Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
619/19.6PDAMD.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
AMEAÇA
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O recurso da matéria de facto não serve para os sujeitos processuais sobreporem a sua opinião sobre o sentido da prova a uma convicção formada por um tribunal depois de efectuado o exame crítico da mesma e sem o cumprimento cabal do art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, como é o caso do presente não tem sequer aptidão para introduzir seja que alteração for na matéria de facto, apenas porque o Mº.Pº. se insurge contra a interpretação que o Tribunal fez da prova produzida por achar que uma análise concatenada e global de todas as provas disponíveis deveria permitir dar como provados os factos não provados em 1 a 13.
Uma forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma excepção, desvirtua completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância e prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.
Além disso, se fosse aceite, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjecturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objecto.
É, igualmente, inadmissível, à luz dos princípios da imediação e oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica, partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 16 de abril de 2021, no processo comum singular nº 619/19.6PDAMD do Juízo Local Criminal da Amadora - Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi decidido absolver o arguido WT______da prática, em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.° 143°, n.°1, al. a) e n.°2, por referência ao artigo 145.°, n.°1, al. a) e n.°2, agravada pela utilização de arma de fogo, p. e p. pelo artigo 86.°, n.°3 e 4, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro e, ainda, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.°, n.°1 e 155.°, al. a), do CP.
O Mº. Pº. interpôs recurso desta sentença, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1 - Entende o Ministério Público que a conjugação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento impõe decisão diversa da proferida, dos pontos da matéria de facto incorrectamente julgados como não provados pelo Tribunal a quo, bem como da correcta redacção que tais factos deverão assumir na sua forma provada, com as consequentes alterações a efectuar também neste plano (artigo 412°, n° 3, do Código de Processo Penal - erro na apreciação da matéria de facto).
2 - Os factos indicados na matéria não provada (ou seja sob os nrs. 1 a 13) foram incorrectamente julgados nesse sentido (isto é como não provados) pelo Tribunal recorrido.
3 - Na nossa perspectiva, uma análise global, crítica e correlacionada de todos os meios de prova produzidos nestes autos e, por conseguinte, considerados reproduzidos em julgamento feita à luz das regras da experiência comum e por confrontação com a plena ausência de prova em sentido contrário impunha, necessariamente, que o Tribunal recorrido tivesse dado como provados todos os factos constantes da Acusação, para além dos factos indicados de 1. e 2. da matéria assente (provada).
4 - A Mma Juiza ao afastar os autos reconhecimentos pessoais, feitos em inquérito, e cuja validade não foi posta em causa, fez uma errada aplicação da lei processual penal, designadamente, por violação do disposto no art. 147° do CPP, bem como dos arts. 124°, 125° e 127° do mesmo diploma legal.
5 - Não se compreende, pois, que não padecendo de qualquer vício, designadamente, por violação do disposto no art. 147° do CPP, possam ter sido afastados os reconhecimentos pessoais efectuados pelas testemunhas .
6 - Na perspectiva do Ministério Público, conjugados os autos de reconhecimento que, não padecendo de qualquer vício e apresentado ambos resultado positivo, com as declarações prestadas pelo ofendido, pelas testemunhas ., com a prova documental e pericial constante dos autos, é possível extrair sustentáculo probatório suficiente de que foi o arguido o autor dos factos descritos na Acusação.
7 - Se, uma visão isolada da prova não permite com certeza e segurança afirmar ter sido o arguido o autor dos factos descritos na Acusação, ao invés, a mesma conjugada entre si, afigura-se-nos suficiente para formar a convicção de que foi o arguido o autor dos factos descritos na acusação.
8 - Temos então que os factos, alicerçados na valoração crítica e globalizada de todos os elementos probatórios supra indicados, deveriam ter sido dados como provados na sentença e não o contrário, como fez o Tribunal a quo.
9 - Aqui chegados, entendemos que a fundamentação da matéria de facto esgrimida pelo Tribunal a quo se revela inexoravelmente errónea e insuficiente no sentido de demonstrar cabalmente a existência de qualquer razão válida que permitisse afastar a comprovação dos factos 1 a 13 da matéria dada como não provada na sentença.
10 - Na verdade, a fundamentação do Tribunal recorrido assenta em erros/vícios que passamos desde já a sintetizar:
- o primeiro prende-se com o facto de ter decidido pela não valoração dos actos de reconhecimento pessoal constantes de fls. 161 a 168, realizados na fase de inquérito quando, na verdade, tais diligências respeitaram na integra os pressupostos legais contidos no art. 147° do CPP, não tendo sido demonstrada a existência de qualquer vicio processual capaz de os afastar como meio de prova;
- o segundo prende-se com o facto de não ter valorado devidamente esse reconhecimento, conjugado com os depoimentos das testemunhas , presentes aquando da prática dos factos, o que na nossa perspectiva, se mostra suficiente para demonstrar em termos probatórios a matéria factual dada como não provada na sentença;
- acresce que a demais prova, designadamente as declarações da testemunha BL, documentos e perícia efectuada, reforçam a credibilidade a atribuir aos depoimentos do ofendido e de JT.
11 - Nada indicando em concreto que os reconhecimentos pessoais levados a cabo no inquérito tenham sido de alguma maneira inquinados, é nosso parecer que o Tribunal, ao decidir, sem outros motivos, pela sua não valoração, se colocou além da sua esfera de poder, exorbitando os limites do seu poder de conhecimento e apreciação no caso sob análise.
12 - Concluímos, assim, que o Tribunal recorrido, não dispondo de elementos para concluir pela violação de nenhum dos pressupostos previstos no art. 147° do CPP, quanto aos actos de reconhecimento protagonizados nos autos, estava vinculado, embora dentro dos cânones da livre apreciação, a valorar o resultado neles plasmados, salvo se ocorresse, entretanto, algum motivo legal que o impedisse, o que não sucedeu.
13 - Com efeito, a fundamentação esgrimida pelo Tribunal está ferida de invalidade por força da errada apreciação da prova nela plasmada que, por seu turno, materializa uma clara violação do disposto nos arts. 124°, 125°, 127° e 147°, todos do Código de Processo Penal, assim como um erro notório na apreciação da prova, nos termos previstos no art. 410°, n° 2, alínea c), do Código de Processo Penal, já que há uma clara desconformidade entre, por um lado, a ilacção obtida pelo Tribunal no sentido de não valorar os reconhecimentos feitos em inquérito e, por outro, o seu resultado, a sua validade, a sua não impugnação e, outrossim, o diagnóstico das circunstâncias que acompanharam a sua realização.
14 - Afigura-se-nos que a sentença proferida pelo Tribunal incorreu, no domínio da apreciação da prova e das conclusões que daí extraiu, numa clara violação do disposto nos arts. 124°, 125°, 127°, todos do Código de Processo Penal (sucedendo paralelamente que quanto à “anulação ” do reconhecimento de fls. 161 a 168 supra abordada violou também o disposto no art. 147odo mesmo diploma legal), e, por força dessa errada apreciação dos elementos probatórios coligidos nos autos, a referida peça processual violou outrossim, no domínio da subsunção dos factos ao direito, o disposto nos arts. 143°, n° 1 e 145°, n° 1, alínea a), e 2, por referência ao 132°, n° 2, al. e), 153°, n° 1 e 155°, al. a), todos do Código Penal e, ainda art 86°, n° 3 do RJAM, na sua actual redacção.
15 - Consideramos também que a aludida fundamentação preencheu o vício do erro notório da apreciação da prova, plasmado no art. 410°, n° 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
16 - Sem embargo, cremos ainda que o referido vício da sentença previsto no art. 410°, n° 2, alínea b), do Código de Processo Penal, consubstancia uma nulidade processual por referência ao disposto no art. 379°, n° 1, alínea a), e ao art. 374°, n° 2, ambos do Código de Processo Penal, com as consequências previstas no art. 122° do mesmo diploma legal, nulidade esta que, para os devidos efeitos legais, aqui desde já invocamos.
17 - Por força de toda a argumentação exposta do presente recurso, entendemos que a douta Sentença recorrida deverá ser revogada, por errado julgamento da matéria de facto, e substituída por outra no âmbito da qual deverá então ser definitiva e globalmente dada como provada toda a factualidade descrita na acusação e que foi o arguido o seu autor.
Nestes termos e invocando o douto suprimento de V. Exas, deverá conceder-se provimento ao recurso e ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que dê como provados todos os factos constantes da Acusação e em consequência condenar-se o arguido pela prática, em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.° 143.°, n.°1, al. a) e n.°2, por referência ao artigo 145.°, n.°1, al. a) e n.°2, agravada pela utilização de arma de fogo, p. e p. pelo artigo 86.°, n.°3 e 4, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro e, ainda, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.°, n.°1 e 155.°, al. a), do CP.
Admitido o recurso, não foi apresentada resposta pelo arguido.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso e da confirmação da sentença recorrida, em virtude de não se mostrar cumprido o ónus de impugnação especificada previsto no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP.
Foi cumprido o art. 417º nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos e realizada a conferência prevista nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, Iª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de  apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes:
Se houve erro de julgamento, porque os factos descritos nos pontos 1 a 13 da matéria dada como não provada na sentença deveriam ter sido dados como provados;
Se se verifica o vício decisório do erro na apreciação da prova.
Se houve erro de direito, na absolvição do arguido e, consequentemente, deverá o mesmo ser condenado pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.° 143°, n.°1, al. a) e n.°2, por referência ao artigo 145.°, n.°1, al. a) e n.°2, agravada pela utilização de arma de fogo, p. e p. pelo artigo 86.°, n.°3 e 4, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.°, n.°1 e 155.°, al. a), do CP.
2.2. Fundamentação de Facto 
A matéria de facto exarada na sentença recorrida e a respectiva motivação são as seguintes:
A. FACTOS PROVADOS
1. O ofendido sofreu traumatismo do membro inferior direito, com cicatriz hipercrómica localizada no joelho.
2. Tais lesões determinaram, para o ofendido, 30 dias de doença com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.
B. FACTOS NÃO PROVADOS
1. No dia 27 de Agosto de 2019, pelas 19h00, o ofendido AB_____  encontrava-se sentado junto da “  Rua Duarte Pacheco Pereira,   na Damaia, Amadora.
2. Nesse circunstancialismo de tempo e local, o arguido deslocou-se a tal estabelecimento e comprou laranjas, tendo-as descascado e largado as cascas no chão, em frente à porta da loja.
3. Por tal motivo, o ofendido repreendeu o arguido, tendo-lhe dito que aquilo não se fazia.
4. Indignado por ter sido repreendido, o arguido proferiu a seguinte expressão, relativamente ao ofendido: “Eu sou um homem e vou-te mostrar que sou um homem. Espera aqui que eu já volto”.
5. Cerca das 22h00, o arguido voltou novamente à frutaria, munido de uma arma de fogo preta, cujas demais características não se lograram apurar e aproximou-se do ofendido, que se encontrava sentado junto a umas escadas existentes na esplanada da frutaria e a curta distância, efectuou dois disparos na direcção do joelho direito daquele, tendo logrado acertar na referida zona.
6. Após, o arguido proferiu a seguinte expressão: “Da próxima vez dou-te na cabeça”, tendo fugido do local de seguida.
7. Como consequência da conduta do arguido, o ofendido sofreu traumatismo do membro inferior direito, com cicatriz hipercrómica localizada no joelho.
8. O arguido agiu, através do disparo efectuado no joelho do ofendido, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do ofendido.
9. O instrumento usado pelo arguido - arma de fogo - revela-se idóneo a atingir de forma potencialmente grave o corpo e a saúde da vítima, reduzindo a sua capacidade de reacção, o que sucedeu, circunstância que o arguido conhecia, sendo aliás essa a sua intenção.
10. O arguido conhecia bem as características da arma que consigo trazia e da sua capacidade letal, bem sabendo que a detenção da mesma era proibida e punida por lei, uma vez que não possuía qualquer licença ou porte de arma que lhe permitisse deter ou utilizá-la. Não obstante, quis detê-la e utilizá-la.
11. Agiu ainda por motivo fútil e absolutamente insignificante, que revela a evidente desproporção da reacção do arguido.
12. O arguido sabia também que a expressão referida no ponto 6) era susceptível de causar medo e inquietação ao ofendido, como efectivamente causou, fazendo-o recear pela sua integridade física.
13. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
C. MOTIVAÇÃO
Na formação da sua convicção quanto aos factos objecto do processo, teve o Tribunal em atenção a prova documental e a prova produzida em audiência de julgamento, analisando uma e outra de forma crítica e de acordo com as regras da experiência comum.
E, desde logo, cumpre afirmar que a prova não foi suficiente para formar a convicção, com a certeza e segurança exigida para uma condenação, de que foi o arguido quem praticou os factos objecto da acusação.
É inegável que o ofendido foi atingido por um disparo, que lhe provou as lesões documentadas nos autos e que determinaram 30 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional (cfr. documentação clínica de fls. 25 a 27 e exame pericial de fls. 202 e ss).
Não é menos verdade, face ao auto de visionamento de fls. 42 a 50, que próximo da hora dos factos, assomou ao local dos mesmos um indivíduo de compleição alta e magra. Mas não é visível o momento em que este, ou outro indivíduo se aproxima do ofendido, nem, tão pouco, o momento do disparo.
A fisionomia da pessoa não é minimamente perceptível nas imagens de videovigilância da Amadora, e a roupa que este individuo trajava não é particularmente distintiva, sabendo-se apenas que se trata de roupa escura.
Daí que não seja possível fazer a correspondência entre essa roupa apreendida e documentada nos fotogramas de fls. 152 e ss.
Sempre se dirá que quer as calças, quer o blusão apreendidos são comuns, não podendo daqui inferir-se seja o que for, muito menos que sejam idênticas, como defendidas pelo inspector da PJ Benido Luz, que procedeu às buscas na residência do arguido.
Aliás, pese embora as peças de roupa alusivas ao Benfica sejam bastante comuns, sobretudo na área metropolitana de Lisboa, em momento algum o ofendido a tal se referiu e estamos certos que tais símbolos lhe chamariam necessariamente a atenção.
Aliás, sobre a roupa, o ofendido apenas referiu que o arguido se encontrava encapuzado.
Vejamos agora a prova por reconhecimento efectuada nos autos.
A fls. 29 a 31 e 33 e 34 dos autos, o ofendido e a testemunha JT___ foram confrontados com fotografias de três indivíduos de raça negra, de características bastante diferentes, não havendo qualquer similitude entre estes no tom de pele, estrutura de face ou cabelo.
Este reconhecimento fotográfico, ademais, não é válido (cfr. a este propósito o ac. da RL 05.07.06, www.dgsi.pt).
Posteriormente, em 13.05.21, é efectuado um novo reconhecimento, desta vez, tendo o ofendido e a testemunha sido confrontados com três indivíduos, um dos quais o arguido.
Dispõe o artigo 147.°, n.°2, do CPP, que ao proceder-se à prova por reconhecimento devem-se chamar pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, incluindo ao nível do vestuário, com a pessoa a identificar, e que podem ser fotografadas, caso nisso consentirem (n.°4).
Do auto de reconhecimento consta apenas o nome dos dois outros indivíduos e a sua identificação como agentes da PJ, com a indicação de que estes “apresentam as maiores semelhanças possíveis com a pessoa a identificar”. As suas fotografias não se encontram juntas aos autos.
Todavia, considerando que no reconhecimento fotográfico anterior as três pessoas apresentadas são claramente diferentes, ficamos com sérias dúvidas se neste não o seriam também.
E tais dúvidas seriam ultrapassadas se o depoimento do ofendido se tivesse revelado seguro, o que não foi.
Com efeito, este começou por referir que estava escuro e que a pessoa que se lhe dirigiu estava encapuzada. Ora, fazendo-se um apelo às regras da experiência comum, facilmente se conclui que a fisionomia do indivíduo estaria parcialmente oculta. Todavia, apontada tal dificuldade, o ofendido apressou-se a afirmar que o viu claramente por causa da iluminação pública e que por isso o reconheceu como sendo a pessoa que se havia insurgido no início do dia contra si, o que é diverso de afirmar que essa pessoa é o arguido, sobretudo considerando as fragilidades já apontadas ao reconhecimento efectuado.
Do mesmo modo, estamos em crer que a convicção da testemunha JT___ de que foi o arguido quem praticou os factos foi mais enformada pelo que lhe foi transmitido no local (por populares que identificaram o arguido pela alcunha) do que pela sua real observação.
Com efeito, a testemunha apenas assomou ao local após o disparo, vendo, de esguelha, numa noite escura, um indivíduo a fugir, encapuzado.
Considerando as regras da experiência comum, atendendo à sua localização e ao seu campo de visão, deste indivíduo a testemunha apenas em rigor poderá ter visto a sua compleição física, que admitimos que possa ser idêntica à do arguido, que já conhecia por ser cliente do seu estabelecimento, circunstância que acabou por firmar a sua convicção sobre a autoria do disparo.
A fragilidade do seu depoimento levou-nos igualmente a não conseguir concluir que a pessoa com quem o ofendido teve um desentendimento de manhã, a propósito das cascas de uma laranja, fosse o arguido.
Em resumo, não foi possível, face à prova produzida afirmar a convicção segura de que foi o arguido quem proferiu as expressões naquele dia de manhã ou de que foi ele quem efectivamente disparou a arma, atingindo o ofendido.
Com efeito, mais nenhum elemento probatório foi reunido em que se pudesse estribar tal conclusão, em particular no que ao autor do disparo diz respeito.
Desde logo, das roupas em questão não resultam quaisquer vestígios de pólvora, tão pouco tendo sido para tal examinadas.
Na posse do arguido não foi encontrada qualquer arma e o projéctil, alojado no joelho do ofendido, não foi recuperado.
Sobre a autoria dos factos ficou, assim, o Tribunal com uma dúvida intransponível, uma vez que mais nenhuma prova foi produzida e o arguido se recusou validamente a depor.
Ora, na apreciação da prova não se pode deixar de ter em consideração, o princípio da presunção de inocência do arguido (sobre o princípio do in dubio pro reo, veja-se, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, páginas 355 a 357, Figueiredo Dias, Lições de Direito Processual Penal, págs. 143 a 150).
E tal dúvida, em obediência ao principio do in dubio pro reo não pode deixar de ser valorada a favor do arguido.
O arguido foi ouvido quanto à sua situação económica e pessoal, o seu relatório social e o seu CRC foram analisados mas, considerando o sentido da decisão, optou-se por nada consignar.
2.3. Apreciação do Mérito do Recurso
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado é o da impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, a qual envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante, mas com limites, porque subordinada ao cumprimento de um dever muito específico de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1, in http://www.dgsi.pt). 
Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Ou seja, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, a mesma «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorrectamente julgado» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art. 412º., pág. 1144).
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Já a especificação das concretas provas, «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art. 412º., pág. 1144).
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado.
Essa modificação será, ainda, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art. 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série,  nº 77 de 18 de abril de 2012).
«É em face dessa prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, cuja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância» (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).
Caso se limite a indicar a totalidade de um documento ou de uma perícia, ou de uma escuta telefónica, por reporte a um determinado período, ou as declarações prestadas por um certo número de testemunhas, na sua globalidade, não pode considerar-se cumprido o ónus, nem viabilizada a possibilidade de reapreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de recurso.
«(…) Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório» (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012).
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os referidos princípios que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso como um remédio jurídico e não como um outro julgamento.
Trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da prova proibida, da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos.
A convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efetivamente produzida no processo, deveria necessariamente ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção (…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012; Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005 Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e ainda, os Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1 in http://www.dgsi.pt).
Pese embora o recorrente tenha especificado com clareza quais os factos que, em concreto, pretende ver alterados, já não fez o mesmo, no que concerne à indicação precisa dos excertos dos depoimentos das testemunhas inquiridas e/ou dos reconhecimentos realizados no decurso do inquérito.
O Tribunal, depois de afirmar que do visionamento das imagens recolhidas no local, no dia e hora dos factos objecto do processo, que «a fisionomia da pessoa não é minimamente perceptível nas imagens de videovigilância da Amadora» e que a roupa que usava era escura e indistinta, não sendo possível estabelecer qualquer correspondência com a que veio a ser apreendida, desconsiderou esses reconhecimentos como meios de prova, em virtude de a sua realização não ter tido lugar, em sintonia com o formalismo previsto no art. 147º do CPP, cujas normas impõem requisitos de validade e eficácia da prova por reconhecimento que, segundo a motivação da decisão de facto, não foram observados, concretamente, no que tange às características físicas das pessoas que, com os suspeitos, deveriam ter sido alinhadas e sujeitas à observação da pessoa ou pessoas que iriam proceder à identificação do autor dos factos em investigação, nos termos exigidos nos nºs 2 e 4.
Do mesmo modo, explicou por que razões não valorou os depoimentos das testemunhas AB_____  (o ofendido) e JT___, o primeiro porque não logrou identificar o arguido como o autor do disparo que o vitimou de forma segura, esclarecedora e convincente e a segunda porque não assistiu aos factos e só identificou o arguido por aquilo que ouviu dizer a terceiras pessoas que não foi possível identificar.
Impunha-se ao recorrente, se queria ver alterada a matéria de facto, no sentido preconizado no recurso, que tivesse invocado trechos concretos dos relatos feitos pelas testemunhas, de que pudesse ter resultado que, afinal, o Tribunal deveria ter considerado como provados os factos 1 a 13 da matéria de facto não provada, ou que tivesse especificado de que partes do teor literal dos autos de reconhecimento se mostravam cumpridas todas as formalidades previstas no art. 147º do CPP, ao contrário do afirmado na motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida.
Mas nada disso foi feito.
Não há uma única alusão às concretas provas que impõem solução diversa da que o Tribunal deu ao caso, seja através das transcrições dos segmentos das declarações ou depoimentos testemunhas, seja dos excertos dos autos.
Muito, pelo contrário, o Mº.Pº. insurge-se contra a interpretação que o Tribunal fez da prova produzida por achar que uma análise concatenada e global de todas as provas disponíveis deveria permitir dar como provados os factos não provados em 1 a 13, sendo disso nem expressivas as conclusões décima a décima quarta.
Ora depois de o Tribunal ter explicado os motivos pelos quais não considerava os reconhecimentos presenciais válidos e eficazes e explanado as razões por que não atribuiu natureza esclarecedora e convincente aos depoimentos das testemunhas inquiridas, não pode o recorrente pretender que ao afirmar que, em seu entender não existem motivos que justifiquem a «anulação» desses reconhecimentos, ou ao dizer que acha credíveis os depoimentos dessas testemunhas na sua globalidade que configura, por essa via, o erro de julgamento.
O que esta linha de argumentação assim feita revela é que o Mº. Pº. não concorda com a convicção do Tribunal, só que o recurso da matéria de facto não serve para os sujeitos processuais sobreporem a sua opinião sobre o sentido da prova a uma convicção formada por um tribunal depois de efectuado o exame crítico da mesma e sem o cumprimento cabal do art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, como é o caso do presente não tem sequer aptidão para introduzir seja que alteração for na matéria de facto.
Uma forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma excepção, desvirtua completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância e prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.
Além disso, se fosse aceite, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjecturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objecto.
É, igualmente, inadmissível, à luz dos princípios da imediação e oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica, partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento.
O recurso improcede, pois, nesta parte.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova.
O art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento (Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
O erro notório na apreciação da prova supõe que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva que factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis (Acs. do STJ de 12.03.2015, processo 40/11.4JAAVR.C2; de 06.12.2018, processo 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1 e Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77).
«Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º).
«É o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pág. 341).
«O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» (Ac. do STJ de 06.10.2010 Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB e de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1, in http://www.dgsi.pt).
Mas a invocação deste vício não se confunde com a incompatibilidade ou o desacerto que, segundo a convicção do recorrente, julgue encontrar entre a prova produzida e a decisão do tribunal, porque se tal se verificar, do que se trata é do mérito do julgamento em matéria de facto e não de qualquer vício estrutural da própria sentença.
No caso vertente, o recorrente nem sequer indica em que teria consistido esse vício de erro notório na apreciação da prova, pois nem sequer fez qualquer menção ao teor literal da decisão.
 A verdade é que também não se vislumbra no texto da decisão, qualquer dos vícios decisórios previstos no art. 410º nº 2 als. a) a c) do CPP, porquanto não é possível surpreender nela qualquer insuficiência da matéria de facto provada, qualquer falta de fundamentação, contradição de fundamentação ou entre esta e a decisão ou, ainda, qualquer asserção contrária às regras da experiência comum ou qualquer juízo ilógico, arbitrário ou contraditório.
O recurso improcede, pois, no que se refere à matéria de facto.
Quanto ao erro de direito.
Tendo-se provados apenas que o ofendido sofreu traumatismo do membro inferior direito, com cicatriz hipercrómica localizada no joelho e que tais lesões lhe  determinaram 30 dias de doença com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, mostra-se evidente o acerto da sentença recorrida ao absolver o arguido de todos os crimes de que vinha acusado, por efeito do princípio in dubio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência, pelo que, também, nesta parte, o recurso não merece provimento.

III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Sem Custas – art. 522º do CPP.
Notifique.
                                                           *
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelo Mmo. Juíz Adjunto.

Tribunal da Relação de Lisboa, 6 de Outubro de 2021
Cristina Almeida e Sousa
Alfredo Costa