Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
576/10.4TJLSB-A.L1-8
Relator: AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: CITIUS
ERRO MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Existindo divergência, por lapso de escrita revelado no contexto do documento escrito, entre os elementos de identificação do Réu constantes do formulário do Citius e o conteúdo dos ficheiros anexos, é licito ao juiz proceder à rectificação do erro material, nos termos do art.249º do CC e ordenar o prosseguimento dos autos em conformidade com o conteúdo do suporte de papel.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

O B, no formulário electrónico do Citius que acompanhou a petição inicial enviada a 16/04/2010, identificou os Réus nesse formulário como sendo M e J, sendo que na petição inicial identifica como Réus M…e R……….., ambos residentes na Rua.
Pede que pela procedência da acção se reconheça o direito de propriedade da autora sobre a viatura automóvel marca modelo matrícula BG condenando-se os Réus a entregar a mesma à Autora.
Mais requerem que seja apensado o procedimento cautelar identificado no art.16º da p.i.
Alega para o efeito, e em síntese, que no exercício da sua actividade comercial celebrou com os Réus um contrato de aluguer de veículo sem condutor, ficando estes obrigados a pagar 72 rendas mensais.
Os Réus não pagaram as rendas vencidas a partir de 30/4/2008, razão porque o Autor, ao abrigo do conteúdo das cláusulas contratuais, veio a resolver o contrato, por carta registada com aviso de recepção datada de 2/7/2009.
Os RR. não restituíram o veiculo, razão porque o Autora intentou uma providência cautelar onde foi proferida decisão em 8 de Abril de 2010, ordenando a apreensão do veículo pela entidade policial.
Através da presente acção visam obter o reconhecimento definitivo do direito provisoriamente reconhecido naquela providência.
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Instruíram a petição inicial com vários documentos em que surgem referenciados, como intervenientes, M e R.
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-Foi enviada carta registada com AR para citação de M e J, para a residência na Rua….
-As cartas vieram devolvidas com a informação: “mudou-se”
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Foi então proferido o seguinte despacho:
Notifique a A. da devolução das cartas de citação, para fornecer os elementos de identificação dos Réus, M e J, os quais não constam dos autos ou para requerer o que tiver por conveniente.
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O autor veio requerer que seja relevado o erro de lapso de escrita, nos termos do disposto no art.249º do Código Civil, referente ao formulário electrónico do Citius que acompanhou a petição inicial enviada a 16/04/2010, porquanto identificou os réus nesse formulário como M.. e J, quando na realidade se trata de M,,, com o bilhete de identidade nº e número de identificação fiscal nº e P com bilhete de identidade nº e número de identificação fiscal nº conforme correctamente indicados na própria petição inicial, mantendo o interesse no prosseguimento da acção e na citação dos réus supra identificados.
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Foi então proferido o seguinte despacho:
“Os RR nos presentes autos são M e J e não outros. Efectivamente existe uma desconformidade na identificação dos RR, sendo os identificados na petição inicial outras pessoas. Não se trata de um mero lapso de escrita, como é alegado pelo A, trata-se de pessoas diferentes com NIF’s diferentes.
O requerimento electrónico deu entrada a 17.04.2010 via citius. Conforme dispõe a portaria nº1538/2008, que já se encontrava em vigor, a apresentação das peças processuais – no caso a petição inicial – é efectuada pelo preenchimento de formulários aos quais se anexa o conteúdo material da peça processual (art.5º) e quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação deve ser indicada, não podendo ser apresentada unicamente no ficheiro em anexo (art.6º, nº1), como é o caso da identificação dos AA e RR. Em caso de desconformidade entre o conteúdo do formulário e o conteúdo do ficheiro anexo, prevê expressamente este diploma que prevaleça a informação constante do formulário – nº2 o art.6º.
Ora, em face da solução expressamente prevista pelo legislador para estes caso de desconformidade, não há outra decisão possível. Não pode o tribunal decidir, como o A pretende, exactamente no sentido contrário, procedendo à substituição dos RR desta acção por outras pessoas apenas com base na informação do A de que se trata de lapso.
Efectivamente, caso se confirme o alegado pelo A, o êxito da presente lide encontra-se gravemente comprometido, mas cabe ao A utilizar os mecanismos processuais previstos para evitar não só a prática de actos inúteis como também a improcedência do seu pedido, designadamente, desistindo da presente instância, assegurando assim a faculdade de intentar uma outra acção contra as pessoas que efectivamente (em termos processuais e substantivos) são os titulares da relação controvertida.
Destarte, indefiro o requerido, ficando os autos aguardar o impulso processual do A.
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Inconformados com o teor do despacho, veio o Autor reclamar, concluindo as suas alegações da forma seguinte:
-O presente recurso vem interposto do douto despacho de indeferimento da rectificação do nome dos RR. ao estipular que “ em face da solução prevista pelo legislador para estes caso de desconformidade, não há outra decisão possível, procedendo à substituição dos RR da presente acção por outras pessoas apenas com base na informação do A. que se trata de um lapso (…), caso se confirme o alegado pelo A., o êxito da acção encontra-se gravemente comprometido, mas cabe ao A utilizar os mecanismos processuais previstos para evitar não só a pratica de actos inúteis, como também a improcedência do seu pedido”.
-No dia 16 de Abril de 2010, o apelante deu entrada da presente acção declarativa com processo sumário através do CITIUS, trata-se de uma acção principal de uma providência cautelar que correu termos sob o número …..
-O apelante preencheu os campos do formulário electrónico, referentes à caracterização do processo, identificação do Autor e testemunhas do Autor, e preencheu o item referente aos RR, tendo anexado em forma pdf, a petição inicial e toda a documentação da acção.
-Por um lapso de escrita no preenchimento do formulário do citius, foram identificados como RR, M.. residente na Rua e J, residente na Rua , quando na verdade, os RR da presente acção são: M, com residência na Rua , e P, com residência na R, correctamente identificados na petição inicial em anexo, bem como na exposição dos factos da peça processual, e, em toda a documentação enviada conjuntamente com a peça processual.
-De acordo com o nº 2 do Art.º 6º da Portaria 114/2008, de 06 de Fevereiro, em caso de desconformidade entre o formulário e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários.
-A questão do presente recurso reduz-se à possibilidade ou não de rectificar lapsos no preenchimento do formulário electrónico do citius.
-Salvo melhor opinião, o douto tribunal deveria ter admitido a rectificação do lapso constante no formulário.
-O apelante tendo solicitado esclarecimento à linha de apoio do citius através do heldesk.citius@mail.itij.mj.pt, foi informado que a aplicação do nº 2 do Art.º 6º da Portaria 114/2008, de 26 de Fevereiro, não afasta a possibilidade de correcção de lapso ou omissão no preenchimento do formulário, dando a instruções que “ deverá proceder à entrega de peça processual através do citius, utilizando a funcionalidade “ entregas electrónicas”, finalidade “ juntar a processo existente”, explicando o sucedido no articulado a anexar ( exº correcção de nome ou dados de intervenientes)” conforme esclarecimento junto com o presente recurso.
-Este esclarecimento prestado pela linha de apoio do citius, vai de encontro ao objectivo do legislador de desmaterialização e simplificação de actos judiciais, pois o exagerado formalismo na interpretação e aplicação das regras jurídicas acabaria por impedir uma justa composição do litígio, na medida em que dá predominância à forma em detrimento da substância.
-Defende a jurisprudência no Acórdão do Tribunal de Lisboa de 18-06-2003 “ Encontrando-se em curso a citação do Réu e verificando o Autor que a identificação daquele não se encontrava completa ou que existiu algum erro, inexiste obstáculo legal a que seja deferido requerimento apresentado pelo autor para a correcção do erro”.
-Além disso, o Acórdão da Relação de Lisboa de 03-10-1991 estipula que “ O princípio contido no Art.º 249º do Código Civil – rectificação de lapso manifesto – é aplicável a todos os actos processuais e das partes. Do mesmo modo os princípios que regem a interpretação da vontade negocial são também aplicáveis a todos os articulados das partes. A petição inicial deve ser interpretada tendo em conta os documentos que a acompanham.” Nº convencional: JTRL00014168 in www.dgsi.pt.
-Por outro lado, estabelece o Art.º 268º do C.P.C., sob a epígrafe “ Principio da Estabilidade da Instancia” que “ citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e á causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”.
-Ora, nos presentes autos, aquando do pedido de rectificação, os RR ainda nem sequer foram citados.
-Acresce ainda que, por razões de economia e celeridade processual, o apelante caso seja obrigado a intentar uma nova acção declarativa, sofre o grave prejuízo da caducidade de uma providência cautelar já deferida.
-Consequentemente o douto despacho, do tribunal a quo, viola o Art.º 249º do Código Civil, Art.º 268º do C.P.C. e Art.º 6 da Portaria 114/2008, de 26 de Fevereiro.
Conclui no sentido de ser concedido provimento ao presente recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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QUESTÃO A DECIDIR
A única questão a decidir consiste em saber se, ocorrendo divergência entre a identificação das partes indicada no formulário electrónico do Citius que acompanhou a petição inicial e indicados nesta, é possível corrigir o erro, prosseguindo os autos contra as partes indicadas na petição inicial.
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A factualidade relevante à decisão do recurso consta do anterior relatório.

Dispõe o artigo 138.º-A, n.º 1, do CPC que a tramitação dos processos é efectuada electronicamente em termos a definir por portaria do Ministro da Justiça, devendo as disposições processuais relativas a actos dos magistrados e das secretarias judiciais ser objecto das adaptações práticas que se revelem necessárias.
E o artigo 150.º, n.º 1, do CPC estatui que aos actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentadas a juízo preferencialmente por transmissão electrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º-A, valendo como data da prática do acto processual a da respectiva expedição.
A Portaria a que se refere tal normativo legal é a n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro, alterada pelas Portarias n.º 457/2008, de 20 de Junho, e n.º 1538/2008, de 30 de Dezembro e 195-A/2010 de 8 de Abril.
Conforme salientado no respectivo preâmbulo, “O projecto “Desmaterialização, eliminação e simplificação de actos e processos na justiça visa, entre outros aspectos, facilitar o acesso à justiça e simplificar os processos de trabalho nos tribunais através da utilização intensiva das novas tecnologias.
Em concreto, pretende-se que as partes e os seus mandatários possam praticar actos judiciais e relacionar-se com o tribunal por meios electrónicos, designadamente através do acesso, consulta e tramitação do processo através da Internet….
Acrescenta-se que “a presente portaria vem concretizar algumas medidas relevantes para o desenvolvimento do projecto de desmaterialização dos processos judiciais no domínio das acções declarativas e executivas cíveis e providências cautelares.
Assim, em primeiro lugar, regula-se a forma de apresentação a juízo, por transmissão electrónica de dados, os actos processuais e documentos pelas partes através do sistema informático CITIUS.
A apresentação de peças processuais, requerimentos e documentos por via electrónica dispensa as partes de os remeter em suporte de papel, o que significa um importante avanço na redução da “burocracia” na ligação entre o mandatário e o tribunal, garantindo-se sempre a possibilidade de o juiz solicitar a exibição dos originais dos documentos enviados.
Sendo estes os objectivos visados com a materialidade regulada na Portaria, há interpretar à sua luz, os artigos 4.º, n.º 1, 5.º, n.ºs 1, a), e 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2, e 13.º, a), b) e c), da referida Portaria.
A Portaria n.º 114/2008 de 6/2, em cumprimento parcial do estatuído no n.º 1 do art.º 138.º- A, do CPC, tem por objecto a regulamentação dos aspectos indicados nas várias alíneas do seu art.º 1.º da tramitação electrónica dos processos judiciais nos tribunais de 1.ª instância, não tendo, pois, por escopo estabelecer sanções processuais às partes, nem preclusões de direitos processuais delas, as quais estão previstas e regulamentadas no CPC.
Utilizando o sistema informático CITIUS para apresentação de peças processuais, devem ser preenchidos os formulários disponibilizados no endereço http://citius.tribunais.mj.pt, aos quais se anexam ficheiros com a restante informação legalmente exigida, conteúdo material da peça processual e demais informação que o mandatário considere relevante e que não se enquadre em nenhum campo dos formulários, integrando, para todos os efeitos, a peça processual o formulário preenchido e os anexos a ele (artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, da Portaria).
E prescreve o art.º 6.º da citada Portaria que, quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação específica deve ser indicada no campo respectivo, não podendo ser apresentada unicamente nos ficheiros anexos (n.º 1) e que, em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários» (n.º 2).
Por sua vez o art.º 13.º da mesma Portaria, sob a epígrafe requisitos da transmissão electrónica de dados, nas suas alíneas a), b) e c), prescreve que o sistema informático CITIUS assegura:
a) A certificação da data e hora de expedição;
b) A disponibilização ao remetente de cópia da peça processual e dos documentos enviados com a aposição da data e hora de entrega certificada;
c) A disponibilização ao remetente de mensagem nos casos em que não seja possível a recepção, informando da impossibilidade de entrega da peça processual e dos documentos no sistema informático.
No caso dos autos o Autor preencheu o formulário com a indicação do nome dos Réus em sentido diferente daqueles que indica nas petição inicial que anexou em forma pdf, juntamente com toda a documentação em que são identificados os nomes dos Réus referenciados na petição inicial.
O sistema Citius relevou os nomes dos Réus identificados no formulário e expediu cartas registadas para citação, que vieram devolvidas.
A relevância dos nomes identificados naquela portaria faz todo o sentido à luz da mesma.
Na verdade, o n.º 2 do seu art.º 6.º, ao aludir à prevalência do conteúdo dos formulários, no caso da sua desconformidade com o conteúdo de ficheiros anexos a tais formulários, visa explicitar o funcionamento automático do próprio sistema informático ou o processamento automático dos actos processuais praticados através dele, não contendo, no entanto, qualquer sanção processual para a parte que praticou essa desconformidade, nem qualquer preclusão de direito processual dela.
Assim, e em termos pragmáticos, o que este n.º 2 prescreve, elucidando, é que o sistema informático CITIUS apenas processa automaticamente os dados inseridos pelo utilizador nos formulários por ele disponibilizados e, subsequentemente, actua em conformidade com eles.
(Em sentido próximo, cfr. Ac. da RL de 18/02/2010, proc. nº 6/09, Relator Desembargador Luís Correia Mendonça e da RG de 11/05/2010, proc. nº 5834/09, Relator Desembargador Pereira da Rocha, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Tal não obsta a que a parte, tomando conhecimento de divergência resultante de lapso entre a identificação das partes constantes do formulário ou da petição inicial, possa vir requerer ao juiz a correcção do lapso material, nos termos do art.249º do Código Civil, aplicável aos articulados, como há muito vem sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência.
Aliás, na senda da possibilidade de verificação da conformidade entre o teor do formulário e da peça processual vem o art. 3º estabelecer que o juiz pode determinar a exibição das peças processuais em suporte de papel e dos originais dos documentos juntos pelas partes por transmissão electrónica de dados, sempre que duvidar da autenticidade ou genuidade das peças ou dos documentos.
Ora se assim é, por identidade de razão se deve entender que o juiz, verificando existir desconformidade entre o teor do formulário e a peça processual junta em anexo, em que se revele do contexto desta que houve lapso material no preenchimento do formulário, deve admitir a rectificação do lapso ou erro material, nos termos do art.249º do Código Civil e ordenar o prosseguimento dos autos em conformidade.
Qualquer outra interpretação imporia um excessivo prejuízo para as partes, contrario ao espírito de simplificação e desburocratização do processo que a implantação do CITIUS visou permitir.
Em consequência do exposto, procedem as razões invocadas pelo recorrente, devendo ser revogado o despacho objecto de recurso.
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DECISÃO
Nos termos expostos, Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a Apelação, revogando a decisão objecto de recurso que deverá ser substituída por outra que admita a rectificação do erro material na identificação dos Réus, ordenando o prosseguimento dos autos em conformidade.
Sem custas

(Este Acórdão foi elaborado pela Relatora e por ela integralmente revisto)

Lisboa, 25 de Novembro de 2010

Maria Amélia Ameixoeira
Caetano Duarte
Carlos Marinho