme. Essa garantia está assegurada na lei processual por duas vias: por um lado, assiste-lhe a faculdade de requerer a abertura da instrução (via do controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público); por outro lado, permite-se que opte pela reclamação hierárquica do despacho de arquivamento (via do controlo hierárquico da decisão do Ministério Público).
Essas vias constituem opções que o denunciante/assistente prosseguirá de modo facultativo, sendo certo que o decurso do prazo concedido por lei para delas lançar mão precludirá a possibilidade do seu uso, trazendo com isso a consolidação do despacho de arquivamento.
Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, a imposição de prazos preclusivos para participação do ofendido no processo penal tem um fundamento racionalmente inteligível, uma vez que atende a outros valores constitucionais que têm de ser salvaguardados, designadamente os direitos de defesa dos eventuais suspeitos ou arguidos, que veem tanto mais prolongada a sua situação processual, quanto mais perdurar no tempo a possibilidade de a decisão de arquivamento do inquérito poder ser alterada.
No sentido da prevalência dos direitos de defesa dos eventuais suspeitos ou arguidos sobre o direito dos ofendidos requererem a instrução já se pronunciou o Acórdão n.º 27/2001 do Tribunal Constitucional (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se referiu o seguinte:
«Ora, nos casos (…) em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
(…)
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efetivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.
(…)»

A propósito será relevante, ainda, considerar o que o Tribunal Constitucional escreveu no seu Acórdão n.º 636/11, salientando que o reconhecimento do direito de o ofendido intervir no processo, nos termos da lei, «não obnubila o lugar central que a Constituição reserva à tutela processual do arguido», acrescentando que:
«As garantias de processo criminal que, no artigo 32.º, a CRP consagra, são essencialmente as garantias da defesa. E como é em torno da tutela destas últimas que o legislador ordinário organiza as regras de processo – procurando a realização do equilíbrio entre as necessidades emergentes dessa tutela e as exigências decorrentes do imperativo de realização da justiça penal –, nelas, o estatuto do assistente não poderá nunca ser equiparável ao estatuto do arguido. Por assim ser, diz o nº 7 do artigo 32.º que o direito do ofendido a intervir no processo será reconhecido nos termos da lei. Semelhante formulação não é usada pelo texto constitucional quanto ao reconhecimento das garantias de defesa do arguido. Em relação à conformação do estatuto processual do assistente detém, portanto, o legislador ordinário uma margem de liberdade maior do que aquela que a Constituição lhe consente quando se trata de definir o estatuto processual do arguido».

Estas considerações valem também para o caso concreto, impondo-se concluir que, estando garantida ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente, a possibilidade de requerer a abertura da instrução face a uma decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito criminal, a sua inércia (ou o desempenho deficiente em termos de reacção) terá consequências definitivas, não constituindo isso uma limitação desproporcionada do direito do ofendido intervir no processo, face aos demais interesses em jogo.
Nesta conformidade, surge com pleno acerto a fundamentação da decisão recorrida, quando refere:
“Nos termos do art.º 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, e na parte que ora releva, a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação do arquivamento, pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. Preceitua o n.º 2 que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação.
Assim, de acordo com o art.º 287.º, n.º 1, al. b) do CPP “o requerimento do assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito consubstancia materialmente uma acusação que, nos mesmos termos de uma acusação formalmente deduzida, traça o objecto do processo, condiciona substancialmente os poderes de cognição do juiz, nomeadamente a liberdade de investigação, delimita a extensão do princípio do contraditório e a subsequente decisão instrutória (art.ºs 286.º, n.ºs 1 e 2, 287.º, n.º 1, al. b), 283.º, n.º 3, als. b) e c), ex vi n.º 2 do art.º 287.º, 288.º, n.ºs 1 e 4, e 307.º, n.º 1, in fine, todos do CPP).” [ac. STJ, Rel. Raúl Borges, 19-02-2020, Proc. n.º 72/18.1TRCBR.S1 - 3.ª Secção].
Ou dito de outro modo, o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente consiste numa acusação alternativa que vai, consequentemente, ser sujeita a comprovação judicial. Para além da delimitação da temática factual do objecto da fase de instrução, também é crucial para garantir o contraditório. Conforme se afirma no ac. STJ, Rel. Sénio Alves, 13-01-2021, Proc. n.º 8/19.2TRGMR.S2 - 3.ª Secção (…) “É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa. Daí que o cumprimento do estatuído nas als. b) e c) do n.º 3 do art.º 283º do CPP (ex vi do art.º 287.º, n.º 2 do mesmo diploma) tenha em vista, em última instância, a tutela dessas garantias de defesa: perante um requerimento de abertura de instrução onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, carece este de elementos suficientes em ordem a organizar a sua defesa.”
Assim, o requerimento de abertura de instrução de um assistente contra um despacho de arquivamento do Ministério Publico, delimita os arguidos no processo (os arguidos que pretende ver pronunciados e serem sujeitos a julgamento) e delimita objecto do processo (quais os factos e os crimes pelos quais pretende que os arguidos sejam pronunciados e consequentemente sujeitos a julgamento).
Desta feita, as nulidades a apreciar moldam-se dentro destes limites. Ou seja, o Juiz de instrução tem a sua competência delimitada pelos arguidos e objecto do processo indicados no requerimento de abertura de instrução.”.

Se do universo de denunciados, perante despacho do Ministério Público de arquivamento do inquérito, o assistente opta por requerer a abertura de instrução apenas quanto a parte deles, não poderá deixar de concluir-se que quanto aos demais denunciados, o arquivamento constituirá caso decidido. O despacho de arquivamento constituirá nesses casos decisão que põe termo à causa, sendo certo que o conhecimento das invalidades processuais – mesmo as que configuram nulidades insanáveis – apenas pode ter lugar enquanto durar o processo.
É por isso acertada a posição assumida na decisão recorrida, quando considera que o objeto da instrução aberta pelo requerimento apresentado pela assistente, não comporta a apreciação de nulidades do inquérito e/ou do despacho de arquivamento quanto a denunciado relativamente ao qual inexistiu requerimento de abertura de instrução e, por isso, relativamente ao procedimento originado com a queixa apresentada contra o denunciado AMO inexistia qualquer nulidade do inquérito que importasse declarar.
A isto resta, apenas, acrescentar que o expediente de, em sede de instrução requerida contra outros arguidos, se vir arguir a nulidade do inquérito relativamente ao denunciado AMO, não encerra qualquer potencialidade reparadora da deficiente atuação processual da assistente ao requerer a abertura da instrução.
Em vão se terá tentado reparar a falha cometida no momento da apresentação do RAI – essa reparação não é admissível.
A prática do ato processual de requerimento de abertura de instrução não pode ser repetida, renovada, corrigida ou ampliada, sob pena de injustificável compressão dos direitos de defesa do arguido, já que a consagração de um prazo para o assistente requerer a abertura da instrução concretiza a garantia de defesa inerente à fixação da situação processual do arguido.  
Sobre a inviabilidade de aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência de despacho do Ministério Público de arquivamento do inquérito é vasta e constante a jurisprudência, designadamente do Tribunal Constitucional, sendo consabidas as razões que impedem uma intervenção corretiva.
Nessa matéria, com argumentação que se ajusta ao caso dos presentes autos, poderá ler-se o recente Acórdão do Tribunal Constitucional nº 405/2022, no qual se elencam as razões que impõem a preclusão da possibilidade de renovar o ato, fazendo referência à jurisprudência daquele Tribunal que se justifica renovar:[14]
“Na mesma linha, e relativamente a um caso paralelo ao dos presentes autos, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 389/2005:
«[5…N]o presente processo o requerimento apresentado pelo assistente não contém os factos cuja prática gera responsabilidade criminal, ou seja, o requerimento não contém a menção, ainda que imprecisa, dos fundamentos da responsabilidade criminal do arguido. Desse modo, o requerimento apresentado não permite a delimitação, em termos minimamente adequados e inteligíveis, do objeto da instrução cuja abertura foi requerida.
[…]
No presente caso, a peça processual apresentada não tem, como se referiu, a virtualidade de desempenhar a função que legalmente lhe é atribuída (possibilitar a abertura da instrução, fixando o respetivo objeto). Trata‑se, nessa medida, de um requerimento “inepto”. Qualquer convite que fosse formulado traduzir‑se‑ia na concessão da possibilidade de repetição do ato (não seria, portanto, confundível com um mero convite para aperfeiçoamento de ato anterior).
Assim sendo, é manifesto que nenhum preceito constitucional (ou de outra natureza) impõe a possibilidade de o assistente praticar de novo um ato que já praticou no respetivo prazo de modo absolutamente inadequado. O requerimento apresentado é, pois, um requerimento “não aperfeiçoável”.
6. Cabe ainda realçar que a representação do assistente por advogado (artigo 70º do Código de Processo Penal) visa garantir uma utilização tecnicamente adequada dos mecanismos processuais por esse sujeito.
Na verdade, o direito de acesso à Justiça no contexto destes autos concretiza‑se na consagração do direito a requerer a abertura da instrução. Uma vez que é representado por advogado, o assistente dispõe das condições necessárias para o exercício de tal direito. Tais condições são, porém, delimitadas por outros princípios processuais, tais como a celeridade ou a proibição de atos inúteis. A prática de atos (no caso, a apresentação de um requerimento) de modo a não permitir a inteligibilidade do núcleo essencial da peça processual produzida não justifica nem legitima a imposição de um convite ao aperfeiçoamento (que, como se disse, seria antes a concessão da possibilidade de renovação do ato).
7. Por fim, deve ter‑se presente que o reconhecimento da possibilidade de “renovação” do ato em questão implicaria uma compressão dos direitos de defesa do arguido, já que a consagração de um prazo para o assistente requerer a abertura da instrução concretiza a garantia de defesa inerente à fixação da situação processual do arguido que a não pronúncia origina.
Ora, não se vislumbra fundamento legítimo para tal compressão, já que a instrução não teve lugar devido a uma atuação processual dos assistentes manifestamente deficiente (de resto, os próprios assistentes reconhecem nos presentes autos as deficiências do requerimento apresentado). Nessa medida, a aludida compressão não é admissível (cf., em sentido próximo, o Acórdão nº 27/2001, já citado).»
(…)
9. O Código de Processo Penal, no artigo 287.º, faculta ao assistente a possibilidade de requerer a abertura da instrução, nos casos em que o Ministério Público, tendo recolhido prova bastante de se não ter verificado o crime, decida não acusar, proferindo, nos termos do artigo 277.º, despacho de arquivamento do inquérito.
Significa isto que, nessas circunstâncias, o requerimento de abertura de instrução a apresentar pelo assistente equivale a uma acusação. Melhor dito: esse requerimento consubstancia materialmente uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal (Acórdão nº 358/04).
Como é bem sabido, em um processo penal que, por imposição constitucional, tenha estrutura acusatória (artigo 32.º, nº 6) e seja primacialmente orientado para a proteção das garantias da defesa, em algum momento há-de o objeto do processo vir a ser fixado com o rigor e a precisão adequados à garantia da independência do juízo e à atempada organização da defesa. Dada a função substancial que cumpre, no processo, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, quando tenha sido proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento – função que, como vimos, é equivalente à da acusação –, é nele [nesse requerimento] que se terá que definir de forma suficientemente precisa o objeto do processo, através, pelo menos, da narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, e da indicação dos preceitos legais ao abrigo dos quais tal pena será aplicável.
Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação”, o nº 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do ato praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no nº 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo nº 2 do mesmo preceito.
Assim é, tanto mais se se considerarem os efeitos que, nos termos do nº 1 do artigo 57.º do CPP, decorrem da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Por tal apresentação implicar, ipso facto, a constituição de arguido (com todas as consequências que daí resultam para a proteção das garantias de defesa), não é jurídico‑constitucionalmente irrelevante o tempo em que ela é feita. Precisamente por esse motivo fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução.
A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afetar os direitos de defesa do arguido, porquanto a perentoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspetos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima.» (cfr., no mesmo sentido, também o Acórdão n.º 35/2012).
É esta a jurisprudência que se entende dever reiterar.»

Aqui chegados, torna-se manifesta a necessidade de concluir pelo bem fundado da argumentação vertida na decisão recorrida:
“Não pode a Assistente com este procedimento - arguir nulidade insanável no decurso da instrução quanto a um denunciado, não arguido no requerimento de abertura de instrução - conseguir que o processo «volte» ao inquérito e lhe seja atribuída uma nova oportunidade de requerer a abertura de instrução, agora contra este denunciado (caso haja novo despacho de arquivamento), quando teve oportunidade de reagir contra este denunciado, em tempo, e não o fez.
Assim existindo a nulidade quando foi notificada do despacho de arquivamento e optou por não reagir quanto ao mesmo, mormente requerendo a intervenção hierárquica nos termos do art.º 278.º do CPP e/ou requerer a abertura de instrução também contra este denunciado, fazendo-o intervir como arguido na instrução e imputando-lhe factos e crimes, essa postura processual que adoptou é sibi imputet.
Deste modo, a eventual falha no instituto processual optado e ou as eventuais falhas do requerimento de abertura de instrução, não contemplando todos os arguidos/denunciados, como devia, ou não contemplando todos os factos e crimes que pretendia a pronúncia dos arguidos, não podem ser colmatadas com a declaração de nulidade insanável prevista no art.º 119.º al. b) e d), do CPP, como se a instrução não tivesse um objecto processual (que delimita o Juiz de Instrução na sua actuação) e não fosse tramitada contra arguidos.
Assim, quanto a este denunciado em que não foi requerida abertura de instrução quanto ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, entendemos que no presente momento não se impõe declarar qualquer nulidade (insanável ou sanável) do inquérito e consequentemente do despacho final de inquérito, na medida em que essa nulidade “cessou” pelo decurso do tempo, ou seja, porque, em tempo, e nos termos e nos prazos que a lei lhe concede, não houve reação da assistente relativamente ao mesmo e ficou definitivamente decidido o inquérito relativamente a este denunciado[15].
Pelo exposto, improcede a nulidade suscitada e/ou qualquer outra nulidade, quanto ao denunciado AMO.”.

Nestes termos, com os quais concordamos em pleno, improcede o recurso na parte referente à primeira das enumeradas questões a decidir.
*
Cumpre apreciar, então, a questão de saber se a Sra. Juiz de Instrução Criminal deveria ter determinado a separação do processo referente ao crime de denúncia caluniosa p. p. pelo art.º 365º n.ºs l e 2 do Código Penal imputado ao arguido JP, bem como o prosseguimento da instrução nessa parte, por não afetada por nulidade, levando a cabo os actos de instrução que havia admitido.
Tal desiderato, como é evidente e a recorrente não ignora, passaria por separação de processos, pois de outro modo não poderia prosseguir simultaneamente a instrução quanto ao crime de denúncia caluniosa imputado ao arguido JP, e o inquérito quanto aos demais crimes imputados aos arguidos. As fases processuais de inquérito e instrução são, inelutável e necessariamente, sucessivas, não podendo o mesmo processo estar, simultaneamente, nessas duas fases.
Sucede que a solução propugnada pela recorrente constitui solução que não serviria o propósito de alcançar a boa realização da justiça e que, sobretudo, se mostra proibida pelas normas legais que regulamentam a possibilidade de separação de processos.
Vejamos porquê.
A possibilidade de proceder à separação de processos é excepcional, estando as hipóteses que a lei prevê enunciadas de modo taxativo no artigo 30º do Código de Processo Penal, em cujo nº 1 se estabelece:
“1 – Oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns processos sempre que:
a) Houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado;
c) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou
d) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.”
 Tal carácter excepcional do mecanismo da separação de processos tem merecido acolhimento na jurisprudência do Tribunal Constitucional, podendo a título exemplificativo, referir-se o já supra citado Acórdão nº 21/2012, onde se lê (com sublinhado nosso)[16]:
“Uma vez operada a conexão, em determinadas situações poderá vir a ter lugar a separação de processos, verificados certos pressupostos.
Entendeu-se que mantendo cada crime a sua autonomia e sendo a junção num único processo justificada pela procura de uma melhor justiça, se dessa junção resultar maior dano do que benefício, deve essa unidade processual desfazer-se (neste sentido, Germano Marques da Silva, em “Curso de processo penal”, vol. I, pág. 201, da 5.ª ed., da Verbo).”
No mesmo sentido se pronunciam os nossos Tribunais Superiores, podendo ver-se, a título exemplificativo o que foi decidido por este Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 4 de Outubro de 2018[17]. Por oposição à previsão legal dos casos de conexão, referem-se neste douto acórdão os “(…) casos de procedimento inverso, designados de separação de processos, para os casos em que já se mostra operada a conexão, sendo previstas determinadas situações nas quais, verificados certos pressupostos, se admite a constituição de processos distintos, quer em função de determinado segmento de factos (por exemplo factos mais antigos e em risco de prescrição) quer em função das pessoas de certos arguidos e dos factos imputados aos mesmos. Entendeu-se que mantendo cada crime a sua autonomia e sendo a junção num único processo justificada pela procura de uma melhor justiça, se dessa junção resultar maior dano do que benefício, deve essa unidade processual desfazer-se (neste sentido, ainda Germano Marques da Silva, no citado "Curso de Processo Penal").”.
E acrescenta-se: “O artigo 30.º, n.º 1, do CPP contém a descrição taxativa dos casos em que é admissível ao tribunal fazer cessar a conexão e ordenar a separação de processos”.
Na alínea a) do nº 1 do artigo 30º está prevista a possibilidade de separação de processos no interesse do arguido – esta possibilidade deve fundar-se num interesse “ponderoso e atendível”, sendo disso exemplo o interesse, expressamente indicado naquela alínea, de evitar o prolongamento da prisão preventiva.
Não é mobilizável no caso esse interesse do arguido.
Não assistindo à ofendida um interesse ponderoso e/ou atendível, designadamente relacionado com o risco de tutela das suas pretensões, em moldes que legitimem que seja determinada a separação, ocorrem, isso sim, razões para que a conexão operada no processo se mantenha, posto que nele, ao conjunto dos arguidos ali visados, é imputada a prática de crimes que determinam o funcionamento das várias alíneas do artigo 24º, nº 1, do CPP.
Constatada a inexistência de interesse ponderoso e atendível da assistente, na verdade, não se vislumbra igualmente qualquer outra causa de separação de processos – não se vê como a conexão existente possa representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado (posto que já declarada a prescrição do procedimento criminal referente aos imputados crimes de injúria), para o interesse da ofendida, tal como não se vê como a mesma encerre a possibilidade de retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos.
Aqui chegados, importa concluir que a separação de processos no âmbito dos presentes autos, a que a recorrente faz apelo, não pode ter lugar, por completa ausência de fundamento legal.
A não ocorrer tal separação, e perante a declaração de nulidade em que se traduziu a decisão recorrida (“ao abrigo do art.º 119.º, al. b), e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, declara-se parcialmente nulo o despacho final do Ministério Público de fls. 716 a 719, na parte em que falta a promoção do Ministério Público pelos factos e crimes supra elencados, bem como todos os actos subsequentes que dele dependiam, pelo que, sanada a invalidade nos termos supra referidos, devem prosseguir os autos os termos legais e processuais”) é inviável a pretensão da assistente de ver prosseguir a instrução na parte relativa ao crime de denúncia caluniosa, p. p. pelo art.º 365º, n.ºs l e 2, do Código Penal, imputado ao arguido JP.
Improcede, assim, também nessa parte, o recurso.
*
V. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente HBe, em consequência, em confirmar a douta decisão recorrida nos seus precisos termos.
*
Tributação.
Condena-se a assistente no pagamento da taxa de justiça fixada em 4 (quatro) UC – artigo 515º, nº 1, al. b), do CPP.
*
D.N.
*
O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art.º 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Lisboa, 7 de março de 2023
Jorge Antunes
Sandra Oliveira Pinto
Mafalda Sequinho dos Santos
_______________________________________________________
[1] Acessível em www.dgsi.pt.
[2] Veja-se, entre outros, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-2013, proferido no Processo 310/12.4T3AND-A.C1, acessível em www.dgsi.pt “II - Tendo sido declarada aberta instrução sem ter sido realizado inquérito, verifica-se o vício, de nulidade insanável, previsto no artigo 119.º, alínea b), do CPP, consubstanciado na falta de promoção do processo pelo Ministério Público, que abarca também as realidades em que o processo pura e simplesmente não existe, porque o detentor da acção penal assim decidiu. III - Por força desta nulidade, é inválido tudo o que for processado após o despacho no sentido do arquivamento e da não realização de inquérito, devendo os autos retornar os Serviços do Ministério Público, para aí continuarem arquivados. IV - No caso referenciado, o denunciante pode reagir contra o arquivamento, não através de requerimento para abertura da instrução, mas suscitando intervenção hierárquica. Ainda que o artigo 278.º do CPP não contemple a situação em causa, essa possibilidade sempre decorre do poder de emitir ordens e instruções que está cometida ao superior hierárquico nos artigos 61.º e 63.º, alíneas a) e b), do Estatuto do Ministério Público.”
[3] E o Ministério Publico no decurso do inquérito não o constitui arguido.
[4] Sem prejuízo do disposto no art.º 279.º do CPP.
[5] Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal -Ano de 2014.
[6] O que Conde Correia chama o «princípio da consunção da acção penal», ou seja, integra tudo o que ficou expressamente e tacitamente decidido.
[7] Acessível em www.dgsi.pt.
[8] Veja-se, neste sentido, Acórdão da Relação de Guimarães de 18-02-2012, proferido no Proc n.º 1957/10.9PBGMR-A.G1, acessível in dgsi.pt: “A nulidade insanável do art.º 119 al. b)do CPP – falta de promoção do Ministério Público, nos termos do art.º 48… – verifica-se quando tiver sido entidade diferente for Ministério Público a promover o processo penal e não quando o Ministério Público não investigar um crime que lhe foi denunciado.”
[9] Acessível em dgsi.pt
[10] Acessível em dgsi.pt.
[11] Acessível em dgsi.pt.
[12]Acessível em https://www.direitoemdia.ptfile:///C:/Users/MJ02548/Downloads/645_170GASXL-AE1.pdf.
[13] O despacho de arquivamento tem o seguinte teor:
“Os presentes autos iniciaram-se com a queixa apresentada pela aqui denunciante, HB, contra os denunciados, JP, BFR, PCF, MCA, MAN, MIC, MCA e NL, por factos susceptíveis de integrarem, em seu entender, a prática do Denúncia Caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do CP.
Efectivamente, a denunciante considerando que foi vítima de uma situação de “perseguição laboral”, em que todos os denunciados participaram de forma uníssona na instauração de um processo disciplinar que culminou com a aplicação da sanção disciplinar, demissão, alterada, posteriormente, para suspensão.
Mais considera que a conduta do denunciado, JP, seu superior hierárquico em Março de 2017, ter proferido despacho aceleratório nos procedimentos contra ordenacionais que estavam a seu cargo e cujo prazo de instrução estava excedido, constitui uma ilegalidade; considera que ao lhe ter sido dada uma avaliação inferior àquela que a mesma impugnou e veio a ser alterada, um acto discriminatório por parte do denunciado; considera ofensivo à sua honra e consideração as suas propostas de despachos não terem sido subscritas pelos seus superiores hierárquicos, dizendo que estavam mal fundamentadas; considera ilegal o facto do denunciado, JP, seu superior hierárquico, não lhe ter autorizado o gozo de dias num período em que se encontrava doente.
Foram levadas a efeito as diligências tidas como necessárias e convenientes, nomeadamente, foi junto aos autos cópia do procedimento disciplinar movido contra a aqui denunciante que propõe a aplicação da sanção disciplinar, demissão.
Salvo o devido respeito, a não concordância da denunciante sobre o resultado disciplinar e às alegadas ilegalidades cometidas não são certamente para serem dirimidas em sede penal, mas única e exclusivamente, nos tribunais Administrativos e Fiscais.
A denunciante encontra-se integrada numa estrutura hierárquica em que o seu superior tem poderes para dar ordens para que os processos sejam despachados em tempo, ainda que esse tempo seja meramente indicativo, não concordar com os fundamentos das propostas de despachos e não autorizar o gozo de dias.
A tais poderes chama-se “hierarquia” a que o funcionário deve obediência.
Qualquer atropelo à Lei por parte dos superiores hierárquicos permite que o funcionário não cumpra tais ordens fundamentando essa recusa por escrito e impugnando-as em sede própria.
Não transmuta esse direito na prática de um crime por quem detém poder hierárquico.
Foram inquiridas as testemunhas, AS, VX, CM, AR, FR, PC, VT e EM.
As testemunhas colegas de trabalho da denunciante, no geral, referiram que detinham um prazo para despacharem os processos de contraordenação meramente indicativo, referindo que nunca o denunciado proferiu nos seus casos despachos aceleratórios.
Referiram ter conhecimento que tal ocorreu com a denunciante, desconhecendo os motivos de tal actuação.
E dirá o Tribunal que no processo disciplinar movido está largamente explicitado os factos ocorridos, sendo que, todos os denunciados actuaram, apenas e no uso das funções que lhe são legalmente conferidas.
Não se afigura útil a realização de qualquer outra diligência.
Das diligências levadas a efeito nos presentes autos, não foram recolhidos quaisquer indícios que permitam imputar aos denunciados a prática do crime de Denúncia Caluniosa.
Como bem se explicita no Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Setembro de 2009, publicado no site www.dgsi.pt, que seguiremos de perto, “pratica o referido crime «quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de um crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
O preenchimento do tipo objectivo exige, assim, a falsidade de denúncia ou suspeita, lançada, como tal, sobre terceiro. O crime apenas se verificará quando, comprovadamente, a pessoa denunciada não tiver cometido o facto pelo qual o agente pretende vê-la perseguida.
Subjacente ao ilícito em causa está a danosidade social da denúncia de pessoa inocente.
O crime de denúncia caluniosa constitui um crime de perigo concreto, estando o tipo preenchido em termos de consumação, quando há instauração de um procedimento contra determinada pessoa, sem fundamento, meramente persecutório.
Acresce que, do ponto de vista do tipo subjectivo, trata-se de crime punível, exclusivamente, a título de dolo. Estando excluída a sua punição a título meramente negligente – cfr. designadamente o disposto no art.º 13º do C. Penal.
Trata-se, aliás, de um dolo qualificado por duas exigências cumulativas: por um lado, o agente terá de actuar «com a consciência da falsidade da imputação»; e, por outro lado, terá de o fazer com «intenção de que contra ela se instaure procedimento”.
Ora, na situação em análise, a denunciante apresentou a queixa que deu origem aos presentes autos, por entender que os denunciados lhe moveram, injustamente, um processo disciplinar.
No entanto, basta atentar, apenas, na sanção disciplinar que foi aplicada à denunciante para afastar, desde logo, a prática de crime.
E salvo o devido respeito, não concordar com a proposta de despacho apresentada pela denunciante referindo que está mal fundamentada, é o exercício da função e de um dever do superior hierárquico.
Regras de experiência comum e juízos de normalidade social nos dizem que os denunciados não “se uniram todos entre si” de forma uníssona, sem obter qualquer ganho com tal atitude, e tenham agido com o intuito de prejudicar a denunciante, alguns deles, certamente, sem conhecerem a mesma.
Sempre se dirá que quaisquer factos que a denunciante consideram integrarem a prática pelos denunciados de crimes de Injúria Agravada, à data em que a mesma apresentou a  queixa aquela se mostrava completamente extemporânea porque decorridos mais de seis meses do seu alegado cometimento.
Inexistindo indícios da verificação dos elementos objectivos do crime de denúncia caluniosa, determina-se o arquivamento dos presentes autos, nos termos do disposto no art.º 277.º, n.º 2, do CPP.
*
Cumpra o art.º 277.º, n.º 4, al. c) do CPP, relativamente à denunciante.”
[14] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 405/2022 - Relatora: Conselheira Assunção Raimundo – acessível em:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220405.html
[15] Sem prejuízo do disposto no art.º 279.º do CPP.
[16] Cfr. Acórdão do TC nº 21/2012, proferido no âmbito do Proc n.º 483/11 - 2.ª Secção - Relator: Conselheiro João Cura Mariano – acessível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120021.html
[17] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Out. de 2018 – Relator: Calheiros da Gama – acessível em:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1d3382f6dec19b488025834a00311de9?OpenDocument;