Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6370/2007-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
APREENSÃO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
ACTO INÚTIL
LOCAÇÃO FINANCEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- Determinado em procedimento cautelar, para entrega de bem dado em locação financeira e cancelamento do registo, a apreensão do bem (Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho), o facto de vir a ser proferida sentença na acção principal que julgou procedente o pedido não obsta a que, no procedimento cautelar, prossigam diligências destinadas à efectiva apreensão do veículo.
II- Não ocorre inutilidade superveniente da lide no procedimento cautelar face ao trânsito em julgado da sentença, pois tal procedimento, pela sua natureza  e estrutura, dispensa a instauração de acção executiva para entrega de coisa certa visto que a finalidade desta é assegurada pelo apreensão do bem no procedimento cautelar, ou seja, a providência cautelar esgota, na sua antecipação, a execução da decisão definitiva que se revelaria um acto inútil

(SC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.
 
1. RELATÓRIO
Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito requereu contra, C. […] Ld.ª procedimento cautelar de entrega de bem locado e cancelamento de registo, o qual foi decretado por despacho de 08/03/2006.

Apesar das diligências desenvolvidas o Tribunal não conseguiu localizar o bem e, consequentemente, executar a sua decisão cautelar.

Entretanto, em 20/06/2006, foi proferida sentença na acção declarativa principal, julgando-a procedente, a qual transitou em julgado.

Uma vez apensos os autos de procedimento cautelar ao processo principal, em 13/04/2007 foi neles proferido o seguinte despacho: “Atento o trânsito em julgado da decisão final proferida nos autos principais, remeta os autos à conta, nada mais havendo a decidir”.

Inconformada com essa decisão, a requerente dela interpôs recurso, recebido como agravo, pedindo a revogação da decisão recorrida e a substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos de providência cautelar, com vista à entrega dos bens locados, formulando as seguintes conclusões:

1.ª Do disposto no artigo 21° n.ºs 1, 4, 6 e 7 do DL 149/95, de 24 de Junho e da própria leitura da epígrafe deste artigo, resulta claro que a providência cautelar de entrega judicial de bem locado e cancelamento de registo tem como objecto e finalidade a entrega judicial e/ou o cancelamento do registo do bem locado no âmbito do contrato de locação financeira então celebrado, com carácter de urgência.

2.ª Assim, ao utilizar a terminologia "entrega imediata" e "o tribunal ordenará", o legislador fê-lo consciente da necessidade de criar um mecanismo expedito o suficiente que conferisse ao locador _ proprietário do bem - uma forma rápida e eficaz de reclamar a entrega imediata do bem para o recolocar no mercado, evitando dessa forma, não só a degradação e desvalorização inerentes ao uso e decurso do tempo, como até situações de imobilidade comercial.

3.ª Daí que, tendo "in casu" a providência cautelar sido decretada, por se verificar provada a probabilidade séria da verificação dos requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 21.º do citado diploma legal, o Mto. Juiz do Tribunal "a quo" tenha, efectivamente, ordenado a entrega imediata do bem locado.

4.ª Ora, salvo melhor opinião, não faz sentido ordenar a entrega imediata dos bens locados em sede do procedimento cautelar, tal como o Tribunal "a quo" o fez, para, posteriormente, após a prolação da sentença no âmbito da respectiva acção declarativa, e sendo certo que os bens locados ainda não foram recuperados, vir o Tribunal extinguir a instância, remetendo os autos à conta e referindo que nada mais há a decidir, retirando, obviamente, o efeito útil à providência cautelar em questão e, remetendo, obrigatoriamente, a Requerente para a acção executiva.

5.ª É necessário não esquecer que a acção executiva, por um lado, não tem carácter urgente, e, por outro lado, comporta, ou pode comportar embargos à execução nos termos previstos no artigo 928.º do C.P.C., que estabelece que o executado é citado para, no prazo de 20 dias, fazer a entrega ou opor-se à execução.

6.ª Assim, a ora Agravante entende que, se fosse necessário recorrer à acção executiva no caso em apreço, a providência cautelar no âmbito da locação financeira, que é uma providência regulada em legislação especial, ficaria com a sua ratio legis completamente adulterada e desprovida de sentido! Não foi, com certeza, essa a intenção do legislador.

7.ª Entende, assim, a ora Agravante que a providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo engloba uma fase declarativa - a apreciação dos requisitos da própria providência tendo em vista o seu decretamento, ou não - e uma fase executiva ­a efectiva entrega judicial do equipamento objecto da providência -, esgotando-se aqui o seu objecto, isto é, não sendo necessário, nem fazendo sentido, seguir-se a execução da sentença proferida na acção declarativa.

8.ª Neste sentido, veja-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 2 de Dezembro de 2004, publicado in www.dqsi.pt. tão elucidativo nesta matéria: "Deferida a providência cautelar de entrega de veículo e cancelamento do registo da locação financeira, cumpre ao tribunal proceder às diligências necessárias à concretização de tal medida. (...) Decretada a providência requerida a execução da entrega insere-se na própria providência, cabendo ao tribunal, por princípio, realizar as diligências que permitam efectivá-la, com recurso às autoridades policiais, se necessário. Trata-se de um procedimento cautelar que comporta uma fase de natureza declarativa, na qual são apreciados os pressupostos de que depende a concessão da providência requerida e que, na prática [acaba por concretizar, em termos definitivos, um dos efeitos a que tende a acção principal, seja ela baseada na resolução do contrato ou na sua caducidade}, e uma fase executiva que se traduz na realização da providência decretada. (...) Assim, ordenada a "entrega imediata" do veículo. é esta oficiosamente realizada, no próprio procedimento cautelar, aplicando-se as normas que regulam a entrega de coisa certa (artigo 930° ex vi do artigo 391° do C. P. C.), se for caso disso, visto que a esta providência são subsidiariamente aplicáveis as disposições Gerais sobre providências cautelares previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver regulado no DL 149/95 (n. ° 7 do artigo 21°). “ (sublinhado nosso).

9.ª Resulta, pois, evidente que, tendo as providências cautelares aplicáveis à locação financeira um regime jurídico específico, diferente dos demais procedimentos cautelares (não é necessário alegar e provar o "periculum in mora" e a Requerente pode logo dispor do bem, sem necessidade de obter uma sentença definitiva), não faz sentido remeter as Requerentes de tais providências cautelares para a acção executiva, já que a própria providência consubstancia a parte executiva, só esgotando o seu objecto com a efectiva entrega dos bens locados.

10.ª Em face de tudo o exposto, entende a Requerente, aqui Agravante, de resto apoiada na doutrina e jurisprudência, não ter razão o Mto. Juiz do Tribunal "a quo" ao proferir o douto despacho em crise, na medida em que tal decisão viola o disposto no artigo 21° do DL 149/95 de 24 de Junho, traduzindo uma errada interpretação desta disposição legal.
Não foram apresentadas contra-alegações.

O tribunal a quo manteve o decidido nos seus precisos termos.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS
A matéria de facto a considerar é a acima referida sendo certo que a questão submetida à apreciação deste Tribunal da Relação se configura, essencialmente, como uma questão de direito.
 
B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

Atentas as conclusões do agravo, supra descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consiste, tão só, em saber, se o Tribunal a quo podia por fim ao procedimento cautelar nos termos em que o fez, a saber, ordenando a remessa dos autos para contagem de custas, ou se tal procedimento deveria prosseguir até à efectiva apreensão dos bens, tal como ordenada na decisão respectiva.

Vejamos.

I. Os procedimentos cautelares constituem o veículo processual adequado à composição provisória de um litígio[1], em face do fundado receio da lesão de um direito, que pode resultar da espera demorada pela composição final desse litígio, no âmbito de uma acção declarativa (periculum in mora), sendo essa composição provisória decidida com fundamento na probabilidade séria da existência do direito (fumus boni juris) que se pretende fazer valer.

Tem, por isso, uma tramitação simplificada e mais célere que o processo declarativo comum (art.º 384.º do C. P. Civil), sendo que tanto o procedimento cautelar, como a decisão nele proferida (a decisão final transitada em julgado) são sempre dependência da acção principal (art.º 383.º do C. P. Civil), seguindo as vicissitudes a esta inerentes.  

Esta natureza de instrumentalidade e dependência poderia levar-nos a considerar que, uma vez transitada em julgado a sentença proferida na acção principal e, portanto, estabelecida a composição definitiva do litigio, a tramitação do procedimento cautelar cessaria por inutilidade superveniente da lide respectiva.

A decisão e a sua execução, provisórias, seriam substituídas pela decisão e execução, definitivas,

Terá sido este, porventura, o entendimento do Tribunal a quo expresso de forma indirecta, subentendido, na ordem de remessa dos autos à conta.

Uma tal consideração, a que se aporta através de um exercício de lógica formal a partir da natureza de instrumentalidade do procedimento cautelar, não pode, todavia, impedir-nos de considerar que este se propõe um desiderato que não é totalmente atingido com a prolação e execução da decisão definitiva.

E esse é, antes de mais, a antecipação de tal decisão e execução, mas outros efeitos jurídicos lhe estão associados, não se esgotando com este, pois nem sequer existe uma total coincidência entre a decisão e a execução do procedimento cautelar e a decisão e a execução da acção definitiva[2].

No caso sub judice, tanto no procedimento cautelar como na acção definitiva está em causa a apreensão de bens.

E, assim, se o Tribunal não conseguiu levar a cabo a apreensão de bens, por si ordenada, no procedimento cautelar, não se vislumbra a que título pretende realizar essa mesma apreensão em execução da decisão proferida na acção definitiva[3].

Ou ainda, se a apreensão de bens já não é possível no procedimento cautelar, o que sempre deveria encontrar-se processualmente demonstrado, para quê instaurar acção executiva para o mesmo efeito.  

Acresce que o procedimento cautelar em causa, como salienta o agravante, tem uma configuração própria que parece dispensar a acção executiva subsequente à declaração definitiva do direito.

II. A providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo no âmbito do contrato de locação financeira.

II. 1. Como é pacífico nos autos, por assim ter sido decidido no procedimento cautelar e na acção subsequente, agravante e agravada celebraram entre elas contratos de locação financeira, nos termos em que esta espécie contratual é definida pelo art.º 1.º do Dec. Lei n.º 149/95 de 24 de Junho, tendo a agravante a posição de locadora e a agravada a posição de locatária.

Tais contratos terminaram e a agravada, que não fez qualquer opção entre a compra ou a entrega dos bens recebidos, apesar de interpelada para o efeito, não procedeu à sua entrega à agravante, a qual, para o efeito, lançou mão do procedimento cautelar regulado pelo art.º 21.º do Dec. Lei 149/95.

Os requisitos de deferimento desta providência são os estabelecidos no n.º1 do art.º 21.º, in casu, que o contrato tenha findo pelo decurso do prazo sem o locatário ter exercido o direito de compra e que o locatário não tenha procedido à restituição do bem ao locador (art.º 21.º n.ºs 1, 2 e 4).

Neste caso, como resulta da natureza do contrato, os bens a apreender no procedimento pertencem à requerente/agora agravante e o interesse por ela prosseguido é, precisamente, a entrega de tais bens.

Obtida esta, no âmbito da providência cautelar, a sentença proferida na acção declarativa entretanto interposta e decidida, encontra-se antecipadamente cumprida.

E a autora que obteve vencimento, tendo os bens em seu poder, praticaria um acto inútil se instaurasse execução a pedir a sua entrega.

Esta providência cautelar apresenta, pois, a especificidade de, uma vez decretada e cumprida, no que respeita à entrega dos bens locados, esgotar na sua antecipação, a execução da decisão definitiva, que se revelaria um acto inútil.

II. 2. No caso sub judice, decretada a providência, o Tribunal não conseguiu realizá-la, apreendendo os bens, pelo que estamos perante duas decisões declarativas do direito, uma provisória e outra definitiva, por cumprir.

O cumprimento da primeira decorria do simples decretamento da providência, constituindo a sua ”fase executiva”, sem prejuízo do impulso da requerente, e o cumprimento da segunda exigirá a instauração da respectiva acção executiva.

 Ora, não vislumbramos, por um lado, que a ineficácia do Tribunal em executar a sua decisão proferida no procedimento cautelar deva onerar a parte, determinando-lhe o recurso a uma outra forma processual, a execução, que por sua vez pode não obter melhor resultado e, por outro, que por razões de economia processual, se não devam esgotar as possibilidades de cumprimento da decisão cautelar antes de declarar findo o respectivo processado.

Não há, pois, fundamento para declarar extinta a providência cautelar, enviando os autos à conta[4].

Neste caso, se a apreensão for realizada, tornar-se-á desnecessário recorrer à acção executiva e se o não for, ficará ao critério da parte lançar mão da acção executiva, sabendo de antemão as possibilidades de êxito e os correspondentes encargos processuais.

III. Procedem, pois, as conclusões do agravo, devendo revogar-se o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que, sob o impulso da requerente/agravante, determine o cumprimento da decisão proferida, ordenando a realização das diligências necessárias para o efeito.   

3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que determine o cumprimento da decisão proferida.
Sem custas.


Lisboa, 18 de Setembro de 2007

(Orlando Nascimento)

(Ana Resende)

(Dina Monteiro)

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[1] O que pressupõe uma composição definitiva a ter lugar na respectiva acção declarativa.
[2] A título de exemplo.
A prestação de alimentos provisórios comporta uma autonomia significativa relativamente à prestação definitiva (art.º 402.º do C. P. Civil e art.º 2007.º, n.º 2, do C. Civil).
Tratando-se de apreensão de bens/arresto, o mesmo não deixará de ser realizado, sendo mais tarde, na acção executiva, convertido em penhora (art.º 846.º do C. P. Civil).
Tratando-se de embargo de obra nova, a decisão e a execução do procedimento cautelar têm uma conformação diversa da acção definitiva, pois, com as primeiras pretende-se a suspensão da obra (art.º 412.º do C. P. Civil) enquanto que as segundas se dirigem à sua destruição.
Tratando-se de arrolamento, a descrição, avaliação e depósito dos bens (art.º 424.º do C. P. Civil) não pode ser substituída pela partilha ou entrega subsequente á decisão definitiva (art.ºs 421.º, n.º 2 e 427.º, do C. P. Civil).

[3] Não será, obviamente, para cobrar as respectivas custas.
[4] Cfr. neste sentido, o acórdão desta Relação de 22/03/2007, P. 1687/2007-2, in dgsi.pt (Relator Francisco Magueijo), com voto de vencido (adjunta Ana Boularot).