Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
394/18.1T8HRT.L2-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: DESPEDIMENTO
JUSTA CAUSA
DEVERES DE PROBIDADE E DE OBEDIÊNCIA
MARINHEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - Incumbia ao Autor, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova (art. 342º nº1 do C.Civil), alegar e provar os factos constitutivos da excepção de caducidade que invoca.
II – Não é desproporcional a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, quando o trabalhador, marinheiro, chamado à atenção pelo mestre da embarcação, seu superior hierárquico, devido a questões técnicas de aportagem da mesma, se dirige ao mesmo em termos que violam os deveres de urbanidade e probidade, bem como de obediência.
(Elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
AAA instaurou a presente acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra BBB opondo-se ao despedimento promovido pela Ré.
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Teve lugar a audiência de partes, não sendo possível a sua conciliação.
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A Ré apresentou articulado de motivação do despedimento, alegando que o Autor foi seu funcionário com a categoria profissional de marinheiro. No dia 25-06-2018, ao regressarem de uma viagem Madalena/Horta, no navio Cruzeiro do Canal, e tendo como mestre da embarcação, (…), ao atracarem no porto da Horta, o mestre deu instruções ao Autor para mudar de cabeço no cais, já que o cabo da proa do navio tinha sido incorrectamente lançado por (…). O Autor, no entanto, depois de ter mudado o cabeço do cais, rodou, a bordo do navio, o cabo ao máximo (apesar do cabo ter uma marca que define o comprimento correto), o que não permitiu a realização da manobra de atracagem do navio.
O mestre da embarcação saiu da ponte e chamou à atenção o requerente para aliviar o cabo (ou seja, aumentar o comprimento). Perante aquele impasse, a manobra teve de ser novamente abortada, tendo o mestre proferido a seguinte expressão "custa a crer, já aos anos que trabalhas aqui e não sabes qual o cabeço de terra onde amarrar e que esse cabo tem uma marca". O Autor reagiu, e, de forma exaltada, disse ao mestre: "então o mestre que ligue para o chefe (…) para vir outro com mais experiência para o meu lugar", tendo o mestre retorquido "és um tolo".
Depois do mestre voltar para dentro da ponte da embarcação, o Autor foi ali tirar satisfações, e, encostando-se ao mestre, proferiu: "o que é que me chamaste caralho?", tendo o mestre dito que "com essa atitude de dizeres que vais te embora só por ter-te chamado à atenção por teres amarrado mal o navio, não é de uma pessoa inteligente." O Autor encostou-se ainda mais ao mestre, com as caras já praticamente a tocarem-se, e disse por duas vezes "vai para caralho”. O mestre ordenou ao Autor que saísse da ponte, tendo o mesmo recusado e dito "não mandas em mim".
Mais uma vez, o mestre insistiu para o Autor sair da ponte, tendo o mesmo retorquido novamente "vai para o caralho".
A saída do Autor da ponte era imprescindível para concluir a manobra, uma vez que o mesmo estava a bloquear a visibilidade da janela da Ré (zona do navio), e o cabo não estava muito "calçado".
Quando finalmente abandonou a ponte, o Autor continuou a mandar o mestre para o "caralho" e "vai para a puta que te pariu" e "tolo foi quem te pariu".
O Autor, conscientemente, quis desobedecer às ordens legítimas do mestre - seu superior - em plena operação de manobra de atracagem da embarcação.
O Autor, ao não abandonar a ponte, conforme lhe foi ordenado, colocou em causa a segurança da operação da atracagem do navio, dos passageiros e tripulantes.
O Autor recusou-se, continuadamente e em diversas ocasiões, a reconhecer o seu dever de obediência, a que está legalmente obrigado.
Com as expressões proferidas, bem como a forma exaltada, agressiva e rude como as proferiu, o Autor quis e conseguiu ofender a honra e consideração do seu superior, bem como intimidá-lo.
Conclui pela improcedência da acção, devendo o tribunal reconhecer que à Ré, como entidade empregadora, assistia e assiste justa causa para despedir o Autor.
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O Autor contestou, impugnando os factos alegados pela Ré e arguindo a excepção de caducidade do direito de aplicação da sanção disciplinar.
Deduz pedido reconvencional, peticionando créditos emergentes da relação laboral.
Conclui nos seguintes termos:
a) Deve a presente acção de impugnação ser julgada procedente, por não provada a justa causa de despedimento em que a Ré fundou a cessação do contrato de trabalho que a vinculou ao Autor;
b) Deve em consequência a Ré ser condenada a reintegrar o Autor ao seu serviço, nos termos do disposto na alínea b) do no 1 do art. 389º do Código do Trabalho, bem assim ao pagamento das retribuições devidas nos termos do artigo 390º do mesmo Código;
c) deve em qualquer caso a Ré ser condenada a pagar ao Autor o valor do subsídio de Natal de 2018.”
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A Ré respondeu à contestação, concluindo pela improcedência da excepção invocada, e, quanto à reconvenção, confessando-se devedora da quantia bruta de 716,62€.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia e a enunciação dos temas da prova.
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Foi proferido despacho saneador, o qual conheceu da validade e regularidade da instância.
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A sentença julgou a acção “parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) declara lícito o despedimento do Autor, AAA, realizado pela Ré, BBB;
b) condena a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 716,62, a título de subsídio de Natal vencido no ano de 2018;
c) absolve a Ré do que mais foi peticionado.”
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Inconformada, a Ré interpôs recurso.
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Este Tribunal da Relação decidiu:
 “ 1.Ordenar a notificação da Ré para juntar aos autos o registo do e-mail onde foi enviado o documento “deliberação/processo disciplinar/decisão final” pelo Presidente do seu Conselho de Administração.
2.Anular a sentença recorrida, e determinar que seja devidamente fundamentado o facto descrito sob o nº32, após a junção aos autos do documento referido em 1.”
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Na primeira instância foi dado cumprimento ao ordenado pelo Tribunal da Relação.
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Foi proferida sentença que “Pelo referido, atentas as orientações atrás explanadas, e ponderados todos os princípios e normas jurídicas que aos factos apurados se aplicam, julga o Tribunal a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) declara lícito o despedimento do Autor AAA, realizado pela Ré, BBB;
b) condena a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 716,62, a título de subsídio de Natal vencido no ano de 2018;
c) absolve a Ré do que mais foi peticionado.”
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Inconformado, o Autor interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
(…)                                                      
O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação, apôs visto no processo.
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Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos
Cumpre apreciar e decidir
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II – Objecto
Considerando as conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, cumpre decidir
- acerca da impugnação da matéria de facto;
- da caducidade do direito a aplicar sanção disciplinar;
caso se entenda que não se verifica a referida caducidade
- se ocorre justa causa para o despedimento do Autor.
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III – Fundamentação de Facto
São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância
1. Com antiguidade contada desde 14 de Março de 2014, AAA foi admitido ao serviço de BBB para, sob as ordens, direcção e fiscalização desta última, desempenhar as funções de ‘marinheiro de tráfego local’, a bordo das embarcações denominadas “(…)”, “(…)” e “(…)”.
2. (…), com a categoria profissional de ‘mestre de tráfego local’, comanda as embarcações e respectivas tripulações, nas viagens comerciais efectuadas pela BBB
3. Sendo superior hierárquico do Autor.
4. No dia 25 de Junho de 2018, o Autor e (…)desempenhavam funções na embarcação “(…)”.
5. Nessa data, às 16:30 horas, este navio dirigia-se ao Porto da Horta, na viagem Madalena /Horta.
6. Ao atracar no Porto da Horta, (…) ordenou ao Autor que mudasse o cabeço do cais onde o cabo da proa havia sido lançado por um outro funcionário.
7. Pois estava a impedir a realização da manobra de atracagem.
8. De seguida, (...) ordenou ao Autor que ‘aliviasse’ o cabo, aumentando o seu comprimento, uma vez que o mesmo havia sido rodado ‘ao máximo’.
9. Nesse momento, (...) disse ao Autor: “custa a crer, já aos anos que trabalhas aqui e não sabes qual o cabeço de terra onde amarrar e que esse cabo tem uma marca”.
10. O Autor, então, reagiu, disse a (...): “liga para o chefe (…) para arranjar outro marinheiro com mais experiência, porque eu hoje já não faço mais viagem nenhuma contigo”.
11. Retorquindo (...): “és tolo”.
12. Voltando (...) para o interior da ponte da embarcação, o Autor, de forma exaltada, foi ao seu encontro nesse local, encostou-se ao mesmo e proferiu a seguinte expressão: “o que é que me chamaste caralho?”.
13. Respondendo (...): “chamei-te tolo porque com essa atitude de dizer que te vais embora só porque te chamei a atenção por teres amarrado mal o navio, não é de uma pessoa inteligente”.
14. Então, dirigindo-se a (...), o Autor disse, por mais do que uma vez: “vai para o caralho”.
15. E disse-lhe, ainda: “tolo é quem te pariu”.
16. Neste instante, (...) ordenou ao Autor, o qual impedia a visibilidade da janela, que saísse da ponte, de forma a concluir-se a manobra de atracagem.
17. Respondendo o Autor, sem sair da ponte da embarcação: “não mandas em mim”.
18. Em momento posterior, o Autor saiu da ponte e a embarcação foi atracada.
19. Após a atracagem, (...) ligou ao coordenador de serviço (…), determinando este último a presença de ambos no escritório na Horta.
20. Nestas instalações, com o Autor e (...) exaltados, este último, na presença do primeiro, comunicou a (…)os factos descritos nos números anteriores.
21. Nesse momento, o Autor, nervoso, afirmou: “não mandas em mim, nem em casa os meus pais mandam em mim, tu pedes para eu fazer alguma coisa”.
22. Nas circunstâncias descritas nos números anteriores, o Autor agiu de forma voluntária e consciente.
23. O Autor sabia que, a bordo da embarcação, o mestre é o comandante e a autoridade máxima, devendo obediência às suas determinações.
24. Nas circunstâncias descritas em 12), 14) e 15), sabia que ofendia a honra e consideração de (...), desrespeitando-o.
25. E, nas circunstâncias descritas em 17), que desobedecia às ordens que o mestre lhe dirigia.
26. Em 26 de Junho de 2018, a Ré instaurou procedimento disciplinar contra o Autor, com intenção de despedimento com justa causa, pelos factos descritos nos números anteriores.
27. Assim comunicando ao Autor, na mesma data.
28. Em 3 de Agosto de 2018, a Ré comunicou ao Autor o teor da nota de culpa.
29. O Autor apresentou resposta, com rol de testemunhas, em 20 de Agosto seguinte.
30. Em 30 de Agosto, foi ouvida a última testemunha.
31. Em 27 de Setembro, o instrutor elaborou o relatório final.
32. Em 28 de Setembro, o Conselho de Administração da Ré, com vista a prolação da decisão final, procedeu nos seguintes termos:
a) após deliberação, o Presidente do Conselho de Administração, que desempenha funções na Ilha de São Miguel, redigiu-a e assinou-a;
b) de seguida, digitalizou-a e remeteu essa digitalização para a sede da empresa, localizada na Ilha do Faial;
c) na sede da empresa, este escrito com a menção “deliberação” / “decisão final” foi assinado pelo Vogal Efectivo;
d) consta deste escrito que: “em consequência delibera-se aplicar a sanção disciplinar de despedimento com justa causa ao trabalhador AAA.
33. Após, este escrito com a “deliberação” foi enviado ao Autor, sendo a carta expedida por via postal em 2 de Outubro de 2018.
34. Em 16 de Dezembro de 2016, o Conselho de Administração da Ré havia proferido a seguinte deliberação:
“...a delegação de competências do Presidente e do Vogal Efectivo do Conselho de Administração (...), nos seguintes termos:
(...)
c) contratação de pessoal e cessação das respectivas relações laborais, bem como o exercício do poder disciplinar...”.
35. O Autor não tem antecedentes disciplinares registados.
36. É considerado pelos colegas e superiores hierárquicos como um marinheiro cumpridor, competente e obediente.
37. E é considerado, na empresa e no seu círculo social, como uma pessoa serena, introvertida e apaziguadora.
38. No exercício das suas funções, até então, apenas tinha assumido a sua posição na proa da embarcação por quatro / cinco vezes.
39. Sendo habitual assumir a sua posição no portaló da embarcação.
40. Em data anterior a 25 de Junho de 2018, não concretamente determinada, (...) havia dito ao Coordenador, (…), que queria marinheiros ‘mais experientes’ no exercício das suas funções.
41. Em data também não concretamente determinada, anterior a 25 de Junho de 2018, a bordo de uma das embarcações da Ré, (...), dirigindo-se ao Autor e a um outro marinheiro, disse-lhes: “vocês vão continuar aí sentados?”.
42. Noutra data, também não concretamente determinada, mas anterior a 25 de Junho de 2018, no bar de uma das embarcações da Ré, diante de passageiros, (...), dirigindo-se ao Autor, disse-lhe: “(…) tu és grande mas eu não tenho medo de ti”.
43. O Autor, na altura, afastou-se, saindo do bar.
44. A Ré não pagou ao Autor o subsídio de Natal relativo ao ano de 2018.
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IV – Apreciação do Recurso
A – Da Impugnação da Matéria de Facto
(…)
Nos termos do disposto no artigo 341º do C.Civil, “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.” No entanto, “a demonstração da realidade a que tende a prova não é uma operação lógica, visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente), como é, por exemplo, o desenvolvimento de um teorema nas ciências matemáticas.
(…)
A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.”[1]
A lei processual civil consagra, em matéria de prova, dois princípios: o da disponibilidade das provas e o da livre apreciação judicial das provas[2]. De acordo com o primeiro princípio, o juiz deve apoiar a sua decisão nas provas carreadas pelas partes para o processo, embora a lei lhe atribua o poder de ordenar as diligências que entenda necessárias para a descoberta da verdade[3] . De acordo com o segundo princípio, o juiz pode apreciar livremente as provas, quer no tocante à sua admissibilidade, quer no que respeita ao seu valor probatório.[4]
Quanto à prova testemunhal, o artigo 396º do C.Civil determina que “[A] força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal”.
Por sua vez, a prova por declarações de parte surgiu legalmente regulada com a entrada em vigor do actual CPC - Lei 41/2013, de 26 de Junho - estando prevista no artigo 466º.
Na Exposição de Motivos do diploma esclareceu-se que, agora prevê-se “a possibilidade de prestarem declarações em  audiência as próprias  partes, quando  face  à  natureza  pessoal  dos  factos a  averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão”, aliás à semelhança daquela que era já a prática dos tribunais.
É, portanto, inequívoco que as declarações de parte sobre factos que lhe sejam favoráveis devem ser apreciadas pelo tribunal, sendo valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova. Essas declarações devem, porém, ser atendidas e valoradas com algum cuidado uma vez que são declarações de pessoas interessadas no desfecho da acção, e, por conseguinte, tendencialmente parciais, vindo a jurisprudência a entender que, quanto a factos essenciais e que são favoráveis à parte, as respectivas declarações serão, em princípio, insuficientes só por si, desacompanhadas de outras provas, para as sustentar. [5] /[6]
Assim, a par do depoimento de parte, consagrou a lei a possibilidade de se considerarem as declarações das partes quanto a matéria que lhes é favorável, ainda que entendida a valoração deste meio de prova com grano salis.
(…)
E, assim sendo, consideramos que nenhuma censura merece a resposta à matéria de facto que foi dada pela primeira instância aos factos ora impugnados, improcedendo, nesta parte, o recurso.
***
B – Da Caducidade do Direito de Aplicação de Sanção
De acordo com o disposto no artigo 357º nº1 do CT, “Recebidos os pareceres referidos no nº5 do artigo anterior[7] ou decorrido o prazo para o efeito, o empregador dispõe de 30 dias para proferir decisão de despedimento, sob pena de caducidade do direito de aplicar a sanção.” E o nº2 “Quando não exista comissão de trabalhadores e o trabalhador não seja representante sindical, o prazo referido no número anterior conta-se a partir da data da conclusão da última diligência de instrução”.
Resulta dos factos provados que em 30 de Agosto, foi ouvida a última testemunha, e que em 28 de Setembro, o Conselho de Administração da Ré, com vista a prolação da decisão final, deliberou despedir o trabalhador, ora Autor, com invocação de justa causa, o que significa que foi cumprido o prazo a que se refere o artigo 357º do CT, improcedendo a invocada excepção de caducidade. Na verdade, incumbia ao Autor, de acoco com as regras de repartição do ónus da prova (art. 342º nº1 do C.Civil), alegar e provar os factos constitutivos da excepção de caducidade que invoca, desiderato que não logrou alcançar, improcedendo, assim, nesta parte, o recurso.
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C – Da Justa Causa de Despedimento
Quanto a esta questão, o apelante defende, para afastar a existência de justa causa para o seu despedimento, que
- a alteração da matéria de facto, em consequência do presente recurso, tem como consequência inevitável que seja considerada a total falta de justa causa de despedimento;
- ocorreu manifesta falta de proporcionalidade na aplicação da sanção, face à infracção cometida;
Quanto ao primeiro argumento, caindo por terra a impugnação da matéria de facto, o mesmo improcede.
Vejamos agora se o despedimento sem justa causa é uma sanção desproporcionada em relação à infracção cometida pelo trabalhador.
A primeira instância fundamentou da seguinte forma a sua decisão: “Então, chegando-se aqui, pergunta-se: é exigível à Ré, na qualidade de empregadora, face a esta acção do Autor, decidir pela manutenção da relação laboral? No entendimento deste Tribunal, a resposta a esta pergunta, ponderando todos aqueles elementos, tem de ser negativa. Há, da parte do Autor, uma acção, não só ilícita e censurável, mas também que, pelas razões acima explanadas, e não obstante a ausência de antecedentes disciplinares e as boas referências pessoais e profissionais, produz uma quebra da confiança outrora existente entre a Ré e este seu trabalhador. Uma quebra de confiança que é susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, conduzindo à conclusão de que deixa de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2003, disponível em www.stj.pt, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Outubro de 2010, disponível em www.dgsi.pt). É que, reiterando o que já se disse, e seguindo, de novo, a doutrina do Prof. Monteiro Fernandes (ob. cit.), “não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença – fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo”, preenchendo-se o conceito de justa causa “com situações que, em concreto (isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiam tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo”.
Por todas estas considerações, este comportamento em concreto de AAA justifica, à luz do critério objectivo do “empregador razoável”, que a Ré tenha instaurado procedimento disciplinar e concluído, ao abrigo do mesmo, pela necessidade do despedimento, com preenchimento, em absoluto, do conceito de justa causa, nos termos do 351º, nº 1, do Código do Trabalho. Pelo que, desta forma, improcede a pretensão do Autor, sendo lícito o despedimento e infundado o seu pedido de compensação, à luz dos arts. 389º, nº 1, e 390º do Código do Trabalho.
Não está em causa neste recurso que o Autor praticou ilícitos ao violar os deveres de urbanidade e probidade, bem como de obediência, a que estava adstrito.
A questão consiste em apreciar e decidir se a sanção aplicada é ou não desproporcional.
Atendendo a que os factos imputados ao Autor, que deram origem ao processo disciplinar, que culminou na aplicação da sanção de despedimento, ocorreram na vigência do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro (cfr art. 7º, nº 1 e 12º) é esta a lei aplicável ao presente caso.
As sanções disciplinares legalmente admissíveis estão elencadas no art. 328º do CT, determinando o nº1 do art. 330º que “A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infracção.
Nos termos do disposto no art. 351º nº1 do CT, “Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

3. Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Não basta que tenha ocorrido uma violação dos deveres a que está obrigado o trabalhador. Cumpre ademais formular um juízo sobre os efeitos reais e concretos que a infracção praticada tem na relação de trabalho, pois o apuramento da “justa causa” corporiza-se essencialmente na impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho, que a jurisprudência tem interpretado, considerando as seguintes vertentes:
- a impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzida à ideia de “inexigibilidade” da manutenção vinculística;
- exige-se uma “impossibilidade prática”, com necessária referência ao vínculo laboral em concreto;
- e “imediata” no sentido de comprometer, desde logo e sem mais, o futuro da relação contratual laboral.
Para integrar este elemento de impossibilidade da manutenção da relação laboral, torna-se necessário fazer um prognóstico sobre a viabilidade da relação contratual, no sentido de saber se ela mantém, ou não, a aptidão e idoneidade para prosseguir a função típica que lhe está cometida.
Nessa linha de entendimento, a jurisprudência dos tribunais superiores vem reafirmando que a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral verifica-se quando, perante um comportamento ilícito, culposo e com consequências gravosas na relação laboral, ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral. [8]
Como se afirma no último aresto citado, “ A subsistência do contrato é aferida no contexto do juízo de prognose em que se projecta o reflexo da infracção e do complexo de interesses por ela afectados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma.

A ponderação integral deste conjunto de circunstâncias permite projectar os factos imputados ao trabalhador no contexto da relação de trabalho e ponderar a partir daí o reflexo dos mesmos na estabilidade daquela relação, como base do juízo de tolerabilidade da sua manutenção.
Ou seja, cumpre apurar se a gravidade e as consequências do acto praticado pelo trabalhador determinam a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, o que “sucederá sempre que a ruptura da relação laboral seja irremediável na medida em que nenhuma outra sanção seja susceptível de sanar a crise contratual aberta com aquele comportamento culposo.”[9]
Na indagação da “justa causa” de despedimento intervêm, deste modo, juízos de prognose e juízos valorativos necessários ao preenchimento individualizado de uma hipótese legal indeterminada, a par, bem entendido, das operações lógico-subsuntivas a que se reporta o ónus da prova”.[10]
António Monteiro Fernandes defende que a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral não corresponde a uma impossibilidade material, mas a uma “ … inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença – fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo …. Basicamente, prende-se a justa causa com situações que, em concreto, …tornam inexigível ao interessado na desvinculação o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo …” [11]
Nesta conformidade, a determinação em concreto da justa causa resolve-se pela ponderação de todos os interesses em presença, face à situação de facto que a gerou. Há justa causa quando, ponderados esses interesses e as circunstâncias do caso que se mostrem relevantes — intensidade da culpa, gravidade e consequências do comportamento, grau de lesão dos interesses do empregador, carácter das relações entre as partes —, se conclua pela premência da desvinculação.
Por conseguinte, o conceito de justa causa liga-se à inviabilidade do vínculo contratual, e corresponde a uma crise contratual extrema e irreversível.”[12]
Tal como lucidamente pondera Júlio Gomes (Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pág. 951), no respeitante às consequências da conduta do trabalhador, «estas deverão consistir num prejuízo grave para o empregador, embora tal prejuízo não seja necessariamente de ordem patrimonial. Com efeito, as consequências perniciosas podem consistir em minar a autoridade do empregador (ou do superior hierárquico), lesar a imagem da empresa ou num dano por assim dizer “organizacional”. Referimo-nos, com isto, ao que vulgarmente se refere pela perda de confiança no trabalhador».
A dificuldade está em saber quando é que aquela impossibilidade ocorre, uma vez que não se trata de uma situação de impossibilidade material, mas sim de uma situação de inexigibilidade jurídica.
A inexigibilidade envolve um juízo complexo que tem de ser feito caso a caso, o qual implica, “não só uma selecção dos factos e circunstâncias a atender, mas também uma série de valorações assentes em critérios de muito diferente natureza – éticos, organizacionais, técnico-económicos, gestionários – e mesmo, não raro, relacionados com pressupostos de ordem sócio-cultural e até afectiva” (cfr. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11º edição, pág. 542). Trata-se de um juízo a realizar segundo um padrão essencialmente psicológico, o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, que implica frequentes e intensos contactos entre os sujeitos.
Revertendo ao presente caso, o Autor declarou recusar-se a continuar a trabalhar com o mestre (...), para além de que, à ordem para que saísse da ponte, onde estava a impedir a visibilidade da janela, essencial para permitir que o mestre concluísse a manobra de atracagem, respondeu que aquele não mandava em si. Acresce que, chamado à atenção pelo mestre acerca da errada manobra de atracagem do barco que estava a levar a efeito, com necessidade daquele de sair da cabine de manobragem do barco para a ponte, onde se encontrava o Autor, este seguiu-o para o interior da ponte da embarcação, e, de forma exaltada, foi ao seu encontro nesse local, encostou-se ao mesmo e proferiu a seguinte expressão: “o que é que me chamaste caralho?”, ao que o mestre respondeu “chamei-te tolo porque com essa atitude de dizer que te vais embora só porque te chamei a atenção por teres amarrado mal o navio, não é de uma pessoa inteligente”. Então, dirigindo-se a (...), o Autor disse, por mais do que uma vez: “vai para o caralho”. E disse-lhe, ainda: “tolo é quem te pariu”.
É certo que o mestre do barco lhe chamou de tolo por causa da manobra que o Autor estava a realizar incorrectamente e de o mesmo ter dito que se ia embora. No entanto, em face da atitude do Autor, de desobediência, bem como de desafio do mestre da embarcação , seu superior hierárquico, não podemos deixar de entender que está comprometida a relação de confiança que o vínculo contratual laboral pressupõe, sendo fundada a dúvida do empregador sobre a idoneidade da futura prestação do Autor, se mantido no exercício das suas funções, razão pela qual entendemos ser licito o despedimento. De facto, não se vislumbra , de entre o elenco das sanções disciplinares legalmente previstas, que outra seria adequada e proporcional à gravidade das infracções perpetradas pelo Autor e ao dolo com que agiu, e como seria exigível ao empregador manter ao seu serviço um trabalhador em quem deixou de ter confiança, por a qualquer momento se recusar a trabalhar com um mestre, por não lhe agradarem as ordens emitidas ou o modo como são transmitidas, conduta que, no caso, não teve gravidade equiparada à conduta do Autor.
O Autor invoca a o seu passado disciplinar incólume, sem antecedentes disciplinares registado, o facto de ser considerado pelos colegas e superiores hierárquicos como um marinheiro cumpridor, competente e obediente, e na empresa e no seu círculo social, como uma pessoa serena, introvertida e apaziguadora. Mas estas razões não podem ter qualquer acolhimento no sentido de infirmarem a conclusão de que o empregador não pode continuar a ter confiança num trabalhador que, face a uma contrariedade reage de forma disruptiva perante um superior hierárquico. O facto de o trabalhador não ter até ao momento sofrido quaisquer sanções disciplinares, é certo que abona o seu comportamento profissional, mas a verdade é que esse é o comportamento expectável de qualquer trabalhador.
É certo que se tratava de um trabalhador cumpridor no exercício das suas funções, mas esse facto não assume valor suficiente para relevar faltas da envergadura daquelas a que se referem os autos.
Aliás, já por duas outras vezes, o mestre em causa tinha chamado a atenção do Autor: a bordo de uma das embarcações da Ré, dirigindo-se-lhe e a um outro marinheiro, e dizendo-lhes: “vocês vão continuar aí sentados?”, e noutra data, no bar de uma das embarcações da Ré, diante de passageiros, (...), dirigindo-se ao Autor, disse-lhe: “João tu és grande mas eu não tenho medo de ti”, o que constitui uma expressão muito curiosa, embora não tenha sido devidamente concretizado o contexto em que ocorreu.
O que está em causa é a confiança da Ré no Autor e essa está irremediavelmente abalada.
Soçobra, pois, integralmente o recurso, entendendo o Tribunal que o despedimento do Autor é lícito.
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V – Decisão
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar totalmente improcedente o presente recurso de apelação interposto por AAA, mantendo integralmente a sentença recorrida.
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Custas a cargo do Apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 2021-11-24
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Filomena Manso
Duro Mateus Cardoso
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[1] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, págs, 435 e 436.
[2] Cfr. Adriano Vaz Serra, Provas - Direito Probatório Material – 1962, pág. 14-15.
[3] Cfr. artigos 3º, 5º e 311º do CPC e 342º n1 do C.Civil. Como se afirma no Acórdão do TC nº86/88 de 13 de Abril , no sítio do Tribunal Constitucional: “Este direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos é, entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit. p. 364).” (sic)
[4] Cfr. artigo 607º nº5 do CPC e Vaz Serra, ob citada, pág. 15.
[5] Cfr., entre outros, Acórdãos da Relação de Lisboa de 13-10-2016 – Processo 640/13.8TCLRS.L1.-2 – de 07-06-2016 – Processo 427/13.8T8TVLSB.L1 – de 01-06-2016 – Processo 387/12.2 TTPDL.L1 – Acórdãos da Relação do Porto de 07-11-2016 – Processo 1367/15.1 T8VIS.P1 – e de 20-06-2016 – Processo 2050/14.0 T8PRT.P1.
[6] Também a doutrina aponta no mesmo sentido – vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro,  Primeiras  Notas  ao  Código  de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, 2ª ed., 2014, 395 - “A experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente.”
[7] Pareceres da comissão de trabalhadores, caso a haja, ou, caso o trabalhador seja representante sindical, da associação respectiva.
[8] Nesse sentido, vejam-se, entre outros e na jurisprudência, os Acórdãos do STJ de 07-02-2007 – Proc 06S2839, de 22-04-2009 -  Proc 09S0153, de 29.04.2009 - Proc 08S3081, de 17-06-2009 - Proc 08S3698, de 03.6.2009 - Proc 08S3085, de 15-09-2010, Proc 254/07.1TTVLG.P1.S1, de 7-10-2010 - Proc 439/07.0TTFAR.E1.S1, de 13-10-2010, Proc 142/06.9//LRS.L1.S1, de 03-10-2012 – Proc 338/08.9 TTLSB.L1.S2, 4º secção, todos eles disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[9] Ac. Rel. Lisboa de 19-05-2004.
[10] Ac. STJ de 27-06-2007 – Proc. 07S1050.
[11] Direito do Trabalho, 11º edição, pág. 540 – 541.
[12] Ac STJ 12-09-2012, Proc 492/08.0 TTLMN.P1.S1.
Decisão Texto Integral: