Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4597/19.3T8OER.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.–A tramitação do processo especial de prestação de contas no que respeita à instrução e julgamento da causa é a prevista no n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, segundo a qual “Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º;
se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa”.

2.–Tendo o R/apelante contestado a obrigação de prestar contas, a tramitação estabelecida neste preceito, por defeito, como a tramitação comum, impõe que sejam “…produzidas as provas necessárias… aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º…”, após o que o tribunal proferirá decisão.

3.–Nos termos do disposto no n.º 1, art.º 195.º, do C. P. Civil, a omissão de realização da audiência de discussão e julgamento, com inquirição de testemunhas e produção de alegações configurando-se, como omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva só produzirá nulidade, se for susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, o que se reconduz à questão de saber se o processo se encontrava em condições de ser proferida sentença sem a realização de audiência de discussão e julgamento.

4.–Se a matéria de facto fixada na sentença se configura como equívoca e controversa por não admitida por acordo nem provada por documento com força probatória plena à data em foi proferida a sentença o processo não se encontrava em condições de ser proferida essa sentença sem a realização de audiência de discussão e julgamento, com a produção da prova pessoal oferecida, pelo que omissão da audiência é susceptível de influir no exame e na decisão da causa.

5.Nestas circunstâncias, a nulidade por omissão de formalidade prescrita na lei, acaba por se reconduzir à questão, também processual, da suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada nos autos para decisão da causa, a qual é suscetível de constituir fundamento para anulação da decisão proferida na 1.ª instância, como dispõe a al. c), do n.º 2, do art.º 662.º, do C. P. Civil.

6.–Por estes dois fundamentos - nulidade secundária por omissão de formalidade, nulidade típica por insuficiência da matéria de facto – a sentença deve ser revogada e dado cumprimento à primeira parte do n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, com a inquirição das testemunhas oferecidas pelas partes (n.º 1, do art.º 294.º), com alegações orais, seguindo-se a sentença, proferida em observação do disposto no art.º 607.º, do C. P. Civil (art.º 295.º), nomeadamente, com a organização da matéria fáctica pertinente segundo as soluções plausíveis das questões de direitos em factos provados e não provados (n.ºs 3 e 4, do art.º 607.º, do C. P. Civil) e com a motivação da decisão em matéria de facto (n.ºs 4 e 5 do mesmo art.º 607.º).


(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.



1.–RELATÓRIO.


Elsa …, em representação de Margarida …, sua filha menor, propôs contra Joaquim …, pai desta, esta ação de prestação de contas pedindo que o mesmo preste contas de todos os movimentos e actos de uma conta bancária da filha de ambos, e se declare a A movimentadora conjunta da mesma conta, com fundamento, em síntese, em que o R movimentou essa conta na qual se encontrava depositada quantia que foi doada pelo avô paterno para uma conta deste.

Citado, contestou o R dizendo, em síntese, que agiu de acordo com a vontade do avô da filha, seu pai, que sempre afirmou que aquele dinheiro era dele, pedindo a improcedência da ação, a absolvição do pedido e a condenação da A como litigante de má-fé.

Findos os articulados, sem realizar audiência de discussão e julgamento o tribunal a quo proferiu sentença, julgando a ação procedente, determinando que o R apresente contas no prazo de vinte dias, sob pena de não poder contestar as que a A apresente, absolvendo a A do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Inconformado com essa decisão o R dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a marcação de audiência de discussão e julgamento, com a apreciação normal da produção de prova testemunhal e documental, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
§a.-A autora interpôs a presente acção de prestação de contas, pedindo, a final, a condenação do réu;
§b.-O réu, ora recorrente, apresentou a sua Contestação, alegando, e em resumo, que nenhumas contas poderia prestar porque o dinheiro não era seu, mas sim do seu Pai, avô paterno da Margarida;
§c.-Prosseguindo os posteriores termos do processo, foi dada sentença sem a realização da audiência final de discussão e julgamento, e, consequentemente, sem a audição das testemunhas arroladas, nos termos do artigo 195º do C.P.C., i.e.,
§d.-O tribunal a quo deu como provado, entre outros, que: a menor Margarida nasceu no dia 06.06.2007; que, ainda na pendência do casamento entre autora e réu, o avô paterno da Margarida decidiu beneficiar a neta com a quantia de € 101.835,00 (cento e um mil, oitocentos e trinta e cinco euros); que em 30.11.2017 aquele depósito apresentava um saldo de € 102.771,89, com data de vencimento a 12.12.2017 para um prazo de 365 dias; que a autora e réu se divorciaram, entre si, por sentença proferida no Processo de Divórcio sem o Consentimento do Outro Cônjuge nº 293/19.0T8CSC do Juiz 3 do Juízo de Família e Menores de Cascais, transitada em julgado a 12.03.2019, tendo a data de produção dos efeitos sido fixada em 30.06.2018, data da separação de facto do casal; que a 14.12.2017 o réu transferiu o saldo produto financeiro supra referido – à data € 103.573,75, para uma conta aberta em nome de seu Pai, José …; que em 18.12.2017, o mesmo José … subscreveu, no balcão dos CTT de Portalegre, certificados do tesouro CT-Poupança Crescimento no valor de € 115.000,00 (IGCP conta aforro nº …, subscrição nº …), e que este está feito apenas em seu nome;
§e.-Para tal o Tribunal a quo fundamentou, de Direito, entre outros, que o referido acto de disposição patrimonial (depósito feito em 10.12.2015 em nome da Margarida) configura uma doação pura – artº 951, nº 2 do C.C., que não foi revogada - cfr. artºs. 970º e seguintes do C.C.; concluindo que tal verba em causa, depositada em nome da Margarida a 10.12.2015, passou a constituir um bem da Margarida, que o réu, em 14.12.2017, movimentou a totalidade do depósito feito em nome da filha (€ 103.573,75) para uma conta do seu pai, avô paterno da Margarida, e que, 4 dias depois (a 18.12.2017) o avô paterno da Margarida subscreveu, no balcão dos CTT de Portalegre, Certificados do Tesouro CTPoupança Crescimento no valor de € 115.000,00, e que naqueles certificados a Margarida não consta como titular ou beneficiária;
§f.-Mais sustenta que é irrelevante que a autora tenha tido conhecimento desse facto ou não, bem como é indiferente que o pai da margarida tenha agido em cumprimento de instruções do pai deste – avô da Margarida;
§g.-Em resultado, o Tribunal a quo, e com o devido respeito, andou mal, incorrendo em contradição nos seus argumentos/fundamentação, porquanto se esqueceu de que a primeira aplicação terminava a sua vida útil em dezembro de 2017, e, como tal, forçosamente o dinheiro teve que ser resgatado (não esquecer que a Margarida é menor e não podia ficar com o dinheiro nas suas mãos;
§h.-Esqueceu-se, ainda, o Tribunal a quo, de que a conta onde a primeira aplicação foi feita, estava em nome da Margarida e em nome do réu, ora recorrente;
§i.-Que daí, forçosamente decorre que, si tivesse havido alguma doação pura – como insiste o tribunal a quo -, foi aos dois titulares da conta, e não apenas à um deles, pois havendo uma conta titulada por duas pessoas, presume-se que o depósito é dos dois titulares, e não de um.
§j.-Que em vez de atentar na execpção dilatória de ilegitimidade do réu, o tribunal a quo proferiu uma sentença que incorre num erro fáctico e que desembocará, inevitavelmente, numa impossibilidade prática, e que é, a de que, reconhecendo que o dinheiro em questão não é do Pai do réu, ora recorrente, é impossível a este prestar contas de um dinheiro que nunca lhe pertenceu.
§k.-O réu deveria ter sido considerado parte ilegítima da acção, já que esta deveria ter sido posta não contra o avô paterno da Margarida, o que constitui uma excepção dilatória, que, como se sabe, é de conhecimento oficioso.
§l.-Desta inércia do tribunal a quo decorre que, a condenar o réu, como o fez, este nenhumas contas pode prestar a não ser aquelas que já prestou nos autos.
§m.-Donde proferiu uma sentença inócua, por inútil, no seu alcance prático.
§n.-Se o tribunal a quo tivesse conhecido oficiosamente tal excepção, a autora teria posto a acção contra o Pai do ré, ora recorrente, que era quem, eventualmente, deveria prestar contas,
§o.-o Tribunal a quo prolatou sentença, da qual se recorre, sem que tivesse realizado a audiência de discussão e julgamento.
§p.-Não obstante a possibilidade legal de decisão sem a verificação de audiência de discussão e julgamento – artigos 195º nº 1 do C.P.C. -., o facto é que tal só pode ocorrer caso não venha a pesar na boa decisão da causa, sob pena de estar ferida de nulidade, atento o disposto no artº. 192º nºs 1 e 2, daquele diploma legal.
§q.-O Tribunal a quo foi alertado pelo réu para a necessidade de observar esse requisito.
§r.-O Tribunal a quo ainda assim decidiu, sem ouvir a testemunha arrolada pelo réu, e que era o seu pai, i.e., quem efectivamente fez as aplicações e quem decidiu levantar ou aplicar o dinheiro.
§s.-O tribunal a quo não atentou no documento junto aos autos pelo réu em 14.12.2020, o qual constitui um verdadeiro testamento ou declaração de última vontade do Pai do réu quanto ao destino a dar ao dinheiro em causa em caso de falecimento.
§t.-O Tribunal a quo, que sempre teve conhecimento desses factos e do documento, nada disse nem valorou.
§u.-O Tribunal a quo – com o devido respeito -, deveria ter ouvido, em audiência de discussão e julgamento, a testemunha arrolada - o Pai do réu -, e cotejar o testemunho com a declaração junta aos autos.
§v.-Em vez disso preferiu dizer ao réu como é que se deveria ter comportado e que deveria ter chamado o seu Pai à razão para não pedir o resgate do dinheiro então aplicado.
§w.-O Tribunal a quo assume que sabe, claramente, que: A) o Pai do réu é que é o dono do dinheiro; B) que é aquele quem tem poderes para decidir o destino do dito dinheiro; e C) sabe, porque junta aos autos, do teor da declaração de última vontade daquele, … e ainda assim decide sem ouvir a testemunha e sem realizar a julgamento.
§x.-Simultaneamente acha que é o réu quem te que prestar contas… d’um dinheiro que o Tribunal sabe que não é seu…
§y.-Tal raciocínio, por estranho, jamais poderia levar a numa boa decisão da causa.
§z.-Requer-se seja alterada a decisão do Tribunal a quo, sendo substituída por outra que declare que a não realização da audiência e consequente omissão da produção da prova influi na boa decisão da causa, e, em consequência, estar a decisão final ferida de nulidade, nos termos do artº. 199º nºs 1 e 2 do C.P.C., cumprindo-se a sua tramitação e seja marcada a audiência de discussão e julgamento, com a apreciação normal da produção de prova testemunhal e documental.

A apelada contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

2.–FUNDAMENTAÇÃO.

A)–OS FACTOS.

O Tribunal a quo julgou:

A.1.–provados os seguintes factos:
1.–A menor Margarida … nasceu a 06.06.2007 e é filha da Autora e do Réu;
2.–Na pendência do casamento entre Autora e Réu, o avô paterno da Margarida decidiu beneficiar a neta com a quantia de € 101.835,00 (cento e um mil, oitocentos e trinta e cinco euros) que, a 10.12.2015, foi depositada na conta bancária nº …, do ActivoBank, aberta em nome da Margarida, mais concretamente no produto Depósito Flex Ativo nº …;
3.–A 30.11.2017, o depósito referido no ponto anterior apresentava um saldo de € 102.771,89, com data de vencimento a 12.12.2017 para um prazo de 365 dias;
4.–A 20.12.2017, a Autora intentou contra o Réu ação de Regulação das Responsabilidades Parentais dos filhos Margarida e Duarte, tendo, o exercício das responsabilidades parentais dos filhos, sido atribuída a ambos os pais;
5.–Autora e Réu divorciaram-se um do outro por sentença proferida no Processo de Divórcio Sem Consentimento nº 293/19.0T8CSC do Juiz 3 do Juízo de Família e Menores de Cascais, transitada em julgado a 12.03.2019, tendo a data de produção dos efeitos do divórcio sido fixada a 30.06.2018, data da separação de facto do casal;
6.– A 14.12.2017, o Réu transferiu o saldo do produto financeiro referido em 2 supra - à data € 103.573,75 – para a conta com o IBAN …, aberta em nome de José …, avô paterno da Margarida (pai do Réu);
7.–A 18.12.2017, José … subscreveu, no balcão dos CTT de Portalegre, Certificados do Tesouro CT-Poupança Crescimento no valor de € 115.000,00 (IGCP conta aforro nº …, subscrição …);
8.–O investimento descrito em 7 está em nome de José ... e dele não consta qualquer outro beneficiário.


B)–O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante consiste, tão só, em saber se o processo se encontrava em condições de ser proferida sentença sem a realização de audiência de discussão e julgamento e se ao proceder desse modo o tribunal a quo incorreu em nulidade prevista no art.º 195.º, do C. P. Civil.

Vejamos.

A presente ação de prestação de contas tem a natureza jurídico-processual de processo especial, cuja tramitação se encontra prevista no Título X, do C. P. Civil, sob a epígrafe “Da prestação de contas”, que faz parte do Livro V do mesmo Código, sob a epígrafe “Processos especiais”.

No que respeita à instrução e julgamento da causa, a tramitação deste processo especial é a prevista no n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, segundo a qual Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa.

Tendo o apelante contestado a obrigação de prestar contas a tramitação estabelecida neste preceito, por defeito, ou seja, como a tramitação comum, impõe que sejam “…produzidas as provas necessárias… aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º…”, após o que o tribunal proferirá decisão.

A aplicação do disposto nos art.ºs 294.º e 295.º, do C. P. Civil, que fazem parte das disposições gerais da tramitação dos incidentes da instância regulados no Título III, do Livro I, do C. P. Civil, determina que sejam inquiridas as testemunhas oferecidas pelas partes (n.º 1, do art.º 294.º) e que finda a produção da prova os advogados das partes façam alegações orais, seguindo-se a sentença, proferida em observação do disposto no art.º 607.º, do C. P. Civil (art.º 295.º).

Sem embargo de o juiz pode mandar seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa se verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, como dispõe a segunda parte, do n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, a tramitação antes indicada é aquela (especial) que o tribunal deverá seguir.

Ora, compulsados os autos, constatamos que foram realizadas diligências de recolha de prova documental, tendo o tribunal a quo ouvido as partes sobre a sua convicção da desnecessidade de inquirição de testemunhas (despacho de 11/5/2021), indeferido a inquirição de testemunhas apesar da oposição do apelante (despachos de 17/6/2021 e 1079/2021), proferindo decisão sem a produção de alegações orais pelos advogados e sem conhecimento da nulidade arguida pelo apelado, apesar do despacho de 10/9/2021 ter mantido a desnecessidade de inquirição de testemunhas[1].

Questão que se nos coloca ante esta tramitação determinada pelo tribunal a quo, em confronto da tramitação especial acima referida (por defeito) é a de sabermos se a mesma é admissível em face da nossa lei processual.

No âmbito da tramitação do processo comum estabelece a al. b), do n.º 1, do art.º 595.º, do C. P. Civil, relativo ao despacho saneador, que o saneador destina-se a: …b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.

Esta norma processual, se aplicável ao processo especial de prestação de contas, permitiria enquadrar a tramitação processual que foi imprimida pelo tribunal a quo.

Afigura-se-nos, todavia, que tal norma processual comum não deverá ser aplicada ao processo especial de prestação de contas, por três ordens de razões, sendo a primeira o disposto no n.º 2, do art.º 546.º, do C. P. Civil, o qual determina que O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial”, a segunda o facto de a aplicação da al. b), do n.º 1, do art.º 595.º, do C. P. Civil ao processo especial de prestação de contas se traduzir na criação de um regime processual especial num processo que já tem uma tramitação especial, estabelecida por reporte ao regime processual simplificado dos incidentes da instância e a terceira a inexistência de qualquer valor relevante que deva ser acautelado com a criação deste regime especial dentro de outro regime já de si especial, tanto mais que as eventuais razões de economia processual e celeridade se encontram já comtempladas na forma de processo especial.

Com a aplicação da norma da al. b), do n.º 1, do art.º 595.º, do C. P. Civil, do seu espírito de simplificação processual ou com qualquer outro fundamento, o certo é que a tramitação processual seguida foi a constante dos autos e que acabámos de referir, que o apelado qualifica como nulidade (secundária), prevista no art.º 195.º, n.º 1, do C. P. Civil e que arguiu em tempo, nos termos do n.º 1, do art.º 199.º, do C. P. Civil.

Dispõe o n.º 1, art.º 195.º, do C. P. Civil que fora dos casos previstos nos artigos anteriores, ou seja, para além das nulidades principais, tipificadas no C. P. Civil, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

A não realização da audiência, com inquirição de testemunhas e produção de alegações configurando-se, como omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva só produzirá, pois, nulidade, se for susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, o que se reconduz à questão de sabermos se o processo se encontrava em condições de ser proferida sentença sem a realização de audiência de discussão e julgamento.

Neste exato ponto, a questão formal suscitada pela apelante, de nulidade por omissão de formalidade prescrita na lei, acaba por se reconduzir à questão, também processual, da suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada nos autos (admitida por acordo ou provada por documento - prova plena) para decisão da causa, a qual é suscetível de constituir fundamento para anulação da decisão proferida na 1.ª instância, sob impulso da parte interessada ou mesmo oficiosamente, como dispõe a al. c), do n.º 2, do art.º 662.º, do C. P. Civil.

Por um caminho (nulidade secundária por omissão de formalidade) ou por outro (nulidade típica por insuficiência da matéria de facto) somos conduzidos a apreciar a questão de sabermos se a matéria de facto provada nos autos, por acordo e por documento com força probatória plena, permitia decidir a causa em face de qualquer das soluções plausíveis da questão ou questões de direito.

Nesta perspectiva, podemos dizer desde já que o processo se não encontrava ainda em condições de nele ser proferida decisão, ainda que a mesma seja aquela que foi proferida, a qual se estrutura na qualificação do facto complexo levado ao n.º 2 da matéria de facto como uma doação pura (art.º 951.º, n.º 2, do Código Civil)reportando-se seguidamente às vicissitudes subsequentes a este ato.

Com efeito, a matéria de facto atinente a esta doação é a constante do n.º 2, da matéria de facto supra nos seguintes termos:
2.- Na pendência do casamento entre Autora e Réu, o avô paterno da Margarida decidiu beneficiar a neta com a quantia de € 101.835,00 (cento e um mil, oitocentos e trinta e cinco euros) que, a 10.12.2015, foi depositada na conta bancária nº 4.........6, do ActivoBank, aberta em nome da Margarida, mais concretamente no produto Depósito Flex Ativo nº 2........2.
Ora, para além da incorreção da parte final deste número 2 – foi depositada em conta aberta em nome da Margarida – que resulta desde logo do art.º 7.º da petição e do próprio despacho de 30/6/202, mas também da configuração do litígio assente nos autos, na primeira parte deste mesmo n.º 2 consta a expressão decidiu beneficiar a neta com a quantia de € 101.835,00, a qual se nos afigura insuficiente e imprecisa em face do articulado pela apelada nos art.ºs 2.º (presenteou), 5.º (presenteado) e 7.º (presenteada) da petição.
Acresce que esta matéria, que se presta a equívocos, quer na formulação do n.º 2 da matéria de facto da sentença (decidiu beneficiar), quer na formulação dos art.ºs 2.º, 5.º e 7.º da petição inicial (presentear), devendo ser esclarecida e precisada em audiência de julgamento, foi contestada pelo apelante nos art.ºs 2.º, 5.º, 7.º a 14.º, 16.º e 17.º da contestação, pelo que não poderia declarada provada, como foi, sem a realização de audiência de discussão e julgamento, com produção da prova testemunhal oferecida.
Atentos os termos do litígio entre as partes e a controvérsia sobre esta matéria de facto, a prova testemunhal não só não podia ser dispensada pelo tribunal com fundamento na sua desnecessidade, como se assume como importante para apurar a verdadeira vontade dos intervenientes no ato, em especial, do proprietário da quantia em causa à data do mesmo ato.
Importa ainda referir que a “declaração” apresentada por requerimento de 14/12/2020, atribuída a José …, independentemente do valor probatório que lhe venha a ser atribuído, não tem o condão de substituir a inquirição dessa testemunha.

Estando a intervenção desta Relação delimitada pelas conclusões das alegações do recorrente, como acima referimos, de tudo o que até aqui foi expendido resta-nos concluir que à data em foi proferida a sentença sob recurso e também à data em que foram proferidos os despachos de 17/6/2021 e 10/9/2021, o processo se não encontrava em condições de ser proferida essa sentença sem a realização de audiência de discussão e julgamento, com a produção da prova pessoal oferecida, seguida de alegações dos Exm.ºs advogados e por último da sentença, organizada nos termos do disposto no art.º 607.º, do C. P. Civil, pelo que omissão da audiência é susceptível de influir no exame e na decisão da causa.

Arguida que foi a nulidade, por requerimento de 30/6/2021, o tribunal a quo não poderia, pois, ter deixado de dela conhecer, decidindo em conformidade, com a realização de audiência, como determinado pelo n.º 2, do art.º199.º, do C. P. Civil.

Não o tendo feito e tendo proferido a sentença sob recurso, uma vez que a matéria de facto nela fixada se configura como deficiente e obscura para decisão conscienciosa da causa, também a sentença não poderá deixar de ser anulada, nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do C. P. Civil, em aplicação do principio jura novit curia, consagrado no n.º 3, do art.º 5.º, do C. P. Civil.

Procede, pois, a apelação, pelos dois fundamentos que indicámos - nulidade secundária por omissão de formalidade, nulidade típica por insuficiência da matéria de facto - devendo revogar-se a sentença e ordenar-se que seja dado cumprimento à primeira parte do n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, com a inquirição das testemunhas oferecidas pelas partes (n.º 1, do art.º 294.º), com alegações orais, seguindo-se a sentença, proferida em observação do disposto no art.º 607.º, do C. P. Civil (art.º 295.º), nomeadamente, com a organização da matéria fáctica pertinente segundo as soluções plausíveis das questões de direitos em factos provados e não provados (n.ºs 3 e 4, do art.º 607.º, do C. P. Civil) e com a motivação da decisão em matéria de facto (n.ºs 4 e 5 do mesmo art.º 607.º). 

C) SUMÁRIO
1. A tramitação do processo especial de prestação de contas no que respeita à instrução e julgamento da causa é a prevista no n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, segundo a qual “Se o réu contetsar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa”.
2. Tendo o R/apelante contestado a obrigação de prestar contas, a tramitação estabelecida neste preceito, por defeito, como a tramitação comum, impõe que sejam “…produzidas as provas necessárias… aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º…”, após o que o tribunal proferirá decisão.
3. Nos termos do disposto no n.º 1, art.º 195.º, do C. P. Civil, a omissão de realização da audiência de discussão e julgamento, com inquirição de testemunhas e produção de alegações configurando-se, como omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva só produzirá nulidade, se for susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, o que se reconduz à questão de saber se o processo se encontrava em condições de ser proferida sentença sem a realização de audiência de discussão e julgamento.
4. Se a matéria de facto fixada na sentença se configura como equívoca e controversa por não admitida por acordo nem provada por documento com força probatória plena à data em foi proferida a sentença o processo não se encontrava em condições de ser proferida essa sentença sem a realização de audiência de discussão e julgamento, com a produção da prova pessoal oferecida, pelo que omissão da audiência é susceptível de influir no exame e na decisão da causa.
5. Nestas circunstâncias, a nulidade por omissão de formalidade prescrita na lei, acaba por se reconduzir à questão, também processual, da suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada nos autos para decisão da causa, a qual é suscetível de constituir fundamento para anulação da decisão proferida na 1.ª instância, como dispõe a al. c), do n.º 2, do art.º 662.º, do C. P. Civil.
6. Por estes dois fundamentos - nulidade secundária por omissão de formalidade, nulidade típica por insuficiência da matéria de facto – a sentença deve ser revogada e dado cumprimento à primeira parte do n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, com a inquirição das testemunhas oferecidas pelas partes (n.º 1, do art.º 294.º), com alegações orais, seguindo-se a sentença, proferida em observação do disposto no art.º 607.º, do C. P. Civil (art.º 295.º), nomeadamente, com a organização da matéria fáctica pertinente segundo as soluções plausíveis das questões de direitos em factos provados e não provados (n.ºs 3 e 4, do art.º 607.º, do C. P. Civil) e com a motivação da decisão em matéria de facto (n.ºs 4 e 5 do mesmo art.º 607.º). 


3.–DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e ordenando-se que seja dado cumprimento à primeira parte do n.º 3, do art.º 942.º, do C. P. Civil, com a inquirição das testemunhas oferecidas pelas partes, com alegações orais, seguindo-se a sentença, proferida em observação do disposto no art.º 607.º, do C. P. Civil, nomeadamente, com a organização da matéria fáctica pertinente, segundo as soluções plausíveis das questões de direitos, em factos provados e não provados e com a motivação da decisão em matéria de facto.
Custas pela apelada.



Lisboa,13-01-2022



(Orlando Santos Nascimento)
(Maria José Mouro)
(José Maria Sousa Pinto)



[1]Não se tratando de processo de jurisdição voluntária, previsto no Título XV, do C. P. Civil, é inaplicável a esta ação o estabelecido no n.º 2, do art.º 986.º, do C. P. Civil, nomeadamente na sua parte final, onde determina que “só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.