Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15582/17.0T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Nos termos do artigo 3º, nº3, do Código de Processo Civil, a audição das partes pode ser dispensada em casos de “manifesta desnecessidade” (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspetiva objetiva) e sempre que as partes não possam, objetivamente e de boa-fé (cf. Artigo 8º do Código de Processo Civil), alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respetivas consequências.
II. Tendo a exequente CPAS instaurado esta execução contra advogado na jurisdição comum após a comprovada prolação de várias decisões dos tribunais superiores a sustentar que a execução deve ser instaurada na jurisdição administrativa, a exequente não podia ignorar – aquando da instauração da execução – que se colocava, com toda a acuidade, a questão da competência material do Juízo de Execução Cível para tramitar a execução. Nessa medida, cabia à exequente aduzir desde logo argumentação no sentido de pugnar pela competência material do tribunal, tratando-se de uma questão jurídica sobre a qual estava mais do que alertada, não sendo necessário facultar-lhe um contraditório ad hoc antes do indeferimento liminar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
 Em 23.6.2017, Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores instaurou execução ordinária contra Maria..., advogada, sendo o título executivo uma certidão de dívida de contribuições, emitida em 10.5.2017, nos termos da qual a executada é devedora à exequente do montante de € 17.290,37, constituído por contribuições em dívida acrescidas de juros de mora.
Em 5.1.2018, foi proferido despacho liminar que declaro o Juízo de Execução do tribunal da Comarca de Lisboa incompetente em razão da matéria e, em consequência, indeferiu liminarmente o requerimento executivo (fls. 15).
Em 29.1.2018, a exequente apresentou requerimento em que veio, ao abrigo do art. 195º, nº1, do Código de Processo Civil, «arguir a nulidade de ato processual – omissão que influiu na decisão da causa – pelo facto de CPAS não ter sido previamente ouvida à decisão» (fls. 17-20).
Sobre tal requerimento recaiu despacho, proferido em 20.2.2018, com o seguinte teor:
«A exequente veio arguir a nulidade do despacho que indeferiu liminarmente o requerimento executivo, por violação do princípio do contraditório ínsito no art. 3.°, nº 3 do CPC, alegando que ao conhecer oficiosamente da exceção de incompetência material do Tribunal, sem que a exequente se tenha podido previamente pronunciar sobre tal questão, foi proferida uma "decisão-surpresa", o que acarreta a nulidade do despacho, nos termos do art. 195.°, nº 1 CPC.
Neste particular, importa frisar que a competência absoluta, em razão da matéria, constitui um pressuposto processual que o Tribunal aprecia oficiosamente (art. 97.° do CPC), e que a parte deve naturalmente levar em consideração antes da interposição de qualquer ação.
As situações que conduzem ao indeferimento liminar da petição traduzem questões evidentes, indiscutíveis em termos de razoabilidade, que permitem considerar dispensável a audição das partes, em sintonia com o preceituado no nº 3 do art. 3.° do CPC e que tornam inútil qualquer instrução e discussão posterior. Por isso se entende que as situações de indeferimento liminar são casos em que é manifesta a desnecessidade de se ouvir o autor sobre o "projeto" ou a "intenção" de se indeferir a petição (cf., neste sentido o Acórdão do TCA Sul de 18-06-2015, P. 8710/15, em www.dgsi.pt).
Acresce que foi proferido pelo Tribunal de Conflitos o acórdão mencionado na decisão sob reclamação, no qual a exequente é parte, e que decidiu, em caso semelhante ao dos autos, pela competência da jurisdição administrativa e fiscal para a tramitação da execução interposta com vista à cobrança coerciva da contribuições não pagas por beneficiário da CPAS.
Desta forma, o despacho proferido nos autos não pode ser considerado uma "decisão ­surpresa", isto é, uma decisão absolutamente inesperada para a exequente, sendo o exercício do contraditório manifestamente desnecessário (art. 3.°, nº 3 do CPC).
Face ao exposto, indefere-se a arguida nulidade. Custas pela exequente.
Notifique.»
 
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1- A CPAS arguiu a “nulidade do despacho/sentença proferido”, mas fê-lo com fundamento no disposto no art. 195º, nº1 do Código de Processo Civil.
2- Uma vez que não foi concedida, à ora recorrente, a possibilidade de se pronunciar, previamente à decisão, sobre a competência do tribunal, ao abrigo do disposto no art. 3º, nº3 do Código de Processo Civil.
3- E por isso a nulidade da decisão seria uma mera consequência da nulidade pela omissão de um ato processual essencial, nos termos do disposto no art. 195º, nº2 do Código de Processo Civil.
4- Não tendo a ora recorrente sido previamente ouvida sobre a competência do tribunal para tramitar e julgar a presente ação, a decisão que julgou incompetente o tribunal em razão da matéria, tem de ser considerada uma decisão-surpresa.
5- Pois essa questão da decisão-surpresa terá de ser vista em cada um dos processos de per si, como no presente caso.
6 - Não sendo admissível a chamada decisão-surpresa, tem a CPAS, previamente à decisão, de ser auscultada sobre a matéria (competência dos tribunais judiciais para cobrança coerciva das contribuições em dívida pelos seus beneficiários).
7 - Além disso, o princípio do contraditório visa, também, permitir que a parte possa carrear para os autos os elementos que achar pertinentes por forma a que o tribunal, quando decidir, o faça na posse do máximo de informação possível.
8 - Não tendo a CPAS sido ouvida previamente à decisão, foi violado o princípio do contraditório previsto no art.s 3.º, n.º 3 do cpc.
9 - Nestes termos deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça à CPAS o direito de se pronunciar sobre a questão da competência dos tribunais judiciais, para dirimir e julgar as execuções intentadas pela CPAS para cobrança das contribuições em dívida pelos beneficiários.
10 - Assim como, não deverá ser aplicada a taxa sancionatória excecional conforme o art.º 531º do NCPC, tendo em conta que não foi, de todo, intenção da CPAS «bloquear» os tribunais com «requerimentos manifestamente infundados» como considerou o tribunal a quo.
Além de que, a taxa sancionatória excecional que foi aplicada, não tem qualquer fundamento.
Nestes termos e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que reconheça o direito da CPAS se pronunciar sobre a competência do presente tribunal para julgar a presente ação.
Deve a CPAS ser absolvida do pagamento da taxa sancionatória excecional.»
Inexistem contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, as questões a decidir consistem em:
i. Exclusão do âmbito do recurso da pretensa condenação em taxa sancionatória excecional;
ii. Saber se foi indevidamente dispensado o contraditório previamente à prolação do despacho que decretou a incompetência absoluta do tribunal.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a decisão de mérito é mencionada no relatório, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Em primeiro lugar, há que referir que a menção nas alegações de recurso à taxa sancionatória excecional não tem qualquer sentido porquanto a apelante não foi condenada em tal taxa, quer na decisão de 5.1.2018 quer na decisão de 20.2.2018.
Nos termos do Artigo 726º, nº2, alínea b), do Código de Processo Civil, o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando ocorram exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso.
Foi ao abrigo dessa norma que foi proferida a decisão que declarou o tribunal materialmente incompetente, com o consequente indeferimento liminar do requerimento executivo.
Sustenta a apelante que, atento o princípio do contraditório consagrado no art. 3º do Código de Processo Civil, se impunha que o Juiz a quo conferisse à exequente o direito de se pronunciar sobre a competência material do Juízo de Execução.
Com a introdução da regra do nº 3 do Artigo 3º pretende-se impedir que, a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objeto de qualquer discussão (STJ 19-5-16, 6473/03 e STJ 27-9-11, 2005/03). Tal solução propicia ao juiz melhores condições para uma ponderação serena dos argumentos, o que pode redundar designadamente na redução de casos de injustificadas absolvições da instância.
Todavia, a audição das partes pode ser dispensada em casos de “manifesta desnecessidade” (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspetiva objetiva) e sempre que as partes não possam, objetivamente e de boa-fé (cf. Artigo 8º do Código de Processo Civil), alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respetivas consequências.
Ora, esta execução foi instaurada em 23.6.2017. Anteriormente, a questão da incompetência dos tribunais comuns para este tipo de execução já tinha sido debatida e decidida nos tribunais, designadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.3.2017, 17398/15.9T8LRS.L1-2, no Acórdão da Relação do Porto de 20.6.2016, 6988/16.2T8PRT-P1, bem como no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 27.4.2017, 037/16 (este conforme se dá nota no Acórdão do mesmo Tribunal de 1.2.2018, 044/17), em processos em que a apelante foi parte. Todos estes acórdãos estão publicitados em www.dgsi.pt, o que aqui se invoca para observância do disposto no Artigo 412º, nº2, do Código de Processo Civil.
Daqui decorre que, à data da instauração da execução, a exequente estava mais do que ciente que a sua tese da competência dos tribunais comuns não era líquida, tanto mais que todos os acórdãos indicados (e anteriores à propositura desta execução) foram em sentido oposto. Ou seja, em termos objetivos e segundo a boa fé, a exequente não podia ignorar – aquando da instauração da execução – que se colocava, com toda a acuidade, a questão da competência material do Juízo de Execução Cível para tramitar a execução. Nessa medida, cabia à exequente aduzir desde logo argumentação no sentido de pugnar pela competência material do tribunal, tratando-se de uma questão jurídica sobre a qual estava mais do que alertada.
Termos em que se conclui que não era necessário facultar à apelante o exercício prévio do contraditório nos termos pretendidos, não tendo ocorrido qualquer nulidade nos termos do Artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante (Artigo 527º,nº1, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 24.4.2018

Luís Filipe Sousa

Carla Câmara

Voto em conformidade só não assinando por não me encontrar presente (Artigo  153º, nº1, in finedo Código de Processo Civil), Higina Castelo.

[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.