Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15261/14.0T2SNT-D.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. Declarada a insolvência de sociedade e transitada em julgado a respetiva sentença, fica o administrador judicial autorizado a proceder à apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, com recurso, se necessário, ao auxílio da força pública.
II. Tendo o administrador de insolvência solicitado ao juiz do processo de insolvência que ordenasse a tomada de posse, ainda que com arrombamento e requisição de força pública, de fração autónoma integrante da massa insolvente, que se encontrava ocupada por quem se arrogava a titularidade, não reconhecida judicialmente, de direito de retenção sobre o dito imóvel, na qualidade de seu promitente-comprador, não carecia o juiz de auscultar previamente o dito ocupante antes de o notificar para, em prazo determinado, proceder à desocupação do aludido imóvel.
III. Face à intimação referida em II poderá ser reconhecida ao ocupante, que invoque a aludida qualidade de retentor, não verificada judicialmente, os meios de proteção atribuídos pelo legislador a certos ocupantes de imóveis, sujeitos a entrega forçada, que os utilizem para habitação (artigos 150.º n.º 5 do CIRE, 862.º do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1. Em 14.02.2016 o administrador da insolvência nomeado nos autos em que fora declarada insolvente Sociedade de Construções Lda, requereu ao juiz do processo que ordenasse a tomada de posse, ainda que com arrombamento e requisição de força pública, de uma fração autónoma, para habitação, que identificou, pertencente à insolvente, a qual estava ocupada por Raúl e mulher Ana.
O administrador da insolvência alegou que, tendo sido deliberado o prosseguimento dos autos para liquidação, encontrava-se a organizar as vendas para o que carecia de tomar efetiva posse dos bens apreendidos, entre os quais o supra referido, que constitui a verba n.º 4. Os ditos ocupantes são autores de uma ação de verificação ulterior de créditos, que constitui o apenso E, e nos termos da respetiva petição inicial não querem entregar a fração ao administrador da insolvência enquanto não receberem o peticionado valor de € 60 000,00. A ação não foi contestada pela massa insolvente, desconhecendo-se se algum credor, nomeadamente o credor garantido Banco Popular, deduziu, ou não, contestação. Porém, seja como for, está em causa sempre um mero direito de crédito, sendo certo que a fração está apreendida e a declaração de insolvência está registada no registo predial.
2. Em 13.3.2017 foi proferido o seguinte despacho:
Notifique, pessoalmente e na pessoa do seu mandatário, as pessoas indicadas no ponto 3 de fls. 117 para, no prazo de 10 dias, procederem à desocupação do imóvel por si ocupado, com a advertência de que, findo aquele prazo, poderá ser autorizada a requisição da força pública para o efeito.”
3. Em 14.3.2017 Raúl e Ana requereram a aclaração do despacho referido em 2, nos termos que se transcrevem:
“1.º O Despacho em causa foi proferido na sequência de requerimento apresentado pelo Administrador de Insolvência em 14 de Fevereiro último, a fls. 117, o qual não foi notificado ao ora subscritor, mandatário constituído dos ora requerentes no apenso E;
2.ºO que desde logo ofende o princípio do contraditório, em particular num tema tão sensível como o de entrega da casa de morada de família dos ora requerentes;
3.º Nulidade essa (ou pelo menos irregularidade) que desde já se vem arguir, nos termos e para os efeitos legais;
4.º Acresce que a massa insolvente não contestou a ação proposta pelos requerentes, a que corresponde o apenso E dos presentes autos;
5.º Conforme admitido pelo próprio Administrador de Insolvência no seu requerimento de fls. 117;
6.º Ora, em tal ação, os ora requerentes peticionaram que fosse tal ação declarada procedente por provada, e em consequência:
a) Ser reconhecido e graduado, a favor dos AA. o crédito correspondente do dobro pago a título de sinal e princípio de pagamento, no valor global de €60.000,00 (sessenta mil euros), a que acrescerão juros vincendos contados sobre as datas das respetivas entregas e até efetivo e integral pagamento;
b) Ser reconhecido o direito de retenção dos AA. sobre a fração autónoma objeto do contratopromessa de compra e venda celebrado com a celebrado com a insolvente “Sociedade de Construções, Lda”.
c) Ser apensada a presente ação aos presentes autos de insolvência n.º 15261/14.0T2SNT, nos termos do preceituado no artigo 148.º do CIRE, devendo a secretaria lavrar termo no processo principal da Insolvência com a identificação da presente acção e do seu teor, bem como a reprodução do pedido, o que equivale a termo de protesto.
d) Ser ordenada a citação dos credores da massa Insolvente e do Senhor Administrador de Insolvência para, querendo, contestarem.
7.º Ou seja, não corresponde à verdade o vertido pelo Senhor Administrador de Insolvência quando diz que tal ação, não contestada, se limita a fazer valer um direito de crédito;
8.º Pelo contrário, os ora requerentes, aí AA., peticionaram expressamente o reconhecimento do seu direito de retenção sobre a fração autónoma em causa, emergente da posse pacífica e titulada da mesma, onde têm a sua casa de morada de família desde Agosto de 2006;
9.º Da eventual procedência de tal ação resultará o reconhecimento do crédito dos AA. privilegiado porque garantido pelo direito de retenção sobre a fração autónoma em causa;
10.º Ou seja, a douta Sentença a proferir no apenso E constitui questão prejudicial quanto ao despacho a proferir relativamente ao requerimento de fls. 117 – justamente porque relevante para o conhecimento da pretensão do Senhor Administrador de Insolvência, por não se tratar (ao contrário do pretendido por este) de “apenas um direito de crédito, nada mais” (sic);
11.º Por analogia, note-se que qualquer ação de despejo ou procedimento executivo que envolva a casa de morada de família implica sempre o exercício do contraditório por parte do legítimo possuidor (como é o caso, em particular atenta a não contestação pela massa insolvente), e inclusivamente a possibilidade (no caso de despejo) de recurso independentemente do valor da causa.
12.º Em conformidade, e com o douto suprimento de V. Exa., requer-se a aclaração do douto Despacho com a referência 105457420, datado de 13 de Março de 2017, nomeadamente no sentido de se apurar como se compagina com o consagrado, doutrinaria e jurisprudencialmente, direito de retenção dos ora requerentes, e também com as normas de proteção da casa de morada de família,
13.º eventualmente determinando a abertura de conclusão no apenso E para prolação de Sentença, da qual dependerá a decisão a proferir quanto ao requerido pelo Senhor Administrador de Insolvência,
14.º naturalmente sem prejuízo (a manter-se o Despacho com a referência 105457420) do legítimo direito dos ora requerentes a deduzirem embargos preventivos de terceiro, e/ou a recorrer do mencionado Despacho.
4. Em 16.3.2017 foi proferido o seguinte despacho:
Por requerimento apresentado em 14.02.2016, o Administrador da Insolvência requereu autorização para requisitar o auxílio da força pública para tomada efectiva de posse de uma fracção autónoma em virtude da recusa dos seus ocupantes.
O despacho que foi proferido em resposta foi a fixação de um prazo de 10 dias para o ocupante proceder à desocupação.
Não se vislumbra em tal procedimento, que fixando um prazo visou efectivamente assegurar contraditório no processo, violação do princípio do contraditório que determine a nulidade ou anulabilidade de qualquer acto.
A questão de estar pendente acção de verificação ulterior de créditos na qual foi pedido o reconhecimento de crédito a favor do ocupante do imóvel garantido por direito de retenção em nada releva para a questão, nomeadamente não constituindo questão prejudicial que obste à entrega.
Com efeito, o direito de retenção, no processo de insolvência, confere ao seu titular o direito a ser pago com a prioridade inerente, mas não a recusar a entrega ao administrador judicial.
Conforme decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão proferido em 15.01.2013 (disponível em www.dgsi.pt, processo: 511/10.0TBSEI-E.C1), “(…) XXII - O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor, que encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.
XXIII - O direito de retenção, porque dispõe de sequela – de que a inerência, i.e. inseparabilidade do direito real e da coisa é a noção base – é um verdadeiro real.
XXIV - O direito de retenção prevalece mesmo sobre o direito de crédito garantido por hipoteca ainda que anteriormente constituída, rectius, registada (artº 759º, nº 2 do Código Civil).
XXV - Declarada a insolvência do dono da coisa, o retentor terá que a entregar ao administrador, dado que tratando-se de bem do insolvente, e, portanto, integrante da massa, aquele terá que a apreender, mas sem que aquele direito real se extinga (artºs 46º, nº 1, 149º e 150º do CIRE).”
Por outro lado, tendo sido fixado o prazo de 10 dias para procederem à desocupação, será esse o momento próprio para os ocupantes, querendo, e tendo fundamento para tal, requererem o que tiverem por conveniente no âmbito das disposições do art.º 150.º, n.º 5, do CIRE.
Conclui-se assim pela inexistência de nulidade, causa prejudicial ou qualquer outro fundamento de invalidade ou ambiguidade do despacho proferido em 13.03.2017.
Custas incidentais pelos Requerentes, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (art.º 7.º, 4, do RCP).
Notifique.”
Raúl e Ana apelaram dos despachos referidos em 2 e 4, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:
a) O Despacho que determinou a desocupação do locado no prazo de 10 dias foi proferido na sequência de requerimento apresentado pelo Administrador de Insolvência em 14 de Fevereiro último, a fls. 117, o qual não foi notificado ao ora subscritor, mandatário constituído dos ora requerentes no apenso E.
b) Em sede de pedido de aclaração, os recorrentes arguiram que tais factos integrariam nulidade, ou pelo menos irregularidade, por ofenderem o princípio do contraditório, em particular num tema tão sensível como o de entrega da casa de morada de família dos ora requerentes.
c) O Despacho proferido em sede de aclaração veio referir, a este propósito, que o despacho que foi proferido em resposta requerimento apresentado pelo Administrador de Insolvência em 14 de Fevereiro último foi a fixação de um prazo de 10 dias para o ocupante proceder à desocupação, e que “não se vislumbra em tal procedimento, que fixando um prazo visou efectivamente assegurar contraditório no processo, violação do princípio do contraditório que determine a nulidade ou anulabilidade de qualquer acto”.
d) Ora, se a prolação do Despacho é anterior a qualquer notificação dos requeridos, é evidente que não foi assegurado o contraditório, pelo que se mantém o expendido nesta matéria.
e) Por outro lado, os requerentes intentaram acção de verificação ulterior de créditos (que deu origem ao apenso E), na qual alegaram que em 26 de Maio de 2006, os recorrentes e a insolvente celebraram um escrito particular (cfr. Doc. 1 com a mencionada petição), epigrafado "contrato promessa de compra e venda e recibo sinal", nos termos do qual os recorrentes prometeram comprar e a insolvente prometeu vender, desocupada e livre de ónus e encargos, a fração autónoma designada pela letra “L” correspondente ao T3 -R/C Esquerdo, do Bloco 2 do prédio urbano a constituir em regime de propriedade horizontal, sito na Rua, lote EA-10, Quinta II, freguesia de, concelho de Sintra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº, e inscrita na matriz predial urbana sob o nº da freguesia de, e alegaram ainda que em Agosto de 2006, os recorrentes passaram a habitar na fracção, aí colocando os seus pertences pessoais e aí dormindo, fazendo as suas refeições, recebendo familiares e amigos e todos os demais atos domésticos - tendo assim a posse da fracção, de forma ininterrupta e pacífica, até à presente data.
f) Tal acção não foi contestada pela massa insolvente, tendo sido nela peticionado que fosse reconhecido e graduado, a favor dos recorrentes o crédito correspondente do dobro pago a título de sinal e princípio de pagamento, no valor global de €60.000,00 (sessenta mil euros), a que acrescerão juros vincendos contados sobre as datas das respetivas entregas e até efetivo e integral pagamento, e que fosse reconhecido o direito de retenção dos recorrentes sobre a fração autónoma objeto do contrato-promessa de compra e venda celebrado com a celebrado com a insolvente “Sociedade de Construções, Lda”.
g) Quanto a esta questão, entende o Despacho proferido em sede de aclaração que a pendência de acção de verificação ulterior de créditos na qual foi pedido o reconhecimento de crédito a favor do ocupante do imóvel garantido por direito de retenção em nada releva para a questão, nomeadamente não constituindo questão prejudicial que obste à entrega.
h) Isto porque, ainda no entender do Despacho em crise, o direito de retenção, no processo de insolvência, confere ao seu titular o direito a ser pago com a prioridade inerente, mas não a recusar a entrega ao administrador judicial.
i) Tal entendimento viola o disposto nos artigos 442º, nº 2, e 755º, nº 1, alínea f), ambos do Código Civil, e 839.º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi o artigo 150.º, n.º 1, do CIRE), o qual prevê que quando o bem penhorado (neste caso, apreendido) seja a casa de habitação efectiva do executado (aqui recorrentes), deverá ser este o depositário, o mesmo sucedendo no caso de o bem ser objecto de direito de retenção, em consequência de incumprimento contratual judicialmente verificado, caso em que é depositário o retentor (também aqui os recorrentes).
j) Os despachos recorridos deveriam ter interpretado e aplicado corretamente tal preceito, diferindo a desocupação da fracção em causa para momento posterior ao da respetiva venda em processo de insolvência, sem prejuízo de eventual fixação de regime de visitas ao imóvel por eventuais interessados em tal transacção.
k) Assim se assegurando a efetiva defesa dos interesses dos recorrentes e da massa insolvente, em observância dos preceitos legais acima referidos no artigo 647.º, n.º 3, alínea b), do CPC.
Os apelantes terminaram pedindo que os despachos recorridos fossem revogados, “sendo proferido douto Acórdão que, diferindo a desocupação da fracção em causa para momento posterior ao da respetiva venda em processo de insolvência, sem prejuízo de eventual fixação de regime de visitas ao imóvel por eventuais interessados em tal transacção, faça a habitual Justiça.
Não houve contra-alegações.
O recurso foi admitido, com subida imediata e em separado e com efeito meramente devolutivo.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam neste recurso são a nulidade do despacho proferido em 13.3.2017 e se deve ou não ser reconhecida aos recorrentes a qualidade de depositários do imóvel apreendido, diferindo-se a desocupação do imóvel para momento posterior ao da respetiva venda no processo de insolvência.
Primeira questão (nulidade do despacho proferido em 13.3.2017)
O factualismo a levar em consideração, na apreciação do recurso, é o que consta nos n.ºs 1 a 4 do Relatório supra, e ainda:
5. A insolvência da devedora supra referida foi declarada por sentença proferida em 01.12.2014, que foi publicitada em 22.01.2015 e transitou em julgado em 11.02.2015.
6. A insolvência foi inscrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, pela apresentação 501 de 2015/03/06, respeitante ao prédio urbano descrito sob o n.º, da freguesia de Sintra, Bloco II.
7. Em 18.11.2015 os ora recorrentes intentaram, por apenso ao processo de insolvência, contra a devedora, a massa insolvente e os credores da massa insolvente, ação de verificação ulterior de créditos, cuja petição inicial aqui se transcreve:
I. Dos Factos
1º Em 26 de Maio de 2006, os AA. e a 1.ª R. celebraram um escrito particular (cfr. Doc. 1, que se junta), epigrafado "contrato promessa de compra e venda e recibo sinal", nos termos do qual os AA. prometeram comprar e à 1.ª R. prometeu vender, desocupado e livre de ónus e encargos, a fração autónoma designada pela letra “L” correspondente ao T3 -R/C Esquerdo, do Bloco 2 do prédio urbano a constituir em regime de propriedade horizontal, sito na Rua, lote EA-10, Quinta, freguesia, concelho de Sintra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº, (cfr. Doc 2 que se junta), e inscrita na matriz predial urbana sob o nº da freguesia de (cfr. Doc 3 que se junta).
2.º Na data de outorga do contrato, e servindo o mesmo de quitação, os AA entregaram à 1.ª R., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €10.000,00 (dez mil euros).
3º Em 30 de Junho de 2006, os AA entregaram à 1.ª R., a título de reforço de sinal, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros) - cfr. Doc. 4, que se dá aqui por reproduzido.
4º Assim, o montante entregue pelos AA. à 1.ª R. ascende a €30.000,00 (trinta mil euros) e tem natureza de sinal.
5º A parte restante do preço para liquidação da fracção, ou seja, €260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros) seria liquidada no acto da outorga de escritura de compra e venda.
6.º Em Agosto de 2006, os AA. passaram a habitar na fracção, aí colocando os seus pertences pessoais e aí dormindo, fazendo as suas refeições, recebendo familiares e amigos e todos os demais atos domésticos - tendo assim a posse da fracção, de forma ininterrupta e pacífica, até à presente data.
7.º Passaram a pagar os encargos de condomínio (juntando-se a título de exemplo os recibos relativos aos meses de Dezembro de 2006, Julho de 2007 e Novembro de 2007, que se juntam como docs. 5 a 7, e declaração datada de Novembro de 2007 que se junta como doc. 8), o que fazem ininterruptamente até à presente data.
8.º Passaram a comparecer às assembleias gerais de condóminos (juntando-se a título de exemplo as actas relativas às assembleias de 27 de Junho de 2007, 15 de Maio de 2008 e 3 de Dezembro de 2008, que se juntam como docs. 9 a 11), o que fazem ininterruptamente até à presente data.
9.º Celebraram contratos de fornecimento de, entre outros, água e televisão por cabo, juntando-se a título de exemplo facturas como docs. 12 e 13.
10.º E passaram a receber na fracção em causa toda a sua correspondência, de que são exemplo as cartas de seguradoras que se juntam como docs. 14 a 16.
11.º De salientar ainda que os AA. foram identificados como ocupantes da fracção aquando da vistoria realizada no âmbito da obra de construção da auto-estrada A16, contígua ao condomínio em causa - cfr. doc. 17.
12.º Porém, a 1.ª R. nunca procedeu à marcação da escritura no prazo acordado, conforme estava obrigada nos termos do escrito particular referido no artigo primeiro da presente petição inicial,
13.º nem compareceu às marcações feitas pelos AA., apesar de os legais representantes da 1.ª R. terem subscrito a requisição de registo provisório de compra e venda (cfr. certidão que se junta como doc. 18) a favor dos AA., e de estes terem subscrito a requisição de registo provisórios de hipoteca (cfr. a mesma certidão, e o doc. 19 que igualmente se junta).
19.º Cfr. ainda a carta enviada pelo Banco Santander Totta ao A. marido em 13 de Fevereiro de 2007, dando conta da marcação da escritura para o dia 4 de Abril do mesmo ano, que se junta como doc. 20, e a declaração emitida pelo mesmo Banco em 16 de Novembro de 2007, dando conta que tal marcação já fora realizada para os dias 27 de Fevereiro de 2007 e 13 de Março de 2007, que se junta como doc. 21.
20.º Nas três ocasiões referidas no artigo anterior, a(s) escritura(s) não se realizou(aram) por não comparência da 1.ª R.
21.º A 1.ª R. veio a ser declarada insolvente por Sentença proferida nos presente autos em 01 de Dezembro de 2014, há que determinar os respectivos efeitos.
II. Do Direito
22.º Os AA reclamam (e adicionalmente invocam a traditio da fracção como fundamento de direito de retenção, ao abrigo do disposto no art. 755º, nº1, alínea f), do Código Civil), o seu crédito derivado do incumprimento do contrato-promessa, por parte da reclamada (insolvente), não carecendo de se munir de uma prévia sentença de condenação a reconhecer o seu crédito, e podendo e devendo o reconhecimento do seu crédito e da respectiva garantia operar no próprio processo de reclamação de créditos previsto nos arts. 128º e segs. do CIRE.
23.º Note-se que, in casu, o incumprimento definitivo do contrato-promessa decorre da própria declaração de insolvência da 1.ª R. suficiente para que a parte contrária invoque o direito de retenção emergente do artº 442º, nº 2, do Código Civil.
24.º Os contratos-promessa, quer com eficácia real, quer com eficácia obrigacional, como é o caso sub judice, em que houve tradição da coisa, conferem ao promitente comprador o direito de retenção sobre essa coisa pelo crédito resultante do não cumprimento imputável ao promitente vendedor.
25º Com efeito, o Ac. de Uniformização de Jurisprudência proferido em 22-5-2013 firmou jurisprudência no sentido de que: «No âmbito da graduação de créditos em insolvência o promitente comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, nº 1 alínea f) do Código Civil».- Cfr. Ac. do TR Lisboa, 10-10-2013, proc. nº 362/11.4TBCDC-F.L1-2, Maria José Mouro, disponível em www.dgsi.pt, onde é referido o AUJ proferido em 22-5-2013 que firmou jurisprudência.
26.º Ora, tendo o mesmo acordão concluído por uma interpretação restritiva do n.º 2 do art.º 106.º do CIRE de modo a este se aplicar, apenas, ao contrato-promessa não sinalizado, valendo quanto às promessas sinalizadas o regime geral previsto no art.º 442, nº 2, do Código Civil. considerou-se a existência de uma imputabilidade reflexa na origem do processo falimentar.. Ac. do TR Lisboa, 10-10-2013, proc. nº 362/11.4TBCDC-F.L1-2, Maria José Mouro, disponível em www.dgsi.pt.
27.º Assim, L. Miguel Pestana de Vasconcelos considera que «quando tiver sido constituído sinal, a contraparte do insolvente terá direito, como crédito (comum ou garantido) sobre a insolvência, ao sinal em dobro ou a uma indemnização pelo aumento do valor da coisa, tal como prevista no art. 442º, nº 2» e que o nº 2 do art. 106 do CIRE só se aplica ao contrato-promessa não sinalizado. - Cfr: Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência», publicado em «Cadernos de Direito Privado», pp. 13 ss.
28.º Quanto ao direito de retenção, ele existe para garantia do crédito resultante do não cumprimento imputável à parte que prometeu transmitir ou constituir um direito real, estando em causa o crédito - dobro do sinal, valor da coisa, indemnização convencionada - derivado do incumprimento definitivo de que o direito de retenção é garantia acessória.
29.º Pelo exposto, e considerando que os AA. entregaram à 1.ª R. no âmbito do contratopromessa em causa, a título de sinal, a quantia global de €30.000,00 (trinta mil euros), têm os mesmos o direito de exigir o dobro do valor da prestação que efectuaram, o que totaliza a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros).
30. O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores, Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, vol. II., Almedina, Coimbra, 1992, pág. 571.
31.º O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores,
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente acção ser declarada procedente por provada, e em consequência:
a) Ser reconhecido e graduado, a favor dos AA. o crédito correspondente do dobro pago a título de sinal e princípio de pagamento, no valor global de €60.000,00 (sessenta mil euros), a que acrescerão juros vincendos contados sobre as datas das respetivas entregas e até efetivo e integral pagamento;
b) Ser reconhecido o direito de retenção dos AA. sobre a fração autónoma objeto do contrato-promessa de compra e venda celebrado com a celebrado com a insolvente “Sociedade de Construções, Lda”.
c) Ser apensada a presente ação aos presentes autos de insolvência n.º 15261/14.0T2SNT, nos termos do preceituado no artigo 148.º do CIRE, devendo a secretaria lavrar termo no processo principal da Insolvência com a identificação da presente acção e do seu teor, bem como a reprodução do pedido, o que equivale a termo de protesto.
d) Ser ordenada a citação dos credores da massa Insolvente e do Senhor Administrador de Insolvência para, querendo, contestarem.
Testemunhas:
Paula Costa, a apresentar;
Duarte Pereira, a apresentar;
Pedro Moita, a apresentar
VALOR: € 60.000,00 (sessenta mil euros).
JUNTA: Vinte e um documentos, DUC e respectivo comprovativo de pagamento e procuração forense.
8. Em 24.11.2015 foi aberta conclusão no processo de verificação ulterior de créditos supra referido, com o seguinte teor:
CONCLUSÃO - 24-11-2015, com informação que me suscitam dúvidas quanto á oportunidade da apresentação da presente verificação ulterior de créditos, pelo que V. Exª. Ordenará o que tiver por conveniente.”
9. Na sequência da conclusão referida em 8, foi proferido, em 25.11.2015, o seguinte despacho:
Vi a cota supra. Nada a ordenar, sendo certo que o prazo da alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é um prazo de caducidade, não suscetível de ser conhecido oficiosamente.
*
Cite - n.º 1 do artigo 146.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
10. Em 16.01.2017, no processo de verificação ulterior de créditos supra referido, foi proferido o seguinte despacho:
1. Citação da insolvente
Dada a informação obtida pelo A.E., no sentido do representante legal da insolvente se encontrar ausente no Senegal, nos termos do art.º 12.º, n.ºs 1 e 3, do CIRE, dispensa-se a audição da devedora.
2. Taxa de justiça devida pela contestação da Massa Insolvente
Atento o disposto no art.º 18.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004 de 29.07, o apoio judiciário concedido à Massa Insolvente no apenso C (fls. 153), na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, é extensivo ao presente apenso.
3. Patrocínio da Massa Insolvente
A presente acção, dado o valor oferecido pelos autores, está sujeita a patrocínio obrigatório por advogado (cfr. art.º 40.º, n.º 1, al. a), do CPC).
A Massa Insolvente apresentou contestação subscrita pelo Sr. Administrador da Insolvência.
Nos termos e com as cominações previstas no art.º 41.º, do CPC, sob pena de ficar sem efeito a defesa, convido a Massa Insolvente a, no prazo de 10 (dez) dias, constituir advogado que ratifique a contestação apresentada.
+
Notifique.”
11. Em 16.5.2017, no processo de insolvência, foi proferido o seguinte despacho:
Diferimento da desocupação
Dada a não oposição dos credores, tendo ainda em consideração a posição assumida pelo A.I., como requerido, nos termos do art.º 150.º, n.º 5, do CIRE, admite-se o diferimento da desocupação do imóvel a que respeita a verba 4 do auto de apreensão de imóveis, elaborado em 26.02.2015, até ao dia 31 de Julho de 2017.
Notifique.
12. Em 25.5.2017 realizou-se, no processo de verificação ulterior de créditos acima referido, tentativa de conciliação, cuja ata aqui se transcreve:
ATA DE TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
INSOLVENTE: Soc. Construção, Lda
AUTORES: Raul e Ana
DATA: 25 de Maio de 2017
INÍCIO: 14:18 Horas
FIM: 14:36 Horas
MAGISTRADO/A JUDICIAL:
ESCRIVÃ/O AUXILIAR:
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PRESENTES:
- O Administrador de Insolvência,.
- O Ilustre mandatário da massa insolvente,.
- O Ilustre mandatário dos autores,.
-Os autores Raul e Ana
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Iniciada a diligência, pelo Sr. AI, foi dito estarem em negociações com vista a elaborar uma proposta de acordo que seja suscetível de ser submetida à apreciação dos credores carecendo para tal de um prazo não inferior a 30 dias.
Dada a palavra ao ilustre mandatário dos autores, pelo mesmo foi dito, subscrever o exposto pelo AI, declarando o total interesse nesta solução.
Mais informou, que está em curso o prazo para entrega das peças processuais no apenso de recurso (apenso D), requerendo a suspensão desse prazo nos mesmos termos, considerando que a eventual concretização do acordo poderá vir a tomar inútil esse recurso.
De seguida o Mmo. Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO
Dados os motivos invocados que se afiguram atendíveis, suspendo a presente instância, nos termos do n.°4, do art.° 272° do CPC, pelo prazo de 30 dias.
Como requerido suspendo também o prazo em curso no apenso D, pelo mesmo período de tempo.
Extraia cópia do presente despacho e junte ao apenso D..Desde já se fixa o prazo de 10 dias para o exercício do contraditório relativamente à questão da tempestividade da ação contados do termo da suspensão agora decretada.
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Do despacho proferido nesta audiência foram notificados todos os presentes.
Nada mais havendo a propor ou decidir pela assembleia, foi declarada encerrada a diligência.
Para constar foi lavrada esta ata a qual, depois de lida e achada conforme, vai ser assinada.

O Juiz de Direito
A Escrivão Auxiliar”.
O Direito
Constitui princípio basilar do direito processual o de que o conflito de interesses que a ação pressuponha não será resolvido sem que à parte demandada seja dada a possibilidade de deduzir oposição, assim como não pode, salvo exceção prevista na lei, tomar-se providências contra determinada pessoa, sem que esta seja previamente ouvida (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
A prática ou omissão de atos processuais com violação de tal princípio acarreta nulidade processual, na medida em que, como em regra sucederá, influa no exame ou decisão da causa, e podendo a respetiva apreciação judicial, nesse caso, ser alvo de impugnação (artigos 195.º n.º 1 parte final e 630.º n.º 2 do CPC).
In casu, tendo o administrador de insolvência requerido que o tribunal ordenasse a tomada de posse, ainda que com arrombamento e requisição de força pública, de uma fração autónoma, para habitação, que havia sido apreendida no âmbito da insolvência, aquele órgão de soberania ordenou que os requeridos fossem notificados para procederem à respetiva entrega, no prazo de 10 dias, sem previamente os ouvir sobre o requerido.
Ora, caberá levar aqui em consideração que a diligência solicitada pelo administrador de insolvência se enquadrava na execução de resolução judicial anterior, que era a de declaração de insolvência da devedora e sequente liquidação do seu património, com a consequente atribuição ao administrador de insolvência do poder de apreender os bens que integravam tal património, entre os quais figurava o dito imóvel (artigos 36.º n.º 1 alínea g), 149.º, 150.º do CIRE).
Assim, tendo sido proferida decisão que obrigava à aludida entrega, e para cuja execução o próprio administrador da insolvência, se encontrasse oposição ou resistência, poderia requisitar o auxílio da força pública (alínea c) do n.º 4 do art.º 150.º do CPC), não cabia ao tribunal auscultar primeiramente os ocupantes do bem apreendido ou a apreender. Sendo certo que, tendo os requeridos sido previamente notificados para desocuparem o imóvel, no prazo de 10 dias, concomitantemente lhes foi facultada a possibilidade de, nesse prazo, aduzirem o que considerassem pertinente em face da ordem recebida.
Possibilidade que os requeridos aproveitaram, como patenteado nos autos.
É certo que à data do primeiro despacho impugnado os ora recorrentes haviam deduzido ação de verificação ulterior de créditos. Porém, a pendência de tal ação não obstava ao prosseguimento da liquidação (cfr. art.º 158.º n.º 1 do CIRE). Note-se que os recorrentes não intentaram ação de restituição ou separação de bem apreendido para a massa insolvente, situação essa que poderia suspender a liquidação do bem afetado, conforme estipulado no art.º 160.º do CIRE. O direito de retenção sobre imóvel, invocado pelos recorrentes, não obstava à venda judicial do imóvel em questão, concedendo tão só ao seu titular (do direito de retenção), a faculdade de ser pago, sobre o produto da venda desse bem, com a prioridade inerente à respetiva garantia (artigos 754.º, 755.º n.º 1 alínea f), 759.º, 824.º n.ºs 2 e 3 do Código Civil; art.º 174.º do CIRE; vide, v.g., acórdão da Relação de Lisboa relatado pelo ora relator, de 17.3.2016, processo 1690/10.1TBSCR-D.L1-2; na doutrina, também, v.g., Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2017, 2.ª edição, Almedina, pág. 194). É certo que, nos termos da remissão do n.º 2 do art.º 150.º do CIRE para o CPC, ou seja, para o que corresponde, no atual CPC, ao art.º 756.º, se o bem apreendido for objeto de direito de retenção, em consequência de incumprimento contratual judicialmente verificado, o retentor será o seu depositário (alínea c) do n.º 1 do art.º 756.º do CPC). Porém, in casu, os ora recorrentes não beneficiavam da aludida qualidade de retentores judicialmente reconhecidos, resultando até do constante nos números 10 e 12 da matéria de facto supra, que o seu direito foi alvo de oposição.
Reitera-se, assim, que face aos elementos constantes dos autos não se mostra que tenha ocorrido a apontada nulidade.
Segunda questão (direito de retenção e qualidade de depositários)
Emerge do já supra exposto que se entende que os recorrentes não tinham, à data dos despachos recorridos, a qualidade de titulares reconhecidos de direito de retenção sobre o imóvel que ocupavam, pelo que não podiam, contrariamente ao que ora invocam na apelação, brandir essa qualidade para o efeito de serem designados depositários do imóvel. De todo o modo, conforme decorre do n.º 11 da matéria de facto supra, o tribunal a quo concedeu-lhes os meios de proteção atribuídos pelo legislador a certos ocupantes de imóveis, sujeitos a entrega forçada, que os utilizem para habitação (artigos 150.º n.º 5 do CIRE, 862.º do CPC).
Pelo que nada há a alterar aos despachos recorridos.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se as decisões recorridas.
As custas da apelação são a cargo dos apelantes, que nela decaíram.
Lisboa, 20.7.2017


Jorge Leal


João Miguel Vaz Gomes


João Ramos de Sousa