Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
227/18.9YRLSB-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETÊNCIA
PATENTE
INVALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O tribunal arbitral previsto no art.º 3.º da Lei n.º 62/2011 (para dirimir litígios entre empresas de medicamentos genéricos e entre empresas de medicamentos de referência respeitantes a direitos de propriedade industrial) não tem competência para apreciar, ainda que a título de mera exceção, a invalidade de patente.
II. O TC, no seu acórdão n.º 251/2017, proferido em 24.5.2017, julgou inconstitucional “a norma interpretativamente extraível do artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro e artigos 35.º, n.º 1, e 101.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial, ao estabelecer que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a parte não se pode defender, por exceção, mediante invocação da invalidade de patente, com meros efeitos inter partes.
III. Por considerarmos que o interesse público justifica que se imponha a quem pretenda prevalecer-se de invento patenteado em nome de outrem, que repute estar indevidamente protegido, que siga o específico caminho jurisdicional e processual traçado pelo legislador ordinário, porventura com recurso à intervenção do Ministério Público (instauração de ação de declaração de nulidade ou de anulação de patente ou de CCP, junto do TPI), não se vislumbrando que daí lhe advenha prejuízo intolerável ou desproporcionado, mantemos o entendimento acima exposto em I, aguardando nova pronúncia do TC sobre esta matéria para uma eventual inflexão de rumo, em respeito pelo disposto no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
No processo que corre os seus termos perante tribunal arbitral necessário entre M, Corp., como demandante, T B. V., A S.A. e S A.G., como demandadas, a demandante, inconformada com o acórdão saneador proferido em 15.10.2017, no qual o tribunal arbitral se julgou competente para apreciar a questão da invalidade de CCP arguida pelas demandadas, dele veio apelar, apresentando alegações em que terminou com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto pela Recorrente do Acórdão Saneador proferido pelo Tribunal Arbitral no dia 15 de outubro de 2017, no que se refere à sua própria competência para conhecer da validade ou invalidade do CCP 189 com reflexo e valor inter partes, na sequência da invocação da exceção de invalidade invocada pela Recorrida Teva.
2. A questão sob judicie no presente recurso reside em saber se, em geral, deve um tribunal arbitral ser considerado competente para poder apreciar e conhecer, em geral, da validade de uma patente ou, in casu, de um CCP.
3. O CCP 189 foi concedido tendo por patente base a EP 720 599, do qual a Recorrente é também titular, e por referência à primeira autorização de introdução no mercado europeu do medicamento contendo o produto que consiste na associação Ezetimiba +Sinvastatina.
4. Nos termos do artigo 5.º do Regulamento CCP, este certificado confere os mesmos direitos que os conferidos pela patente de base e está sujeito às mesmas limitações e obrigações.
5. Um CCP (e, portanto, também o CCP 189) corresponde em suma a um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, correspondendo a um direito de propriedade industrial absoluto e, como tal, oponível erga omnes.
6. A equiparação entre uma patente e um CCP não se faz só quanto aos direitos conferidos, nos termos do artigo 5.º do Regulamento CCP; faz-se também quanto aos tribunais competentes para promover a sua anulação e ao processo que para tanto devem seguir.
7. Um dos princípios basilares que preside à proteção da propriedade industrial encontra-se plasmado no artigo 4.º, n.º 2 do CPI, que estabelece que a concessão de direitos de propriedade industrial implica a presunção jurídica ("juris tantum") dos requisitos da sua concessão.
8. O único meio facultado pelo CPI para a elisão da presunção de validade de um título de propriedade industrial é a ação de nulidade ou de anulação, a intentar pelo Ministério Público ou por qualquer interessado, junto de um tribunal judicial, conforme resulta claramente do artigo 35.º n.ºs 1 e 2 do CPI.
9. Foi intenção do legislador estabelecer uma reserva de justiça estadual e a concentrar num único tribunal especializado o contencioso sobre a validade de direitos de propriedade industrial, tornando, deste modo, inarbitrável pelo Tribunal Arbitral qualquer pretensão atinente à apreciação e conhecimento dos fundamentos de invalidade de um direito de propriedade industrial, incluindo de um CCP.
10. A inarbitrabilidade da invalidade dos direitos de propriedade industrial (onde se incluem os CCPs) por tribunais arbitrais prende-se, desde logo, com (i) a natureza dos direitos em causa; (ii) a solenidade associada ao procedimento administrativo de concessão de direitos de propriedade industrial; e (iii) razões de lealdade da concorrência e transparência de mercado.
11. A declaração de invalidade, com meros efeitos inter partes, redundaria, na prática, na invalidação subjetivamente parcial do mesmo CCP, a qual passaria assim a ser inválida apenas em relação às Recorridas, continuando a ser válida e oponível contra todos os outros interessados.
12. A declaração de invalidade nestas circunstâncias destruiria a natureza de direito absoluto do direito do CCP, oponível erga omnes, sem que nada na lei autorize tal destruição.
13. Considerando ainda a natureza absoluta dos direitos privativos que resultam do CCP e da sua patente de base, encontram-se adstritos a averbamento e inscrição no título todos e quaisquer factos que limitem, modifiquem ou extingam esses direitos.
14. Este procedimento assegura especiais cautelas e garantias de legalidade, sendo pois apenas natural que a certificação legal de um título pela entidade administrativa competente implique a presunção da respetiva validade e que tal presunção apenas possa ser afastada por via de uma ação que ofereça iguais garantias de legalidade e especialidade.
15. Resulta evidente da análise das circunstâncias do caso concreto que a ideia da Teva com a dedução da exceção de invalidada do CCP 189 é tentar obter, de forma célere, uma decisão que lhes confira uma (injustificada) vantagem competitiva que só seria (e/ou deveria ser) possível alcançar através de uma ação de nulidade ou de anulação do CCP.
16. A aceitação da apreciação da exceção de invalidade do CCP 189 em ações arbitrais (ou só em algumas) poderia levar à prolação de decisões totalmente contraditórias relativamente ao mesmo, o que poderia, em teoria, conduzir ao cenário em que uma empresa de genéricos pudesse comercializar um genérico do medicamento contendo a associação Ezetimiba+Sinvastatina, enquanto outra estaria impedida de o fazer.
17. Assim, caso a ação de nulidade ou anulação junto do TPI que foi proposta nos termos do artigo 35.° do CPI seja julgada improcedente, julgando-se válido o CCP 189, tal decisão, embora eficaz erga omnes, teria de conviver com eventuais decisões arbitrais individuais que teriam considerado o CCP 189 inválido, permitindo assim a sua infração por agentes económicos que são parte nessas ações individuais.
18. Desde modo se conclui que, em razão de toda o exposto, não é sindicável pelo Tribunal Arbitrai, ainda que em sede de exceção, a matéria da alegada invalidade do CCP suscitada pela Teva, com fundamento na alegada inobservância do disposto no artigo 3.º do Regulamento (CE) n.2 469/2009.
19. A necessidade de celeridade na resolução deste tipo de litígios não pode sobrepor e justificar o desrespeito pelos preceitos legais aplicáveis, muito menos num domínio onde a segurança jurídica deve ser um dos princípios norteadores do sistema.
20. Ao contrário do que defende o Tribunal Recorrido, nada no elemento literal ou nos trabalhos preparatórios da Lei 62/2011 pode ser interpretado como suportando positivamente a competência do Tribunal Arbitral.
21. O artigo 1.º da LAV esclarece, aliás, que são inarbitráveis os litígios que, por lei especial, estejam submetidos exclusivamente à jurisdição dos tribunais do Estado, sendo naturalmente o artigo 35.º um claro caso nesse sentido.
22. A posição sufragada pelo Tribunal Arbitral está em total e expressa contradição com o entendimento maioritário jurisprudencial, seguido em sede tanto arbitrai como judicial, em concreto pelo tribunal ad quem, o Tribunal da Relação de Lisboa.
23. Não se ignora, no entanto, que o TC se pronunciou recentemente sobre a constitucionalidade da denegação da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a validade de uma patente, com efeitos inter partes, muito embora tal Acórdão não tenha força obrigatória geral.
24. A norma constitucional que se considerava violada era o artigo 20.º n.º 4 da CRP, em particular, a específica dimensão do direito à tutela jurisdicional efetiva designada por "proibição da indefesa".
25. Sucede que o TC só apreciou a problemática da violação da processo equitativo do ponto de vista do direito de defesa dos demandados nas ações arbitrais, centrada na questão da proporcionalidade da solução jurisprudencial em análise.
26. Porém, os efeitos —constitucionais — emergentes da solução encontrada pelo TC em resposta a essa problemática para os demandantes titulares de patentes foram totalmente desconsiderados.
27. Para fundamentar a conclusão de que "a norma objeto do presente julgamento [se] revela excessiva porquanto prejudica de modo desproporcionado o direito à defesa do requerente de AIM”, o TC baseia-se nas seguintes premissas; (i) a instauração de uma ação de invalidação de uma patente dificilmente terá qualquer influência na resolução do litígio pendente na ação arbitral, considerando o artigo 36.º do CPI e as normas processuais comuns relativas à suspensão da instância, previstas no artigo 272.º e seguintes do Código de Processo Civil; e (ii) o requerente/titular de AIM pode não ter um interesse na declaração de invalidade da patente através de uma ação de anulação com efeitos ergo omnes, visto que tal beneficiaria todos os terceiros concorrentes do titular da patente e não apenas o seu interesse económico.
28. Não apenas as premissas que fundamentaram o entendimento do Tribunal são erradas, o que comprometeu a exatidão do juizo de inconstitucionalidade que proferiu, como a ponderação exigida pelo artigo 18º, n.º 2 da CRP só foi feita a metade.
29. Se um direito de patente for declarado nulo depois da decisão arbitral, é evidente que tal facto permite modificar ou inutilizar a força de caso julgado conferida à decisão arbitral condenatória da demandada a partir da data dessa declaração de nulidade.
30. A inviabilidade de alegar a invalidade da patente, em resultado das regras de competência material do TPI, não implica qualquer perda do direito de defesa da Demandada, apenas alterando os termos em que a satisfação de tal direito pode ocorrer.
31. Quanto à suspensão da instância, a circunstância de a demandada numa ação de infração de patente possa ver o seu pedido de suspensão da instância recusado ao abrigo do artigo 272.º, n.° 2 do Código de Processo Civil não pode fundamentar sem mais o juízo de inconstitucionalidade oferecido.
32. Admitir-se que o pedido de suspensão da instância baseado em causa prejudicial seria sempre deferido é fazer-se uma interpretação inconstitucional do artigo 272.º, n.° 1 do CPC, por violação do direito à decisão da causa em prazo razoável.
33. Ao contrário do sindicado pelo TC, o direito de defesa das sociedades demandadas nas ações arbitrais não fica em nada limitada, nem tão-pouco aniquilado, pelo facto de a ação de nulidade que têm de propor (caso queiram ver anulado o direito de patente contra si invocado) ter efeitos erga omnes.
34. Esse seu potencial interesse — que não passa disso mesmo, ou seja, de um interesse e que não é constitucionalmente protegido — nada tem que ver com o direito de defesa cuja eventual restrição estava sob escrutínio
35. E ainda que esse interesse pudesse pesar na ponderação de interesses que cabia ao TC fazer nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da CRP, ele jamais poderia prevalecer sobre o direito de patente das sociedades demandantes, esse sim, um direito fundamental constitucionalmente protegido.
36. O interesse constitucionalmente protegido que estaria em confronto com o direita de defesa do demandado seria, nas palavras do TC, a proteção da “natureza do direito de patente, enquanto oponível erga omnes" e o "interesse de assegurar a competência exclusiva de determinado tribunal para apreciar a matéria", mas escapou ao TC a circunstância de que o que esses interesses visam proteger é o próprio direito de patente.
37. O direito constitucionalmente protegido que a solução em análise visa salvaguardar é o conteúdo essencial do direito de patente, diretamente protegido pela CRP por força do artigo 42.º ou do artigo 62.º.
38. O TC, no seu Acórdão, não cuidou de ver o que acontece ao direito de patente (ou de CCP) da ora Recorrente caso se admita a defesa por exceção baseada da nulidade da patente.
39. E ponto de partida essencial desta análise que não foi feita é a de que o direito de patente (ou de CCP) é um direito temporário ou efémero.
40. Admitir-se a defesa por exceção em ações arbitrais comportará consequências negativas inadmissíveis para este direito fundamental dos titulares de patentes — inadmissíveis porque verdadeiramente irreversíveis.
41. Significa isto que a interpretação recorrida veio admitir um solução que legitima a violação do conteúdo essencial de um direito enquadrável na categoria dos direitos, liberdades e garantias, por força do artigo 42.º da CRP (ou, pelo menos, de um direito com natureza a eles análoga, por força do artigo 62.º da Constituição), sendo pois materialmente inconstitucional por colidir como artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP.
42. Uma empresa que pretenda colocar o seu medicamento genérico no mercado já soube, em momento muito anterior à propositura da ação arbitrai, que o medicamento em causa está protegido por uma patente ou por um CCP, qual o seu escopo de proteção e quem é o seu titular e, caso tenha um interesse sério e efetivo em comercializar o produto em causa e pretendendo obter a invalidação da patente (ou do CCP) que o protege, têm à sua disposição variados meios de a impugnar, alguns dos quais inclusivamente preventivos.
43. Nada justifica— muito menos um interesse de um requerente da AIM — que, tendo o titular da patente logrado ultrapassar de forma triunfante esses obstáculos, veja o seu direito fundamental aniquilado para salvaguarda de uma mera restrição do direito de defesa dos demandados.
44. Em suma, uma interpretação dos artigos 35.º n.º 1 do CPC e 2.º da Lei n.º 62/2011 segundo a qual é admissível a declaração de nulidade de uma patente por um tribunal arbitral com efeitos inter partes importa a diminuição da extensão e do alcance do conteúdo essencial do direito fundamental de propriedade industrial das titulares de patentes de forma desproporcional, sendo materialmente inconstitucional por violação dos artigos 42.º, 62.º e 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, e representando uma solução, em violação do artigo 13.º da Lei Fundamental.
A apelante terminou pedindo que o acórdão impugnado fosse revogado na parte em que se declarou competente para conhecer da validade ou invalidade do CCP 189 com reflexo e valor inter partes, substituindo tal decisão por outra que julgue o Tribunal Arbitral incompetente para apreciar tal matéria.
A demandada Teva BV contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão recorrida. Não formulou conclusões.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão que cabe apreciar neste recurso é se o tribunal arbitral tem competência para apreciar a invalidade do CCP identificado, arguida pela demandada a título de exceção.
Emerge dos autos o seguinte
Factualismo
1. A demandante notificou as demandadas, para constituição do tribunal arbitral, por cartas datadas de 26.11.2015.
2. Em 15.6.2016 foi assinada a ata declarando instalado o tribunal arbitral ad hoc para dirimir o litígio entre a demandante e as demandadas supra referidas, relativo à substância ativa ezetimiba.
3. Na petição inicial a demandante alegou, em síntese, dedicar-se à investigação, indústria e comercialização de produtos farmacêuticos. Como tal, é titular da Patente de Invenção Europeia n.º 720 599 (EP 720 599), a qual protege, nomeadamente, um composto designado de “ezetimiba”,que é um inibidor da absorção do colesterol. A patente também protege a associação da ezetimiba com um outro composto, a sinvastatina. Esta patente vigorou até 14.9.2014. A demandante é titular de um Certificado Complementar de Proteção n.º 150 (CCP 150), concedido pelo INPI em 14.8.2003, tendo por patente base a EP 720 599 e por referência a primeira autorização de introdução no mercado europeu do medicamento contendo por substância ativa o produto ezetimiba, que data de 17.10.2002. Foi também pedida uma “extensão pediátrica” em relação ao CCP. O termo da vigência do CCP 150 é 17.4.2018. A demandante também é titular de um CCP 189, concedido pelo INPI em 28.4.2005, que tem por base a EP 720 599 e por referência a primeira autorização de introdução no mercado europeu do medicamento contendo como substância ativa o produto que consiste na associação da ezetimiba com a sinvastatina. O CCP 189 caducará em 02.4.2019. A demandante explora, em Portugal, contendo aquelas substâncias, os medicamentos Ezetrol, Inegy e Vytorin. As demandadas requereram AIMs referentes a medicamentos genéricos tendo como referência os medicamentos e substâncias ativas acima referidas. O fabrico, oferta, armazenamento, etc, desses genéricos violará os direitos de propriedade industrial da demandante.
4. A final da p.i. a demandante pediu que as demandadas fossem condenadas a absterem-se da prática de atos, que descreveu, enquanto os CCP 150 e 180 estivessem em vigor, que fossem condenadas a não transmitirem a terceiros as pertinentes AIMs, que fossem condenadas a sanção pecuniária compulsória e, bem assim, no pagamento dos honorários e despesas que indicou.
5. A demandada T B.V. contestou, alegando, em síntese, que não irá comercializar os seus medicamentos genéricos antes da caducidade do CCP 150. Quanto ao CCP 189, alegou que o mesmo é inválido, por carecer dos requisitos previstos nas alíneas a) e c) do art.º 3.º do Regulamento (CE) n.º 469/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06.02.2009, referente ao certificado complementar de proteção para produtos medicinais (Regulamento CCP). Com efeito, alegou, o cerne da invenção patenteada reside no produto ezetimiba e não na combinação ezetimiba e sinvastatina, a que se refere o CCP 189. Por isso, afirmou, em 16.6.2016 a demandada intentou no TPI uma ação para declaração da nulidade do CCP 189. Requereu, por isso, que a instância fosse suspensa, nos termos do art.º 272.º do CPC. Se assim não se entendesse, pediu que o tribunal arbitral apreciasse inter partes a invalidade do CCP 189 e a ação arbitral fosse julgada totalmente improcedente e a demandada absolvida de todos os pedidos.
6. A demandante respondeu, pugnando pela incompetência do tribunal arbitral para apreciar, mesmo a título de exceção, a invalidade do CCP 189, negando a invalidade do CCP 189 e opondo-se à suspensão da instância.
7. Em 15.10.2017 o tribunal arbitral proferiu acórdão saneador, no qual se julgou competente para conhecer da validade ou invalidade do aludido CCP com valor inter partes no processo e decidiu não suspender a instância arbitral.
8. Em 16.6.2016 T, Lda, instaurou no Tribunal de Propriedade Intelectual, contra M, Corp, ação declarativa de condenação, para declaração de nulidade do CCP n.º 189, aí alegando que o dito CCP é inválido por não preencher as condições determinadas no art.º 3.º, alíneas a) e c) do Regulamento (CE) n.º 469/2009, na medida em que o cerne da invenção patenteada reside no produto ezetimiba e não na combinação ezetimiba e sinvastatina.
O Direito
Estes autos têm por objeto um litígio entre uma empresa fabricante e comercializadora de medicamentos de referência e empresas produtoras e comercializadoras de medicamentos genéricos.
A introdução no mercado nacional de medicamentos para uso humano está sujeita a autorização por parte do Infarmed (“autorização de introdução no mercado” - AIM), a qual depende do preenchimento de requisitos atinentes à qualidade, segurança e eficácia terapêuticas do medicamento, tendo como objetivo essencial a proteção da saúde pública (cfr. art.º 14.º do Regime Jurídico dos Medicamentos de Uso Humano - sinteticamente, Estatuto do Medicamento, EM, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 176/2006, de 30.8, com as alterações publicitadas).
Nos termos do art.º 3.º, n.º 1, alínea mm) do EM, medicamento de referência é um “medicamento que foi autorizado com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos.” Medicamento genérico é, na definição enunciada na alínea ss) do citado n.º 1 do art.º 3.º do EM, um “medicamento com a mesma composição qualitativa e quantitativa em substâncias ativas, a mesma forma farmacêutica e cuja bioequivalência com o medicamento de referência haja sido demonstrada por estudos de biodisponibilidade apropriados”.
Os medicamentos genéricos, produzidos e comercializados sem necessidade da realização, em boa parte, dos demorados e onerosos estudos e ensaios prévios que antecederam os medicamentos de referência (cfr. Remédio Marques, Medicamentos versus Patentes, Coimbra Editora, 2008, páginas 25 a 27; art.º 19.º n.º 1 do EM), podem ser colocados à disposição do consumidor a preços significativamente mais baixos do que os medicamentos de referência, o que torna a sua entrada no mercado questão de interesse público, maxime pelas poupanças que proporcionam aos serviços nacionais de saúde (matéria realçada no Relatório Final do Inquérito da Comissão Europeia ao Sector Farmacêutico, datado de 08.7.2009, de que se pode ler uma síntese, em língua portuguesa, em http://ec.europa.eu/competition/sectors/pharmaceuticals/inquiry/communication_pt.pdf; a totalidade do Relatório, em língua inglesa, é consultável em http://ec.europa.eu/competition/sectors/pharmaceuticals/inquiry/staff_working_paper_part1.pdf).
A efetiva entrada no mercado dos medicamentos genéricos pressupõe que as patentes respeitantes aos medicamentos de referência tenham expirado. Entretanto, atendendo a que o processo de concessão da AIM do genérico (e bem assim a fixação do seu preço e a atribuição de eventual comparticipação do Estado no preço) pode ser moroso, as empresas produtoras de genéricos procuram iniciar esse processo antes da caducidade da ou das ditas patentes, de forma a poderem concretizar a colocação do genérico no mercado imediatamente a seguir ao levantamento do exclusivo conferido pela patente à empresa produtora do medicamento de referência.
A apresentação do pedido de autorização de introdução no mercado de medicamentos genéricos respeitantes a medicamentos de referência com patentes ainda em vigor, por vezes ainda com anos de vigência pela frente, pode desencadear a reação dos laboratórios dos medicamentos de referência, que invocam, seja diretamente junto das autoridades administrativas responsáveis pela concessão da AIM do genérico (ou, subsequentemente, pela fixação do preço de venda ao público do medicamento e pela eventual atribuição de comparticipação do Estado no preço de tais medicamentos), seja junto dos tribunais, que tal pedido consubstancia violação ou ameaça de violação dos seus direitos de propriedade industrial. Esse fenómeno ganhou dimensão relevante em Portugal, merecendo menção especial por parte da Comissão Europeia, no supra mencionado Relatório Final do Inquérito ao Setor Farmacêutico (parágrafo 888 – página 319 – e parágrafo 917 – página 331). Essa atitude por parte das empresas dos medicamentos de referência conseguia paralisar o processo de obtenção de AIM ou da subsequente fixação do preço ou da comparticipação, seja por decisão unilateral da autoridade administrativa, seja por força de decisão dos tribunais (em particular os tribunais administrativos), até que a questão fosse definitivamente dirimida ou, mesmo, até que cessasse o monopólio conferido pela patente (vide o referido Relatório da Comissão, locais citados, e ainda Maria José Costeira e Maria Teresa Garcia Freitas, “A tutela cautelar das patentes de medicamentos: aspectos práticos”, Julgar n.º 8, 2009, pág. 119 e seguintes; Remédio Marques, Medicamentos versus patentes, citado, páginas 11 a 13; Remédio Marques, “Licença de medicamento – as interconexões entre a propriedade industrial e a regulação administrativa no sector dos medicamentos”, in Themis, XI.20/21, 2011, pág. 19 e seguintes, maxime páginas 82 a 87).
O denominado patent linkage (ligação, ou tentativa de ligação, entre a inexistência de lesão de direitos protegidos por patentes e a concessão de AIM a genéricos, a fixação dos seus preços e a determinação da comparticipação dos preços pelo Estado) levava, como se disse, a que as empresas de medicamentos de referência obtivessem, após a caducidade da patente de um determinado medicamento, o prolongamento, de facto, da situação de monopólio na exploração desse medicamento, fruto do atraso verificado no processo administrativo de aprovação do medicamento genérico.
Foi para obviar a esta situação que a Lei n.º 62/2011, de 12.12, introduziu alterações ao Estatuto do Medicamento e ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos (aprovado pelo Dec.-Lei n.º 48-A/2010, de 13.5) e criou um regime de arbitragem necessária para a resolução dos litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e medicamentos genéricos.
Quanto às modificações introduzidas no Estatuto do Medicamento:
a) Alterou-se a redação do n.º 8 do art.º 19.º, passando aí a incluir-se a concessão de autorização de introdução no mercado entre as situações que, nos termos desse número, “não são contrárias aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de protecção de medicamentos”;
b) No art.º 25.º, atinente aos motivos de indeferimento do requerimento de autorização de introdução no mercado, passou a afirmar-se expressamente que “o pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial” (n.º 2);
c) No art.º 179.º, respeitante à suspensão, revogação ou alteração de autorização ou registo concedido ao abrigo do diploma, passou a prever-se expressamente que “A autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial” (n.º 2);
d) Aditou-se o art.º 23.º-A, em cujo n.º 1 se declara que “A concessão pelo INFARMED, I.P., de uma autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, bem como o procedimento administrativo que àquela conduz, têm exclusivamente por objeto a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento” e em cujo n.º 2 se determina que “O procedimento administrativo referido no número anterior não tem por objeto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial”.
Alterações com o mesmo sentido foram introduzidas no regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 48-A/2010, de 13.5 (vide o aditado art.º 2.º-A).
No art.º 8.º da Lei n.º 62/2011 preveem-se normas idênticas às supra referidas, quanto à decisão de autorização do preço de venda ao público de medicamentos e ao respetivo pedido.
A Lei n.º 62/2011 emergiu da Proposta de Lei n.º 13/XII, de 01.9.2011, em cuja Exposição de Motivos se alude ao Relatório do Inquérito da Comissão Europeia ao Sector Farmacêutico supra mencionado e, apelando para as recomendações da Comissão Europeia e salientando o facto de a jurisprudência nacional ter vindo a entender que “os direitos de propriedade industrial podem ser afectados pela concessão das autorizações de introdução no mercado, do preço de venda ao público e da comparticipação do Estado no preço dos medicamentos”, anuncia-se o propósito de estabelecer “a compatibilização que se considera adequada desses direitos com outros de idêntica relevância, como é o caso do direito à saúde e ao acesso a medicamentos a custos comportáveis, bem como dos direitos dos consumidores.
No que concerne à resolução jurisdicional dos litígios e tendo em vista a mesma, introduziu-se no Estatuto do Medicamento o art.º 15.º-A, nos termos do qual o Infarmed deve publicitar na sua página eletrónica todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, devendo a publicitação conter o nome do requerente da autorização de introdução no mercado, a data do pedido, a substância, dosagem e forma farmacêutica do medicamento e o medicamento de referência.
Com efeito, no art.º 2.º da Lei n.º 62/2011 determina-se que “os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência (…) e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de protecção, ficam sujeitos a arbitragem necessária, institucionalizada ou não institucionalizada.” E o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos deste artigo deve fazê-lo no prazo de 30 dias a contar da dita publicitação, junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efetuando pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada (art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 62/2011).
A Lei n.º 62/2011 densifica o aludido regime de arbitragem necessária pela seguinte forma:
As provas deverão ser oferecidas pelas partes com os respetivos articulados (n.º 3 do citado art.º 3.º); após a apresentação da contestação será designada data para a audiência de produção da prova que haja de ser produzida oralmente (n.º 4 do art.º 3.º); a audiência deverá ter lugar no prazo máximo de 60 dias posteriores à apresentação da oposição (n.º 5 do art.º 3.º); da decisão arbitral caberá recurso para o Tribunal da Relação competente (n.º 7 do art.º 3.º). Em tudo o que não for expressamente contrariado pelo disposto nos aludidos números do art.º 3.º da Lei n.º 62/2011, será aplicável o regulamento do centro de arbitragem, institucionalizado ou não institucionalizado, escolhido pelas partes e, subsidiariamente, o regime geral da arbitragem voluntária (n.º 8 do art.º 3.º). No n.º 2 do art.º 3.º ora em análise estipula-se que a não dedução de contestação à ação arbitral, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito pelo tribunal arbitral, implica que o requerente de autorização, ou registo, de introdução no mercado genérico “não poderá iniciar a sua exploração industrial ou comercial na vigência dos direito de propriedade industrial invocados nos termos do n.º 1.
Este regime é justificado, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 13/XII, através da constatação de que “tem vindo (…) a assistir-se a um vasto conjunto de litígios judiciais a respeito da concessão da autorização de introdução no mercado, da autorização do preço de venda ao público e da autorização da comparticipação do Estado no preço dos medicamentos relacionados com a subsistência de direitos de propriedade industrial a favor de outrem” e de que “no entanto, a questão de saber se existe, ou não, violação de direitos de propriedade industrial depende de sentença a proferir pelos tribunais”. Assim, a intenção do Governo foi “estabelecer um mecanismo alternativo de composição dos litígios que, num curto espaço de tempo, profira uma decisão de mérito quanto à existência, ou não, de violação dos direitos de propriedade industrial”, para isso instituindo o recurso à arbitragem necessária. A preocupação de celeridade é enfatizada na Exposição de Motivos, onde se pode ler que “ainda com o objectivo de promover a celeridade, estabelecem-se prazos para a instauração do processo e para a oposição, contados da publicitação pelo INFARMED, I. P., do pedido de autorização de introdução no mercado. (…). Adopta-se, ainda, uma tramitação consentânea com a preocupação de celeridade, com garantia pelo devido contraditório das partes, bem como o direito a uma instância de recurso, fixando-se o efeito meramente devolutivo do mesmo, de modo a manter os efeitos da decisão arbitral até à decisão que sobre o mesmo recair.”
Decorre do supra exposto que o panorama tido em consideração pelo legislador foi o da possibilidade de entrada no mercado de medicamentos genéricos, aproveitando a caducidade de patentes que protegiam a exploração em exclusivo de medicamentos de referência, possibilidade essa a que o fenómeno de patent linkage criava obstáculos. Com o sistema ora implantado “a intenção legislativa é que, uma vez caducado o exclusivo de comercialização, não seja retardado, se possível nem sequer por um dia, o acesso dos medicamentos genéricos ao mercado, permitindo, assim, aos utentes obterem medicamentos a preços mais acessíveis e ao Estado a redução de custos no sector da saúde” (Luís Couto Gonçalves, “A questão da competência do tribunal arbitral necessário para apreciar a invalidade da patente com eficácia inter partes – anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016”, in Revista de Direito Intelectual, n.º 01-2017, p. 367).
Ou seja, aqui, em princípio, não se tem em vista controvérsias acerca da validade de patentes. As quais, obviamente, exigem, em juízo, debate mais complexo e demorado. Sendo certo que a declaração de invalidade da patente só pode ser efetuada por tribunal judicial (art.º 35.º n.º 1 do CPI: “A declaração de nulidade ou a anulação podem resultar de decisão judicial”). Para tal será instaurada ação pelo Ministério Público ou por qualquer interessado, devendo ser averbada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) a instauração da ação (art.º 30.º n.º 1 alínea d) e n.º 4 do art.º 35.º do CPI), devendo ser citados, para além do titular do direito registado contra quem a ação é proposta, todos os que, à data da publicação do dito averbamento, tenham requerido o averbamento de direitos derivados (art.º 35.º n.º 2 do CPI). Atualmente a competência para julgar tais ações cabe ao Tribunal da Propriedade Intelectual (art.º 111.º n.º 1 alínea c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26.8). Quando a decisão definitiva transitar em julgado, a secretaria do tribunal remeterá ao INPI cópia para efeito da respetiva publicação e respetivo aviso no Boletim da Propriedade Industrial, bem como do respetivo averbamento (n.º 3 do art.º 35.º do CPI).
É certo que, durante o processo legislativo, o Infarmed, no Parecer que apresentou (elemento acessível no site do Parlamento), sugeriu que ficasse esclarecido, no texto legal, “que o tribunal arbitral pode conhecer da existência e validade do direito de propriedade industrial invocado, de modo a afastar a dúvida que possa surgir quanto à conjugação com o disposto no n.º 1 do artigo 35.º do Código da Propriedade Industrial, sendo certo que, na maioria dos casos, aquela é a questão principal a decidir”. Por outro lado, também a Associação Portuguesa de Arbitragem apresentou Parecer segundo o qual o art.º 2.º da Lei deveria “incluir uma referência à apreciação de questões relativas à validade dos direitos de propriedade industrial, de forma a eliminar dúvidas no futuro quanto à medida de jurisdição transferida para os tribunais arbitrais necessários. A não ser aceite tal solução, dever-se-á encarar a suspensão de instância arbitral até à resolução da questão da validade desses direitos perante a jurisdição estadual competente.” Mais se sugeria que se previsse, se fosse caso disso, “a possibilidade de o requerido deduzir reconvenção com a sua oposição, pedindo a apreciação da validade do direito de propriedade industrial.” Acrescentando que: “A ser admitida esta solução, deveria conceder-se ao requerente a faculdade de contestar esse pedido de apreciação em prazo a fixar (por exemplo, de 15 dias).”
Ora, a verdade é que todas estas sugestões ampliativas ficaram fora do texto legal, o qual aponta (supletivamente, é certo), para uma estrutura processual típica composta de uma petição inicial e uma contestação, seguidas de audiência de produção de prova.
E, no debate parlamentar, quando o Ministro da Saúde apresentou a Proposta de Lei, exprimiu-se assim: “Este Governo assumiu, no seu Programa, a «normalização jurídica das patentes» como uma das medidas para aumentar a quota de mercado dos medicamentos genéricos. Neste contexto, é fundamental não só criar e dispor de condições favoráveis ao registo de patentes mas também assegurar um quadro eficiente da sua protecção, garantindo mecanismos de resolução rápida de litígios. É assim claro que, defendendo o Governo uma efectiva protecção das patentes durante o seu período de vigência, não pode deixar de, uma vez esgotados esses direitos especiais, também defender que a referida inovação possa ser explorada por outros agentes. Ou seja, uma vez caducado o exclusivo da comercialização, não deverá ser possível retardar, nem sequer por um único dia, o acesso dos genéricos ao mercado.”
Por conseguinte, contrariamente ao propugnado no acórdão arbitral sub judice, o elemento histórico e o elemento literal da Lei n.º 62/2011 não apontam para a inclusão da apreciação da validade da patente (assim como do correspondente certificado complementar de proteção – artigos 115.º e 116.º do CPI e Regulamento (CE) n.º 469/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de maio de 2009) no âmbito da competência dos tribunais arbitrais necessários criados por esta Lei, nem mesmo a título de exceção, com efeitos tão só inter partes. Sendo certo que, conforme parece ser o entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, não será possível ao tribunal arbitral declarar, erga omnes, a invalidade da patente ou do CCP que seja alvo da lide arbitral.
O papel do tribunal arbitral não ficará, ainda assim, reduzido a coisa pouca, uma vez que a avaliação, nomeadamente, do âmbito e extensão da proteção concedida pela patente (e pelo CCP), face ao medicamento genérico, suscita, com frequência, assinalável complexidade (cfr., v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 06.02.2014, processo 866/13.4YRLSB-2; acórdão da Relação de Lisboa, de 09.7.2015, processo 336/15.6YRLSB.L1.-1; acórdão do STJ, de 25.5.2017, processo 17/15.0YRLSB.S1 – consultáveis em www.dgsi.pt).
Como é sabido, a questão da competência dos tribunais arbitrais necessários instituídos pela Lei n.º 62/2011 para apreciarem em sede de exceção, com efeitos meramente inter partes, a validade de patentes (ou CCPs), tem dividido a doutrina e a jurisprudência.
Parte dos acórdãos arbitrais e da Relação de Lisboa têm negado tal competência, que consideram ser exclusiva dos tribunais estaduais, atualmente o TPI (cfr., v.g., acórdãos da Relação de Lisboa, de 13.02.2014, processo n.º 1053/13.7YRLSB-2 e de 21.5.2015, processo 1465/14.9YRLSB-6). Na mesma senda tem seguido parte da doutrina (Evaristo Mendes, Crónica de jurisprudência, pp. 103-106, in Propriedades intelectuais, n.º 3, junho 2015; Manuel Oehen Mendes, “Da incompetência dos tribunais arbitrais portugueses para apreciarem a questão da invalidade das patentes e dos certificados complementares de proteção para medicamentos”, pp. 5-14, in Propriedades intelectuais, n.º 4, novembro 2015 – também em “Breves considerações sobre a incompetência dos tribunais arbitrais portugueses para apreciarem a questão da invalidade das patentes e dos certificados complementares de protecção para medicamentos”, pp. 927-947, in Estudos de Direito Intelectual em Homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão, 2016, reimpressão, Almedina; Alexandre Libório Dias Pereira, “Da arbitragem necessária de litígios entre patentes e medicamentos genéricos no direito português”, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. XCII, tomo II, pp. 827-848; Luís Couto Gonçalves, “A questão da competência do tribunal arbitral necessário para apreciar a invalidade da patente com eficácia inter partes – anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016”, in Revista de Direito Intelectual, n.º 1 – 2017, pp. 363-380).
Pelo contrário, parte dos tribunais arbitrais e parte dos juízes da Relação de Lisboa entendem que os referidos tribunais arbitrais podem julgar, com efeitos meramente inter partes, a invalidade das patentes e dos CCPs (cfr., v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 13.01.2015, processo 1356/13.OYRLSB.L1-7; acórdão da Relação de Lisboa, de 19.9.2017, processo 409/17.0YRLSB.L1-7). Na doutrina, vejam-se João Paulo Remédio Marques, “A apreciação da validade de patentes (ou certificados complementares de protecção) por tribunal arbitral necessário – excepção versus reconvenção na lei n.º 62/2011”, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LXXXVII, 2011, pp. 179-213; “A arbitrabilidade da exceção de invalidade de patente no quadro da Lei n.º 62/2011, anotação ao acórdão da Relação de Lisboa, de 13 de fevereiro de 2014 (proc. n.º 1053/13.7YRLSB-2)”, in Revista de Direito Intelectual n.º 02-2014, pp. 211-258; “Bis in idem: em torno da competência dos tribunais arbitrais necessários para apreciar a questão da invalidade da patente com efeitos inter partes – anotação ao acórdão do STJ, de 14 de dezembro de 2016 (proc. n.º 1248/14.6YRLSB.S1)”, in Revista de Direito Intelectual n.º 01-2017, pp. 301-360); Dário Moura Vicente, “O regime especial de resolução de conflitos em matéria de patentes (Lei n.º 62/2011)”, in ROA, ano 72, IV, Out-Dez. 2012, pp. 981-987; José Alberto Vieira, “A competência de tribunal arbitral necessário para apreciar a excepção de invalidade de patente registada, anotação ao acórdão da Relação de Lisboa de 13 de janeiro de 2015”, in Revista de Direito Intelectual n.º 2-2015, pp. 195-208).
No acórdão desta Relação, de 13.02.2014, supra citado, o aí e aqui relator, assim como a Exm.ª 1.ª adjunta, negaram aos tribunais arbitrais a competência ora em debate.
Também o STJ, em acórdão datado de 14.12.2016, decidiu que “o tribunal arbitral necessário previsto na Lei 62/2011 é incompetente para apreciar, ainda que por via da dedução de mera excepção peremptória, cujos efeitos ficariam circunscritos ao processo, a questão da nulidade da patente do medicamento em causa, por tal matéria estar reservada à competência exclusiva do TPI” (I do respetivo sumário).
Com efeito, a exclusividade da competência dos tribunais estaduais, em sede de ação própria para o efeito, para apreciar da validade de patente (ou de CCP), decorre do já citado art.º 35.º do CPI. Pese embora a concessão da patente (e do CCP) implique a mera presunção jurídica dos requisitos da sua concessão (n.º 2 do art.º 4.º do CPI), esta só poderá ser atacada por meio de ação própria, intentada junto do tribunal estadual competente. Conforme expende Alexandre Libório Dias (in Boletim da Faculdade de Direito, XCII, tomo II, citado, p. 841, “a atribuição de direitos exclusivos de exploração económica releva da ordem pública económica, dada a limitação que daí resulta para a atuação de terceiros. Razões de segurança jurídica impõem a sujeição desses direitos a registo constitutivo em termos de eficácia erga omnes, que lhes confere uma presunção de validade. A proteção destes direitos resulta ainda do facto de só poderem ser declarados inválidos por tribunais judiciais com tramitação processual específica, à qual todos os interessados são chamados. Com efeito, a patente ou é válida e confere um direito exclusivo oponível erga omnes, ou não é válida e nesse caso o direito não é oponível erga omnes: tertium non datur” (negrito nosso). Ou seja, como diz Oehen Mendes (“Da incompetência..., citado, p. 13), “no Direito português não se vislumbra qualquer fundamento legal para a admissão da invalidade dos direitos absolutos com efeitos meramente inter partes, uma vez que eles são direitos oponíveis erga omnes por definição.”
O direito de patente foi concedido “após um longo, exaustivo e exigente processo de exame dos respetivos requisitos de patenteabilidade” (Oehen Mendes, “Da incompetência…, citado, p. 12). Daí que beneficie de uma presunção de validade, cuja ilisão reclama alguma exigência.
Apontando no mesmo sentido, em tese geral, sem tratar do caso específico dos tribunais arbitrais, vide Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, Coimbra Editora, 2011, pp. 36, 37, 447-449.
Quem pretenda beneficiar de um invento patenteado em nome de outrem, se entender que essa patente é inválida e, consequentemente, o Estado atribuiu indevidamente a essa entidade o exclusivo da respetiva exploração, sabe que o deverá atacar no local e pelo modo previstos na lei, que são os supra referidos.
Sujeitando-se às inerentes consequências, correspondentes à violação de patente como tal reconhecida, se, apesar disso, passar a explorar o invento, sem autorização do titular da patente.
Embora no direito comparado se encontrem soluções muito díspares, existem vários países em que vigora um sistema de dupla via, onde a infração à patente é julgada num tribunal e a validade dessa patente é julgada num outro tribunal, especializado, não cabendo àquele apreciar a validade do direito de propriedade industrial com efeitos restritos às partes (Alemanha, Áustria, República Checa, Eslováquia, Hungria, Polónia – cfr. Remédio Marques, “A arbitrabilidade…”, citado, pp. 224, 226, 227; Remédio Marques, “Bis in idem…”, citado, pp. 338, nota 51, 341, nota 57; Manuel Oehen Mendes, “Da incompetência dos tribunais arbitrais…”, citado, pp. 11-12) – negando-se a competência dos tribunais arbitrais para apreciarem tais matérias.
Também a jurisprudência comunitária reconhece e até exige, em certos casos, que as regras de atribuição de competência exclusiva para a análise de certas matérias, nomeadamente validade de direitos de propriedade industrial, não sejam derrogadas sob o pretexto de que o tribunal primacialmente incompetente a aprecia apenas em sede de exceção, com efeitos tão só inter partes (cfr. acórdão do TJ, de 13.7.2006, processo C-4/03; acórdão do TJ, de 12.7.2012, processo C-616/10).
Configurando-se a hipótese de o processo de infração ser suspenso enquanto a questão da invalidade do direito de propriedade industrial for discutida no tribunal competente, cabendo ao tribunal da infração aquilatar da conveniência dessa suspensão (cfr. Oehen Mendes, “Da incompetência dos tribunais arbitrais…”, citado, pp. 12 e 13).
Estas soluções de dupla jurisdição não têm levantado, que se saiba, nesses países e na jurisprudência comunitária, objeções quanto à sua conformidade com os direitos de defesa e acesso ao direito.
Elas ocorrem, aliás, como se indica no citado acórdão do STJ, de 14.12.2016, noutras situações, também atinentes a matérias de particular relevância, sujeitas a registo constitutivo (como no caso das relações de família, artigos 3.º do CRC, 1859.º e 1632.º do CC), pelo que o princípio do alargamento da competência do tribunal às questões incidentais, contido no art.º 91.º do CPC – que o coletivo arbitral considerou aplicar-se ao processo arbitral, sem discussão – conhece exceções.
Podendo dizer-se, como o fez o STJ, no citado acórdão de 14.12.2016 (sumário, n.º II), que “a inviabilidade de o R. suscitar incidentalmente, naquele processo, a excepção peremptória de nulidade do direito patenteado configura-se como proporcional e adequada, radicando, em última análise, na natureza da relação controvertida, no carácter constitutivo do acto de reconhecimento dos direitos de propriedade industrial e nas razões de interesse público e de congruência do sistema que levaram a reservar o conhecimento de tais vícios apenas ao TPI – não implicando, consequentemente, neste caso, o desvio à regra constante do nº 1 do art. 91º do CPC qualquer violação do direito de defesa, da regra do contraditório ou do princípio do processo equitativo.” Mais se exarando, transcrevendo o n.º III do sumário do citado acórdão do STJ, que “a necessidade de desencadear, pelo interessado que despoletou o pedido de AIM do medicamento genérico e pretenda questionar a validade da patente, há muito registada, que obsta à pretendida introdução no mercado, da pertinente acção de nulidade da patente, conjugada com a possibilidade de requerer e obter a suspensão da instância arbitral até que tal acção seja julgada, constituem meios procedimentais – alternativos à dedução perante o tribunal arbitral da excepção de nulidade da dita patente – que não envolvem onerosidade excessiva para o interessado e permitem satisfazer, em termos adequados, o seu direito a questionar a validade da patente que obsta à comercialização por ele pretendida – o que naturalmente afasta a violação do preceituado no art. 20º da Lei Fundamental.”
É certo que o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 251/2017, proferido em 24.5.2017, julgou inconstitucional “a norma interpretativamente extraível do artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro e artigos 35.º, n.º 1, e 101.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial, ao estabelecer que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a parte não se pode defender, por exceção, mediante invocação da invalidade de patente, com meros efeitos inter partes.
Ora, o Tribunal Constitucional ajuizou que tal norma (que considera ser o tribunal arbitral incompetente para apreciar a invalidade de patente, a título de exceção, com meros efeitos inter partes), tida como compressiva do direito fundamental de defesa em tribunal, consagrado no art.º 20.º da CRP, prossegue fins constitucionalmente admissíveis, pois assenta na “invocação de interesses relativos a direitos fundamentais, de ordem pública e de uniformidade de critérios na administração da justiça, constitucionalmente tutelados, que legitimam a atribuição, em exclusivo, da competência para a apreciação da validade das patentes ao TPI, no âmbito de uma ação especificamente regulada para o efeito que garante o amplo contraditório de potenciais contrainteressados”.
Também se considerou, no acórdão, que tal norma é idónea ou adequada à prossecução do fim a atingir, assim como é necessária ou indispensável a essa finalidade.
Porém, considerou-se que a aludida norma se revelava excessiva, por prejudicar de modo desproporcionado o direito à defesa do requerente de AIM. Isto porque, no entender expresso pelo TC neste acórdão, é excessivo obrigar o requerente de AIM a propor antecipadamente uma ação de declaração de nulidade ou de anulação de patente, porque isso pode não ser do seu interesse, obrigando-o a litigar por antecipação; é excessivo obrigar o requerente de AIM a instaurar uma ação de declaração de invalidade de patente na sequência de demanda por violação de patente e requerer a suspensão da instância arbitral, porque pode não ser do seu interesse que a invalidade da patente seja declarada erga omnes – e não há a certeza de que o tribunal arbitral venha a declarar a suspensão do processo.
Lê-se, no dito acórdão, o seguinte:
Mesmo nos casos em que o requerente da AIM de medicamento genérico, demandado na ação arbitral, obtém a suspensão dessa instância, a solução alternativa encontrada apresenta-se também nesse caso como uma restrição significativa ao direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva, por impor ao requerente o ónus de litigar numa ação independentemente de tal ser em seu interesse, forçando-o a prosseguir interesses de terceiros, seus concorrentes, e o interesse público” (sublinhado nosso).
O dito acórdão do Tribunal Constitucional não tem força obrigatória geral e é, por agora, a primeira decisão conhecida daquele Alto Tribunal nesta matéria.
Assim, por considerarmos que os interesses acima referidos, nomeadamente o interesse público, justificam que se imponha a quem pretenda prevalecer-se de invento patenteado em nome de outrem, que repute estar indevidamente protegido, que siga o específico caminho jurisdicional e processual traçado pelo legislador ordinário, porventura com recurso à intervenção do Ministério Público, não se vislumbrando que daí lhe advenha prejuízo intolerável ou desproporcionado, mantemos o entendimento já acima exposto, aguardando nova pronúncia do TC sobre esta matéria para uma eventual inflexão de rumo, em respeito pelo disposto no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil.
Note-se que, no caso dos autos, a própria requerente de AIM instaurou junto do TPI ação de declaração de nulidade do CCP objeto destes autos e requereu a suspensão do processo arbitral até decisão final na matéria. Porém, o tribunal arbitral indeferiu a requerida suspensão e declarou-se competente para decidir a questão. O que possibilita a prolação de decisões contraditórias sobre a mesma matéria.
Urge, pois, revogar a decisão recorrida, declarando-se que o tribunal arbitral não tem competência para apreciar a aludida exceção. No mais, manter-se-á o acórdão recorrido, uma vez que a tanto se cinge o objeto do recurso.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se o acórdão saneador recorrido, na parte em que se pronunciou quanto à competência para apreciar a questão da invalidade do CCP n.º 180 e, consequentemente, nesse segmento, declara-se que o tribunal arbitral não tem competência para apreciar a aludida exceção. No mais, mantém-se o despacho recorrido.
As custas da apelação são a cargo da apelada, que nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 21.6.2018

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Pedro Martins (vencido, conforme declaração de voto junta em anexo)

Voto vencido
Pelas razões dos acs. do TC e do TRL e dos estudos de João Paulo Remédio Marques (o último) e de Dário Moura Vicente, citados no projecto (os outros não tive tempo/oportunidade de ler) e ainda dos de Alexandre Soveral Martins, Arbitragem e propriedade industrial: medicamentos de referência e medicamentos genéricos, em Direito da Saúde, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme Moreira, Vol. 5, Almedina, 2016, págs. 218 e 223, que também admite a dedução da excepção da invalidade das patentes invocadas, de Samuel Dias Henriques, O âmbito da patente e a doutrina dos equivalentes, dissertação final de Mestrado, Abril de 2017, FDUL, nota 1176, págs. 310/311, consultado em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32585/1/ulfd134632_tese.pdf no dia 02/06/2018, e do ac. do TRL de 10/04/2018, proc. 861.16.1YRLSB.L1-1, considero que a decisão recorrida devia ser confirmada.
Pedro Martins