Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11589/20.8T8SNT-A.L1-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
CONHECIMENTO NO SANEADOR
MÚTUO LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES
PRESCRIÇÃO
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/31/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.–Afigura-se não ser curial o conhecimento do pedido no saneador, caso subsistam factos relevantes controvertidos em ordem à conformação do litígio ajuizado sob as várias soluções plausíveis na aplicação e interpretação do direito que o mesmo convoque e, não apenas a porfiada pelo tribunal a quo.
2.–Parece também contra-indicado conhecer de mérito na fase intermédia dos autos, não estando consolidados os factos que relevam sob as diversas soluções jurídicas, que poderão ditar a anulação de julgamento pelas instâncias de recurso, e, por conseguinte, sem vantagem na economia de actos e celeridade na composição do litígio.
3.–Persistindo divergência na solução plausível de direito sobre o prazo de prescrição do crédito que tem por fonte um contrato de mútuo e o capital e os juros remuneratórios liquidados em prestações periódicas, maxime de o credor beneficiar da prescrição ordinária no caso de comunicação ao devedor do vencimento total da dívida e interpelação admonitória, o desenvolvimento processual da causa poderá conduzir a um desfecho final que não o seguido no saneador-sentença em recurso.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.–RELATÓRIO:


1.–Da Acção
Em apenso aos autos de execução para pagamento da quantia de Euros 15.999,25, que I…, Lda instaurou em 23 de Maio de 2020, contra A…e outro, veio a mesma deduzir oposição através de embargos de executado.

Alega em síntese, que até à citação nunca foi contactada para pagar, nem tão pouco notificada da cessão de créditos entre o BCP e a exequente.
Em seu favor invoca a prescrição do crédito, em virtude de a dívida reclamada dizer respeito ao contrato de mútuo que celebrou com o BCP em 22.07.2010; concluindo, a final, que na procedência da excepção, deverá julgar-se extinta a execução, ou caso assim não se entenda, atenta a prescrição da dívida de juros, a respectiva extinção parcial; mais requereu a prévia suspensão da execução com dispensa da prestação de caução, nos termos do artigo 733º, nº1, do CPC.
Admitida liminarmente a oposição, a exequente apresentou contestação.   
Alega em síntese, que a embargante ao contrário do que afirma, foi notificada pelo credor para pagar e concedido prazo, e bem assim da cessão de créditos havida entre o BCP e a exequente, conforme cartas que junta.
Mais alega, que a embargante entrou em incumprimento definitivo do contrato em 22.12.2010, vencendo-se de imediato a totalidade da quantia devedora, nos termos do artigo 781º do CC, pelo que não estando em causa prestações periódicas vigora o prazo de prescrição ordinária de 20 anos. 
Concluiu assim pela improcedência dos embargos e continuação da execução quanto ao total da quantia peticionada, opondo-se também à requerida suspensão da execução sem que a embargante preste a exigida caução.
*

Considerando o tribunal  que o estado da causa habilitava ao imediato conhecimento do pedido e após notificação das partes, [1]proferiu sentença, no sentido da procedência dos embargos e extinta a execução, conforme dispositivo que se transcreve .«    Em face e todo o exposto, julgo procedente a excepção da prescrição nos termos supra expostos e, em consequência, julgo procedente a presente oposição à execução, mediante embargos de executado, nos termos do artigo 732º, nº4 do CPC, declaro extinta a execução quanto à executada A... Custas pelo exequente.»

2.–Do Recurso
 
Inconformada, a embargada interpôs recurso da sentença que finaliza com as conclusões seguintes:
«1.–Ficou acordado nas condições particulares do Contrato de crédito pessoal – que fundamenta a presente execução – que seria liquidado em 57 prestações mensais e que a primeira prestação vencer-se-ia no dia 22/08/2010 e as demais, no mesmo dia de cada um dos meses seguintes.
 2.–Muito embora tenha ficado assente que o reembolso do referido empréstimo fosse efetuado de modo fracionado (acrescido dos juros oportunamente convencionados), o certo é que estamos na presença de uma obrigação única, que a mutuária se obrigou a restituir, na sua totalidade, em prestações mensais, iguais e sucessivas.
3.–O disposto no art.º 781.º, do Código Civil, confere ao credor – sempre que a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações – o direito de exigir o pagamento de todas as prestações na falta de realização de uma delas, ficando, em consequência, sem efeito o plano de pagamentos acordado e os valores em divida recuperam a sua natureza original de capital e juros.
4.–In casu, a dívida, composta por capital e juros, venceu-se integralmente em 22/12/2010, data em que a mutuária incumpriu com o plano acordado ao deixar de liquidar as prestações, tornando-se, a partir daquela data, imediatamente exigível à luz da norma legal supra referida.
5.–Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo - que entendeu aplicar o prazo de prescrição quinquenal previsto no art.º 310.º al e) do Código Civil - o prazo de prescrição a aplicar ao capital em dívida é o prazo geral de 20 anos, na medida em que estamos perante uma situação contratual de vencimento antecipado de todo o capital da dívida (cf. Acórdão proferido no âmbito do proc.º 8636/16.1T8LRS-A-7,disponível emwww.dgsi.pt). 6.–A alínea e), do art.º 310.º, do Código Civil, jamais poderá ter aplicação ao caso sub judice, uma vez que a obrigação em causa, embora suscetível de ser fracionada e diferida no tempo, não pode ser equiparada a uma prestação periódica, renovável e cuja constituição depende do decurso do tempo.
7.–No caso concreto, contrariamente ao decidido, não se encontram reunidos os pressupostos para aplicação do previsto no art.º 310.º al b) e e) do Código Civil, pelo que deverá ser revogada a decisão recorrida, decidindo-se, a final, pela aplicação do prazo geral da prescrição de 20 anos, previsto no artigo 309.º do Código Civil.II.
8.–A Mutuária e aqui Embargante, liquidou, apenas, as prestações vencidas até 22/12/10, não tendo pago as prestações seguintes, nem as que se venceram posteriormente, pelo que o credor originário notificou, por carta datada de 21 de Julho de 2011 e para a morada constante da sua base de dados, a recorrida de que perante o incumprimento verificado iria recorrer à cobrança coerciva do seu crédito, concedendo-lhe, ainda, o prazo de 10 dias para, querendo, regularizar o incumprimento verificado.
9.–Entendeu, o tribunal a quo que tal interpelação, por si só – atenta ao facto de não estar acompanhada por registo – constitui a mera fotocópia de uma carta que terá, ou não, sido enviada, podendo mesmo tratar-se de um simples print, sem qualquer relevância ou significado probatório.
10.–O Tribunal a quo não podia efetuar o julgamento de facto e, consequentemente, de direito, levando, apenas, em conta meras suposições, sem a produção dos demais meios de prova oferecidos, designadamente, prova testemunhal.
11.–Da mesma forma que o Tribunal a quo concluiu que tais interpelações poderão constituir meras fotocópias de cartas que poderão, ou não, ter sido enviadas, de também se poderá concluir que a Embargante recebeu, efetivamente, as interpelações e alega não ter recebido ou que, por culpa sua, não recebeu.
12.–Não pode a Recorrente concordar com tal decisão, não só porque entende que o Tribunal a quo desconsiderou o dever de ponderar a factualidade de acordo com as soluções igualmente plausíveis para ambas as partes, mas também porque não teve em atenção que as partes, designadamente, a Recorrente, com a opção tomada, ficou impedida de produzir prova testemunhal no que respeita ao procedimento padrão do Credor originário referente às interpelações para os efeitos do disposto no art.º 781.º do Código Civil.
13.–No caso concreto, se impunha que a decisão de mérito a proferir aguardasse a produção dos meios de prova que viessem a ser oferecidos pelas partes em sede da Audiência Final, nomeadamente, da aqui Recorrente, sob quem impendia o ónus de provar o envio de tais interpelações.
14.–Tratando-se de matéria de facto controvertida, não poderia ser julgada através de meras suposições, já que das mesmas não resulta, nem pode resultar, de uma forma clara e inequívoca de que o credor originário não terá interpelado a Embargante para efeitos do disposto no art.º 781.º do Código Civil.
15.–O Meritíssimo Juiz a quo não podia deixar de ponderar a hipótese de que o funcionário do Banco detinha conhecimento quanto ao envio efetivo das interpelações, mormente, o procedimento adotado nestas situações, tal como, não podia deixar de ponderar, que as interpelações foram, efetivamente, recebidas pela Embargante ou que, só por culpa sua, é que não foram efetivamente recebidas
16.–Ora, é precisamente esse escrutínio que pode ainda ser levado a cabo nos presentes Autos, uma vez que o Tribunal a quo, ao proferir a decisão de mérito com fundamento, apenas e tão-somente, em meras suposições, não atendeu ao facto de que a Recorrente podia produzir prova, designadamente, prova testemunhal, tendo em vista o apuramento das circunstâncias supra referidas.
17.–Deste modo, crê a Recorrente que a produção da prova testemunhal se revelava indispensável para que tivesse a possibilidade de dar cumprimento ao ónus legalmente imposto de provar que procedeu à efetiva interpelação da Embargante para efeitos do disposto no art. 781.º do Código Civil.
18.–Assim, e sempre com o devido respeito, mal andou a douta Sentença recorrida ao julgar, sem mais, que a interpelação constitui a mera fotocópia de uma carta que terá, ou não, sido enviada.
19.–Face ao exposto, é entendimento da Recorrente que deve a douta sentença proferida ser revogada, devendo, em consequência, retomar-se a fase de saneamento do processo na 1.ª Instância, na medida em que o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial do pedido.
20.–Ao decidir como decidiu o Meritíssimo juiz o quo violou, assim, o disposto no artigo 595.º n.º 1 al b) do Código de Processo Civil. TERMOS EM QUE e nos melhores que V. Exas. doutamente suprirão,deve a douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por douto Acórdão que julgue procedentes as Conclusões formuladas, assim se fazendo JUSTIÇA!»
*

Não foram juntas contra-alegações                                                                        
O recurso foi regularmente admitido como apelação e com efeito devolutivo.  
*

Corridos os Vistos, cumpre decidir.

3.–O Objecto do recurso

Consabido que a actuação do tribunal de recurso está delimitada pelas conclusões do recorrente, haverá que decidir se, na afirmação de outra solução plausível de direito relativa ao prazo de prescrição do crédito, deverá a instância prosseguir para julgamento com vista à produção de prova testemunhal.

II.–FUNDAMENTAÇÃO

A.–Os Factos
O tribunal a quo deu por assente a seguinte factualidade, atento os documentos juntos:
1.–Por Contrato escrito datado de 04/03/2016, o Banco Comercial Português, S. A. cedeu os créditos infra mencionados à I…, A.G, aqui representada pela Exequente Intrum Portugal, Unipessoal, Lda. pelo preço e condições constantes do Contrato de Cessão de Créditos que se junta e se tem reproduzido para os devidos e legais efeitos.
2.–Em 22/07/2010, o Banco Cedente celebrou com os Executados A…, na qualidade de mutuária, e N…, na qualidade de fiador, um contrato de crédito pessoal, a pedido da mutuária, nos termos do qual o Banco Cedente lhe concedeu um empréstimo no montante de 6.270,17€, nos exactos termos e condições aí constantes, cfr. Contrato de Empréstimo junto como titulo executivo que aqui se da por integralmente reproduzido.
3.–A taxa de juro nominal a aplicar ao empréstimo seria de 13,5%, correspondente a uma TAEG de 17,3%, acrescida da sobretaxa de mora de 4%, a título de cláusula penal.
4.–O reembolso do empréstimo seria efectuado em 57 prestações mensais, sucessivas e iguais, de capital e juros, no valor de 151,35€ cada.
5.–O crédito da quantia mutuada e o débito pelo pagamento das prestações seria efectuado através da Conta de Depósitos à Ordem n.º 45374816656, aberta em nome da mutuária, junto do Banco Cedente.
6.–O Executado N…, constituiu-se, perante o Banco Cedente, como fiador e principal pagador de todas as obrigações assumidas pela mutuária por conta do empréstimo referido, renunciando ao benefício da excussão prévia.

B.–Do mérito do recurso

1.–Sinopse do litígio
A embargante deduziu oposição à execução afirmando, que nunca lhe foi solicitado o pagamento de qualquer quantia em dívida e invocou a prescrição do crédito reclamado, em aplicação do disposto no artigo 310º, al) e do Código Civil, decorridos mais de 5 anos sobre o vencimento das prestações do contrato de mútuo, acolhendo –se em diversa doutrina e jurisprudência adrede.

A embargada impugnou a alegada ausência de interpelação prévia, juntando cópias das cartas que enviadas à embargante e defendeu, que face ao vencimento automático de toda a quantia em dívida, vigora o prazo ordinário de prescrição em aplicação do artigo 781º do Código Civil, ilustrada em doutrina e jurisprudência.

O tribunal a quo antecipou a decisão de mérito no saneador, no sentido da procedência dos embargos.  

Concluiu pela aplicabilidade na situação ajuizada do prazo de prescrição de 5 anos estabelecido no artigo 310º, al) e) do CC e, por último, considerou que dada a ausência do registo do envio das cartas à embargante se revela inútil a realização de julgamento quanto à impugnada interpelação admonitória.  
       
2.–Do conhecimento de mérito na fase do saneador 
Como é sabido o julgador pode conhecer do pedido (ou algum deles) na fase do saneador, desde que, caucionado pela condição imposta pelo artigo 595, nº1 al) b do CPC − o estado do processo o permitir.

A seu propósito estatui o artigo 595º, do CPC:
1–O despacho saneador destina-se a:
a)-Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b)-conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.

Damos por adquirido que as alterações normativas acomodaram evolução na concepção teórica-dogmática do conhecimento de mérito no saneador. 

Com a reforma de 1996, mantida no novo CPC, abandonou-se a tradicional dicotomia entre questão de direito e de facto, cingindo-se a possibilidade - “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas.”  [2]

Á parte da hesitação do julgador na casuística de certas situações, supomos, contudo, fiável afirmar que, ante a estrutura do processo civil, ressalvadas as situações excluídas por lei, toda a causa poderá ser julgada na fase intermédia do processo, posto que o julgador conclua que o proveito da fase instrutória seja indiferente para o destino do litígio. O actual Código Processo Civil assim o determina, designadamente pelo disposto nos seus artigos 6º, 130 º e 152º. Salvaguardada fica, por seu turno, a hipótese de o tribunal de recurso preconizar distinta solução jurídica da assumida pela sentença, e não dispondo os autos de elementos para decidir, possa determinar a ampliação factual da causa, conforme o estatuído no artigo 662º, nº 2, al. c) do CPC.      
3.–Relevância das diferentes soluções plausíveis de direito e o conhecimento de mérito no saneador
A partir do actual quadro normativo, sinaliza-se, todavia, alguma dissonância na doutrina e na jurisprudência quanto a admitir-se, ou não, o conhecimento de mérito no saneador nas situações, em que estando o juiz seguro da solução jurídica para o litígio, alicerçada em factos aptos assentes, subsistam factos relevantes controvertidos para a decisão da causa, de acordo com outra(s) soluções plausíveis de direito.

Em tal cenário processual, consideram alguns, que o tribunal não deverá conhecer imediatamente de mérito, independe de o juiz estar já convencido quanto à solução jurídica a eleger. 

A jurisprudência maioritária vem propugnando semelhante entendimento, inter alia, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.12.2006, de 18.12.2012 e de 22.01.2019; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-05-2021; o Acórdão da Relação de Guimarães de 10.07.2014; Acórdão da Relação de Évora de 24.05.2018; Acórdãos da Relação de Coimbra de 08.07.2021 e de 5.04. 2022 .[3]

Na doutrina e neste caminho, destaca-se a  posição de Miguel Teixeira de Sousa.[4]

Sustentam outros, em adverso, que não é de afastar a apreciação de mérito no saneador, mesmo que subsistam factos controvertidos fundantes  de outra solução plausível de direito, caso o juiz esteja ciente e seguro da decisão a adoptar; posição  defendida por parte da doutrina, encimada por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filies de Sousa.[5]

Tomando posição sobre a vexata quaestio, afigura-se-nos, s.d.r., não ser curial admitir o imediato conhecimento do pedido no saneador, caso permaneçam controvertidos factos relevantes em ordem à conformação do litígio sob as várias soluções plausíveis de aplicação e interpretação do direito que o caso ajuizado convoque, e não apenas atendendo à porfiada pelo tribunal a quo.

Noutra perspectiva, parece ainda contra -indicado o conhecimento do mérito na fase intermédia dos autos, não estando consolidados os factos que relevem sob as diversas soluções jurídicas que poderão ditar a anulação de julgamento pelas instâncias de recurso, e, por conseguinte, sem vantagem em economia de actos e celeridade.  

Acresce que, na ponderação das várias soluções plausíveis de direito não falamos de todo e qualquer possível enquadramento jurídico a justificar a instrução e julgamento, pelo que importará, designadamente que a matéria em discussão não tenha merecido ainda solução de uniformização pelo Supremo Tribunal de Justiça. [6] 

Do que resulta que, se à luz de uma dessas soluções jurídicas for necessário o apuramento de factualidade alegada e controvertida, deverá a instância prosseguir para julgamento.

4.–O prazo de prescrição no crédito proveniente do mútuo liquidável em prestações   
Expostos os parâmetros que devem orientar o imediato conhecimento do pedido na fase intermédia da instância, ponderemos a situação ajuizada.

A questão de direito suscitada –  o prazo de prescrição do crédito que tem por fonte um contrato de mútuo e o capital e juros remuneratórios liquidados em prestações periódicas - vem apresentando divergência nas soluções adoptadas pela jurisprudência. 
    
Com efeito, são inúmeros os arestos dos tribunais superiores, alguns deles com vencimento por maioria, que ilustram a controvérsia jurídica pendente, a exemplo dos acórdãos enunciados na sentença recorrida e nas alegações da apelante. 

Em aproximação breve, identificam-se três soluções actualmente preconizadas  quanto ao prazo de prescrição de créditos, como o dos autos, provenientes de contrato de mútuo, assentando in limine na  caracterização da obrigação do mutuário no reembolso do capital e juros remuneratórios, através de prestações periódicas e sucessivas.[7]

A primeira, com expressão prevalecente na jurisprudência dos tribunais superiores,  compreende o mútuo bancário como uma obrigação de valor predeterminado - a restituição do capital e juros- mas, cujo cumprimento pelo mutuário, conforme o convencionado, liquidável em prestações mensais, traduz um plano de amortização fraccionada do valor dívida, com prazos de vencimento autónomo, e consequentemente, sujeitando a extinção da prestação global ao prazo de prescrição quinquenal estabelecida no artigo 310º, al) e) , do Código Civil. 

De menor expressão actual na jurisprudência, compreende-se o contrato de mútuo a liquidar em prestações como um contrato de natureza duradoura e prestação única, distinto do contrato de prestações continuadas, pelo que as prestações de amortização não assumem autonomia, sendo de aplicar ao capital total em dívida o prazo de prescrição geral de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.

Por último, desenha-se o entendimento, segundo o qual, acolhendo a prescrição quinquenal prevista no artigo 310º e) do CC, no que respeita à extinção de cada uma das prestações vencidas, argumentam, porém, que em caso de incumprimento, tendo o mutuante considerado vencidas todas as prestações, fica sem efeito o plano de pagamento acordado, e  nessa medida, os valores em dívida retomam a sua natureza original de capital (e juros), ficando o capital global sujeito ao prazo ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil. 

Antecipa-se, com o respeito que nos merece a solução jurídica na aplicação do prazo quinquenal de prescrição prosseguida pelo tribunal a quo, que persiste na doutrina e em parte da jurisprudência, a solução plausível de o credor beneficiar da prescrição ordinária, ocorrendo a comunicação ao devedor do vencimento total da dívida e interpelação admonitória; por outro lado, não existe, até ao momento, Acórdão Uniformizador de Jurisprudência tirado pelo pleno do Supremo Tribunal de Justiça.   
Neste conspecto e, em coerência com a orientação que vimos sufragando em situações análogas, sem prejuízo de eventual futura revisão, justificada pela dinâmica inerente à construção jurídica e à exigência prevista no artigo 8º, nº3, do CCivil, o desenvolvimento processual da causa poderá conduzir a um desfecho final que não o seguido no saneador-sentença em recurso.  
 
5.–A interpelação do devedor; factos controvertidos 
Assim sendo, neste contexto processual deverá então possibilitar-se às partes a produção de prova de todos os factos alegados que suportam cada uma das soluções em debate, na perspectiva do respectivo acolhimento.
Retomando os autos.

Como se disse, a Senhora Juiz a quo aderiu à primeira posição enunciada, i.e, na aplicação da prescrição quinquenal ao crédito proveniente do mútuo liquidável em prestações, com dispensa de outro condicionalismo.

Não deixou, porém, de se pronunciar acerca da alegada ausência de interpelação prévia da embargante e que a embargada impugnou.

Nesse ponto, na apreciação crítica das cartas juntas pela embargada para infirmar a ausência de interpelação da embargante, concluiu que as mesmas, sem registo, não comprovam o envio e recebimento pelo destinatário, e por consequência, desnecessária a produção de prova testemunhal. 
  
A apelante sustenta que não deverá o tribunal coartar-lhe a possibilidade de demonstrar através de prova testemunhal, que enviou as cartas de interpelação à embargante e que esta as recebeu, e a instância prosseguir para julgamento.      
Assiste-lhe razão, s.m.o.

Estando controvertida entre as partes a existência de prévia interpelação da embargante para o pagamento da quantia total em dívida, a desnecessidade de mais provas, não pode significar suficiência das já apreciadas para a formação da convicção do julgador (na prova livremente apreciada) e que foram juntas antecipadamente nos autos.
    
É de sublinhar que, a desnecessidade ou inutilidade da produção de prova sobre factos necessários controvertidos face à solução jurídica eleita – não se equivale, no momento do saneador, à suficiência da convicção antecipada do julgador sobre a realidade dos mesmos factos. [8]

Neste momento processual, em ordem a alicerçar a conclusão de que está habilitado a conhecer de imediato do pedido, o juiz não pode cingir-se à sua percepção da realidade do facto relevante e controverso, motivada apenas pelos elementos documentais (ou outros) já disponíveis nos autos, respeitante a factos não sujeitos a prova vinculada ou demonstrável por um único meio de prova.

Daí que, estando essa matéria de facto controvertida, e a sua demonstração também aferível através de depoimento testemunhal, assiste à embargada e ora apelante o direito de perseverar na respectiva produção de prova testemunhal, e com ou sem êxito, vir a alterar aquela convicção inicial do julgador sobre a matéria de facto em apreço.

A propósito desta questão e da “desnecessidade de mais provas” afirma Paulo Ramos de Faria  « Ainda que o juiz já esteja convencido sobre a realidade de um facto controvertido – designadamente, com base na prova produzida antecipadamente −, tem, por regra quase sem exceção, de dar à parte que ficaria vencida na “questão de facto” a decidir a oportunidade de produzir a prova por si oportunamente oferecida, e de, assim, alterar aquela convicção inicial, sob pena de, não o fazendo, com a sua decisão violar o princípio do contraditório, o princípio da igualdade de armas e o direito a um processo equitativo.»[9]

Em suma, atentas as razões expostas, o estado da causa não habilita ao imediato conhecimento de mérito, devendo prosseguir para discussão e julgamento da factualidade controvertida que se delimitou. 
 
III.–DECISÃO

Posto o que precede, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e em consequência decidem:
a)-anular a sentença recorrida;
b)-determinar o prosseguimento dos termos da instância com vista à produção da prova em audiência de discussão e julgamento, conhecendo-se a final da matéria da excepção da prescrição, e do mais que ocorra então decidir.
As custas são a cargo da parte vencida a final.



Lisboa,31/5/2022


ISABEL SALGADO
CONCEIÇÃO SAAVEDRA
# CRISTINA COELHO
*


#Voto vencida, com os seguintes fundamentos:
Não obstante perfilhe, por princípio, o entendimento de que, sendo várias as soluções plausíveis de direito, devem os autos prosseguir para apuramento de toda a factualidade relevante e que se mostre controvertida, no caso em apreço não determinaria a anulação da sentença para prosseguimento dos autos, por entender ser de confirmar a decisão recorrida, revelando-se, assim, inútil o apuramento de matéria de facto que se mostra ainda controvertida.
De facto, embora tenha subscrito, como 2ª adjunta, o Ac. da RL de 19.1.2021, P. 8636/16.1T8LRS-A. L1, deste mesmo coletivo (publicado em www.dgsi.pt), a que a apelante faz referência, após melhor reflexão passei a entender que “1. Os créditos emergentes de um contrato de mútuo em que é convencionada a amortização da dívida em prestações periódicas de capital com os respetivos juros está sujeito ao prazo de prescrição de 5 anos previsto no art. 310º, al, e), do CC. 2. O vencimento antecipado da totalidade das prestações não altera o seu enquadramento em termos da prescrição.”, conforme sumariado no Ac. desta Relação de 22.3.2022, P. 15273/18.5T8SNT-B.L2, que relatei, e que pode ser consultado, também, naquele site, o que dispensa o apuramento de factualidade relativa a eventual vencimento da totalidade do crédito por efeito do incumprimento, e/ou de alegada interpelação dos devedores.
Cristina Coelho
Lisboa, 31 de Maio de 2022 
*


[1]Cf. Despacho de 15.09.2021-Ref132680503.
[2]Cf.  artigo 510, nº1 al) b do CPC (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25.09) - “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos.”
[3]Respectivamente nos proc.9662/2006-6; 1671/11.8TVLSB.L1-7; 15952/17.3T8LSB.L1-7 5900/20.9T8PRT-; 741/13.2TBVVD.G1; 449/20.2T8LRA.C; 1668/20.1T8GRD.C1.
[4]In   blogippc. blogspot em comentário ao Acórdão do TRG de 14.03.2019, e, disponível no mesmo no post “Conhecimento de excepções peremptórias no despacho saneador? Depende!”.   
[5]Cfr. Abrantes Geraldes in Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. II, pág. 132, e também A. Geraldes P. Pimenta, Luís P. Sousa in CPC anotado, I, 2ª edição pág.721/2.
[6]Cf., a propósito Paulo Ramos de Faria, Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito, in Revista Julgar, versão online, outubro 2019, pág. 4 e 5.            
[7]Dando por reproduzido nessa parte o que se expendeu no Acórdão deste Tribunal e colectivo de 19.01.2021 no proc nº8636/16.1T8LRS-A, in www.dgis.pt.
[8]Conforme se decidiu no Acórdão deste Tribunal e Colectivo de 19.05.2020 no proc. nº5598/18.4T8LSB.L1, disponível in www.dgsi.pt.
[9]In estudo e local citados, pág.8/9.