Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14509/13.2T2SNT-A.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: PROVA PERICIAL
INDEFERIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Ao avaliar a pertinência de um exame o juiz tem presente os deveres de busca da verdade material e de gestão processual.
II. É impertinente, designadamente, o exame que não exige conhecimentos especiais, não respeita a factos, concerne a factos provados ou se revela, à partida, manifestamente inviável ou redundante, não trazendo elementos úteis para a boa decisão da questão controvertida no processo.
(Elaborado pelo Relator).
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
A.: AA;
R.: BB, SA.
O A. alegou, no essencial, que a R. o despediu sem justa causa, num processo que inclusivamente lhe causou problemas de saúde, e que lhe ficou a dever créditos laborais vencidos e não pagos; e demandou que seja declarado ilícito o despedimento por inexistência de justa causa, ou precedência de processo disciplinar; seja a R. condenada a pagar-lhe:
- uma indemnização de antiguidade, calculada nos termos do artigo 391 n.º 1 do código de trabalho, que se cifra em € 2.043,00 à data;
• € 2.850,00 relativos à diferença entre a retribuição devida de € 681,00 e a retribuição efectivamente auferida pelo a. de € 485,00, entre os meses de novembro de 2011 e Julho de 2012 = € 1.764,00 (€ 196,00 x 9 meses) e entre a diferença da retribuição devida de € 681,00 e a efectivamente auferida pelo autor de € 500,00, entre os meses de agosto de 2012 e janeiro de 2013 = € 1.086,00 (€ 181,00 x 6 meses),
• € 181,86 referente a férias não pagas de 22 de novembro 2012 a 01 de dezembro de 2012,
• retribuição desde 30 dias anteriores à propositura da presente acção, no montante já vencido de € 681,00, bem como, as vincendas até à data do trânsito em julgado da decisão,
• € 3.000,00 a título de danos não patrimoniais,
tudo num total de € 8.755,86, acrescidos de juros à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação, até integral e efectivo pagamento.
Acrescenta-se ainda que o A. alegou que se viu obrigado a desempenhar trabalho pesado, alheio à sua categoria profissional (pi, art.º 25 a 30, 68 a 72, 89, 91), o que lhe provocou o rebentamento de uma hérnia inguinal, pelo que teve de ser submetido a uma cirurgia urgente e esteve de baixa (31 a 34, 73-74, 86), tendo sido essa debilidade física que levou a R. a despedi-lo (53, 77, 84), e que teve ainda problemas do foro psicológico e patologia tiróidea (87 e 93).
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A R. contestou, impugnando a versão do A. e pediu a sua absolvição da instancia.
Ao indicar provas requereu o exame do Autor no Instituto de Medicina Legal para que se apure:
a) Desde quando sofre de padecimento da tiróide;
b) Quando lhe surgiu a primeira hérnia inguinal, bem assim, a influência dessa primeira hérnia na segunda;
c) Se o Autor sofre de problemas do foro psicológico, quais e a que se devem.
A R. alegou ainda que o A. não fazia trabalhos pesados (contestação, 17 a 24), que o A. já tinha uma hérnia inguinal do lado contrário, sendo natural abrir do lado oposto (27-30, 49-50), como já tinha a patologia tiróidea (51).
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Saneado o processo, o Tribunal decidiu:

“A matéria que a ré pretende ver esclarecida através de perícia médica a realizar no instituto de medicina legal não é passível de ser esclarecida através de tal meio de prova.
Com efeito, os senhores peritos médicos não conseguem, por observação do autor e com recurso aos seus conhecimentos médicos especializados, saber desde quando é que o autor sofre de padecimento de tiróide ou quando lhe surgiu a primeira hérnia e a que se devem os seus problemas psicológicos.
As considerações que os mesmos viessem a fazer sobre estas questões teriam sempre de assentar necessariamente em declarações que lhes fossem feitas pelo autor e não em conhecimentos médicos especializados.
Face a tal, considera-se que a perícia requerida não é pertinente pelo que se indefere a realização da mesma”.
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Inconformada, a R. recorreu, concluindo:
(…)
Findou pedindo a revogação do despacho, substituído por decisão que ordene a perícia médica requerida.
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O A. pugnou pela manutenção da decisão, concluindo:
(…)
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O MºPº pronunciou-se pela improcedência do recurso.
A R. respondeu dando por reproduzida a sua posição.
Os autos foram aos vistos.
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FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar neste recurso – considerando que o seu objecto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, 635/4, 608/2 e 663, todos do Novo Código de Processo Civil, NCPC) – se a diligência indeferida deve ter lugar ou não.
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Factos provados: os referidos supra no relatório.
De acordo com o disposto no art.º 476/1 do NCPC, aliás na sequência do regime anterior, o Tribunal pode indeferir a perícia quando a mesma for impertinente ou dilatória.
Este poder, mais do que uma faculdade, redunda num imperativo para agir decorrente do dever de gestão processual consagrado no art.º 6º, n.º 1: “cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.
Ora, o que carateriza a impertinência?
Diz a R. que é “o tema que não interessa à decisão da causa”.
Seria o caso de o requerente, usando o velho exemplo de escola de José Alberto dos Reis, querer provar o facto totalmente irrelevante de “o papa estar em Roma”.
Mas está equivocada: há mais casos de impertinência.
Se a parte tem um documento que faz prova plena e se propõe provar o facto por outros meios, há obviamente impertinência.
Também a há se o meio é inadequado – por exemplo, se pretende confessar factos que lhe são favoráveis, ao arrepio do disposto no art.º 352 do Código Civil.
No caso da perícia é óbvia a sua impertinência se não respeitar a factos cuja apreensão exija conhecimentos especiais (convergindo cfr. acórdão da Relação do Porto de 25.2.2002, disponível, como todos os acórdãos citados sem menção da fonte, em www.dgsi.pt), ou que não integrem a causa de pedir (RP, 15.4.2013; Relação de Coimbra, 12.5.2009)[1].
Mas existe outrossim impertinência, a nosso ver, quando, num juízo de prognose baseado no conhecimento e na experiencia se pode concluir que manifestamente diligencia não produzirá resultados úteis. Neste caso evidencia-se a sua impertinência e outrossim o seu caráter dilatório.
Nem se diga que o Tribunal não pode afirmá-lo: pode e deve, cabendo à parte, ao impugnar a decisão, esclarecer porque é que está enganado, designadamente socorrendo-se, caso existam, de elementos técnicos nesse sentido, vg citando peritos que o afirmem.
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Deve ter-se presente, de todo o modo, a busca da verdade material: também aqui a lei comete ao Tribunal um dever de atuar, desde logo face ao poder inquisitório que lhe é conferido (art.º 411, NCPC).
É no justo equilíbrio entre a busca da verdade e as exigências de celeridade –porque a delonga excessiva pode deitar a perder o direito – que cumpre atuar, mas sem perder de vista que o fim ultimo do processo é a realização da justiça material, que importa situar a questão.
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Ora, não há duvida de que se vislumbra que a diligencia pretendida pela R. não colhe nos seus precisos termos.
Primeiro, embora não o distinga, é claro que visa, não uma mas ao menos a realização de duas perícias: uma psicológica e outra física.
Aquela é posta de uma forma absolutamente genérica: o Autor sofre de problemas do foro psicológico, quais e a que se devem?
Manifestamente a questão – se se pode chamar a isto quesitos – é demasiado vaga e genérica: no mínimo exigir-se-ia uma indicação de sintomas ou sinais revelados pelo A..
É certo que foi assim que o A. se referiu, mas tal, para este efeito, é absolutamente insuficiente.
Mais se notará que a perícia não é médica (psiquiátrica), mas meramente psicológica, o que ainda a torna menos viável.
Tem razão aqui o despacho.
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Também quanto ao padecimento de patologia tiróidea, o exame não é pertinente: o A. imputa à R. os seus problemas nesta sede, competindo a ele prová-los (art.º 342/1, Código Civil); não basta à R., porém, a eventual demonstração da existência de problemas anteriores, devendo demonstrar também que não se agravaram devido à conduta da empregadora.
E isso não foi sequer suscitado.
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No que concerne à hérnia inguinal, verificamos que a R. nega desde logo que o A. executasse tarefas pesadas, o que afastaria o cenário para a sua ocorrência.
A R. considera que foi uma primeira hérnia do A. que despoletou a segunda, que terá porventura ocorrido quando prestava a atividade laboral (ou durante a vigência do contrato). Não se refere portanto, diretamente, à hérnia sofrida no trabalho ou por causa dele, mas a uma anterior, entendendo que de aí é que promanam as condições para a que releva nos autos. Nesta ordem de ideias o exame visa, não comprovar certos factos (como seria se alegasse que o A. não tinha hérnia inguinal nenhuma) mas demonstrar um entendimento; entendimento, aliás, de alguém que não tem, que se saiba, quaisquer conhecimentos de medicina. Ou seja: a R. pretende uma consulta clínica abalizada sobre os possíveis efeitos de uma hérnia pré-existente.
Acresce que a hérnia terá sido, como é previsível, tratada, o que deixa os peritos meramente confrontados com a observação dos sinais cirúrgicos pós operatórios, que pouco adiantarão.
Mas há mais: não é a simples existência de uma hérnia e porventura de outra anterior que estão em causa. O que importa é a relação entre aquilo que se discute nos autos e a existência de uma lesão do trabalhador. Não é a responsabilidade por acidente de trabalho que é controvertida, mas sim se saber foi em resultado da incapacidade do A. que a R. o despediu. É, pois, secundário o que esteve na origem da hérnia, face à questão fundamental: a R. despediu-o considerando-o menos capaz para o desempenho da actividade? Apurar se o A. teve hérnia anterior e esta foi causa de uma segunda hérnia colocar-se-ia a montante, depois de se saber se há hérnia, mas também, e essencialmente, se foi pela diminuição das capacidades do A. em razão desse facto (ou de ter estado impossibilitado de trabalhar, dado não conhecer o demais alegado) que a R. o despediu. Perante isto e considerando o supra referido ónus da prova, temos de concluir pela redundância da perícia requerida.
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Ora perante o exposto afigura-se-nos que efetivamente as diligencias são impertinentes e dilatórias, nada adiantando de relevante e meramente atrasando os autos.
E isto tanto mais que é ao A. que incumbe provar esta matéria, com todas as consequências processuais.
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DECISÃO
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Lx, 4.6.14

Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes

[1] O acórdão da Relação de Coimbra de 15.5.2012, na fundamentação, indica as seguintes condições:
1. Se se tratarem de questões de facto;
2. Se se tratarem de questões respeitantes a factos relevantes para o exame e decisão da causa;
3. Se se tratarem de factos controvertidos ou necessitados de prova;
4. Se se tratarem de factos cuja percepção ou avaliação necessitem de conhecimentos especiais que o julgador não possua.
Decisão Texto Integral: