Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2359/07.0TBCSC-C.L1-1
Relator: AFONSO HENRIQUE
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
REQUERIMENTOS
SANÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I– Sabemos que o instituto da litigância de má-fé, e no que ao elemento subjectivo diz respeito, foi alterado aquando da reforma do Código de Processo Civil de 1995, alargando-se o âmbito desse instituto às situações de litigância negligente ou culposa.

II– A situação em análise configura uma litigância dolosa a reflectir na condenação aplicada.

III– Quanto ao incidente, por classificado na categoria de outros incidentes e ser uma censura meramente processual, impõe-se a redução da taxa de justiça na respectiva proporção.

AHCF
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA (1ª SECÇÃO).


Relatório:


Nos processo acima identificado, de Inventário/Partilha de Bens em Casos Especiais, que constituem os autos principais, e em que é Cabeça-de-Casal, Luís..., e Requerida, Lara…, ambos naqueles autos devidamente identificados, foi proferido o seguinte DESPACHO:
“-…-
(…) condeno a requerida como litigante de má fé numa multa de 12 UC's, ao abrigo do disposto nos art°542° nºs 1 e 2 als. c) e d) do CPC.
Uma vez que a requerida é representada em juízo por ilustre mandatário que conhece o teor dos respectivos despachos judiciais bem como a advertência contida no último despacho judicial, determino se comunique à respectiva Ordem dos Advogados com cópia deste despacho e das peças que infra se indicará nos termos e para os efeitos contidos no art°545º CPC e para efeitos disciplinares: (…)
Custas do incidente a cargo da requerida fixadas em 5 UC's.
-…-”

Desta decisão veio a interessada, Lara B... recorrer, recurso esse que foi admitido como sendo de apelação, em separado, de imediato e com efeito suspensivo.

E fundamentou o respectivo recurso, alegando e concluindo do seguinte modo:
- Vem o presente recurso interposto do douto despacho supra identificado, na parte em que condenou a interessada como litigante de má-fé e no pagamento de multa no valor de 12 UCs, e bem assim no pagamento das custas do incidente, que fixou em 5 UCs.
- Salvo o devido respeito, o douto despacho recorrido enferma de manifesta violação da lei.
- Se bem se entende, foi a aqui recorrente condenada como litigante de má-fé, e, em consequência, no pagamento de multa no valor de 12 UCs, porquanto: (1) terá entendido a Mª Juíza a quo que a interessada reiterou, na reclamação contra o mapa de partilha, argumentos sobre que anteriormente haviam sido proferidas decisões transitadas em julgado; (2) havia sido advertida de que, se voltasse a trazer aos autos o mesmo argumento, o Tribunal consideraria que a mesma litiga da má-fé; e (3) fez uso manifestamente reprovável dos meios processuais, com vista a obter um objectivo ilegal (alteração de decisão judicial devidamente transitada em julgado) e entorpecer a acção da justiça, imputando também à interessada grave omissão do dever de cooperação, tudo a título doloso.

- Na conferência de interessados, a aqui recorrente licitou o prédio urbano (fracção autónoma) relacionado sob a verba nº 1 da relação de bens, para cuja aquisição os ex-cônjuges contraíram empréstimo bancário, o qual se mostra representado pelo passivo relacionado sob a verba nº 45 da mesma relação de bens.
- Tal empréstimo bancário vem sendo amortizado pela recorrente através de pagamentos mensais, de capital, juros, impostos e outros encargos.
- A recorrente entende que o seu crédito, emergente da circunstância de vir custeando por si só os encargos bancários relativos ao empréstimo - que constitui, inequivocamente, uma dívida comum dos membros do ex-casal - deve ser actualizado até à data de trânsito em julgado da sentença que venha a homologar a partilha.
- De igual forma - porquanto os pagamentos realizados pela recorrente importam diminuição do montante devido ao Banco credor - entende que deve ser actualizado o valor do passivo que onera o prédio.
- É isto, no essencial, que, nas consecutivas reclamações contra os mapas de partilha - da exclusiva responsabilidade do Tribunal - a aqui recorrente vem dizendo, e que constitui a questão subjacente à decisão constante do despacho recorrido.
- Esta, porém, não constitui a questão objecto do presente recurso, nem o poderia ser.
- E precisamente por esse motivo, salvo melhor opinião, a decisão recorrida carece de fundamento.
- Efectivamente, ao contrário do declarado no douto despacho recorrido, não há decisões transitadas em julgado.
- Os despachos referidos no douto despacho recorrido fizeram julgamento de sucessivas reclamações contra outros tantos mapas de partilha.
- E como decorria do teor do art.1396º do CPC, vigente à data da propositura da acção, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do processo de inventário deveriam ser impugnadas no recurso que viesse a ser interposto da sentença de partilha.
- Regime este - de irrecorribilidade das decisões proferidas quanto à reclamação contra o mapa de partilha - que as alterações subsequentes, relativas ao regime recursório, não alteraram.
- Vale isto por dizer que - e salvo melhor opinião - os doutos despachos referidos no despacho recorrido não se encontram, de facto, transitados em julgado, porquanto a questão neles tratada pode ser objecto de recurso a interpor a final.
- Não tendo cabimento, pois, a censura dirigida à recorrente, que, naturalmente, jamais visou obter um objectivo ilegal, como seja a "alteração de decisão judicial devidamente transitada em julgado" - que não existe, desde logo.
- De igual forma, não se vê como poderia a recorrente entorpecer a acção da justiça.
- Na verdade, a elaboração de sucessivos mapas de partilha decorre de uma de duas circunstâncias: ou mereceram deferimento as reclamações contra eles deduzidas, ou a Mª Juíza a quo lhes encontrou lapsos ou imprecisões, que justificaram a sua correcção.
- Em cumprimento da lei, foram os interessados chamados a contra eles deduzir reclamação, mediante específicas notificações para o efeito.
- A dedução de reclamações contra o mapa de partilha constitui faculdade processual que o Tribunal não pode portanto censurar, nem tal deve ser entendido como tentativa de entorpecer a acção da justiça.
- Tal reclamação é também pressuposto do direito ao recurso, na medida em que, se os interessados se conformam com a decisão que recai sobre o mapa de partilha, não poderão posteriormente repristinar a questão em sede de recurso da sentença.
- Sucedeu porém que o mapa de partilha foi alterado 4 vezes, por via de reclamações parcialmente deferidas, por conter erros de cálculo e más interpretações dos direitos em causa na partilha e de cada alteração resultou um novo mapa, por sua vez objecto de reclamação.
- Ora, tratando-se de um novo mapa de partilha, devem as partes reclamar das deficiências que lhe encontram, sob pena, evidentemente, de revelarem conformação tácita com o mesmo.
- Assim, a reclamação teria de ser efectivada sobre todas as questões em apreço no mapa de partilha que não mereciam a concordância dos interessados, mesmo em relação àquelas em que alguma decisão anterior já espelhara o entendimento do Tribunal (aliás, o entendimento do Tribunal poderia ser diferente do anteriormente versado, pois não havia trânsito em julgado, mas um novo mapa da partilha).
- Na verdade, não foi proferida decisão que permita ajuizar que as reclamações e os novos mapas só deveriam incidir na parte ainda não decidida anteriormente (princípio do aproveitamento dos actos processuais).
- Pelo contrário, o mapa de partilha surgiu sempre como coisa nova, embora repetida.
- Assim, a recorrente exerceu o seu direito de reclamação, tal como previsto na lei de processo.
- No entanto, cada reclamação não se reconduziu a mera repetição da anterior, mas antes a actualização de valores a levar em conta na partilha.
- Na verdade: Como supra se alegou, entende a recorrente que o seu crédito, emergente da circunstância de vir custeando por si só os encargos bancários relativos ao empréstimo deve ser actualizado até à data de trânsito em julgado da sentença que venha a homologar a partilha.
- Por esse motivo, entendeu, também, que o momento próprio para carrear para os autos os dados actualizados - quer os crescentes, do montante do seu crédito, quer os decrescentes, do montante do passivo que onera o prédio - seria o da reclamação contra o mapa de partilha, por se supor que a essa reclamação se seguiria, sem outra intervenção processual dos interessados, decisão sobre as reclamações e sentença homologatória.
- Não se vislumbra em que medida - nem o douto despacho recorrido o esclarece - a conduta da recorrente poderá configurar grave omissão do dever de cooperação.
- A recorrente agiu sempre com diligência e sentido de responsabilidade, visando o bom andamento do processo, sem erros e sem dilações.
- No que concerne à condenação em custas importa referir que a tributação autónoma dos incidentes só tem lugar relativamente aos chamados incidentes anómalos, os quais constituem "ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide" (veja-se, nesse sentido, o Acórdão do TCAS de 22/1/2015, e o Acórdão do TRL de 31/01/2017).
- Na situação a que se reporta o despacho recorrido, a reclamação contra o mapa de partilha não constituiu incidente anómalo, não podendo ser tributado autonomamente.
- Nem mesmo o seria, se se entendesse versar o despacho recorrido somente sobre a condenação por litigância de má-fé.
- A condenação da aqui recorrente como litigante de má-fé não tem qualquer justificação e viola o disposto no art.542 do NCPC, pelo que deve ser revogada.

CONCLUINDO E EM SÍNTESE:
1- A questão subjacente à condenação aqui impugnada prende-se com entendimento, que a recorrente professa, de que o seu crédito (emergente da circunstância de vir custeando por si só os encargos bancários relativos ao empréstimo) deve ser actualizado até à data de trânsito em julgado da sentença que venha a homologar a partilha, o mesmo acontecendo com o montante do passivo, que vai diminuindo com tais pagamentos;
2- Os despachos referidos no douto despacho recorrido fizeram julgamento de sucessivas reclamações contra outros tantos mapas de partilha;
3- Os doutos despachos referidos no despacho recorrido não se encontram transitados em julgado, podendo a questão neles tratada ser objecto de recurso a interpor a final;
4- A elaboração de sucessivos mapas de partilha não é imputável a acção ou omissão da recorrente, mas é da responsabilidade do Tribunal;
5- Em cumprimento da lei, foram os interessados chamados sucessivamente a contra eles deduzir reclamação, mediante específicas notificações para o efeito, sem ter sido feita a ressalva de que as reclamações não podiam incidir sobre questões anteriormente objecto de decisão;
6- Tratando-se de um novo mapa de partilha, devem as partes reclamar das deficiências que lhe encontram, sob pena, evidentemente, de revelarem conformação tácita com o mesmo;
7- Assim, a reclamação teria de ser efectivada sobre todas as questões em apreço no mapa de partilha que não mereciam a concordância dos interessados, mesmo em relação àquelas em que alguma decisão anterior já espelhara o entendimento do Tribunal;
8- O mapa de partilha surgiu sempre como coisa nova, embora repetida;
9- A dedução de reclamações contra o mapa de partilha constitui faculdade processual que o Tribunal não pode censurar, nem tal deve ser entendido como tentativa de entorpecer a acção da justiça.
10- Crê-se que o momento próprio para carrear para os autos os dados actualizados - quer os relativos ao crédito da recorrente, quer os do montante do passivo que onera o prédio - seria o da reclamação contra o mapa de partilha, por se supor que a essa reclamação se seguiria, sem outra intervenção processual dos interessados, decisão sobre as reclamações e sentença homologatória;
11- O despacho recorrido viola o disposto no art.542 do NCPC;
12- A tributação autónoma dos incidentes só tem lugar relativamente aos chamados incidentes anómalos, os quais constituem "ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide".
13- Na situação a que se reporta o despacho recorrido, a recorrente formulou reclamação contra o mapa de partilha, na sequência da notificação que especificamente lhe foi dirigida para o efeito;
14- A reclamação contra o mapa de partilha não constitui, pois, um incidente anómalo, não podendo ser tributado autonomamente.
15- Ainda que pudesse configurar incidente anómalo, sempre o despacho recorrido importaria violação do disposto na Tabela II anexo ao RCP, que fixa entre 1 e 3 UCs a tributação aplicável a tais incidentes.
Termos em que, e nos mais do doutíssimo suprimento, deve o despacho recorrido ser revogado, com o que se fará a almejada Justiça.
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APRECIANDO E DECIDINDO.

Thema decidendum
- Em função das conclusões do recurso, temos que:
A apelante pugna pela revogação da decisão que a condenou como litigante de má-fé e pelo respectivo incidente.
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Dispõe o artº542º nº 2 do CPC:
“-…-
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a)- Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b)- Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c)- Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d)- Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
-…-”

Sabemos que o instituto da litigância de má-fé, e no que ao elemento subjectivo diz respeito, foi alterado aquando da reforma do Código de Processo Civil de 1995.

Anteriormente, a litigância de má-fé pressupunha uma situação de dolo material ou instrumental, sendo que a referida reforma de 1995 alargou o âmbito desse instituto às situações de litigância negligente ou culposa.

Os intervenientes processuais devem fazer do processo um uso correcto, o que passa, por respeitar princípios tão basilares como são dos da cooperação e da celeridade processual, sem os quais o processo não atinge o seu escopo: Resolução do conflito entre as partes, fazendo-se justiça.

Como ensina o Professor Menezes Cordeiro: “No direito processual – 1995/96 – valem o dolo e a negligência grave: não a comum. A jurisprudência, ainda que sublinhando o alargamento que a relevância agora dada à negligência (grave) significa, restringe esse alargamento às prevaricações substanciais; nas processuais – art.456º/2, d) – apenas relevaria o dolo. A própria negligência grave é entendida como “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesto aos olhos de qualquer um”in,Litigância de Má-Fé,Abuso de Direito e Culpa In Agendo”.

Lembremos os fundamentos da decisão que cumpre sindicar:
“-…-
Indefere-se a reclamação em apreço por a mesma ser a repetição e o repisar de argumentos já afastados por despachos anteriores devidamente transitados em julgado - vide, despachos de fls. 653 e ss (acta de conferência de interessados com a ref.9183940), de fls. 773 e ss (ref.11198952), de fls. 927/928 (ref.104540087) e de fls. 961 e ss (ref.106353703) nomeadamente no que tange quer ao valor da compensação pelo imóvel próprio do cabeça-de-casal, quer no que tange às prestações bancárias que a requerida tem pago após a data da conferência de pais onde o dito imóvel lhe foi adjudicado. Aliás, a requerida foi devidamente advertida no despacho de fls. 961 e ss (ref.106353703) de que se voltasse, mais uma vez, a trazer aos autos o mesmo argumento, relativamente ao qual o Tribunal já tomou posição, que este Tribunal iria considerar que a mesma litiga de má fé. Assim, dada a advertência contida no despacho com a ref.106353703 e a insistência da requerida em trazer aos autos como sucessiva reclamação a sucessivos mapas da partilha e pela 4a vez (!) o mesmo argumento já decidido, fazendo assim um uso manifestamente reprovável dos meios processuais com vista a obter um objectivo ilegal (alteração de decisão judicial devidamente transitada em julgado) e entorpecer a acção da justiça, bem como por grave omissão do dever de cooperação, tudo a título doloso, condeno a requerida como litigante de má fé numa multa de 12 UC's, ao abrigo do disposto nos art°542° nºs 1 e 2 als. c) e d) do CPC.
(…)
Custas do incidente a cargo da requerida fixadas em 5 UC's.
-…-”

Segundo a recorrente, limitou-se a reclamar dos mapas da partilha sucessivamente alterados, e que a sua conduta processual em análise não pode ser qualificada de incidente anómalo.

Com todo o respeito pela argumentação da recorrente, a questão que está na base das suas várias reclamações é a mesma e como refere o Tribunal a quo, foi antes apreciada e não tendo havido recurso do decidido, transitou em julgado.

Há, por isso, um uso abusivo e reiterado do processo violador dos princípios supra enunciados, por parte da recorrente e que só pode ser classificado de intencional, como aconteceu.

Nos casos de litigância de má-fé, abstractamente, o quantum a ponderar é fixado entre 2 UC e 100 UC – artº27 do RCP.

In casu, não podemos olvidar que a situação configura um dolo intenso, decorrente de apesar da advertência que lhe foi feita, voltar a manifestar idêntica reclamação.

No que se reporta à qualificação como incidente, importa esclarecer que este não foi tratado como incidente anómalo mas, como tendo a categoria de outros incidentes a que corresponde uma taxa de justiça de 0,5 a 5 UC.

Estamos perante uma censura de ordem meramente processual e não de ordem substantiva como se verifica na litigância de má-fé.

Contudo e porque achamos, neste particular, o máximo previsto excessivo, doseamos a taxa de justiça, pelo incidente e na proporção, em 2 UC.

DECISÃO.
- Assim e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa (1ª Secção), em julgar, parcialmente procedente, o recurso e consequentemente, condenar a recorrente, como litigante de má-fé, em doze UCs e pelo incidente em 2 UCs.
- Custas pela apelante na proporção do respectivo vencimento.



Lisboa, 24-4-2018



Relator: Afonso Henrique Cabral Ferreira
1º Adjunto: Rui Manuel Torres Vouga 
2º Adjunto: Maria do Rosário Pita Pegado Gonçalves