Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6642/17.8T8FNC.L1-8
Relator: TERESA PRAZERES PAIS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
ACTA DA REUNIÃO DA ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/29/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A acta da assembleia de condóminos para configurar um título executivo terá que documentar a deliberação onde nasce a obrigação de pagamento de contribuição por parte do condómino (fixa a quota-parte de comparticipação de cada condómino nas despesas comuns), estipule o prazo e o modo de pagamento.

Apesar da transmissão do direito de propriedade, os adquirente não sucederam na obrigação do anterior proprietário de pagar as contribuições relativas ao período em que foi condómino, pelo que nem a título de sucessor na obrigação os actuais proprietários poderiam ser executados para pagamento daquelas dívidas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:

O Condomínio do ….. intentou a presente ação executiva, sob a forma sumária, contra O…e S…, entregando para o efeito uma ata de assembleia de condóminos, onde foi deliberado, no essencial:

imputar as quotas extraordinárias referentes a obras que ainda se encontram em dívida, cujas fracções foram vendidas, aos actuais proprietários dessas fracções, pois essas quotas são para beneficiar o prédio e consequentemente as fracções em causa.

deverão ser aplicados juros de mora vincendos e vencidos até à data do pagamento integral das dívidas.

todas as despesas suportadas pelo condomínio para efetivação dos processos judiciais deverão ser também imputados aos condóminos responsáveis.

Nessa ata, as dívidas em causam foram descriminadas e foram imputados juros de mora desde a data do nascimento da respetiva obrigação, considerando-se que, no caso concreto, as dívidas respeitam a um período anterior ao início da propriedade da fracção por parte dos executados, quando a fracção em causa pertencia a V...S... e I...L....

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Factos apurados.

O que consta do relatório a especificar ,e ainda que:

A Assembleia Geral de Condónimos realizou-se a 2/10/2017

Do ponto 2 da acta consta “ Medidas a tomar em relação aos devedores de quotas do condomínio :

(…)Fração J — Ent.1-3°A: dívida total no valor de 6.072,74€ (seis mil setenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos) referentes ao restante da quota extra de reabilitação de Novembro de 2010, à totalidade das quotas extras de Dezembro de 2010 a Junho de 2011, ao restante das quotas de condomínio de Janeiro a Maio de 2011, ao restante das quotas de condomínio de Janeiro de 2012 a Dezembro de 2015 e a totalidade das quotas de condomínio de Janeiro a Junho de 2016 acumuladas no período do anterior proprietário, V....

Todas as dívidas das frações atrás descritas, bem como os valores unitários de cada quota, constam na listagem denominada por — Valores em débito das frações, que será apensa à presente Ata para dela ser parte integrante, ficando desde já a Administração mandatada para intentar qualquer ação judicial necessária com vista à cobrança das dívidas, considerando-se assim esta Ata Titulo Executivo para o efeito.”

Os executados adquiriram a fracção em 20-06-2016.

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Foi então, proferida esta decisão:

“Pelo exposto, quer por não constituir título executivo, quer por ilegitimidade passiva dos executados não sanável, decido inferir liminarmente a presente execução, nos termos das alíneas a) e b), do n.º2, do artigo 726º do Cód. de Proc. Civil.

Custas a cargo da exequente.”

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É esta decisão que o exequente impugna, formulando estas conclusões:

1. Quanto à primeira questão a apreciar, apesar da divergência doutrinal e jurisprudência na atribuição de força executiva à ata onde se delibere que algum  (uns) condómino (s) tem em divida determinados montantes, defende-se a interpretação que melhor se compatibiliza com a celeridade e a agilização do processo de cobrança das dívidas ao condomínio e que o legislador pretendeu ao introduzir o Decreto-Lei n.° 268/94, de 25 de outubro: a de atribuir força executiva tanto às atas da assembleia de condóminos que documentem deliberação onde sejam quantificados os valores  em dívida pelo condómino devedor.

2. Em relação à segunda questão, pese embora a havida controvérsia na doutrina e jurisprudência, a esmagadora maior concorda que a obrigação de pagamento de despesas extraordinárias de condomínio é uma obrigação propter rem ou real.

3. É a titularidade do direito real (propriedade da fração autónoma) que determina quem é o devedor da obrigação.

4. O proprietário da fração será assim o devedor da obrigação de pagamento das quotas de condomínio extraordinárias, circunstância esta que se traduz no seguinte: havendo transmissão da propriedade, através da celebração do contrato de compra e venda, é também transmitida para o comprador a obrigação de pagar as quotas de condomínio associadas à realização das obras.

5. Ora, até este momento não existem grandes divergências: o novo proprietário torna-se também responsável pelas quotas de condomínio que se vierem a vencer após a compra.

6. A grande questão prende-se com as quotas já vencidas.

7. E aqui importa chamar à colação a perspetiva que afirma serem as obrigações contidas no disposto pelo artigo 1424.º do C.C. reais, sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 15.05.2002) e alguns Tribunais da Relação (Acórdãos do T.R.P. de 29.04.2004 e 29.11.2006, e do T.R.L. de 02.02.2006), que considera o seguinte: com a venda da fração, existe uma transmissão automática da  responsabilidade do pagamento das quotas para o novo proprietário.

8. Ou seja, com a celebração do contrato passa o comprador a ser responsável pela liquidação das quotas de condomínio extraordinárias para pagamento das obras nas partes comuns do prédio, mesmo aquelas já vencidas e não pagas.

9. Acolhe-se esta perspetiva por resultar da correta interpretação das normas jurídicas e da salvaguarda do equilíbrio das posições de todos os interessados.

10. Mais, a lei confere os mecanismos necessários para o atual proprietário vir a exigir o reembolso do anterior proprietário, por via do direito de regresso; e ainda de exigir o ressarcimento dos prejuízos eventualmente sofridos com a situação.

11. Aliás, o atual proprietário, se mesmo interpelado para o efeito pela administração do condomínio não proceder ao pagamento voluntário das dívidas e deixar que este intente a competente ação judicial para cobrança dos aludidos créditos, poderá sempre levantar nos autos o incidente de intervenção principal provocada, chamando o anterior proprietário à demanda, com fundamento no direito de regresso que eventualmente terá por ter adquirido a fração sem ónus, encargos ou responsabilidades.

12. Há obrigações que implicam melhorias, alterações, reparações, que será o novo proprietário a tirar proveito delas (como é o caso), apesar de tais despesas terem sido deliberadas e aprovadas em assembleia de condóminos, pelo anterior proprietário e condómino.

13. Estas já transitaram para o novo titular do direito real, acompanhando a fração autónoma, e integrando o seu património, independentemente de este concordar ou não com elas, sendo responsável pelo seu pagamento.

14. A administração do condomínio não há-de conhecer, nem terá essa obrigação, em que termos são celebrados os negócios jurídicos entre alienantes e adquirentes das frações autónomas que integram o prédio, designadamente se os celebram sob condição de ficarem liquidadas as dívidas com o condomínio ou não; com redução proporcional do preço; se o alienante informou ou não o adquirente, etc.

15. À administração de condomínio cabe-lhe tão somente cobrar as dívidas existentes, intimando os condóminos a fazê-lo e, se estes não procedem voluntariamente ao pagamento, cobrá-las recorrendo à via judicial.

16. A sentença recorrida ao decidir indeferir liminarmente a execução por falta de título e pela ilegitimidade passiva dos executados, viola o artigo 6.° do Decreto-Lei n.° 268/94, de 25 de outubro, o artigo 1424.° do Código Civil e o artigo 726.°, n.° 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.

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Atendendo a que o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente ( artº663 nº2 ,608 nº2.635 nº4 e 639nº1 e 2 do  Código de Processo Civil),sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso  ,exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, o que aqui está em causa é saber se há lugar ao indeferimento liminar da execução , quer por não estarmos em presença de um título executivo e ainda pela circunstância dos executados não serem partes legítimas.

Vejamos
No que respeito à constituição do título executivo.
Seguimos de perto a orientação perfilhada nos acórdãos da R. Porto de 12-9-2012 e desta Instância de 17-05-2018[1] publicados in DGSI.
Nos termos do disposto no art. 10º, nº5, do CPC”Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.
O título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização coactiva da correspondente pretensão através de uma acção executiva; esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação (Cfr. arts. 817º e 818º do CC).

A existência de título executivo é, então, um pressuposto formal para o exercício do respectivo direito de acção (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. I, pg. 147), correspondendo o título à “causa de pedir” da acção declarativa.  [2]
As partes não podem atribuir força executiva a um documento ao qual a lei não concede eficácia de título executivo (“nullus titulus sine lege”) e também não podem retirar essa força a um documento que a lei qualifica como título executivo; tal significa que os títulos executivos são, sem possibilidade de quaisquer excepções criadas “ex voluntate”, aqueles que são indicados como tal pela lei e que, por isso, a sua enumeração legal está submetida a uma regra de tipicidade.
Nos termos do disposto no art. 6º, nº1, do DL nº 268/94, de 25.10, “ A acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte”.
Está, pois, em causa um documento a que, por disposição especial, é atribuída força executiva, nos termos previstos na al. d) do nº1 do elenco taxativo de títulos executivos constante do art. 703º do CPC.
Como se refere no Preâmbulo do citado DL, visou-se, por um lado, tornar mais eficaz o regime da propriedade horizontal, e, por outro, facilitar o decorrer das relações com terceiros (por interesses relativos ao condomínio).

No entanto, nem toda (s) a (s) acta (s) são consideradas título executivo.

É que, atento o teor do citado artº 6º, nº 1, a força executiva da acta não depende de nela se fazer necessariamente constar o montante determinado, concreto, certo, da dívida de cada condómino, mas deve conter critério que permita que esse valor se determine. A acta pode conter o valor global devido ao condomínio (seja por contribuições correntes, seja para realização de despesas de conservação ou fruição das partes comuns, ou para pagamento de serviços de interesse comum), mas deve permitir que a cada condómino, pela simples aplicação da permilagem da sua fracção ao valor global, saber qual o montante que lhe toca (se outro critério não for expressamente deliberado). Quem tem de aprovar a despesa e a imputação é a assembleia e não outrem, nomeadamente o administrador, para quem aquela não deve remeter o encargo dessa determinação. A acta só constitui título executivo, enquanto contém a deliberação da assembleia que fixa a obrigação exequenda.

Na verdade, sendo o título o instrumento documental da demonstração da obrigação exequenda, fundamento substantivo da execução, ou o correspondente à causa de pedir no processo declarativo ,a prestação exigida terá de ser a prestação substantiva acertada no título ou, por outras palavras, o objecto da execução deve corresponder ao objecto da obrigação definida no título,ou seja, a  acta da assembleia de condóminos terá que documentar a deliberação onde nasce a obrigação de pagamento de contribuição por parte do condómino (fixa a quota-parte de comparticipação de cada condómino nas despesas comuns), estipule o prazo e o modo de pagamento e não já a que declare, tão só, o montante da dívida:

“…Uma acta com este conteúdo comprova a constituição de uma obrigação, bem como a data do seu vencimento pelo que, decorrido o prazo de pagamento, documentará uma obrigação que é certa, e exigível e que poderá ser liquidada através do requerimento executivo, indicando-se as prestações não pagas/em falta e que estão em dívida, em consonância com o preceituado nos arts. 713 e 716/1 CPC.”Cf o referido acórdão desta Relação.

Posto isto, voltando ao teor da acta em causa constatamos que ela apenas referencia uma dívida vencida dos executados e nada mais do que isso. Não esta documentada a deliberação de onde nasce a obrigação de pagamento de contribuição por parte do condómino, fixando a quota-parte de comparticipação de cada condómino nas despesas comuns, estipulando  o prazo e o modo de pagamento

Assim, esta acta não configura o título executivo, pelo que improcedem as conclusões a este respeito

E mesmo que não fosse esta a orientação a tomar, sempre os executados seriam partes ilegítimas

Com efeito, a obrigação de pagamento de despesas relativas à fracção de prédio em propriedade horizontal qualifica-se como propter rem, em função da coisa, mas não é ambulatória.

Nos termos do artº 1424º, nº 1, do Código Civil, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamentos de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções – salvo disposições em contrário. A ressalva visa estipulações de natureza negocial, sejam as estabelecidas pelos interessados logo no título constitutivo, sejam as deliberadas sob qualquer outra forma adequada. Assim como as previstas em disposições legais. E contempla não só o critério proporcional de determinação do valor a pagar mas também da imputação subjectiva da obrigação de pagamento.

Assim, se é certo que ao modo de repartição supletivamente fixado se deve recorrer apenas na falta de outro de origem e natureza negocial, não o é menos que à desresponsabilização de certos condóminos não fecha a lei as portas, como decorre, desde logo, dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo (despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio ou dos ascensores que sirvam apenas alguns deles) e, bem assim, nos casos de usufruto e de uso e habitação (artºs 1472º e 1489º). 

Tal significa que, tratando-se embora de obrigação em função da coisa (propter rem), ela nem sempre se conserva no titular do direito real sobre ela ou acompanha a mudança dessa titularidade. Daí que esta não possa servir de critério absoluto de imputação.

Como se disse no Acórdão do STJ, de 10-07-2008 [3], “Estão neste caso, entre outras, precisamente as obrigações dos condóminos de um edifício em propriedade horizontal no que tange ao pagamento das despesas”, isto porque, valendo-se de citado ensinamento de Henrique Mesquita [na obra Obrigações Reais e Ónus Reais, Colecção Teses, Almedina, 1997, reimpressão, páginas 336 a 340], que as indica como exemplo, elas devem considerar-se como não ambulatórias, pois ”verifica-se que a dívida propter rem representa, em muitos casos, o correspectivo de um uso ou fruição que couberam ao alienante, devendo ser este, por conseguinte a suportar o custo do gozo que a coisa lhe proporcionou (cuius commoda, eius incommoda)”. A dívida propter rem mantém-se, assim, na esfera jurídica do seu causador e não se desloca em função da titularidade coisa.”

Concluimos, então, que apesar da transmissão do direito de propriedade, os adquirentes não sucederam na obrigação do anterior proprietário de pagar as contribuições relativas ao período em que foi condómino, pelo que nem a título de sucessor na obrigação o actual proprietário poderiam ser executados para pagamento daquelas dívidas.

Termos em que improcedem todas as conclusões

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Pelo exposto, acordam em negar provimento à apelação e confirmam a decisão impugnada.

Custas pelo exequente .

Lisboa, 29/11/2018


TERESA PRAZERES PAIS
ISOLETA COSTA
CARLA MENDES


[1]Cujo relatora é A Exmª Colega Carla Mendes que subscreve esta decisão.
[2]Cf Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. I, pg. 147
[3]In DGSI