Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
569/10.1TAOER.L3-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
REENVIO DO PROCESSO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I-O reenvio do processo para novo julgamento – seja quanto à totalidade ou a parte do respectivo objecto - só tem lugar quando for declarado algum vício da decisão recorrida, ao abrigo das alíneas a) a c) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, e, por causa dele, não for possível decidir da causa.
II-A anulação da sentença pelo tribunal de segunda instância, ao abrigo do art. 379.º, n.º 1, do CPP, nunca determina o reenvio do processo para novo julgamento, apenas implicando a devolução dos autos ao tribunal recorrido para suprimento dessa nulidade.
III-Se a anulação da sentença tem por base uma situação de omissão de pronúncia, a respectiva sanação será conseguida através da apreciação da questão que havia sido omitida, sem necessidade de reapreciar as demais questões que não foram afectadas pela declaração de nulidade. Estas, porque já foram conhecidas e ficaram intocadas com a decisão de recurso, não podem voltar a ser reapreciadas, ficando esgotado, relativamente às mesmas, o poder jurisdicional, quer do tribunal recorrido, quer do tribunal ad quem.
IV-As questões não abrangidas pela anulação fazem «caso julgado formal», ainda que «parcial», ficando o tribunal de primeira instância, assim como o tribunal de recurso, proibidos de sobre elas se pronunciarem de novo, muito menos de proferirem uma nova decisão em sentido diverso da anterior.
V-Na apreciação de qualquer recurso, o tribunal ad quem não deve ir além do pedido formulado pelo recorrente, quando este é o MP ou o assistente, assim como, em caso de procedência do recurso, deve ficar pela solução que, entre as várias comportadas pelo pedido, se mostre menos gravosa para o arguido/recorrido, em homenagem, nomeadamente, ao princípio do acusatório e tendo em conta o critério que deve nortear a escolha de qualquer pena, impondo que tal escolha recaia sobre aquela pena que se apresentar menos onerosa ou que menos atente contra a liberdade, desde que com ela sejam atingidas as finalidades visadas pela condenação.
VI-Ao substituir a pena de um ano de prisão por multa, esta pena de substituição «deve ser fixada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º e não, necessariamente, por tempo igual ou proporcional ao estabelecido para a prisão substituída», por força da remissão, para o art. 47.º, que decorre da parte final do n.º 1 do art. 43.º, ambos do CP e conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 8/2013, de 14/03/2013 (in D.R. n.º 77, Série I de 2013-04-19).
(Sumário elaborado pelo Relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam , os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


1.O arguido J. foi submetido a julgamento, perante Tribunal singular, na Secção Criminal (J...) da Instância Local de Oeiras, Comarca de Lisboa Oeste, tendo sido condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, na pena de duzentos e cinquenta dias de multa, a cinco euros por dia, perfazendo € 1250,00.

2.O Ministério Público recorreu da sentença, terminando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1.O arguido J. foi condenado, nestes autos, por sentença proferida em  30.06.2014, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p.p. pelos arts. 107.º do RGIT e 30.º do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, condicionada ao pagamento à Segurança Social, em tal prazo, da quantia de € 235.941,12 e acréscimos legais.

2.Inconformado com essa sentença, o arguido recorreu alegando, nas suas motivação e conclusões de recurso, que a sentença proferida pelo tribunal a quo era nula, porquanto não se tinha pronunciado, para efeitos de suspensão da pena de prisão aplicada, acerca das suas condições socioeconómicas (invocando, para tanto, o acórdão n.º 8/2012, do Supremo Tribunal de Justiça).

3.O Tribunal da Relação de Lisboa julgou procedente o recurso interposto pelo arguido, anulando a sentença recorrida por omissão de pronúncia, e determinou a elaboração de uma nova sentença, pelo mesmo juiz, que contenha a apreciação da questão invocada pelo arguido – omissão de pronúncia no que respeita à matéria de suspensão da execução da pena, com os pressupostos a que alude o art. 14.º, n.º 1 do RGIT – necessariamente antecedida de reabertura da audiência de julgamento para produção dos meios de prova considerados suficientes e necessários para a consideração das situações factuais e jurídicas em falta.

4.Em cumprimento do determinado por esse Tribunal de Recurso, o Tribunal a quo procedeu à reabertura do julgamento para apreciação das condições socioeconómicas do arguido e proferiu nova sentença, em 10.07.2015, condenando o arguido J.pela prática do aludido crime, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, sendo desta sentença que ora se recorre.

5.A questão a apreciar pelo Tribunal a quo limitava-se à ponderação acerca das condições socioeconómicas do arguido para efeitos de realização de um juízo de prognose acerca da aplicação da suspensão da pena, tendo em conta que essa suspensão fica subordinada a uma condição com contornos pré-definidos (previstos no art. 14.º, n.º 1 do RGIT), e da razoabilidade da sujeição do mesmo a essa condição. Como se transcreveu na motivação de recurso, importava fazer esse conhecimento e a opção depois pelas eventuais penas de substituição.

6.Ao condenar o arguido em pena de multa, o Tribunal a quo decidiu para além dos seus poderes de cognição, porquanto o Tribunal de recurso determinou que se procedesse à elaboração de nova sentença com vista, exclusivamente, à apreciação daquele concreto aspecto, e não à condenação em pena de diferente natureza da já aplicada.

7.Cabia ao Tribunal a quo ponderar pela aplicação de outra pena substitutiva que não a pena suspensa, caso concluísse que não era razoável a sujeição do arguido ao cumprimento da condição anteriormente fixada, mas não podia aplicar pena principal de diferente natureza.

8.Ao condenar o arguido em pena de multa, o Tribunal a quo violou o preceituado no art. 426.º, n.º 1 do CPP e o determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

9.Ao decidir dessa forma violou, ainda, o caso julgado, pois, pese embora a sentença não tivesse transitado em julgado, a mesma já era definitiva quanto aos factos dados como provados e quanto à pena principal aplicada.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decida suspender a pena de prisão aplicada ou pondere da aplicação de outra pena de substituição ao arguido, …

3.Admitido o recurso, respondeu o arguido, concluindo que a decisão recorrida não merece reparo e, por isso, àquele não deve ser dado provimento.

4.Subidos os autos, neste Tribunal da Relação a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, aderindo à posição expressa na motivação do recurso, pugna pela sua procedência.

5.Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais foi acrescentado.
6. Proferido despacho preliminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***

II.FUNDAMENTAÇÃO:

1.Vejamos, em primeiro lugar, a matéria de facto provada (transcrição):

«Da discussão da causa e produção da prova resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:

1.A arguida C. , sociedade anónima, com sede em …, Oeiras, tem por objecto social a comercialização e prestação de serviços relativos a equipamentos periféricos de informação e ao microfilme.
2.Em 24-01-2003, foram nomeados para o conselho de administração da sociedade arguida, o arguido J., presidente, o arguido P. e X..
3.A partir de tal data, a gestão da sociedade passou a ser efectuada pelo arguido J., dando ordens e contratando os trabalhadores, que, sob as suas ordens e direcção, desempenharam funções na empresa, actuando em nome da sociedade arguida e em benefício dos interesses desta.
4.Entre Maio de 2006 e Dezembro de 2009, a arguida C. pagou os salários aos seus trabalhadores e a membros dos seus órgãos sociais, deduzindo dos mesmos as contribuições mensais devidas por estes à Segurança Social, as quais reteve, procedendo, mensalmente, à entrega na Segurança Social das respectivas folhas de remunerações.

5.Dos salários que pagou aos trabalhadores, entre Maio de 2006 e Dezembro de 2009, a arguida C. deduziu, as seguintes quantias correspondentes às aludidas contribuições para a Segurança Social, no valor total de € 235.941,12, referentes aos seguintes períodos:


5.1.Ano de 2006

5.1.1. Maio€5.487,95
5.1.2. Junho€5.515,24
5.1.3. Julho€5.856,82
5.1.4. Agosto €6.098,58
5.1.5. Setembro €7.144,43
5.1.6. Outubro €5.746,43
5.1.7. Dezembro €6.903,27
     5.2.Ano de 2007
5.2.1. Janeiro€5.954,45
5.2.2. Fevereiro€6.030,13
5.2.3. Março€5.552,77
5.2.4. Abril€5.892,03
5.2.5. Maio€5.947,16
5.2.6. Junho€6.367,70
5.2.7. Julho€6.927,05
5.2.8. Agosto€6.253,04
     5.3. Ano de 2008
5.3.1. Janeiro€6.211,69
5.3.2. Fevereiro€4.855,42
5.3.3. Março€5.453,23
5.3.4. Abril€4.636,08
5.3.5. Maio€5.528,94
5.3.6. Junho€5.865,37
5.3.7. Julho€7.324,00
5.3.8. Agosto€5.482,53
5.3.9. Setembro€8.338,46
5.3.10.Outubro€5.902,71
5.3.11.Novembro€6.553,59
          5.4.Ano de 2009

     5.4.1. Janeiro€5.439,23
     5.4.2. Fevereiro€6.432,54
5.4.3. Março€5.363,77
5.4.4. Abril€5.743,17
5.4.5. Maio€5.433,99
5.4.6. Junho€6.005,89
5.4.7. Julho€4.698,21
5.4.8. Agosto€6.552,90
5.4.9. Setembro€5.102,02
5.4.10.Outubro€6.760,09
5.4.11.Novembro€5.936,02
5.4.12.Dezembro€6.166,64







6.O arguido J. no âmbito dos seus poderes e actuando em nome e em benefício da sociedade arguida C. não entregou as quantias referidas do ponto 5.1. ao ponto 5.4.12 nos cofres da Segurança Social, até ao dia 15 de cada um dos meses seguintes àqueles em que os descontos foram efectuados.
7.O arguido J. no âmbito dos seus poderes e actuando em nome e em benefício da sociedade arguida C. não entregou as quantias referidas do ponto 5.1. ao ponto 5.4.12 nos cofres da Segurança Social, nos noventa dias posteriores, a cada um dos períodos subsequentes aos referidos em 6.
8.O arguido J. fez ingressar no acervo patrimonial da sociedade as quantias referidas do ponto 5.1. ao ponto 5.4.12, para que aí fossem utilizadas como se à sociedade arguida pertencessem.
9.Os arguidos foram notificados para, em 30 dias, procederam ao pagamento da quantia referida em 5., acrescida dos juros respectivos e das coimas aplicáveis, o que não fizeram.
10.Com tal actuação, o arguido J. e a sociedade arguida causaram à Segurança Social um prejuízo correspondente ao total descontado nos salários dos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais não entregue nos cofres da Segurança Social, no valor de € 235.941,12.
11.Ao proceder da forma descrita, o arguido J. agiu deliberada, livre e conscientemente, em nome e no interesse da sociedade arguida, bem sabendo que aquela quantia não lhe pertencia, nem à sociedade arguida, que não podia dela dispor, e que a mesma tinha ficado em poder da sociedade para, posteriormente, ser entregue na Segurança Social sabendo igualmente que a sua conduta era proibida por lei.
12.O arguido J. actuou daquela forma porque a sociedade C. atravessava dificuldades económicas, causadas pela progressiva queda em desuso da utilização da microfilmagem, acompanhada pela generalização do uso da digitalização de documentos, e necessitava da quantia para assegurar o seu funcionamento, designadamente para pagamento de salários aos seus trabalhadores e de abastecimentos aos seus fornecedores.
13.Os arguidos J. e C. não foram no período referido nos pontos 4. a 7. interpelados pelos serviços da segurança social para a entrega das referidas quantias.
14.A sociedade arguida negociou com a Segurança Social um plano para pagamento das quantias em dívida, o qual não se concretizou por recusa da Segurança Social.
15.A sociedade arguida C. foi declarada insolvente por sentença proferida em 04-02-2010.
16.A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.

17.O arguido J. foi condenado:

17.1.-No Proc. n° 12037/01.8TDLSB, do 6° Juízo Criminal de Lisboa, 2ª secção, por sentença proferida em 02-05-2008, transitada em julgado em 30-11-2010, pela prática, em 30-03-2001, de um crime de abuso de confiança à segurança social, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 50,00, o que perfaz o total de € 15.000,00.
17.2.-No Proc. n° 383/07.1TDLSB, do 3° Juízo Criminal de Oeiras, por sentença proferida em 17-12-2010, transitada em julgado em 19-01-2011, pela prática, em 01-12-2003, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz o total de € 1.260,00, extinta por pagamento em 11-07-2012.
17.3.-No Proc. n° 4491/08.3TDLSB, do 3° Juízo Criminal de Lisboa, 1a secção, por sentença proferida em 30-09-2011, transitada em julgado em 30-01-2013, pela prática, em 01-04-2003, de um crime de abuso de confiança à segurança social, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o total de € 600,00.
17.4.-No Proc. n° 274/06.3TDLSB, do 4° Juízo Criminal de Oeiras, 2a Secção, por sentença proferida em 28-09-2011, transitada em julgado em 28-10-2011, pela prática, em Dezembro de 2003, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o total de € 1.000,00, extinta por pagamento em 10-06-2012.
17.5.-No Proc. n° 4753/07.7TDLSB, do 4° Juízo Criminal de Lisboa, 1a secção, por sentença proferida em 25-01-2012, transitada em julgado em 24-02-2012, pela prática, em 01-06-2001, de um crime de abuso de confiança à segurança social na forma continuada, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, o que perfaz o total de € 600,00.

17.6.-No Proc. n° 89/06.9IDLSB, da 3a Vara Criminal de Lisboa, 1a secção:
17.6.1.-Por acórdão proferido em 08-01-2013, transitado em julgado em 07-02-2013, pela prática, em 12-12-2005, de um crime de abuso de confiança à segurança social e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 300 dias de multa, à taxa diária de €5,00, o que perfaz o total de €1.500,00;
17.6.2.-Em cúmulo jurídico das penas em que foi condenado nos processos referidos em 16.3, 16.1, 16.4, 16.5, e 16.6.1. por acórdão cumulatório de 26-11-2013, transitado em 08-01-2014, na pena única de 660 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o total de € 3.300,00.

18.-O arguido J. confessou os factos integralmente e sem reservas.
19.-A recusa por parte da Segurança Social do plano de amortização proposto, devido à existência de dívidas anteriores, deu origem à penhora das contas bancárias e dos créditos de clientes e finalmente à referida declaração de insolvência.
20.-Com a deterioração da sua situação económica e a penhora de bens por diversas entidades, J. passou a residir na casa de uma filha em Algés, assegurando a subsistência através das ajudas dos progenitores, ambos falecidos no inicio de 2015.
21.-J. padece de patologia cardíaca com indicação para cirurgia
22.-No presente J. vive temporariamente na casa que era dos seus pais e que se encontra penhorada, mantendo relações próximas com a família, garantindo a sua sobrevivência através da alienação de algum património, nomeadamente mobiliário e quadros.
23.-Os projectos de J. vão no sentido de regressar à vida empresarial e retomar as suas responsabilidades materiais, cumprindo as diversas sanções criminais que lhe têm sido aplicadas em processos judiciais da mesma natureza dos presentes.
24.-J. tem-se revelado disponível e resignado a cumprir o que tem sido decidido nos diversos processos judiciais, efectuando o pagamento das penas de multa em prestações em que foi condenado, com o apoio da sua rede social e familiar.
25.-Na reflexão que realiza sobre os factos pelos quais foi condenado e pelos que estão em causa nos presentes autos, J. revela capacidade de autocrítica pelas decisões que tomou e levaram à sua prática e demonstra arrependimento, apresentando uma postura de resiliência.

2.-Quanto ao mérito do recurso:

2.1.-Perante o conteúdo das conclusões formuladas pelo recorrente (MP) no final da respectiva motivação - as quais, como sabemos e tem sido recorrentemente afirmado pelos nossos Tribunais Superiores, delimitam e fixam o objecto do recurso -, as questões suscitadas perante este tribunal de segunda instância são as seguintes:
-Violação do art. 426.º, n.º 1, do CPP;
-Violação de caso julgado.

2.2.-
A situação controvertida pode resumir-se do seguinte modo:

-Acusado da prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, o arguido J. foi condenado, por sentença de 25/01/2013, na pena de um ano de prisão, suspensa por igual período;
-Na sequência de recursos interpostos pelo MP e pelo arguido, por acórdão de 29/5/2013 desta Relação de Lisboa, foi a sentença declarada nula, por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, nomeadamente, porque o tribunal não se pronunciara acerca da condição da suspensão da pena que decorre do disposto no art. 14.º, do RGIT;
-Regressado o processo à primeira instância, após audiência, foi proferida nova sentença, pela qual foi o mesmo arguido condenado na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, condicionada ao pagamento à Segurança Social, em tal prazo, da quantia de € 235941,12 e acréscimos legais;
-Interposto novo recurso, desta vez apenas pelo arguido, decidiu a Relação de Lisboa, por acórdão de 17/12/2014, declarar nula a sentença, por omissão de pronúncia, determinando-se a elaboração de nova sentença, nela se conhecendo da matéria omitida, respeitante «à previsão e prognose do impacto actual e futuro do condicionamento financeiro a que ficou sujeita a suspensão da execução da prisão a que foi condenado o arguido recorrente»;
-Remetido de novo o processo ao tribunal recorrido, neste procedeu-se à reabertura da audiência de julgamento, na qual foram tomadas declarações ao arguido e, junto o relatório social - entretanto solicitado, sobre as suas condições pessoais e respectiva situação económica e financeira -, foi proferida nova sentença, que condenou o arguido, pela prática do supra referido crime, na pena de duzentos e cinquenta dias de multa, a cinco euros por dia, perfazendo € 1250,00.
*

O tribunal recorrido fundamentou a escolha desta pena e a respectiva medida nos seguintes termos:
«…

A determinação da medida concreta das penas (de multa e de prisão) obedece ao critério global que consta do art° 71°, n° 1 do Código Penal.

Do normativo em apreço extrai-se que aquela determinação será feita em função das categorias da culpa e da prevenção (especial e geral), sendo nomeadamente as circunstâncias enunciadas no art. 71°, n° 2 supra citado relevantes quer para a culpa, quer para a prevenção.

In casu, as exigências de prevenção geral são elevadas, uma vez que as prestações para a segurança social constituem um meio prioritário na prossecução dos fins do Estado e uma obrigação para todos os beneficiários, aliado à circunstância de as cifras negras serem assustadoras, com inerentes prejuízos para todos nós, já que constituem flagrante violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade contributivas dos trabalhadores.
Impõe-se, por isso, que tal fenómeno seja combatido de forma eficaz, verificando-se uma necessidade acrescida de dissuadir a prática desses factos pela generalidade das pessoas, de incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e, assim, impedir que a lei se transforme em letra morta e que se crie nas entidades empregadoras uma sensação de impunidade que um Estado de Direito jamais pode permitir.

No que às exigências de prevenção especial concerne, as mesmas fazem-se sentir, de forma muito ténue quanto à sociedade arguida, uma vez não tem condenações registadas, e de forma muito acentuada quanto ao arguido administrador, atentas as várias condenações por si já sofridas por crime da mesma natureza (abuso de confiança fiscal) e pelo mesmo crime que ora se julga (abuso de confiança contra a segurança social).
Tais condenações do arguido J. assumem particular relevo quando se verifica, pelas datas das condenações e dos factos a que as mesmas respeitam, que estão em causa crimes que foram sendo cometidos ao longo do tempo e sem qualquer relação com os factos que ora se julgam ou com a sociedade arguida.

Com efeito, o arguido J. tem já registadas quatro condenações pela prática do crime que ora se julga, em 2008 (por factos de 2001), em 2011 (por factos de 2003), em 2012 (por factos de 2001) e em 2013 (por factos de 2005), e bem assim três condenações pela prática de crime da mesma natureza, em 2010 e 2011 (por factos de 2003) e em 2013 (por factos de 2005), sempre em pena de multa.

Por outro lado, há que ponderar, desta vez a favor do arguido, que o mesmo confessou os factos integralmente e sem reservas, vem cumprindo as penas de multa em que foi condenado, tendo sido já extintas por pagamento duas delas, encontra-se integrado social e familiarmente, tem-se revelado disponível e resignado para cumprir o que tem sido decidido nos diversos processos judiciais, efectuando o pagamento das penas de multa em prestações em que foi condenado, com o apoio da sua rede social e familiar, e bem assim que na reflexão que realiza sobre os factos pelos quais foi condenado e pelos que estão em causa nos presentes autos, revela capacidade de autocrítica pelas decisões que tomou e levaram à sua prática e demonstra arrependimento, apresentando uma postura de resiliência.

A pena de prisão apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção.

Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável.

Ponderando tudo quanto acima se disse, entendemos que a pena de multa resulta ainda adequada a suficiente para acautelar as necessidades de prevenção geral e especial, acima já referidas, pelo que o Tribunal opta por tal pena.

VI–MEDIDA DA PENA DA PENA APLICAVEL À PESSOA SINGULAR:

A pena de multa a aplicar ao arguido há-de ser concretizada entre o mínimo de 10 e o máximo de 360 dias.

Nos termos do disposto no artigo 71°, n° 1 do CP, a determinação da medida concreta da pena deverá fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, determinando o n° 2 do mesmo preceito que deverá o julgador atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de legal de crime, deponham a favor ou contra o agente.

Assim, em desfavor do arquido, cumpre ponderar que:

·A ilicitude é de grau intenso, atenta a concreta quantia em causa €8.290,72 e o número de vezes que actuou.
·A intensidade dolosa é directa e por isso elevada.
·O prejuízo total causado ascende a € 235.820,72.
·O arguido tem sete condenações por crimes da mesma natureza do que se julga.

Por outro lado, a favor do arquido, temos que:

·A culpa se situa em grau abaixo da média, uma vez que resultou provado que existiram circunstâncias de dificuldades financeiras da sociedade arguida, contemporâneas da prática dos factos e bem assim que as quantias não entregues à Segurança Social foram utilizadas no pagamento de dívidas da sociedade arguida, por salários e fornecimentos.
·O arguido confessou os factos integralmente e sem reservas e demonstrou arrependimento sincero O arguido vem cumprindo as penas de multa em que foi condenado, tendo sido já extintas por pagamento duas delas.
·O arguido está integrado social e familiarmente.
Assim sendo, considerando tais agravantes e atenuantes, o tribunal entende fixar em 250 dias a pena de multa a aplicar ao arguido.
Ponderando o que se provou quanto à situação financeira do arguido, fixo a razão diária da multa em €5,00, o que perfaz a quantia de €1.250,00.»

2.2.1.-Perante tal decisão, considera o MP que a mesma viola o art. 426.º, n.º 1, do CPP, consubstanciando ainda uma ofensa ao caso julgado, decorrente das decisões anteriores proferidas nestes mesmos autos no que concerne à determinação da pena, a qual já tinha sido fixada em um ano de prisão, uma vez que a nulidade declarada pelo Tribunal da Relação se restringia à omissão de pronúncia quanto à apreciação dos pressupostos da suspensão daquela mesma pena, mais concretamente, à capacidade de o arguido cumprir a condição a que se refere o art. 14.º, do RGIT, apreciado à luz do acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, n.º 8/2012.

Quid juris?
No que concerne à pretensa violação do art. 426.º, n.º 1, do CPP, a alegação é manifestamente improcedente.

Este normativo respeita ao procedimento do recurso no tribunal de segunda instância e dispõe única e exclusivamente para as situações em que há lugar ao reenvio do processo para novo julgamento - quanto à totalidade ou a parte do seu objecto -, sendo certo que esse reenvio só tem lugar quando for declarado algum vício da decisão recorrida, ao abrigo das alíneas a) a c) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, e, por causa dele, não for possível decidir da causa.

O Tribunal da Relação, em ambos os acórdãos proferidos anteriormente – datados de 29/05/2013 e de 17/12/2014 -, não declarou a existência de nenhum desses vícios. Diversamente, declarou a nulidade da sentença, ao abrigo do art. 379.º, n.º 1, do CPP. Tal nulidade não determina nunca o reenvio do processo para novo julgamento, apenas implicando a remessa dos autos ao tribunal recorrido para suprimento dessa nulidade, lavrando nova sentença em que conheça da matéria omitida, quando a nulidade decorra de uma omissão de pronúncia, como foi o caso dos presentes autos.

Consequentemente, o art. 426.º do CPP é inaplicável ao caso sub judice, não havendo a mínima hipótese de o mesmo ter sido violado pelo tribunal recorrido.

Já quanto à alegada violação de caso julgado, a questão não será tão linear, nem assume a simplicidade que à primeira vista parece apresentar.

Para dilucidação dessa problemática importa, antes de mais, tomar conhecimento preciso da abordagem que dela é feita pelo Tribunal da Relação nas anteriores decisões, determinando com rigor a amplitude da nulidade declarada e o correspondente objecto da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância com vista ao suprimento da mesma nulidade, de molde a ajuizar se esta última decisão se conteve dentro dos limitados poderes de cognição do tribunal recorrido, ou se os excedeu, conhecendo de matéria relativamente à qual já se mostrava esgotado o respectivo poder jurisdicional.

Recordando o afirmado supra, a Relação declarou nula a sentença que condenou o arguido «J., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p, e p. pelo art. 107° do Regime Geral das Infracções Tributárias, e pelo art. 30°, n° 2, do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, condicionada ao pagamento à Segurança Social, em tal prazo, da quantia €235.941,12 e acréscimos legais.»

Porque as razões subjacentes à declaração da nulidade em causa nos dois anteriores acórdãos desta Relação são totalmente coincidentes, tendo as do primeiro sido reproduzidas na íntegra na segunda decisão, transcrevemos o texto desta última (acórdão de 17/12/2014, constante de fls. 891 a 900), na parte relevante:

«O arguido recorrente alega, na sua motivação de recurso, que esta nova sentença proferida pelo tribunal a quo padece do vício de nulidade, porquanto não se pronunciou acerca das suas condições socioeconómicas, as quais desconhecia por ter recusado a sua audição (quando tal foi requerido) e por não se encontrar junto aos autos qualquer relatório social relativo ao mesmo.
E, na verdade, temos de considerar que o tribunal a quo, na sua sentença, continua a incorrer no vício da omissão de pronúncia sobre a matéria da suspensão da execução da pena, com os pressupostos a que alude o Art.° 14.°, n.° 1, do RGIT, isto é, nulidade da sentença por omissão de pronúncia (alínea c) do n.° 1 do Art.° 379.° do CPPenal). Nesta nova sentença foram corrigidos os vícios anteriormente destacados e conhecidos, a saber: - a ausência de menção nos factos provados e não provados da matéria da acusação acima descrita bem como da omissão na apreciação jurídica dos motivos que determinaram a aplicação à sociedade arguida daquela pena em concreto, fazendo depois reflectir essa fundamentação na restante fundamentação de facto e de direito e também no dispositivo da sentença; e a apreciação de factos articulados na acusação, os motivos que determinaram a medida da pena aplicada à sociedade arguida, a pronúncia no que respeita à questão do crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social (qualificado ou não) e também sobre a matéria da escolha e determinação da pena -, mas continua a omitir-se a averiguação e o conhecimento de matéria essencial para aferir da suspensão da execução da pena, com os pressupostos a que alude o Art.° 14.°, n.° 1, do RGIT.
Na verdade, a condenação do arguido J. em pena de prisão tem de ser obrigatoriamente condicionada pelo pagamento ao Fisco do valor pecuniário referente às prestações não entregues e aos acréscimos legais devidos, nos termos do Art.° 14.° do RGIT e, ainda, a determinação desta suspensão condicionada reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, tal como recentemente se decidiu no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2012.
Pelo que a sentença continua a violar o disposto no mesmo Art.° 14.° do RGIT, padecendo, por isso, de nulidade por omissão de pronúncia, o que de novo terá de ser declarado.
O tribunal a quo, não obstante o que lhe foi determinado pela decisão de recurso, não apurou devidamente dos pressupostos da suspensão da execução da prisão no que respeita aos crimes (ou melhor ao crime) de cariz fiscal que foi entendido como praticado. O que deveria ter realizado na obediência à doutrina fixada pelo mencionado Acórdão para fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.° 8/2012 de 12/9/2012, ….
Diz-nos o mesmo acórdão que "no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105. °, n.° 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.° 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.° 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia."

Entende-se que esta interpretação uniforme é extensível, por sinonímia de razões, aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social que se encontra em causa.

Na sentença impugnada por este recurso não encontramos devidamente cumpridas estas exigências adicionais na aplicação da suspensão da execução da prisão mediante a obrigatória condição de pagamento das prestações tributárias em falta.

Assim, no momento da determinação das penas, constata-se que o tribunal a quo invocou para o arguido aqui recorrente, os pressupostos tipo do Art.° 50.° do Código Penal, determinando para eles a suspensão da execução das penas de prisão mediante as contrapartidas tributárias devidas, resultantes da condenação de ambos pela prática de crimes de fraude fiscal. Não procedeu à dita prognose ou antecipação do impacto financeiro para o arguido da sujeição do mesmo a essa prisão suspensa condicionada, o que deveria ter acontecido à luz deste entendimento jurisprudencial e do que lhe tinha sido ordenado em sede de instância de recurso.

Recordem-se os fundamentos desta conclusão.

Com o RGIT a matéria passou a ser regulada no Art.° 14.°, norma inserta no capítulo II — Disposições aplicáveis aos crimes tributários — do Regime Geral, parte 1— Princípios gerais.

Estabelece o Art.° 14.°, n.° 1, do RGIT:

1—A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

2—Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a)Exigir garantias de cumprimento;
b)Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo leia/ ente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c)Revogar a suspensão da pena de prisão.

As disposições dos Art.°s 11.°, n.° 7, do antigo RJIFNA e 14.°, n.° 1, do actual RGIT divergem substancialmente do regime do Código Penal, no respeitante aos deveres que podem condicionar a suspensão da execução da pena.

Em primeiro lugar, nem na redacção originária do Código Penal (Art.° 49.°) nem na emergente da revisão de 1995 (Art.° 51.°) se sujeita obrigatoriamente a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de quantia devida à vítima ou ao lesado.

Em segundo lugar, porque o Art.° 51.0, n.° 2, dispõe expressamente que os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir (princípio da razoabilidade).

No regime do RJIFNA, a partir de 1993, como agora no RGIT, a lei impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida; o n.° 7 do Art.° 11.° daquele condicionava e o Art.° 14.°, n.° 1, deste continua a condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações em falta e legais acréscimos.

Em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever, ou seja, aparentemente, sem se possibilitar a aplicação do Art.° 51.°, n.° 2, do Código Penal.

A norma estabelece uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, sem possibilidade de graduação, tendo de ser a totalidade do devido sem possibilidade de uma qualquer redução.

É evidente a particularidade, a especial configuração que o regime tributário assume em relação ao conteúdo do Art.° 51.° do Código Penal, divergindo em relação a vários pontos.

O Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por na matéria reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos.

A conformidade constitucional da norma do Art.° 14.°, n.° 1, do RGIT sempre foi apreciada na óptica dos interesses do arguido, na perspectiva da violação dos princípios da igualdade, adequação e proporcionalidade, e nunca analisada na perspectiva de limitação da liberdade de julgar.

As três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa, são: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena (dos Acórdãos n.°s 256/03 e 427/08).

O Supremo Tribunal de Justiça também afastou a arguição de inconstitucionalidade da citada norma do RGIT.

A análise da sentença impugnada deixa claro que não foi este o entendimento seguido pelo tribunal a quo, o qual não procedeu à análise ponderada da razoabilidade económica e financeira da condição prescrita aos arguidos aqui em causa. Isto é, a formulação de um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte de ambos os condenados, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.

Como se pode constatar, esta doutrina agora fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça é directamente transponível para outros crimes fiscais, como o crime de abuso de confiança contra a segurança social e que se encontra também sujeito aos critérios gerais do mencionado Art.° 14.°, n.° 1, do RGIT.

O valor total das prestações liquidadas e não entregues no mencionado período perfaz o total de ê 235.941.12.

De acordo com o Art.° 13.° do RGIT, na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.

Com a aposição da condição a que fica subordinada a suspensão pretende-se a reparação integral do prejuízo causado, mas não só.
A razoabilidade da condição tem, a nosso ver, de ser necessariamente avaliada e ponderada a montante, isto é, antes da declaração de imposição.

De pouco valerá impor um dever económico de forma cega só porque a lei a impõe de forma automática, dir-se-ia, num posicionamento que roça a total e completa alienidade em relação ao concreto ser julgado e condenado, quando não só pelo exagero do montante, não arbitrado, mas imposto, pelo muito curto prazo assinado para o cumprimento e sobretudo pela já consabida sua deficiente capacidade de solvência, de cumprir o imposto, seria dentro de um juízo de normalidade das coisas da vida do cidadão comum, de um juízo de verosimilhança, de antever o inevitável incumprimento.

Ao decretar-se a imposição da condição deve ter-se uma imagem global do condicionamento, da real dimensão económica do dever imposto, que a opaca fórmula legal de jeito algum deixa transparecer, em que se incluem juros compensatórios e moratórios, com vista à reparação integral, plena, a que pode ser acoplada, caso o juiz o entenda, o montante previsto na segunda parte do n.° 1 do Art.° 14.° do RGIT, ou seja, uma «quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa».

Na avaliação da opção pela suspensão não podem ser olvidados os condicionalismos inerentes ao agente e se é certo que a impossibilidade de cumprimento não integra os elementos constitutivos do tipo, tal avaliação tem de estar presente no juízo de opção pela substituição.

Apenas como adjuvante de compreensão não será despiciendo deitar um olhar sobre a situação pessoal e económica dos arguidos, designadamente através da elaboração de um relatório social nos termos do disposto no Art.° 370.° do CPPenal.

Com a aplicação da condição não se trata de pagar determinada quantia à entidade credora para a compensar do prejuízo por ela sofrido. Mais do que isso, trata-se de um crédito garantido pelo jus puniendi com que o Estado está investido. No caso, a arrecadação de receitas, complementos e seus derivados é assegurada através da imposição de uma sanção penal; a subordinação obrigatória da suspensão da execução da pena de prisão à exigência do pagamento do montante da dívida volve o instituto em instrumento de recuperação de dívidas fiscais, tornando-se numa medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente.

Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.

A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente.

Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta? Aliás, na lei de autorização de 1993 referia-se a possibilidade de suspensão com imposição de pagamento; não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido, mas não só, pois acresce o demais, ultrapassando a condenação o montante do imposto (ou contribuição à segurança social) e demais acréscimos, sem reduções, sem cortes, sem descontos.

Para que sobrevenha a aplicação da pena fixa em que consiste a «condição», necessário é que se opte pela suspensão; de contrário, que sentido teria falar em medida de sentido pedagógico e reeducativo?

O Art.° 14.°, n.° 1, alberga duas hipóteses. Uma primeira em que impõe o condicionamento e uma segunda, prevista na última parte do mesmo n.° 1, em que sem qualquer dúvida se abre a janela da liberdade de escolha e ponderação, pois caso o juiz o entenda, fica a suspensão condicionada ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

A suspensão em si mesma não deixa de ser uma faculdade, como se acentua no Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 242/2009, de 12 de Maio de 2009, processo n.° 250/09, da 2? Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 75.° vol., p. 209, onde se afirma: «a norma do artigo 14.° do RGIT, ao estabelecer, de forma geral e abstracta, uma condição à faculdade de o tribunal decretar a suspensão da execução da pena de prisão, em todas as situações em que essa faculdade se lhe depare, assume claramente natureza de acto legislativo».

A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição. Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.

Nessa acepção, torna-se evidente que se terá de realizar essa tarefa adicional de previsão e prognose do impacto actual e futuro do condicionamento financeiro a que ficou sujeita a suspensão da execução da prisão a que foi condenado o arguido recorrente.

Sabemos que o tribunal a quo não se pronunciou concretamente também sobre esta matéria, podendo dizer-se que se limitou a tomar como pressuposto que não devia ou não necessitava conhecer de tal matéria, fazendo-o por remissão para os pressupostos do Art.° 50.° do Código Penal.

Mas a verdade é que se impunha fazer esse conhecimento e a opção depois pelas eventuais penas substitutivas.

Ao continuar a não se pronunciar sobre a matéria da suspensão da execução da pena, com os pressupostos a que alude o Art.° 14.°, n.° 1, do RGIT, o tribunal a quo entrou em omissão de pronúncia que consubstancia uma outra (invalidade) nulidade de sentença, pois deixou de pronunciar-se sobre matérias que devia apreciar — cfr. Art.° 379.º, n.° 1, alínea c), do CPPenal.

Esta omissão de pronúncia não pode ser suprida por esta via de recurso (mesmo por via do disposto no n.° 4 do Art.° 379.° do CPPenal), pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição no que respeita a estas questões omitidas.

A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar de novo ao tribunal de primeira instância para que nele se proceda à elaboração de nova sentença, conhecendo-se nela da questão mencionada que o mesmo tribunal deveria ter apreciado, com a abertura do julgamento para realizar a prova adicional que habilite o tribunal com a recolha dos elementos probatórios (designadamente de cariz sócio-económico do arguido recorrente ou mesmo de cariz mais genérico para apuramento do crime continuado ou para alteração da qualificação jurídica dos factos) que sejam necessários e suficientes para a tarefa cognitiva tomada como omitida. Recomendando-se que essa averiguação se faça através da prévia elaboração de um relatório social, segundo o esquema do Art.° 370.° do CPPenal, que já deveria ter sido seguido pelo tribunal a quo no seu primeiro julgamento.

Nos termos expostos, a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia quanto à não apreciação da questão mencionada (omissão de pronúncia no que respeita à matéria da suspensão da execução da pena, com os pressupostos a que alude o Art.° 14.°, n.° 1, do RGIT), devendo o tribunal a quo, pelo mesmo juiz, produzir uma nova sentença que delas conheça efectivamente, com a necessária reabertura do julgamento para a produção dos meios de prova considerados suficientes e necessários para a consideração das situações factuais e jurídicas em falta.

IV.DECISÃO:

Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em julgar provido o recurso interposto pelo arguido J., anulando-se a sentença recorrida por omissão de pronúncia, e determinando-se a elaboração de uma outra sentença, pelo mesmo juiz, que contenha a apreciação da aludida matéria, necessariamente antecedida de reabertura da audiência de julgamento para a produção dos meios de prova considerados suficientes e necessários para a consideração das situações factuais e jurídicas em falta acima especificadas

Resumindo: a decisão condenatória foi anulada para que o tribunal de primeira instância ponderasse da razoabilidade da obrigação imposta - pagamento das quantias em dívida, no montante de 235941,12 euros, em 3 anos - como condição da suspensão da execução da prisão, devendo produzir, para o efeito, prova adicional que habilitasse o tribunal recorrido com os necessários elementos, designadamente de cariz sócio-económico do arguido.
Solução que decorre, segundo aquela decisão, do supra citado art. 14.º, do RGIT, em conjugação com a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 8/2012.

No cumprimento do determinado, o tribunal de primeira instância reabriu a audiência, produziu prova adicional - tomou declarações ao arguido e foi elaborado relatório social - e, após novas alegações orais, foi proferida a decisão ora recorrida.

Ao condenar o arguido em pena de multa, o tribunal de primeira instância violou o caso julgado?

Numa primeira abordagem poderá ser-se tentado a concluir que, antes da sentença ora recorrida, inexiste qualquer outra decisão final transitada em julgado, na medida em que, as sentenças anteriormente proferidas neste processo foram declaradas nulas.
A questão prende-se com a problemática da cindibilidade do recurso, sendo admissível a limitação deste a uma parte da decisão, quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas, conforme expressamente permitido pelo art. 403.º, n.º 1, do CPP.

Para o efeito, são consideradas autónomas, segundo as várias alíneas do n.º 2 do mesmo normativo, as partes da decisão que se referem à matéria cível e à matéria penal, as partes referentes a cada um dos crimes nos casos de concurso de crimes, a questão da culpabilidade assume igualmente autonomia relativamente à questão da determinação da sanção, em caso de comparticipação será autónoma a matéria relativa a cada um dos comparticipantes e, finalmente, dentro da questão da determinação da sanção, há autonomia relativamente a cada uma das penas ou medidas de segurança.

No caso em apreciação, de unidade criminosa, na presença de uma só pena e estando em causa apenas o arguido ora recorrente - quanto aos demais, a decisão final já há muito que transitara em julgado -, a aludida autonomia restringe-se à matéria penal e cível e, na primeira, às questões da culpabilidade e da determinação da sanção.

A anulação da anterior decisão restringiu-se à pena que havia sido aplicada ao arguido e, dentro dela, à questão específica referente às condições da respectiva suspensão.

É certo que a limitação das consequências da anulação a esta questão específica da sanção implica que, relativamente às demais questões que se podem considerar autónomas – como é o caso da questão da culpabilidade –, se deva concluir que ficaram definitivamente decididas, não podendo ser objecto de nova decisão, seja por efeito de um denominado «caso julgado parcial», ou por efeito da «vinculação intraprocessual», por «preclusão» ou ainda por força do princípio ne bis in idem. Trata-se de diferentes conceitos que, no fundamental, se reportam a uma realidade comum, referente ao iter processual, que garantem “uma espécie de progressão causal redutora da complexidade do caso concreto, de modo a impedir que uma determinada matéria seja objecto de plúrimos juízos (repetitivos ou, eventualmente, contraditórios). Neste sentido, existe necessariamente um mecanismo «deflativo» que tanto pode ser caracterizado como de «formação progressiva do caso julgado» - de caso julgado parcial em caso julgado parcial até ao caso julgado «total» - como de progressiva preclusão até à Summa preclusão. Este fenómeno de garantia dos resultados adquiridos ao longo do processo e consequente «progressão» é, assim, uma «evidência», e o que se discute é, tão-só, a melhor forma de «categorizar» este conjunto de (concretos) resultados que não podem ser discutidos (ou só o podem ser, aberto um outro procedimento)” – cfr. José Manuel Damião da Cunha in “O Caso Julgado Parcial”, Porto, 2002, pág. 138. Os referidos conceitos querem significar, segundo o mesmo autor (obra citada, pags. 143 e 144), que “toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento). Este raciocínio vale, não só em primeira instância, como em segunda ou terceira instância (embora o grau de vinculação dependa da especificidade teleológica de cada grau de recurso). E este mecanismo vale – ao menos num esquema geral – para qualquer tipo de decisão, independentemente do seu conteúdo, isto é, quer se trate de uma decisão de mérito, quer de uma decisão «processual»… Neste sentido, qualquer decisão, mesmo que não esteja em causa uma decisão de mérito, … contém um efeito de vinculação intra-processual.”

Vistas as coisas numa outra perspectiva, se a anulação da sentença tem por base uma situação de omissão de pronúncia, a respectiva sanação será conseguida através da apreciação da questão que havia sido omitida, sem necessidade de reapreciar as demais questões que não foram afectadas pela declaração de nulidade. Estas, porque já foram conhecidas e ficaram intocadas com a decisão de recurso, não podem voltar a ser reapreciadas, ficando esgotado, relativamente às mesmas, o poder jurisdicional, quer do tribunal recorrido, quer do tribunal ad quem

Não há dúvidas, pois, em como as questões não abrangidas pela anulação fazem «caso julgado formal», ainda que «parcial», ficando o tribunal de primeira instância, assim como o tribunal de recurso, proibidos de sobre elas se pronunciarem de novo, muito menos de proferirem uma nova decisão em sentido diverso da anterior.

É certo que, o que está verdadeiramente em causa no presente recurso é uma questão de «determinação da sanção» e, tendo por objecto apenas uma pena, a aplicar ao arguido J., poderá defender-se, à luz do disposto no acima citado art. 403.º, do CPP, que todas as subquestões àquela atinentes – a escolha da pena, a concreta medida desta, a sua substituição por outra pena, ou a suspensão da respectiva execução, se for prisão - estão em discussão, não assumindo verdadeira autonomia para efeitos de limitação do recurso, tendo ficado apenas assente, de modo definitivo, a questão da culpabilidade.

É um ponto de vista legalmente defensável, à luz da aludida norma, dando cobertura e legitimidade à solução encontrada pelo tribunal recorrido, o qual, perante os novos dados de facto respeitantes às condições pessoais e situação económica e financeira do recorrente - cfr. factos provados sob os números 18 a 25, inexistentes nas anteriores sentenças, obtidos através da prova suplementar produzida na sequência da reabertura da audiência determinada pelo Tribunal da Relação - e numa reapreciação global da questão da “determinação da pena”, escolheu a sanção que, perante tais novos dados, lhe pareceu a mais justa e adequada, condenando em pena de multa, nos termos supra mencionados, em vez de manter a prisão que havia sido anteriormente imposta.

Acontece, porém, que a prática jurisprudencial dos nossos tribunais superiores, sem excepção e sem que se conheçam posições expressas da doutrina em sentido contrário, vai no sentido de conferir autonomia às aludidas vertentes em que se desdobra a questão da determinação da pena, admitindo que o recurso possa limitar-se, nomeadamente, à substituição da pena de prisão por outra pena menos gravosa e/ou de carácter não detentivo, ou limitar-se mesmo à questão da suspensão da respectiva execução e/ou respectivos deveres ou regras de conduta que a condicionam, erigindo-as em verdadeiras questões a decidir com autonomia relativamente às demais, considerando estas definitivamente decididas quando não impugnadas.

Foi este, sem dúvida, o ponto de vista seguido por este Tribunal da Relação nos seus dois acórdãos anteriores - nos quais os subscritores do presente acórdão não tiveram intervenção -, nomeadamente no proferido em 17/12/2014 (fls. 891 a 900), do qual resulta claramente, do nosso ponto de vista, que a supressão da nulidade declarada – por omissão de pronúncia – passaria apenas pela ponderação das condições a impor no âmbito da suspensão da execução da prisão - à luz do art. 14.º, do RGIT e do Ac. do STJ n.º 8/2012 -, no pressuposto de que a escolha da pena ao abrigo do art. 70.º, do CP, no caso, pela prisão em detrimento da multa, bem como a respectiva medida, que fora fixada em um ano de prisão, eram opções que já haviam sido tomadas de modo definitivo, porque não impugnadas, estando excluídas da reapreciação a fazer pelo tribunal recorrido na sequência da devolução do processo para nova decisão.

Conclusão que pode se retirada, nomeadamente, do seguinte extracto da aludida decisão:

«A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição. Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.

Nessa acepção, torna-se evidente que se terá de realizar essa tarefa adicional de previsão e prognose do impacto actual e futuro do condicionamento financeiro a que ficou sujeita a suspensão da execução da prisão a que foi condenado o arguido recorrente.

Sabemos que o tribunal a quo não se pronunciou concretamente também sobre esta matéria, podendo dizer-se que se limitou a tomar como pressuposto que não devia ou não necessitava conhecer de tal matéria, fazendo-o por remissão para os pressupostos do Art.° 50.° do Código Penal.

Mas a verdade é que se impunha fazer esse conhecimento e a opção depois pelas eventuais penas substitutivas.»

Assim, para a decisão anulatória, a escolha da pena de prisão e a respectiva medida estavam definitivamente assentes, ficando apenas em aberto a questão de saber se tal pena seria efectiva, ou se haveria lugar à sua substituição por outra pena, não detentiva, concretamente pela suspensão da execução da prisão e em que condições esta seria imposta.

Consequentemente, ao voltar a uma fase anterior, anulando a escolha que antes havia feito pela pena de prisão e optando agora pela pena de multa ao abrigo do art. 70.º, do CP, o tribunal recorrido conheceu de uma questão de que já não podia tomar conhecimento, dando-lhe uma solução diferente da anterior, pelo que, nessa parte, houve excesso de pronúncia, o que consubstancia nulidade de sentença, ao abrigo do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Nada obsta, porém, a que o tribunal de recurso supra esta nulidade, sendo o seu suprimento possível. E é-o, sem dúvida, no presente caso, ao abrigo do n.º 2 deste último normativo.

O inconformismo do recorrente reside apenas no facto de o tribunal recorrido ter optado, à partida, por uma pena de diferente natureza da que havia sido anteriormente escolhida, ou seja, contesta o facto de ter sido imposta a pena de multa directamente, quando devia ter sido respeitada a pena de um ano de prisão que resultava da decisão anterior, sendo apenas de ponderar, na nova decisão, se esta pena devia ser suspensa na sua execução ou substituida por «outra pena de substituição», admitindo até que a mesma possa ser substituída por multa.

Consequentemente, respeitando a pena e os limites da condenação anteriormente imposta e ponderando o facto de o recorrente aceitar a condenação do arguido em pena de multa, desde que se chegue a esta pela via da substituição da prisão, operação que é permitida pelo art. 43.º, n.º 1, do CP, visto verificarem-se os respectivos pressupostos - a prisão não é superior a um ano e a execução da prisão não é exigida, no presente caso, pela necessidade de prevenir o cometimento de novos crimes, como está suficientemente demonstrado na decisão recorrida e é reconhecido pelo recorrente (MP) -, e tendo ainda em conta que a imposição de multa já foi expressamente aceite pelo recorrido, podendo, pois, dizer-se que se trata de uma solução consensual, a supressão da nulidade ora declarada pode passar pela alteração da decisão recorrida no sentido da condenação do arguido J. na pena de um ano de prisão, substituída por pena de multa, fixando-se esta em 250 dias, a cinco euros por dia, perfazendo o montante de € 1250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).

Na verdade, são razões exclusivamente de natureza preventiva que determinam a escolha da pena substitutiva da prisão, que devem orientar a escolha entre a pena de multa e as demais penas não privativas da liberdade, nada obstando a que o tribunal escolha a prisão em detrimento da multa, ao abrigo do art. 70.º e depois, ao abrigo do art. 43.º, a substitua por multa (neste sentido, entre  outros, Figueiredo Dias, “Direito Penal Português …”, 1993, 364; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal …”, 2008, pág. 179; apesar de algumas vozes discordantes, de reduzida expressão na doutrina). Não esquecendo que a substituição - da prisão não superior a um ano por multa - é obrigatória, só admitindo excepções quando demonstrado nos autos que as finalidades preventivas exigem o cumprimento da prisão, isto é, quando a prevenção especial de socialização ou a prevenção geral obstem à aplicação da pena substitutiva. No presente caso não se demonstra ser exigível a execução da prisão, nem o recorrente pugna pelo seu efectivo cumprimento, assim como não faz questão na aplicação da pena de prisão suspensa – com o correspondente dever de pagamento das quantias em dívida, até um montante que se mostrasse razoável, face à apurada situação económica e financeira do arguido -, antes admitindo, em alternativa a tal suspensão, a opção por qualquer outra pena de substituição, nomeadamente pela pena de multa.

Nesta matéria, o tribunal de recurso não só não deve ir além do pedido formulado pelo recorrente, quando este é o MP ou o assistente, assim como, em caso de procedência do recurso, deve ficar pela solução que, entre as várias comportadas pelo pedido, se mostre menos gravosa para o arguido/recorrido, em homenagem, nomeadamente, ao princípio do acusatório e tendo em conta o critério que deve nortear a escolha de qualquer pena, impondo que tal escolha recaia sobre aquela pena que se apresentar menos onerosa ou que menos atente contra a liberdade, desde que com ela sejam atingidas as finalidades visadas pela condenação.

Por último, no que concerne ao número de dias de multa e respectivo montante diário, por força da remissão, para o art. 47.º, que decorre da parte final do n.º 1 do art. 43.º, ambos do CP, e na medida em que esta pena de substituição «deve ser fixada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º e não, necessariamente, por tempo igual ou proporcional ao estabelecido para a prisão substituída», conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 8/2013, de 14/03/2013 (in D.R. n.º 77, Série I de 2013-04-19), entende-se ajustado fixá-la no mesmo número de dias a que chegou o tribunal recorrido (duzentos e cinquenta dias), mantendo-se também o quantitativo diário de € 5,00, elementos que não foram objecto de impugnação expressa por parte do recorrente. 
Concluímos, pois, pela procedência do recurso.
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III. DECISÃO:

Em conformidade com o exposto, julgando-se procedente o presente recurso do Ministério Público, altera-se a decisão recorrida, condenando-se o arguido J., pela prática do supra mencionado crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de um ano de prisão, substituída por pena de multa, que se fixa em duzentos e cinquenta dias, a cinco euros por dia, perfazendo € 1250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
Confirma-se, quanto ao mais, a decisão recorrida.
Sem custas.
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Notifique.



Lisboa, 17/05/2016


(Elaborado em computador e revisto pelo relator, o primeiro signatário - artigo 94.° n.º 2, do CPP).


(Relator): José Adriano
(Adjunto): Vieira Lamim