Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1000/20.0T8CSC.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: FALTAS INJUSTIFICADAS
TRABALHADORA LACTANTE
FAMÍLIA MONOPARENTAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I. O facto da trabalhadora ter filhos menores não permite por si só presumir hominis que as suas faltas injustificadas ao trabalho foram para lhes prestar assistência (importaria desde logo saber se não tinha rede familiar e/ ou social de apoio que tal justificasse).
II. A Relação deve aditar ex officio facto relevante para a decisão do mérito da causa que se mostre provado mas que assim não foi considerado na sentença recorrida, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea c) do CPC.
III. Releva para esse efeito o comportamento posterior da trabalhadora daí resultante: desde o dia seguinte à última falta injustificada relevada pela empregadora, faltou injustificadamente 19 dias nesse ano (2019), 3 dias no seguinte e 2 dias no posterior a este; sabendo-se que a apelante nunca obstaculizou ou sequer dificultou o exercício dos deveres parentais daquela, antes sempre aceitou as justificações das (outras) faltas que apresentou.
IV. As faltas injustificadas integram um incumprimento defeituoso do contrato violador dos deveres de assiduidade e pontualidade susceptível de gerar na entidade patronal a quebra de confiança no trabalhador, sendo um comportamento ilícito e presumivelmente culposo que legitimam o seu despedimento (art.os 128.ª, n.º 1, al. b) e 256.ª, n.os 1 e 2 do CT e 799.º do CC).
(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório.
AAA intentou a presente acção declarativa com, processo comum, contra instaurou contra BBB pedindo que a ré fosse seja declarada a existência de justa causa de despedimento nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 63.ª, n.º 6 do Código do Trabalho, com as legais consequências, alegando, em síntese, que a ré, sua trabalhadora, no ano de 2019 faltou injustificadamente ao serviço 12 dias inteiros interpolados e não cumpriu integralmente o seu horário de trabalho em 6 dias, interpolados, num total de 15H19m, na sequência do que lhe foi instaurado procedimento disciplinar, com vista ao despedimento por justa causa, e que sendo a trabalhadora lactante foi pedido parecer prévio à Comissão para a Igualdade no Tratamento e no Emprego que se pronunciou em sentido desfavorável ao despedimento.
Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.
Para tal notificada, a ré contestou, resumidamente alegando que em alguns dos dias identificados não faltou, noutros comunicou e justificou as faltas, só aceitando ter faltado 3 dias injustificadamente, é mãe de três filhas menores em regime monoparental, sendo as faltas consequência da assistência que lhes tem de prestar e a ausência de antecedentes disciplinares.
Proferido despacho saneador, foi julgada a instância válida e regular, dispensada a identificação do objecto do processo e dos temas de prova, admitidas as provas arroladas pelas partes e designada a data para realização da audiência de julgamento.
Realizada a audiência de julgamento, a Mm.ª Juíza preferiu a sentença, na qual julgou a acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, não reconheceu a existência de justa causa de despedimento da ré como pretendido pela autora.
Inconformada, a autora interpôs recurso, pedindo que a sentença proferida seja revogada e, consequentemente, substituída por outra que declare a licitude do despedimento, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
(…)
Contra-alegou a ré, sustentando que a douta sentença não merece qualquer censura, devendo o recurso ser considerado improcedente com todas as legais consequências.
Os autos foram com vista ao Ministério Público, tendo o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto sido de parecer que o recurso não merece provimento, devendo a sentença ser mantida.
Apenas a apelante respondeu ao parecer do Ministério Público, reafirmando a bondade da apelação.
Colhidos os vistos,[1] cumpre apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, sem prejuízo de se atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[2] Assim, porque em qualquer caso nenhuma destas nele se coloca, importa saber se:
• existiu justa causa para a apelante autora proceder ao despedimento da apelada  ré.
*
II - Fundamentos.
1. Factos julgados provados:
"1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à produção e comércio de produtos alimentares e não alimentares, o que faz directamente pela exploração de lojas denominada AAA.
2. Em 30 de Novembro de 2014, a Autora celebrou com a Ré contrato de trabalho a termo certo, pelo período de 6 meses, e que mercê das sucessivas renovações a Ré passou a integrar o quadro de colaboradores efectivos da Autora, exercendo as funções correspondentes à categoria profissional de Operadora de Supermercado de 1ª, auferindo mensalmente uma retribuição base de €650,00 (seiscentos e cinquenta e cinco euros).
3. A Ré encontrava-se à data da instauração da acção na situação de trabalhadora lactante.
4. Em 24 de Setembro de 2019, foi instaurado processo disciplinar à Ré na sequência de participação disciplinar elaborada pelo gerente de loja … e tentada a notificação da nota de culpa à Ré, por meio de carta registada com aviso de recepção em 13 de Novembro e 3 de Dezembro de 2019, ambas as cartas foram devolvidas, com informação dos CTT de 'objecto não reclamado', pelo que a Ré foi notificada por carta entregue em mão, datada de 30 de Dezembro de 2019, da nota de culpa, com informação de prazo para apresentação de defesa, da possibilidade de consulta dos autos e informação da possibilidade de a final ser aplicada sanção disciplinar de despedimento com justa causa, tendo a Ré apresentado defesa e respondido à nota de culpa.
5. Em 25 de Janeiro de 2020, foi proferido relatório intercalar pelo Instrutor de procedimento disciplinar, no qual descreve as diligências probatórias efectuadas, factos imputados à Ré, defesa apresentada e afirma que em face das mesmas diligências se afiguram totalmente preenchidos os pressupostos legais de verificação da existência de justa causa para aplicação de sanção disciplinar de despedimento sem indemnização ou compensação, promovendo o pedido de parecer da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE).
6. Em 29 de Janeiro de 2020, foi solicitado, nos termos do disposto no art.º 63.ª do Código do Trabalho, o parecer prévio da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE).
7. Por ofício datado de 28 de Fevereiro de 2020, e recebido pela Autora em 2 de Março, a CITE, pronunciou-se, por maioria, com voto contra do representante da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, em sentido desfavorável à intenção de despedimento da Ré.
8. A Ré exercia, à data dos factos em apreço, funções na loja de …e na loja do ….
9. O período normal de trabalho diário da Ré é de 8 horas, mas tinha sido à data dos factos de 6 horas, uma vez se encontrava a amamentar.
10. A pedido da Ré, a partir de Setembro de 2019, esta passou a ter um horário fixo, só trabalhando de segunda a sexta e folgando sempre ao sábado e ao domingo.
11. No ano civil de 2019 e de acordo com os respectivos registos dos tempos de trabalho, a Ré não compareceu ao serviço, no respectivo horário, nos seguintes dias e/ou tempo de trabalho:
19 de Janeiro – da inteiro
13 de Fevereiro - dia inteiro
14 de Fevereiro – dia inteiro
24 de Março – dia inteiro
30 de Março – dia inteiro
17 de Abril – das 10:00 às 13:00
19 de Maio – dia inteiro
20 de Junho das 10:00 às 11:43
24 de Junho – dia inteiro
23 de Julho – dia inteiro
10 de Agosto – dia inteiro
11 de Agosto – dia inteiro
18 de Agosto – dia inteiro
13 de Setembro – das 14:00 às 17:00
17 de Setembro – das 10:00 às 10:37
18 de Setembro – das 14:00 às 19:00
10 de Outubro - das 12:17 às 13:00 e das 14:00 às 14:26
21 de Outubro – dia inteiro.
12. A Autora considerou tais faltas injustificadas por falta de comunicação atempada ou falta de apresentação de documento comprovativo para as ausências.
13. O valor correspondente a cada um dos períodos de ausências foi descontado no ordenado da Ré.
14. Algumas dessas faltas foram dadas em dias imediatamente anteriores ou posteriores a dias de descanso gozados pela Ré nos seguintes termos:
- a falta do dia 19 de Janeiro foi dada no dia imediatamente anterior ao gozo do dia de folga de 20 de Janeiro;
- a falta do dia 24 e Março foi dada no dia imediatamente posterior ao gozo do dia de folga de 23 e Março;
- a falta do dia 30 e Março foi dada no dia imediatamente anterior ao gozo do dia de folga de 31 e Março;
- a falta do dia 19 de Maio foi dada no dia imediatamente anterior ao gozo do dia de folga de 20 de Maio;
- a falta do dia 20 de Junho foi dada no dia imediatamente posterior ao gozo do dia de folga de 19 de Junho;
- a falta do dia 24 de Junho foi dada no dia imediatamente posterior ao gozo do dia de folga de 23 de Junho;
- a falta do dia 23 de Julho foi dada no dia imediatamente posterior ao gozo do dia de folga de 22 de Julho;
- a falta do dia 18 de Agosto foi dada no dia imediatamente anterior ao gozo do período de férias;
- a falta do dia 21 de Outubro foi dada no dia imediatamente posterior ao gozo do dia de folga de 19 de Junho;
15. A Ré, no ano de 2019, pelo menos comunicou as faltas e apresentou documentos justificativos das mesmas, conforme documentos de fls. 45 a 60v, cujo teor se dá integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que a Autora considerou como faltas justificadas.
16. A Ré nos anos de 2019 a 2021 faltou ao serviço – faltas justificadas e injustificadas - nos dias e horas que constam do registo de assiduidade de fls. 136 a 140, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
17. A Ré não tem antecedentes disciplinares.
18. A Ré, nascida em …, é mãe de …, nascida em …, de …, nascida em … e de …, nascida em …, consigo residentes e à sua guarda e cuidado exclusivos".
2. O direito.
Vejamos então se os factos provados traduziam justa causa para a apelante despedir a ré.
Das conclusões retiradas pela apelante resulta que centraliza a sua discordância com a sentença apelada na circunstância desta sustentar o "entendimento segundo o qual a conduta posterior à concretização dos ilícitos disciplinares, devidamente provados, deve ser valorada para apreciação da justa causa ocorrida em 2019, e que mercê dos constrangimentos da pandemia originada pelo vírus SARS Cov 2 e pela doença Covid, apenas agora conhece decisão judicial".
A verdade é que Mm.ª Juiz a quo assentou a sua decisão nas seguintes premissas:
"Do registo de assiduidade da ré é inequívoco que a ré-trabalhadora tem um absentismo avassalador, seja em faltas justificadas, seja em faltas injustificadas.
A ré, falta para ir ao Banco, ir à Segurança Social, ir ao Tribunal, ir à escola das filhas, ir ao serviço do Ponto de Encontro do CAFAP, ir marcar consultas ao Centro de Saúde, ir a consultas médicas, por estar doente, por as filhas estarem doentes, e chega atrasada porque foi médico, adormeceu ou perdeu o autocarro.
E a autora, benevolentemente, tem justificado todas as faltas relativamente às quais a ré apresenta documento comprovativo, mesmo as idas ao Banco.
Mas, ao mesmo tempo a autora foi registando as faltas que considerou injustificadas e foi fazendo reflectir tais faltas injustificadas, com a consequente perda de retribuição no pagamento do salário nos meses respectivos, nos recibos de vencimento da ré, recibos esses e faltas injustificadas e perda de retribuição que a ré teve conhecimento, já que assinou todos os recibos.
E quando o número de faltas injustificadas atingiu um número superior a 10 interpoladas no ano de 2019 a autora instaurou procedimento disciplinar com vista ao despedimento, por esse facto.
(…)
Quanto aos 12 dias de faltas ao serem injustificadas, nos termos previstos nos art.os 248.ª, 249.ª, n.º 1 e 3, e 250.ª do Código do Trabalho, constituem violação do dever de assiduidade nos termos do art.º 256.ª, n.º 1, do mesmo Código. E o comportamento da ré é ainda tipificado como infracção grave pelo n.º 2 do art.º 256.º do Código do Trabalho, por ter faltado em dia imediatamente anterior ou posterior a dia de folga, no que se refere às faltas dos 8 dias concretamente identificados nos factos provados.
E tais faltas implicam uma violação, reiterada, do dever de assiduidade – consagrado no art.º 128.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho – nos termos do qual o trabalhador deve 'comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade', que está relacionado com o dever de zelo e diligência com que o trabalhador deve realizar o trabalho - consagrado na alínea c) do mesmo normativo -.
E tais comportamentos da ré não podem deixar de se considerar culposos, já que como ensina o Professor Dr. Pedro Romano Martinez: 'Feita a prova da conduta ilícita do autor, presume-se que a sua actuação foi culposa, nos termos do artigo 799.º do Código Civil.
(…)
E mais recentemente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/2020, processo n.º 2776/19.2T8SNT.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt igualmente de decidiu que no caso dum autor que incorreu em 10 faltas injustificadas no mesmo ano civil e de terem ocorrido, nestes 10 dias de faltas injustificadas, dias que são anteriores ou posteriores a dias de descanso, que 'Tendo o trabalhador incumprido reiteradamente o dever de comparecer ao serviço nos termos referidos, considera-se irremediavelmente comprometida a relação de confiança com o seu empregador, por ter criado neste uma dúvida séria sobre a idoneidade futura da sua conduta, tornando inexigível a manutenção da relação laboral; justificando-se a sanção disciplinar de despedimento, por não se vislumbrar, no quadro das sanções disciplinares conservatórias, qualquer uma susceptível de restabelecer a relação de confiança posta em causa pelo comportamento do trabalhador que não se preocupou em dar, de algum modo, a conhecer a razão das suas ausências'.
Com base nesta jurisprudência seria simples, bastando a ela aderir sem mais considerações, confirmar a intenção de despedimento da autora, perante tamanho volume de faltas injustificadas dadas pela ré no ano de 2019.
Contudo entende-se que assim não deve ser, ou não deve ser sem mais.
(…)
A ré é mãe solteira, ou família monoparental, de três filhas, nascidas em 12/05/2011, 6/03/2013 e 17/04/2017, e que consigo residem em regime de guarda exclusiva, que tinham à data das faltas em 2019, respectivamente, dependendo dos meses das faltas, 7-8, 5-6 e 1-2 anos.
A ré é de modesta condição económica, sendo os seus únicos rendimentos os do trabalho para a autora, no montante mensal de € 650,00 e tendo em 2019 auferido um rendimento total ilíquido de € 7.961,47 (como da declaração de rendimentos consta).
Afigura-se que de tal factualidade decorre a conclusão que existe alguma fragilidade social e económica da ré, já que tem parcos recursos económicos, trabalha a tempo completo com folga aos fins-de-semana, e tem a guarda e responsabilidades parentais inerentes ao quotidiano de três crianças pequenas exclusivamente a seu cargo.
Sempre que uma das filhas da ré está com uma simples febre ao acordar, ou passou a noite a vomitar ou com diarreia, tudo ocorrências banais, frequentes e repetidas da vida das crianças da idade das filhas da ré, sempre que apanham uma 'virose' (e é sabido que crianças em creches, jardim-escola e escolas primarias apanham constantemente 'viroses'), sempre que têm uma das várias doenças infantis, a ré, tem, necessariamente de faltar ao trabalho, porque não tem com quem as deixar, já que é uma família monoparental, e não tem capacidade económica para contratar uma empregada/babysitter para a substituir no cuidado às filhas enquanto vai trabalhar.
E se em caso de doenças mais graves ou mais persistentes a ré terá comprovativo médico de tal doença e necessidade de acompanhamento da filha, se for caso duma simples febre que existe de manhã e passa com um antipirético, a ré não vai, porque tal é desaconselhado medicamente e nem faz sentido, levar a criança a uma urgência hospitalar só para ter um documento comprovativo e assim fica sem documento para apresentar à autora. Fica assim a dúvida se as faltas não justificadas não se referem a situações destas, em que efectivamente não foi apresentado comprovativo, porque não existe.
E, afigura-se não se pode tratar da mesma forma as faltas injustificadas ou absentismo dum trabalhador sem responsabilidades familiares (seja com filhos, pais, cônjuge) e sem condições de saúde (seja saúde física ou mental) e as faltas, mesmos as injustificadas, dadas num contexto, como o da ré, de ser mãe solteira de três crianças tão pequenas, com tudo o que isso significa em termos de sobrecarga de tarefas familiares, exaustão e dificuldades de gestão do tempo.
Do mesmo modo demonstrou-se que a ré costumava comunicar e apresentar comprovativo para as suas faltas.
O Tribunal não pretende, de todo, desculpar, branquear ou justificar o comportamento da ré.
A ré faltou injustificadamente, e faltou demasiado e com isso demonstrou falta de zelo, falta de responsabilidade e falta de consideração para com a autora e seus colegas, pois bem sabe que se falta causa transtorno e prejuízo à organização da autora e ou aos colegas, já que ou sobrecarrega os colegas, que terão de fazer o trabalho deles e o da ré e eventualmente terão de prestar trabalho suplementar, ou há trabalho que fica por fazer.
E tal comportamento é obviamente culposo, grave e altamente censurável e merece repreensão.
(…)
Afigura-se que no caso concreto a sanção disciplinar aplicada enferma de alguma severidade e eventualmente alguma desproporcionalidade perante a ausência de passado disciplinar, a ausência de chamada de atenção para a desconformidade do comportamento, a condição pessoal da trabalhadora e a causa subjacente ao absentismo.
(…)
Ora, como resulta do registo de absentismo da ré, o comportamento de absentismo injustificado da ré foi totalmente alterado ou inflectido, já que no ano de 2020 'apenas' faltou três vezes, em 13/02/2020, 27/07/2020 e 22/10/2020 e no ano de 2021 'só' uma vez em 22/03/2021.
Perante o registo afigura-se que os factos ocorridos em 2019 terão sido isolados e restringidos a tal ano, tendo a ré adoptado, desde 2020, porventura em virtude do procedimento disciplinar que lhe foi movido e da pendência dos presentes autos, uma postura adequada e cumpridora dos seus deveres laborais.
(…)".
Daqui resulta, pois, que a Mm.ª Juiz a quo se louvou em duas ordens de factores para desvalorizar os factos praticados pela apelada no sentido de considerar excessiva a sanção do seu despedimento pela apelante: (i) as suas condições sociais e económicas e (ii) a inversão posterior do comportamento relapso da apelada.
No que concerne ao primeiro aspecto, não se pode negar alguma pertinência, embora se não possa de modo algum dizer que as faltas injustificadas ao trabalho por parte da apelada radicaram na necessidade da apelada prestar assistência aos filhos menores (doenças ligeiras que não justifiquem assistência médica efectiva) uma vez que isso não é um facto julgado provado nos autos; e, por outro lado, nem se pode sequer dizer que tal se poderia presumir hominis dos que o foram assim julgados, nos termos do art.º 351.º do Código Civil, uma vez que se desconhece se a mesma não tinha rede familiar e/ ou social de apoio que tal justificasse; e o mesmo se terá que dizer relativamente à afirmação na sentença de que se verificou "a ausência de chamada de atenção [da apelante] para a desconformidade do comportamento" pois que sobre isso também nada se provou, pelo que não poderia ter sido assim relevado; acresce considerar, por fim, que a apelante nunca obstaculizou ou sequer dificultou o exercício dos deveres parentais da apelada, antes sempre aceitou as justificações das (outras) faltas que apresentou (facto provado n.º 15).
Assim sendo, impõe-se concluir que o acento tónico da questão deve apenas ser colocado na pura e simples ausência de comunicação e de apresentação de qualquer justificação das faltas que a apelada entretanto foi dando, sendo tudo o mais puramente especulativo.
Relativamente ao segundo ponto, segundo o qual, lembramos, a sentença defendeu que se verificou a inversão posterior do comportamento relapso da apelada, o melhor que se pode dizer é quod erat demonstrandum! Vejamos.
Para assim decidir, a sentença louvou-se na seguinte ordem de considerações:
"…como resulta do registo de absentismo da ré, o comportamento de absentismo injustificado da ré foi totalmente alterado ou inflectido, já que no ano de 2020 'apenas' faltou três vezes, em 13/02/2020, 27/07/2020 e 22/10/2020 e no ano de 2021 'só' uma vez em 22/03/2021.
Perante o registo afigura-se que os factos ocorridos em 2019 terão sido isolados e restringidos a tal ano, tendo a ré adoptado, desde 2020, porventura em virtude do procedimento disciplinar que lhe foi movido e da pendência dos presentes autos, uma postura adequada e cumpridora dos seus deveres laborais. Seja porque a postura da ré para com o trabalho ou as suas contingências pessoais mudaram, seja porque a ameaça do despedimento a fez mudar, o certo é que neste momento e desde 2020 a ré demonstra um comportamento em termos de assiduidade e pontualidade conforme ao que é exigível e expectável.
Ou seja a relação laboral continuou e a ré cumpre agora com o que é expectável e exigível pelo que uma sanção de despedimento, executada em 2022 relativamente a factos ocorridos em 2019, por um comportamento absentista que foi drasticamente alterado, aparece como algo fora do tempo, ultrapassado ou extemporâneo".
Ora, se é verdade que a sentença julgou provado que "a Ré nos anos de 2019 a 2021 faltou ao serviço – faltas justificadas e injustificadas - nos dias e horas que constam do registo de assiduidade de fls. 136 a 140, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais";[3] todavia, analisando esse registo, o que daí se impõe concluir é que desde o dia seguinte à última falta injustificada relevada pela apelante para proceder ao despedimento da apelada esta faltou injustificadamente 19 dias no ano de 2019 (entre 20-06-2019 e 26-12-2019), 3 dias no ano de 2020 (a saber, 13-02-2020, 22-07-2020 e 22-10-2020) e 2 dias no ano de 2021 (ou seja, 22-03-2021 e 04-11-2021), dos quais 14 por tempo completo e 10 em parte do tempo. Note-se que a sentença seguiu no sentido de que essas foram "faltas justificadas e injustificadas", mas isso colide frontalmente com a respectiva fundamentação uma vez que a mesma se louvou no documento (o n.º 2, junto pela apelante no dia 16-11-2021 e não impugnado pela apelada, o que se recorda para efeitos dos art.os 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1 do Código Civil) e dele consta expressamente que todas essas faltas foram injustificadas;[4] pelo que nessa parte se alterará ex officio a decisão ex vi do estatuído no art.º 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil e arruma a questão de se ter verificado a inversão posterior do comportamento relapso da apelada (note-se que se está a tratar apenas de faltas injustificadas dadas pela apelada). Aditar-se-á, portanto, o seguinte facto aos provados: "16-A. A apelada faltou injustificadamente 19 dias no ano de 2019 (entre 20-06-2019 e 26-12-2019), 3 dias no ano de 2020 (isto é, 13-02-2020, 22-07-2020 e 22-10-2020) e 2 dias no ano de 2021 (ou seja, 22-03-2021 e 04-11-2021), dos quais 14 por tempo completo e 10 em parte do tempo".
Aqui chegados, resta concluir, como no acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça, 02-02-2010, no processo n.º 637/08.0TTBRG.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt e citado na sentença recorrida, que "visto que a relação laboral pressupõe uma execução continuada, as faltas sucessivas já integram um incumprimento defeituoso do vínculo, susceptível de gerar na entidade patronal a quebra de confiança no trabalhador e, em consequência, potenciar o seu legítimo despedimento. Por seu turno, os atrasos injustificados, desde que superiores a 30 ou 60 minutos, também determinam a existência de uma falta não justificada, com atinência, respectivamente, a metade ou a todo o período normal de trabalho diário, posto que o empregador recuse a prestação pelo período remanescente – artigo 231.º n.º 3. (…) As faltas, sendo injustificadas, integram um comportamento ilícito, presumindo-se a culpa do trabalhador – artigo 799.º n.º 1 do Código Civil". A que se acrescenta, continuando a citação do aresto, agora motu proprio: "… no caso dos autos, perspectivam-se as duas situações: faltas e atrasos adicionados. Segundo o n.º 3 alínea g) do artigo 396.º, constituem fundamento de despedimento as 'faltas não justificadas ao trabalho que determinem directamente prejuízos ou riscos graves para a empresa ou, independentemente de qualquer prejuízo ou risco, quando o número de faltas injustificadas atingir, em cada ano civil, 5 seguidas ou 10 interpoladas'. (…) Aqui chegados, só podemos concluir, como fez a Relação, que '... O comportamento da A. consubstancia violação consciente, reiterada e de acentuada gravidade, face designadamente à duração... dos atrasos ocorridos, dos deveres de assiduidade e pontualidade, violação essa susceptível de afectar não apenas a produtividade e disciplina na empresa, mas também, de forma que se nos afigura irremediável, a indispensável confiança do empregador quanto ao futuro comportamento da A., tornando-lhe inexigível que mantenha a relação laboral'. Perante o concreto dos autos, afigura-se-nos de todo evidente não ser exigível a uma entidade patronal colocada na posição da Ré que mantivesse a relação laboral firmada com a Autora, independentemente dos concretos prejuízos que possa ter suportado e que, na espécie, estava até dispensada de coligir".[5]
Resta, pois, conceder a apelação, revogar a sentença recorrida e, em consequência, declarar a existência de justa causa de despedimento da apelada BBB pela apelante AAA
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III - Decisão.
Termos em que se acorda:
• aditar ex officio o seguinte facto aos provados: "16-A. A apelada faltou injustificadamente 19 dias no ano de 2019 (entre 20-06-2019 e 26-12-2019), 3 dias no ano de 2020 (isto é, 13-02-2020, 22-07-2020 e 22-10-2020) e 2 dias no ano de 2021 (ou seja, 22-03-2021 e 04-11-2021), dos quais 14 por tempo completo e 10 em parte do tempo";
• conceder a apelação, revogar a sentença recorrida e, em consequência, declarar a existência de justa causa de despedimento da apelada BBB pela apelante AAA.
Custas pela apelada (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
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Lisboa, 11-05-2022.
António José Alves Duarte
Maria José Costa Pinto
 Manuela Bento Fialho
_______________________________________________________
[1] Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[2] Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[3] Facto provado n.º 16.
[4] Aliás, o documento é justamente intitulado "REGISTO ABSENTISMO INJUSTIFICADO (DESDE 01.01.2019 ATÉ 11.11.2021)".
[5] Este modo de ver as coisas foi de resto renovado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Código do Trabalho de 2009, como se vê do acórdão de, 30-06-2016, no processo n.º 506/12.9TTTMR-A.E1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
Decisão Texto Integral: