Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1671/18.7T9LSB.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: DÍVIDAS À SEGURANÇA SOCIAL
TAXA DEVIDA DE JUROS DE MORA E SEU CÁLCULO
REGIME JURÍDICO LEGAL APLICÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1- Os pedidos de indemnização civil formulados em processo penal, assentes no cometimento de crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, por falta de pagamento das contribuições legalmente devidas por descontos efetuados nos vencimentos dos trabalhadores e/ou dos membros dos órgãos sociais, aplica-se “in casu” a legislação especial existente a este respeito, muito em particular os dispositivos atinentes ao início da mora e à taxa dos juros de mora, ainda que se tenham em consideração os pressupostos da responsabilidade extracontratual;
2- Nestes termos os juros moratórios devidos, sobre os montantes em divida  à Segurança Social devem ser calculados de acordo, com o estabelecido no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social  [segundo o qual as contribuições para as instituições de segurança social devem ser pagas até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art. 43.º), sendo devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção, pelo não pagamento das contribuições nos prazos legais (art. 211.º), sendo a taxa de juros de mora igual à estabelecida no regime geral dos juros de mora para as dívidas do Estado e outras entidades públicas, e aplicada nos mesmos termos (art. 212.º)], e no art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 73/99, de 16-03, na sua redacção actualizada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 1671/18.7T9LSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 10, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos AA e “DRM – Indústria Comércio, Importação e Exportação, Lda”, identificados nos autos, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 7.º, 107.º, n.ºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 1, 4, 5 e 7, todos do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias).
2. O “Instituto da Segurança Social, I.P.” deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, peticionando a sua condenação no pagamento do montante de 68 740,02€, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescido dos respectivos juros moratórios, calculados de acordo com a legislação especial de que beneficia a Segurança Social, constante do art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 73/99, de 16-03, até efectivo e integral pagamento.
3. Realizado o julgamento, foi proferida sentença no qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«Condenar as arguidas AA e DRM – Industria, Comércio, Importação e Exportação Ld.ª pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada previsto e punido pelos artigos 6º, 7º, n.º 3, 105º e 107º do R.G.I.T., aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, 30º e 77º do CP, nas penas de:
- 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 8€ (oito euros), perfazendo 2.400€ (dois mil e quatrocentos euros), para a arguida AA, a que correspondem 200 (duzentos) dias de prisão subsidiária, nos termos e com a excepções previstas no art.º 49º do CP;
- 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros), perfazendo 1.250€ (mil duzentos e cinquenta euros), para arguida DRM Ld.ª;
*
Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo ISS-IP contra AA e DRM Ld.ª, e consequentemente, condena-las a pagar-lhe a quantia de € 68.740,02 (sessenta e oito mil setecentos e quarenta euros e dois cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, calculados, à taxa legal prevista na Portaria n.º 291/03, de 08.04 (4%) – desde a data da notificação dos demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, até efectivo e integral pagamento.
Condenar as arguidas no pagamento das custas criminais do processo, fixando a taxa de justiça devida em 2 UC (reduzida a 1/2 por virtude da confissão), e demais encargos com o processo, (cf. artigos 44º, n.º 3, 513º, nº 1 do C.P.P., artigos 8º, n.º 5, tabela III e 16º do Regulamento das Custas Processuais).
As custas do pedido de indemnização civil serão suportadas pelas demandadas e demandante, na proporção do respectivo decaimento – cf. artigos 537º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 523º do Código de Processo Penal. (…)»
4. Inconformado com esta decisão, interpôs o demandante o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1.
O presente recurso circunscreve-se ao facto de se discordar da sentença na parte em que o tribunal "a quo" entendeu que os juros peticionados por conta do pedido de indemnização civil devem ser calculados à taxa legal prevista na Portaria n.° 291/03, de 08/04 desde a data da notificação dos demandados para contestarem o pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento, com custas a cargo do demandante e demandadas na proporção do decaimento.
2.
O Recorrente peticionou, no âmbito de um processo-crime, e ao abrigo do princípio da adesão (art° 71° do CPP), uma indemnização pelos danos que lhe foram causados pela prática de um facto ilícito.
3.
O facto ilícito, aliás, criminalmente punível, consistiu na retenção e não entrega do valor das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores e gerentes que haviam sido deduzidas das respetivas remunerações, no período de fevereiro de 2012, junho de 2012, outubro de 2012, novembro de 2012, fevereiro de 2013, março de 2013, janeiro de 2014, fevereiro de 2014, abril de 2014, maio de 2014, julho de 2014, agosto de 2014, novembro de 2014 a abril de 2015 e julho de 2015 a dezembro de 2015, entre o 10º e o 20º dia do mês seguinte àquele a que diziam respeito, ou nos 90 dias subsequentes.
4.
Os factos consubstanciadores do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social resultaram provados, bem como o valor das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores respeitantes ao referido período, no montante de 68.740,02 € que não foram entregues nos prazos legais para o efeito.
5.
Encontrando-se, por conseguinte, reunidos todos os pressupostos constantes do art° 483° do C.C.
6.
Sendo que, por força do art.° 129° do Código Penal, a mora e os respetivos juros são regulados pela lei civil.
7.
A obrigação contributiva tem um prazo certo, não sendo, assim, necessária interpelação do devedor, nos termos e para os efeitos do art.° 805.° n° 2, alínea a) do Código Civil.
É que,
8.
O Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.° 110/2009, de 16 de setembro, estabelece que as contribuições para as instituições de segurança social devem ser pagas até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que dizem respeito (art.° 43.°), sendo devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção, pelo não pagamento das contribuições nos prazos legais (art.° 211.°).
9.
Datas estas a partir das quais se vencem os juros respeitantes a cada uma dessas prestações, e a partir da qual, verificando-se a mora, há também obrigação de indemnizar.
10.
Tendo resultando provada a fatualidade supra referida, tem o Recorrente direito à reconstituição da situação que existiria caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação do dano (art.° 562.° do Código Civil).
11.
Ou seja, a uma indemnização que atenda não só ao valor do dano provocado pela não entrega das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores em causa, como também pela sua não entrega nos prazos legalmente fixados, através do pagamento dos competentes juros de mora vencidos e vincendos (art° 806° n° 1 Código Civil).
É que,
12.
A mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (art.°. 804.°, n.° 1 e n.° 2, do C. Civil).
E,
13.
Nas obrigações pecuniárias, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806°, n° 1, do C. Civil),
14.
Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 22/02/2017 — Proc. 599/14.4TACBR.C1, Ac. do Tribunal da Relação do Porto em 06/04/2011 — proc n° 5155/06.8TDPRT.P1, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 17/03/2009 -Proc. n° 1461/07.2TACBR.C1 todos in www.dgsi.pt
15.
Pelo que os juros devem considerar-se calculados desde a data de vencimento de cada uma das prestações e não desde a data da notificação dos demandados para contestarem o pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento,
16.
Assim, salvo o devido respeito por melhor opinião, na perspetiva do ora Recorrente, encontram-se inobservados na sentença recorrida proferida pelo Tribunal "a quo", por errada interpretação e aplicação da lei, os seguintes preceitos legais: art.° 129° do Código Penal, art.° 483° n° 1, art.° 562°, art.° 804° n° 1 e n° 2, art.° 805° n° 2 a) e art.° 806° n° 1 do Código Civil, artigos 43° e 211° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
Nestes termos, em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, ser a sentença revogada na parte em que condenou as arguidas/demandadas no pagamento dos juros de mora contabilizados a partir da data da notificação das demandadas para contestarem o pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento, condenando-as antes no pagamento dos juros de mora peticionados contabilizados desde a data em que cada uma das prestações contributivas devia ter sido paga, até efetivo e integral pagamento, e revogando a sentença recorrida na parte em que condenou em custas o Recorrente na proporção do decaimento, condenando os arguidas/demandadas na totalidade das custas do pedido de indemnização civil, assim se fazendo por VOSSAS EXCELÊNCIAS, serena, sã e objectiva JUSTIÇA!»
5. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 559 dos autos.
6. O Ministério Público junto do Tribunal recorrido entendeu não ter legitimidade para apresentar resposta ao recurso, por o mesmo se prender com questão cível (cf. fls. 560 e v.º).
7. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu Visto.
8. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
In casu, de acordo com as suas conclusões, a única questão colocada pelo recorrente “Instituto da Segurança Social, I.P.” é a de saber se relativamente ao pedido de indemnização civil por si formulado nos autos, e concretamente quanto aos juros moratórios devidos, se aplica a legislação especial existente, tal como vinha peticionado, ou se os mesmos devem ser calculados, à taxa legal prevista na Portaria n.º 291/03, de 08-04, desde a data da notificação aos demandados para contestarem aquele pedido, como foi decidido.
*
2. Da decisão recorrida
Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida.
«2.1. FACTOS PROVADOS:
A. A sociedade “DRM – Indústria, Comércio, Importação e Exportação, Lda.”, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n° 503..., é uma sociedade comercial por quotas, com sede na Avenida …………………….., Lisboa, e que se dedica ao fabrico, comércio, importação e exportação de artigos de vestuário e materiais sonoros, com o NISS ………………...
B. Constituiu-se em 06.07.1994 e obriga-se com a intervenção da gerente AA, a qual exerceu a gerência da sociedade, de facto e de direito entre 18.02.2008 e a presente data.
C. Nos meses de Fevereiro de 2012, Junho de 2012, Outubro de 2012, Novembro de 2012, Fevereiro de 2013, Março de 2013, Janeiro de 2014, Fevereiro de 2014, Abril de 2014, Maio de 2014, Julho de 2014, agosto de 2014, Novembro de 2014 a Abril de 2015 e Julho de 2015 a Dezembro de 2015, a Sociedade “DRM – Indústria, Comércio, Importação e Exportação, Lda.” Pagou salários aos trabalhadores que teve ao seu serviço e aos corpos gerentes da sociedade.
D. No decurso dos supra referenciados meses, a sociedade, representada pelos aqui arguidos, “DRM – Indústria, Comércio, Importação e Exportação, Lda.” procedeu ao desconto, em tais salários e remunerações das contribuições devidas por força da lei à Segurança Social.
E. Assim, nos meses de Fevereiro de 2012, Junho de 2012, Outubro de 2012, Novembro de
F. 2012, Fevereiro de 2013, Março de 2013, Janeiro de 2014, Fevereiro de 2014, Abril de 2014, Maio de 2014, Julho de 2014, agosto de 2014, Novembro de 2014 a Abril de 2015 e Julho de 2015 a Dezembro de 2015, a sociedade “DRM – Indústria, Comércio, Importação e Exportação, Lda.”, por determinação da aqui arguida, quanto aos trabalhadores que teve ao seu serviço e corpos gerentes, foram efectuadas deduções e retenções de contribuições no valor total de € 68.740,02 (sessenta e oito mil setecentos e quarenta euros e dois cêntimos), nas datas e pelos valores detalhados nos quadros reproduzidos no art.° 5° do despacho de acusação, para os quais se remete.
G. Nos termos da Lei, a Sociedade e a arguida deviam ter entregue à Segurança Social cada contribuição retida no período compreendido entre os dias 10 e 20 do mês seguinte a que cada uma respeitava.
H. Contudo, nunca entregaram aquelas contribuições à Segurança Social, nomeadamente nos 105 dias seguintes ao mês a que cada uma respeitava, fazendo-as suas.
I. A 10.03.2018 e 11.04.2018, as arguidas foram notificadas, nos termos do art. 105°, n° 4, al. b) do R.G.I.T., para pagar à Segurança Social a quantia em dívida àquela data.
J. A Sociedade arguida conhecia a sua qualidade de entidade empregadora e sabia que deduzia dos salários pagos aos trabalhadores e das remunerações pagas aos corpos gerentes as contribuições impostas pela lei e que não as entregava, no prazo devido, à Segurança Social, fazendo-as suas.
K. A arguida AA conhecia a sua qualidade de sócia-gerente da Sociedade arguida e que actuava em nome e a favor desta desde a sua constituição e na data dos factos.
L. Tinha, a arguida, consciência de que a Sociedade “DRM – Indústria, Comércio, Importação e Exportação, Lda.” era entidade empregadora e que deduzia nos salários pagos e das remunerações dos corpos gerentes as contribuições impostas pela lei e que não as entregava, no prazo devido, à Segurança Social, fazendo-as suas.
M. Agiram, os arguidos, da forma descrita, sucessivamente, por saberem da deficiência de
N. fiscalização e controlo do cumprimento da lei nesta área, confiando, por isso, não serem descobertos.
O. Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de não liquidar, nem pagar as contribuições mencionadas, sabendo as suas condutas proibidas e puníveis por lei.
P. A arguida confessou integralmente os factos, manifestou consciência do seu desvalor, e esclareceu que os praticou em contexto de dificuldades financeiras da sociedade arguida, tendo optado por pagar os vencimentos dos seus trabalhadores e outros encargos indispensáveis à laboração da sociedade, em detrimento das contribuições devidas ao ISS-IP.
Q. Em consequência dos factos praticados pelos arguidos o demandante encontra-se prejudicado na quantia de 68.740,02€ (sessenta e oito mil setecentos e quarenta euros e dois cêntimos).
R. A sociedade arguida encontra-se inacctiva desde o ano de 2017.
S. A arguida é casada, reside com o marido e uma filha de 3 anos em casa arrendada pelo montante de 850€ mensais, exerce a actividade profissional de formadora desenvolvimento e liderança, em regime de prestação de serviços, auferindo cerca de 1.300€ mensais.
T. A arguida foi condenada pela pratica de três crimes de abuso de confiança fiscal, por factos, respetivamente de 02.2015 em pena pecuniária, extinta pelo cumprimento; 08.2016, em pena pecuniária extinta pelo cumprimento e 05.2016, em pena pecuniária extinta pelo cumprimento.
U. A sociedade arguida foi condenada pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, por factos, respectivamente, de 02.2015, na pena de 120 dias de multa, por sentença transitada em julgado no dia 19.10.2017, e 08.2016, na pena de 180 dias de multa, por sentença transitada em julgado no dia 19.03.2019.
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2.2. FACTOS NÃO PROVADOS:
Não existem factos não provados com relevância para a decisão.
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2.2. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO E EXAME CRÍTICO DAS PROVAS:
Para o apuramento dos factos provados foram decisivas as declarações da arguida, que reconheceu integralmente a prática dos mesmos, designadamente o exercício da gerência, a actividade comercial desenvolvida pela sociedade neste período, a existência de trabalhador a cargo e o envio das declarações de remunerações, desacompanhadas dos respectivos meios de pagamento, e bem assim a utilização daquelas quantias para satisfazer outros encargos da sociedade, indispensáveis à sua laboração, em detrimento da sua entrega ao ISS-IP.
Atenta a confissão integral e sem reservas, realizada de forma espontânea e objectiva, revestindo características que a tornam consistente e isenta de dúvidas, foram apenas analisados de forma instrumental os documentos elencados como meio de prova (certidão do teor de matrícula com todas as inscrições em vigor da Sociedade “DRM – Indústria, Comércio, Importação e Exportação, Lda.” de fls. 44 a 47; notificação para pagamento voluntário efectuada nos termos do art.º 105º, nº 4, al. b) e nº 6 do R.G.I.T. de fls. 64 e 65; Mapas de apuramento de dívida, declarações, recibos e extratos de remunerações de fls. 23 a 26, 104 a 118, 150 a 166, 180 a 271).
Relativamente aos antecedentes criminais constam documentados nos CRC’s junto aos autos.
Para o apuramento da situação económico/financeira, pessoal, profissional e familiar da arguida e da sociedade arguida, o Tribunal valeu-se do teor das declarações da própria.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Antes de entrar na análise da questão suscitada no recurso, que diz unicamente respeito ao pedido de indemnização civil, haverá, assim, que verificar se a sentença recorrida enferma de nulidade insanável ou de algum dos vícios a que se reporta o n.º 2 do art. 410.º do CPP, uma vez que se trata de matéria de conhecimento oficioso.
Analisado o texto decisório, nele não vislumbramos qualquer desses vícios, pois que a decisão se mostra lógica, coerente, harmónica, destituída de lacunas ou antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para sustentar uma segura solução de direito.
Encontra-se, assim, definitivamente fixada a matéria de facto.
Conforme acima referimos, a única questão que constitui o objecto do recurso é a de saber se relativamente ao pedido de indemnização civil formulado nos autos pela Segurança Social, e concretamente quanto aos juros moratórios devidos, se aplica a legislação especial existente, tal como vinha peticionado, ou se os mesmos devem ser calculados, à taxa legal prevista na Portaria n.º 291/03, de 08-04, desde a data da notificação aos demandados para contestarem aquele pedido, como foi decidido.
Sobre a matéria atinente ao pedido de indemnização civil o Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão da seguinte forma:
«Veio o ISS-IP peticionar a condenação dos arguidos na quantia correspondente ao prejuízo patrimonial que sofreu em consequência do seu comportamento – 68.740,02€, correspondente às contribuições devidas à segurança social retidas e não entregues à demandante, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Mais reclama o pagamento de juros vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento.
Dispõe o art.º 129.º do Código Penal que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, sendo reflexo do disposto no art.º 71.º Código de Processo Penal – princípio da adesão – que esta apenas se refere à indemnização fundada na prática de um crime.
Nos termos do disposto no art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil, quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de auferir em consequência da lesão, conforme dispõe o art.º 564.º, n.º 1 do mesmo código.
Como é sabido, são requisitos da responsabilidade civil:
- A existência de um facto voluntário do agente;
- A ilicitude do facto;
- O nexo de imputação do facto ao lesante;
- O dano;
- O nexo de causalidade entre o facto e os danos sofridos pelo lesado.
Em face das considerações supra expendidas na qualificação jurídico-criminal das condutas da arguida AA, imputáveis por via da clausula de estenção de responsabilidade (artigos 7º do RGIT e 11º do CP), não se levantam dúvidas quanto ao preenchimento de todos estes pressupostos.
De facto, verificada a prática do crime, necessariamente se constata a ocorrência de um facto voluntário, a ilicitude desse facto e o nexo de imputação do facto ao lesante.
Subsiste a necessidade de averiguação dos danos, da sua ressarcibilidade, e do nexo de causalidade entre os factos e os danos.
Conforme já se referiu, o Código Civil prevê o ressarcimento dos patrimoniais, e nos casos previstos no art.0 4960 os não patrimoniais.
Os primeiros constituem despesas e prejuízos causados em bens ou direitos já existentes à data da lesão (danos emergentes), bem como benefícios que o lesado deixou de obter, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão.
Os segundos, insusceptíveis de avaliação pecuniária, atingem bens que não fazem parte do património do lesado, como seja a dor física, moral, honra, bom-nome, beleza, perfeição física e estética, entre outros.
No que respeita ao nexo causal entre o facto e os danos supracitados (cuja determinação releva também para aferir dos danos indemnizáveis, posto que o critério é comum), apela-se à teoria da causalidade adequada.
De acordo com o disposto no nº1, do artigo 483º e no artigo 563º, ambos do Código Civil, o lesante só tem a obrigação de reparar os danos que, em concreto, se tenham verificado como uma consequência necessária do evento danoso, e que, em abstracto, se tenham verificado como uma consequência do mesmo.
Ou seja, o evento danoso deve ter constituído, simultaneamente, uma causa necessária e uma causa potencialmente idónea da produção daqueles danos – de acordo com as teorias da causalidade naturalística e da causalidade adequada. Assim, só os danos que estejam, por este modo, conexionados com o facto ilícito serão reparáveis.
Volvendo aos autos, resultou provado que, em consequência dos factos praticados pelo arguido/demandado, o demandante ISS-IP deixou de receber a quantia peticionada.
Temos assim como assente que o demandado deve indemnizar a demandante na quantia em apreço, por representar prejuízo emergente do crime praticado.
No que respeita aos juros peticionados pela demandante reverte-se para tudo quanto se expôs relativamente à causa de pedir da indemnização em processo penal, ou seja, não se cuida aqui de um direito a indemnização por incumprimento de obrigação – pagamento das contribuições retidas aos trabalhadores, obrigação esta com origem legal.
Trata-se de um direito a indemnização emergente da prática de um crime. E pese embora se confundam materialmente, posto que, num caso como noutro, o computo da indemnização corresponde à colocação do lesado na situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o evento danoso, a verdade é que a causa de pedir de uma e outra, são distintas, donde, surgem repercussões, além do mais, ao nível do responsável pelo seu pagamento – aqui, na indemnização fundada na prática de crime, será o agente do mesmo, ali, indemnização fundada no incumprimento, será o devedor relapso, ou quanto ao regime da prescrição da obrigação de pagamento da contribuição e da prescrição do crime por omissão de pagamento.
Conforme melhor se expos no AFJ, de 15-11-2012, DR I SÉRIE, Nº 4, 07.01.2013, P. 44 e ss., embora versando sobre questão distinta (competência da jurisdição comum para apreciação do pedido de indemnização civil deduzido pelo ISS-IP em procedimento criminal), “(...) a obrigação de pagamento das contribuições e acréscimos legais à Segurança Social emerge de relações jurídica administrativa - tributária especial e rege-se pela legislação de direito público, (...) o princípio da adesão ao processo penal (art. 71 e ss CPP) apenas admite a formulação e conhecimentos de pedidos de indemnização cível conexa com o facto crime, portanto indemnização cuja obrigação se situe no âmbito das relações jurídicas privadas; (...)”.
Em conformidade, entende este Tribunal que tal legislação especial não é aplicável à indemnização peticionada, desde logo porque, tal como resulta do teor literal do seu art.° 1°, n.° 1, alínea a), os juros moratórios nela contemplados respeitam a dívidas provenientes de (...) contribuições (...).
Ora, o direito a indemnização reconhecido por este Tribunal não tem como causa a violação do direito de crédito do ISS-IP sobre as contribuições devidas pelas entidades patronais relativas aos vencimentos pagos aos trabalhadores e/ou membros da gerência, antes tem como causa de pedir exclusivamente o facto ilícito gerador do dano – o crime praticado.
Assim, entende-se que o regime geral previsto nos artigos 805° e 806° do C.C. é o aplicável para o cálculo dos juros moratórios.
Diz o segundo dos preceitos que na obrigação pecuniária a indemnização moratória corresponde aos juros contados a partir do dia da constituição em mora.
Tal dia ocorre, no caso de indemnização devida pela prática de facto ilícito, a partir da data da citação – que no caso de pedido de indemnização civil enxertado em procedimento criminal corresponde à data da notificação do respectivo pedido de indemnização civil ao demandado para contestar, tal como se prevê no n.° 3 do art.° 806° do C.C., sendo aliás jurisprudência fixada – cf. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 4/2002, de 27.06.2002, publicado no DR 146, série I-A.
Concluindo, os demandados são ainda responsáveis pelo pagamento de juros moratórios, calculados à taxa legal prevista na portaria n.° 291/03, de 08-04 (4%), vencidos desde a data da notificação para contestarem o pedido de indemnização civil, e vincendos até integral pagamento».
Não é este o entendimento que vimos sufragando, o qual ficou expresso no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 09-02-2017, proferido no Proc. n.º 2083/12.1TAOER.L1, relatado pela Exma. Colega Sra. Dra. Maria do Carmo Ferreira, que subscrevemos na qualidade de adjunta e que nos permitimos citar:
«Na total adesão aos argumentos vertidos no Ac. Rel. de Guimarães, de 15 de dezembro de 2016, acessível em dgsi.pt, citamos o que ali consta:
A jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais Superiores (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 06/12/2012, proc. 224/02.6TASRT.C1.S1, Ac. da R.C. de 21/09/2016, proc. 63/14.1TATBU.C1, ambos acessíveis no endereço www.dgsi.pt e Ac. da R.P. de 18/04/2012, Ac.s da R.L. de 14/05/2014 e de 30/09/2015, publicados na CJ, respetivamente, Ano 2012, tomo 2, pág. 222 e seg.s, Ano 2014, tomo 3, pág. 154 e seg.s, Ano 2015, tomo 4, págs. 136 e seg.s), e que merece a nossa concordância, vem decidindo que:
- A taxa de juros é a prevista no artigo 3º, nº. 1, do Decreto-Lei nº 73/99, de 19 de Março (que dispõe: A taxa de juros de mora é de 1%, se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente.), aplicável às dívidas do Estado e, por força do disposto no artigo 16º do DL nº. 311/91, de 17 de Outubro às dívidas da Segurança Social
- O prazo da contagem dos juros de mora (não se estando perante uma obrigação ilíquida, mas liquida), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 806º do C.C., 5º, nº. 3, do DL 103/80, de 9 de Maio, conjugado com o artº. 16º do DL 411/91, de 17 de Outubro e do nº. 2 do artº. 10º do DL 199/99, de 8 de Julho, deverá reportar-se ao 15º dia do mês seguinte àquele a que dizem respeito as contribuições que estavam em dívida, calculados nos termos referenciados no parágrafo anterior.
Em sustentação da orientação acolhida são aduzidos três argumentos preponderantes, a saber:
- Uma vez que existe um regime indemnizatório especial, para a mora no cumprimento da obrigação de entrega das contribuições devidas à Segurança Social, previsto no Dec.-Lei nº. 73/99, de 19 de Março, aplicável ex vi do disposto no artigo 16º do Dec.-Lei nº. 411/91, de 17 de Outubro, trata-se de lei especial, deverá ser a aplicada (afastando a aplicação do regime geral dos juros civis a que faz referência o nº. 2 do artigo 806º e 559º, nº. 1, do C. Civil), tendo em conta o disposto no artigo 7º, nº. 3, do C. Civil, no sentido de que «a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador».
- Em termos de interpretação lógica e sistemática, não faria sentido que o devedor de uma obrigação fiscal estivesse obrigado a determinada taxa de juros de mora e que, mantendo-se válidos os pressupostos da obrigação, a que acresce a responsabilidade criminal, o(s) arguido(s) conseguisse(m) um “prémio” pela prática do crime, pagando uma taxa de juro inferior aquela que lhe é exigível pela mera obrigação tributária. Isto é, não faria sentido que, no caso de indemnização fundada na prática de um crime, os juros de mora fossem inferiores aos que são devidos pela simples constituição em mora resultante de cumprimento tardio da obrigação.
- Tratando-se de dívida originada por não entrega de contribuições devidas à segurança social, encontrando-se estas perfeitamente determinadas, desde o momento em que a entrega era legalmente exigível, por conseguinte, muito antes da formulação do pedido de indemnização civil, rege o n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil (e não o nº. 3 do mesmo artigo, que rege para as situações do crédito ser ilíquido), segundo o qual há mora do devedor independentemente de interpelação (judicial ou extrajudicial): a) por a obrigação ter prazo certo; b) por a obrigação provir de facto ilícito e o nº. 1 do artigo 806º do Código Civil, que estatui: «na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora».
Este Tribunal da Relação tem defendido este mesmo entendimento como se pode ver dos seguintes acórdãos:
De 12.01.2016 acessível em dgsi.pt: e, em cujo sumário podemos ler:
1. Em pedido de indemnização civil decorrente da prática de crime de abuso de confiança à segurança social, o valor do dano causado pelos demandados coincide com o valor da prestação em falta e os juros de mora devidos terão que ser coincidentes com os que resultam da mora pelo não pagamento da prestação nos respectivos prazos.
2. O não pagamento das contribuições à segurança social nos prazos estabelecidos gera a obrigação de pagamento de juros de mora, sendo a respectiva taxa igual à estabelecida para as dívidas de impostos ao Estado e aplicada da mesma forma (cfr. os nºs 1 e 2 do D.L. 411/91 de 17.10) e por força do disposto no art. 44º, nºs 1 e 3 da Lei Geral Tributária, a taxa de juro aplicável é a prevista no D.L. 73/99 de 16.03, uma vez que havendo lei especial, a lei geral tem de ter-se por derrogada nesses casos.
De 27-09-2006, proferido no processo n.º 0416510 (JusNet 4889/2006):
"(...) Resulta da lei: 1. Existe mora a partir do 15º dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito.2. Trata-se, por isso, de obrigações com prazo certo.3. A taxa de juro devida pela mora é de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente ao mês a que respeitem as contribuições. 4. Anteriormente a Março de 1999, a taxa de juro era de 15%, o que não tem relevância no caso em análise já que o pedido da Recorrente fica aquém do legalmente permitido.
Pois bem.
Sendo líquidos os créditos provenientes dos montantes descontados nos salários dos trabalhadores, é aplicável o disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 805 do Código Civil pelo que se verifica mora independentemente de interpelação.
A taxa de juros está, como se referiu, definida no n.º 1 do art.º 3º do Dec. Lei 73/99.
Trata-se de Lei Especial que não pode ser derrogada pela Lei Geral, designadamente pelo Código Civil e Portarias que fixam as taxas de juros previstas naquele Diploma Legal.
De resto, a alínea c) do art.º 3º do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho (JusNet 66/2001), expressamente estipula que se aplicam subsidiariamente (às infracções fiscais não aduaneiras), quanto à responsabilidade civil, "as disposições do Código Civil e legislação complementar" (sublinhado nosso). É essa legislação complementar que tem aqui aplicabilidade como, de resto, foi intenção inequívoca do legislador (cfr. preâmbulo do DL 73/99."
O mesmo entendimento foi seguido no acórdão desta Relação, de 5-11-2003, proferido no processo n.º 0343440 (JusNet 5637/2003):
"No caso sub judice temos dois regimes aplicáveis à taxa de juros: a regra geral e a especial, prevista no D/L nº 73/99, aplicável às dívidas ao Estado e, por força do disposto no art. 16º do D/L nº 411/91, às dívidas ao demandante. Nestes dois diplomas legais não é feita qualquer distinção entre dívidas resultantes e não resultantes da prática de um crime para a aplicação de um ou outro dos regimes. Sendo assim, tem de ser dada prevalência à lei especial, que não foi derrogada pela lei geral."
Também no acórdão desta Relação, de 18-05-2005, proferido no processo n.º 0510599 (JusNet 3053/2005), se decidiu do mesmo modo:
"Baseando-se a indemnização na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, os juros de mora são calculados à taxa prevista no DL n.73/99, de 19 de Março".
Tal entendimento foi igualmente seguido no acórdão desta Relação, de 9-05-2007, proferido no processo n.º 0644421 (JusNet 3358/2007):
" No caso de condenação em indemnização baseada na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social os juros de mora são os previstos nos artºs 16º do DL nº 411/91 e 3º do DL nº 73/99". "(...) O facto ilícito típico culposo, gerador da obrigação de indemnizar, consiste na não entrega à Segurança Social, do valor das deduções das contribuições devidas pelos trabalhadores, efectuadas no valor das remunerações destes, e na subsequente apropriação desse valor.
Logo, a relação jurídica subjacente tem como objecto imediato (ou conteúdo) a obrigação de entrega, por parte da entidade empregadora - de que o condenado era gerente - daquelas contribuições à Segurança Social. Assim sendo, os juros de mora aplicáveis são os fixados nos diplomas acima transcritos, e não os "civis" aplicados na Sentença. Aqui aplica-se o Princípio Geral do Direito de que Lei Especial revoga Lei Geral. (...)"
Do mesmo modo decidiu o acórdão desta Relação, de 11-04-2007, proferido no processo n.º 0647201: (JusNet 3394/2007)
"I. Procedendo o pedido de indemnização civil baseado na prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, a taxa dos juros de mora é a fixada no DL nº 73/99, de 19 de Março. II. Tais juros são devidos a partir do primeiro dia imediatamente a seguir ao termo do prazo de entrega da prestação à Segurança Social".
Igualmente se decidiu nesta Rel. De Lisboa, nos Ac. de 17/12/2013 e de 13/9/2016, ambos acessíveis em dgsi.pt.
Subscrevemos inteiramente os fundamentos desta jurisprudência, pelo que decidiremos em conformidade com ela.»
No mesmo sentido se tem uniformemente pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, lê-se no acórdão do STJ de 18-06-2015, proferido no Proc. n.º 623/10.T3SNT.L1.S1 - 5.ª[1]:
«Esta questão tem merecido profunda divergência na jurisprudência nacional.
Uma corrente jurisprudencial[1][2] tem sustentado que, como a causa de pedir das ações cíveis enxertadas se prende com os factos integradores do(s) crime (s) objeto do processo penal, nestes casos o que está em causa não é, verdadeiramente, a obrigação legal de pagar os impostos devidos ao Estado ou de suportar as contribuições devidas à Segurança Social, mas a apreciação do pedido civil enxertado de acordo com os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Como o pedido civil formulado se prende com o cometimento de um crime e tem por base os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana (isto é, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo da causalidade), não se aprecia o eventual (in)cumprimento das obrigações tributárias, antes se impõe que o tribunal proceda à reparação dos danos ou prejuízos decorrentes da prática do crime, o que acarreta inevitáveis consequências ao nível do regime jurídico aplicável.
Nesta conformidade, essa corrente jurisprudencial entende que estas matérias (com particular relevo, a taxa dos juros de mora aplicável a estas ações civis) devem observar o regime jurídico de direito civil, isto é, que não devem ser aplicadas as normas especiais existentes para as dívidas ao Estado ou à Segurança Social.
Em sentido contrário, outra corrente jurisprudencial tem defendido que aos pedidos de indemnização civil formulados em processo penal, assentes no cometimento de crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, por falta de pagamento das contribuições legalmente devidas por descontos efetuados nos vencimentos dos trabalhadores e/ou dos membros dos órgãos sociais, não pode deixar de ser aplicada a legislação especial existente a este respeito, muito em particular os dispositivos atinentes ao início da mora e à taxa dos juros de mora, ainda que se tenham em consideração os pressupostos da responsabilidade extracontratual.
Sempre que foi chamado a pronunciar-se sobre esta questão controvertida, o Supremo Tribunal de Justiça mostrou adesão a esta corrente jurisprudencial, não deixando de aplicar a estes pedidos de indemnização a legislação especial existente para a Segurança Social, quer no que diz respeito ao início da mora, quer no que diz respeito à taxa dos juros de mora — a este respeito, por todos, cf., Acs. STJ de 28.01.2015, Proc. n.º 4608/04.7TDLSB.L2.S1 - 3.ª Secção (Relator: Cons. Raul Borges), de 06.02.2014, Proc. n.º 2020/08.8TAVFX.L1.S1 - 5.ª Secção (Relator: Cons. Souto de Moura[2][3]), de 06.12.2012, Proc. n.º 224/02.6TASRT.C1.S1 - 5.ª Secção (Relatora: Cons. Isabel Pais Martins[3][4]), e de 21.06.2012, Proc. n.º 10987/05.1TDLSB.L1.S1 - 5.ª Secção (Relator: Cons. Rodrigues da Costa[4][5]).
Adere-se, sem reservas, a este último entendimento jurisprudencial.
Afigura-se que a apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, fundada na prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não pode deixar de ser avaliada, em processo penal, de modo concertado, com a legislação especial existente sobre estas contribuições.
(…)
Quanto ao apuramento da data do início da mora, importa ter presente o disposto na al. b) do n.º 2 do art. 805.º do CC, segundo o qual, “há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação (…) se a obrigação provier de facto ilícito.”
Por seu turno, em complemento, estabelece o n.º 3 deste artigo que “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.”.
Isto significa que, nos casos de responsabilidade por facto ilícito (como no caso vertente, em que, recorde-se, está em causa a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social) existe mora, independentemente de interpelação para o cumprimento a realizar pelo credor, quando o crédito foi líquido.
(…)
Para o apuramento do dia exato em que se iniciou esse atraso (ou mora), isto é, em que principiou a ilicitude civil das condutas imputadas aos demandados cíveis, o tribunal não pode deixar de se socorrer dos pertinentes normativos que regulam os prazos de pagamento das contribuições que são devidas à Segurança Social.
Ocorre a ilicitude civil das condutas dos devedores destas prestações e, em simultâneo, inicia-se a mora dos mesmos, nos termos da al. b) do n.º 2 do art. 805.º do CC, quando se mostra esgotado o prazo legal para o seu pagamento voluntário. É a partir desse momento que se torna possível avaliar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, maxime, se o facto é ilícito, se os agentes atuaram com culpa e ainda se as suas condutas causaram prejuízos ou danos.
Enquanto vigorar esse prazo legal já se vê que se mostra destituído de todo o sentido falar em responsabilidade criminal ou em responsabilidade civil.»
Sendo este o entendimento que, também nós, perfilhamos, o recurso não poderá deixar de obter provimento, devendo, em consequência, os juros moratórios devidos, sobre o montante de 68740,02€ que, de acordo com a matéria provada nos autos, ficou por entregar à Segurança Social (entre Fevereiro de 2012 e Dezembro de 2015), ser calculados em conformidade com o peticionado, ou seja, com o estabelecido no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social[6] [segundo o qual as contribuições para as instituições de segurança social devem ser pagas até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art. 43.º), sendo devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção, pelo não pagamento das contribuições nos prazos legais (art. 211.º), sendo a taxa de juros de mora igual à estabelecida no regime geral dos juros de mora para as dívidas do Estado e outras entidades públicas, e aplicada nos mesmos termos (art. 212.º)], e no art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 73/99, de 16-03, na sua redacção actualizada.
*
III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em, concedendo provimento ao recurso interposto pelo “Instituto da Segurança Social, I.P.”,
- revogar a sentença recorrida na parte em que condenou os demandados civis no pagamento ao “Instituto da Segurança Social, IP” de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal prevista na Portaria n.º 291/03, de 08-04, desde a data da notificação dos demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, condenando agora os demandados civis a pagar-lhe a quantia de 68 740,02€ (sessenta e oito mil, setecentos e quarenta euros e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios contados desde o vigésimo dia do mês seguinte àquele a que as contribuições mensais referidas nos factos provados dizem respeito, às taxas fixadas de acordo com o art. 3.º, n.º 1, do DL n.º 73/99, de 16-03, na sua redacção actualizada;
- revogar a sentença recorrida na parte em que condenou em custas, na proporção do decaimento, o demandante “Instituto da Segurança Social, IP”, condenando agora os demandados civis na totalidade das custas do pedido de indemnização civil;
- Manter, no mais, o decidido.
Sem tributação.
Notifique.
*
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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Lisboa, 25/03/2021
Cristina Pego Branco
Filipa Costa Lourenço
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[1] In www.dgsi.pt.
[2] [1] São disso exemplo, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.05.2013 (proc. n.º 2020/08.8TAVFX.L1-3) em o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.02.2012 (proc. n.º 4/02.9IDMGR.C1) (ambos in www.dgsi.pt).
[3] [2] Entendeu-se, muito em síntese, neste acórdão desta 5.ª Secção Criminal do STJ que “(…) a não entrega dolosa das prestações faz o agente incorrer no cometimento do crime, no mesmo momento em que se produz o dano da Segurança Social, sabido que o montante do dano se analisa, aqui, apenas, na quantia em dívida. E a partir do dia 15 do mês seguinte àquele a que respeita a contribuição não paga o demandado constitui-se em mora, independentemente de interpelação (…) o dano é aqui o que deixou de entrar nos cofres da Segurança Social, agravado pelo tempo decorrido, ao que se procura atender através da condenação em juros, que assim funcionam como uma presunção de dano acrescido, juris et de jure. Ora, se o dano se analisa apenas no somatório das prestações não pagas, sobre o montante da indemnização devem incidir os juros próprios da dívida tributária. Porque existe um regime especial para esse tipo de dívidas, onde intervém uma ponderação específica, do prejuízo da mora, aqui para a Segurança Social (…)”.
[4] [3] Neste processo, sustentou-se, com particular destaque, que “(…) o prazo da contagem dos juros de mora, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 806.° do CC, e 5.°, n.º 3, do Decreto-Lei n.º  103/80, de 09-05, conjugado com o art. 16.º do Decreto-Lei n.º  411/91, de 17-10, e do n.º 2 do art. 10.° do Decreto-Lei n.º  199/99, de 08-07, deverá reportar-se ao 15.° dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito. A constituição em mora, no que respeita às contribuições devidas à Segurança Social, verifica-se, pois, a partir do 15.° dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito (…)”. E que “(…) nos termos do art. 3.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.º  73/99, de 16-03, «a taxa de juros de mora é de 1 % se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção, se o pagamento se fizer posteriormente», não podendo, todavia, nos termos do art. 4.° deste diploma, a liquidação dos juros de mora ultrapassar os últimos 5 anos anteriores à data do pagamento da dívida sobre que incidem (…)”.
[5] [4] Em idêntico sentido, sustentou-se no Ac. do STJ de 21-06-2012, Proc. n.º 10987/05.1TDLSB.L1.S1: “(…) nos termos do art. 5.º, n.º 3, do DL 103/80, de 09-05 (RJCP), «o pagamento das contribuições deve ser efectuado no mês seguinte àquele a que disserem respeito, dentro dos prazos regulamentares em vigor». E o art. 10.º, n.º 2, do DL 199/99, de 08-06, estabelece que as contribuições devidas à segurança social «devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito». Daqui decorre que a constituição em mora, no que toca às contribuições devidas à segurança social, verifica-se a partir do 15.º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito. Daí serem obrigações de prazo certo. A partir do referido dia vencem-se juros de mora (…” E que “(…) nos termos do art. 3.º, n.º 1, do DL 73/99, de 16-03, «a taxa de juros de mora é de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês do calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente» (…)”.
[6] Aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16-09, em vigor a partir de 01-01-2010, e que revogou o DL n.º 103/80, de 09-05, o DL n.º 199/99, de 08-06 e o DL n.º 411/91, de 17-10 (cf. arts. 5.º, n.º 1, als. b), j) e o), e 6.º, n.º 1 da referida lei).