Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
511/10.0JDLSB.L2-9
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
FALTA DO ARGUIDO À AUDIÊNCIA
CONSEQUÊNCIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Foi decidido, perante a falta do arguido, que que a presença do arguido não era indispensável.
II - O arguido invocou como causa da sua ausência a circunstância de estar doente. Ora, quando o motivo da falta do arguido seja doença (v. art.º 117.º, n.ºs 2 a 4 do mesmo CPP), a audiência não é adiada, sendo inquiridas as testemunhas nos exatos termos referidos na norma transcrita.
III - O arguido será ouvido antes do encerramento da audiência, na primeira ou na segunda data, como se verifica do 3 do transcrito art.º 333.º, prevendo a lei expressamente que o arguido não seja ouvido quando haja faltado por doença, como se verifica do n.º 5, que expressamente se refere às situações reguladas nos n.ºs 2 e 3, mas que impõe a notificação pessoal da sentença e as informações que devem constar desta notificação (V., entre outro, Ac. TRE de 8-01-2008, CJ, 2008, T1, pág. 259; Ac. STJ de 31-01-2008, Proc. 07P3272, disponível in www.dgsi.pt).
IV - Ao prestar TIR o arguido compromete-se a apresentar-se em juízo sempre que para tanto seja notificado. O estar presente em audiência não constitui apenas um direito do arguido, renunciável, como igualmente se extrai da norma acima citada, art.º 333.º, desta feita o n.º 4, do CPP, mas também um dever, como expressamente consagra nos art.ºs 61.º, n.º 6, al. a), e 196.º, n.º 3, al. a), sendo que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º, cf. art.º 196.º, n.º 3, al. d). De outro modo, o sistema de justiça ficaria refém da vontade do arguido.
V – O arguido tem obrigação de saber que a partir da prestação do TIR pode ser e é considerado devida e legitimamente representado pelo seu defensor em audiência, caso falte.
VI -  O julgamento na ausência, nas condições e observadas as exigências previstas no art.º 333.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPP, estando o arguido representado por defensor oficioso, garantindo-se, além disso, o direito ao recurso com a exigência de notificação pessoal do arguido, não viola o essencial dos direitos de defesa, de presença e de audição, como se ponderou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 206/2006, de 22/3, Proc. n.º 676/2005 e no Acórdão n.º 465/2004, de 23/6, Proc. n.º 249/2004.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão proferida na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório:
Após julgamento em processo comum com intervenção de Tribunal singular, foi o arguido A, julgado na ausência, condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1 a) e de um crime de burla qualificada p. e p. pelo artigo 217º e 218º, nº 1 do Código Penal, em cúmulo jurídico, na pena única de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. O arguido foi notificado pessoalmente da sentença proferida em 02 de julho de 2014, através agente de autoridade, no dia 10 de setembro de 2020.
Por requerimento apresentado em juízo no dia 24 de setembro de 2020 o arguido invocou a invalidade da notificação pessoal da sentença, junto do tribunal de primeira instância, invocando para tanto que não sabia ler nem escrever, apenas sabendo escrever o nome, o que deu a conhecer ao agente de autoridade que o notificou da sentença, o qual lhe disse que tinha sido condenado em pena suspensa e para contactar o seu advogado e que o defensor que havia constituído para o defender o não podia fazer por haver suspendido a sua inscrição na Ordem dos Advogados.
Contactado e constituído novo defensor apresentou então o arguido o referido requerimento solicitando que o prazo para recorrer apenas se iniciasse em 18 de setembro, dia em que contactou o atual defensor, uma vez que não se encontrava em condições de exercer o seu direito ao recurso.
Invocada ainda a invalidade de não se mostrar disponível no sistema CITIUS ao advogado signatário a integralidade dos autos do processo.
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O MP teve vista dos autos tendo-se pronunciado favoravelmente ao peticionado pelo arguido relativamente ao início do prazo de recurso.
Em 1 de outubro de 2020 foi proferida a seguinte decisão incidente sobre o requerimento do arguido O arguido teve Mandatário constituído e foi notificado pessoalmente da sentença no dia 10.09.2020 e inexistindo qualquer irregularidade, inexistência ou nulidade, indefere-se o requerido.
Mais se informe o mandatário do arguido que pode proceder à consulta dos autos nesta Secção ou solicitar a Confiança do processo”.
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso deste despacho e da decisão final, pugnando pela revogação do deste último despacho e concessão de novo prazo, integral, para recorrer.
Foi rejeitado o seu pedido de audiência.
Desta decisão o arguido reclamou para a conferência, a qual foi julgada não provida, tendo transitado em julgado.
Por acórdão desta Relação de 30.06.2021, transitado em julgado, foi julgada procedente a nulidade invocada.
Remetidos os autos à primeira instância foi deferida a concessão do prazo que o arguido tinha requerido e após recebido o recurso tendo-se entendido que mantinha interesse no seu prosseguimento.
As conclusões do recurso interposto pelo arguido contra a sentença são as seguintes:
Quanto à Sentença Final, que o condenou como autor de crime de burla e de crime de falsificação de documentos:
A. Verificou-se e verifica-se a nulidade insanável do processo e concretamente do julgamento e da Sentença, nos termos da alínea c) do artigo 119º, antes invocada, uma vez que o Arguido ora Recorrente foi julgado sem estar presente fora dos casos e das condições previstas na lei, pois tendo sido requerido pelo Defensor que ele prestasse declarações no inicio da Audiência de Julgamento, tendo a mesma sido adiada para a segunda data e tendo nessa data o arguido faltado por razões de saúde que o impediram de estar presente, comprovadas por atestado médico e tendo a Senhora Juíza considerado tal falta assim justificada, foi decidido pela Senhora Juíza a quo concluir o julgamento sem que o arguido fosse ouvido, conforme havia requerido.
B. Mostra-se violado o disposto no artigo 332º nº 1, por se não ter verificado no caso qualquer das hipóteses previstas no artigo 333º nºs 1 e 2 e no artigo 334º nºs 1 e 2, sendo que tão pouco se verificou o consentimento do arguido previsto no número 4 do artigo 333º.
C. Suscita-se a este respeito a inconstitucionalidade das referidas normas, agora citadas no parágrafo anterior, dos artigos 332º nº 1, 333º nºs 1, 2 e 4 e 334º nºs 1 e 2 – e da norma do artigo 196º nº 3 alínea d), por violação do direito a processo equitativo garantido pelo artigo 20º nº 4 e das garantias de defesa e do contraditório, consagradas no artigo 32º nºs 1 e 5 –, na interpretação normativa que permita ao Tribunal considerar prestado o consentimento do arguido, previsto e exigido nos citados nº 4 do artigo 333º e nº 2 do artigo 334º, por o respetivo defensor nada ter dito e não ter deduzido oposição expressa à realização e conclusão do julgamento sem a sua presença, designadamente quando – como era o caso – o defensor não tem poderes “especialíssimos” e nem sequer especiais para esse efeito de prestar o consentimento do arguido para o julgamento na sua ausência.
D. A consequência da realização do julgamento fora dos casos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 333º e do nº 1 do artigo 334º e sem o seu consentimento, não pode deixar de ser aquela que antes se apontou – a da nulidade insanável prevista no artigo 119º alínea c), que deve ser declarada oficiosamente e não pode ser sanada exceto pelo arguido pessoalmente ou por mandatário com poderes de representação especialíssimo para esse efeito, sob pena, igualmente da inconstitucionalidade dessa norma pelas mesmíssimas razões agora invocadas.
E. Além disso, a decisão sobre a matéria de facto enferma de erro notório na apreciação da prova, por não resultar da prova documental e testemunhal examinada, lida ou produzida em audiência e mesmo fora dela, ou seja, da demais prova constante dos autos, qualquer elemento de prova direta ou qualquer indicio que permitisse concluir, mesmo remotamente e muito menos para além da duvida razoável, pela confirmação dos seguintes factos que, no entanto, foram julgados provados na Sentença recorrida, enunciados nos números 1, 2, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11 parte final, 12 parte final, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21.
F. Estes factos não resultam provados dos depoimentos de qualquer das testemunhas ouvidas em Audiência de Julgamento no Tribunal recorrido – isto é, Diogo José Simões da Costa Durão Barroso e D –, o que resulta negativamente, mas sem margem para qualquer dúvida, das respetivas transcrições integrais, que deixou feitas na Motivação e aqui se dá por reproduzidas.
G. Trata-se em ambos os casos de testemunhas que manifestamente não têm conhecimento direto dos factos, a não ser através da análise de documentos que referiram e a primeira por um telefonema que terá tido com alguém que afirmou ser A.
H. E, de todo o modo, nenhuma delas referiu sequer nos depoimentos que prestou em julgamento que alguma vez tinha conhecido o Arguido ora Recorrente e é impossível concluir dos respetivos depoimentos que o ora Recorrente tenha tido qualquer intervenção no caso.
I. As conclusões que a Senhora Juíza extraiu de tais depoimentos e que permitiram ter julgado provados os factos indicados não resultam nem colhem sustentação alguma em qualquer dos meios de prova documentais e testemunhais produzidos em julgamento, e nem sequer nos demais existentes nos autos, mas apenas da ilegal, infundamentada e ilegítima presunção ou pressuposição da Senhora Juíza de que havia sido o Arguido a praticar tais factos, desde logo a adquirir o referido automóvel, a forjar documentos ou a utilizar os referidos documentos.
J. Tal decisão não se baseia em qualquer meio de prova que a permitisse e viola manifestamente a única presunção que a lei penal e processual penal a esse respeito admite, que é a presunção de inocência – consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
K. O que se apresenta manifesto quando analisamos os depoimentos das testemunhas que se deixou transcritos, mas também se revela de forma igualmente evidente no que aos documentos respeita, designadamente os documentos que permitiram à Senhora Juíza, concluir na motivação da decisão de facto que o extrato bancário que teria sido entregue pelo ora Recorrente, e sem que prova alguma existisse quanto a essa entrega),era forjado ou falsificado ou falso – tais documentos são os documentos de folhas 74 e 75, por confronto com o tal extrato que seria forjado ou falsificado ou falso, de folhas 9, bastando compulsar uns e outros para perceber que nada disso é possível concluir.
L. Finalmente, os factos julgados provados não são suficientes, de todo o modo, para preencher os tipos legais de crime por que a Sentença o condenou, por não se subsumirem nas hipóteses das normas respetivas.
TERMOS EM QUE DEVE A SENTENÇA SER REVOGADA E O RECORRENTE ABSOLVIDO, COMO É DE JUSTIÇA!
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O MP na primeira instância respondeu ao recurso propugnando pela sua improcedência, nos seguintes termos:
O Ministério Público entende que o recurso deve ser julgado improcedente, não assistindo razão ao recorrente.
O recorrente invoca ter ocorrido nulidade insanável do processo, concretamente do julgamento e da sentença, nos termos da alínea c) do artigo 119º, do Código de Processo Penal, por ter sido julgado na ausência, fora dos casos e das condições previstas na lei.
O arguido que se encontrava regularmente notificado para a audiência de julgamento designada para o dia 05.06.2014, não compareceu, tendo o seu I. mandatário informado os autos que aquele se encontrava impossibilitado de estar presente por estar doente, sendo que pretendia prestar declarações no início da audiência de julgamento, tendo requerido o adiamento do julgamento para a segunda data designada (11.06.2014).
Em audiência de julgamento a Mma Juiz, conforme consta da respectiva acta, determinou que se iniciasse o julgamento, tendo proferido o seguinte despacho:
"Tendo em conta o disposto no art.º 333º, nº 2 do C.P.P e afigurando-se também que a presença do arguido não é absolutamente indispensável desde o início da audiência de discussão e julgamento, determina-se a realização da mesma ao abrigo do art.º 333º, nºs 1 e 2 do C.P.Penal.
Tendo o arguido manifestado nos pontos 5 e 6 do requerimento hoje apresentado, vontade de prestar declarações na 2a data agendada, nos termos do art.º 333 nº 3 do C.P.Penal, mantem-se tal data para a continuação da audiência".
 In casu, bem andou o tribunal a quo ao realizar o julgamento na ausência do arguido.
Efectivamente, se o arguido regularmente notificado, como foi o caso, não estiver presente na hora designada para o início da audiência, esta só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do mesmo desde início da audiência, conforme dispõe o artigo 333º nº 1 do Código de Processo Penal.
Não havendo esse juízo de indispensabilidade da presença do arguido, segue- se a regra geral: não há adiamento e a audiência tem de ter lugar e o arguido pode ser ouvido até ao fim da audiência e o seu defensor pode requerer que seja ouvido em segunda data.
In casu, tendo o arguido informado que pretendia prestar declarações, a Mma Juiz, manteve a segunda data designada para continuação do julgamento - 11.06.2014, para que aquele pudesse prestar declarações, o que não aconteceu, pois que o arguido não compareceu mais uma vez na audiência de julgamento, conforme resulta da acta de julgamento.
Face ao exposto, tendo em conta a situação concreta do processo e as normas legais aplicáveis, não se verifica a alegada nulidade do artigo 119º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.
No que respeita ao alegado erro notório na apreciação da prova, também não assiste razão ao recorrente.
Verifica-se a existência de um erro notório na apreciação da prova quando
"um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis" (Simas Santos e Leal-Henriques, Recurso em Processo penal, 5ª edição, 2002, Rei dos Livros, p. 65-66).
Como é referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.09.2016, Processo nº 1/14.1GAIDN.C1 "Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e a lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade.
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária."
No caso, os factos que foram dados como provados na sentença e que determinaram a condenação do arguido, encontram-se devidamente fundamentados, não violando as regras da experiência comum e da adequação social, pelo contrário, estas regras são o seu suporte e, por outro lado, não estão em desarmonia com qualquer outro dado de facto.
Na fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, constam de forma clara a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e o respectivo processo lógico e racional que foi seguido na apreciação dessas provas, não se vislumbrando a existência de qualquer arbitrariedade nessa apreciação, nem contradição. Encontra-se bem explicitado o processo de formação da convicção do Tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido.
O Tribunal a quo procedeu à indicação das provas que serviram para formar a sua convicção e o respectivo processo lógico e racional que foi seguido na apreciação dessas provas, não se vislumbrando a existência de qualquer arbitrariedade nessa
O tribunal indicou os meios de prova em que se baseou e explicitou o processo que seguiu para a formação da sua convicção, o que permite aferir das regras e critérios de valoração seguidos e se o resultado probatório surge como o mais aceitável.
Do cotejo crítico e conjugado da prova e à luz das regras da experiência comum e da adequação social, nada vislumbramos nos factos dados por provados e não provados que importe a existência de um errado juízo na apreciação e valoração da prova, sendo que os mesmos não se contrariam entre si, nem se opõem ao que se fez constar da fundamentação da sentença.
Ao analisarmos a fundamentação da sentença - que cumpriu cabalmente os requisitos exigidos no art.º 374º, nº 2, do Código do Processo Penal, indicando e examinando criticamente as provas que serviram para formar a convicção do tribunal -, verificamos que nela se explicitou de forma clara o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido que ali se deixou consignado.
O tribunal indicou os meios de prova em que se baseou e explicitou o processo que seguiu para a formação da sua convicção, o que permite aferir das regras e critérios de valoração seguidos, e se o resultado probatório surge como o mais aceitável.
Deste modo, outra não pode ser a conclusão de que o resultado probatório a que chegou a decisão recorrida se mostra consentâneo com a prova produzida.
A Mma Juiz a quo seguiu um processo lógico e racional, observando regras de experiência comum (regras de probabilidade e razoabilidade), sendo a decisão convincente pela explicitação do substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse naquele sentido e pela forma como valorou os diversos meios de prova, indicando a razão porque uns merecem credibilidade em detrimento de outros, não merecendo por isso qualquer reparo.
E outra não pode ser a conclusão se não a de que o tribunal apreciou correctamente a prova produzida em audiência e fundamentou com clareza e objectividade a sua convicção, esclarecendo porque conferiu credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros, em observância das regras que norteiam a apreciação da prova, sendo por isso insusceptível de qualquer crítica.
A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, pelo que aderimos à exaustiva e criteriosa apreciação feita pelo tribunal, a qual deve ser mantida nos seus precisos termos, sendo ainda que a factualidade provada é integradora dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes pelos quais o arguido e aqui recorrente foi condenado.
Assim, porque nada encontramos que nos mereça censura na sentença ora recorrida, deve-se negar provimento ao recurso, confirmando-se in totum a mesma, sendo que esta não violou qualquer normativo legal.
Contudo, V/Exas decidindo farão Justiça.
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O MP junto desta Relação emitiu o seguinte parecer:
Vem o presente recurso em causa interposto pelo arguido A, da douta sentença proferida nos autos em 2/7/014 que o condenou:
a) - pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1 a) do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão;
b) - pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo artigo 217º e 218º, nº 1 do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, o arguido foi condenado na pena única de 18 meses de prisão, suspensa a respectiva execução da pena de prisão aplicada pelo período de 18 meses, com a condição de, nesse período, proceder ao pagamento à demandante da quantia de 23.228,00€.
Para além da nulidade insanável do processo, concretamente do julgamento e da sentença, nos termos da alínea c) do artigo 119º, do CPP, o arguido alega ainda que houve erro de julgamento, em matéria de facto, relativamente a factos provados na Sentença, enunciados nos números 1, 2, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11 parte final, 12 parte final, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21, “...por não resultar da prova documental e testemunhal examinada, lida ou produzida em audiência e mesmo fora dela, ou seja, da demais prova constante dos autos, qualquer elemento de prova direta ou qualquer indicio que permitisse concluir, mesmo remotamente e muito menos para além da duvida razoável, pela confirmação dos factos ”
O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou douta Resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela confirmação da decisão recorrida.
Examinados os fundamentos do recurso do Arguido, consideramos que a Exma. Magistrada do Ministério Público na Resposta ao recurso que apresentou identificou correctamente as questões nele suscitadas, que tratou de forma bem fundamentada e argumentando com rigor jurídico, demonstrando a nosso ver a sem-razão do Recorrente.
Resposta esta a que, por estes motivos, se adere.
Apenas, em reforço do expendido pela Exma. Colega, aditaremos o seguinte:
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
 O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto - encontra- se previsto e regulado no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC - Ano 4 Fasc.1 - pág. 120; Acórdão do STJ nº 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc.31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C 1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3 do art.º 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O recurso da matéria de facto não se destina, assim, a postergar o princípio da livre apreciação da prova, com consagração expressa no artigo 127º do C. Processo Penal.
A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade e imediação com que decorre o julgamento em primeira instância. Aquela tem por limites as regras da experiência comum e a obediência à lógica, sendo que, se face à prova produzida, for possível mais do que uma conclusão, a decisão do Tribunal a quo que, devidamente fundamentada, se basear numa das possíveis, é válida.
Ora, não tendo o arguido logrado impugnar a decisão de facto de modo processualmente relevante - atendendo a que não veio indicar os meios de prova que imponham uma decisão diversa da proferida - - e não enfermando a decisão de qualquer dos vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, mostram-se necessariamente fixados os factos considerados provados e não provados pela primeira instância.
Neste contexto, não encontramos motivo para divergir da douta sentença recorrida e consideramos que as penas parcelares concretas aplicadas, correspondentes aos crimes cometidos pelo arguido, assim como a pena que resultou do cúmulo, se revelam inteiramente adequadas às exigências de prevenção geral e especial e consentidas pela culpa revelada pelo arguido nos factos provados, na exacta medida encontrada pelo tribunal de primeira instância.
Somos, por isso, de parecer que o recurso não merece provimento.
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QUESTÃO PRÉVIA:
Por requerimento apresentado a 30 de maio de 2022 veio o arguido requerer que os autos fossem remetidos à distribuição alegando o seguinte:
tendo verificado agora que este processo de recurso foi atribuído a esta secção e a Vossa Excelência e demais Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores sem ter sido precedido da necessária distribuição – e, em todo o caso, sem observância do disposto no artigo 213.º n.º 3 do CPC, na redação da Lei n.º 55/2021 de 13 de agosto –, vem arguir a nulidade insanável por violação das regras de competência do tribunal, nos termos do artigo 119.º alínea e) do Código de Processo Penal e requerer se digne Vossa Excelência mandar remeter os autos a distribuição, para ser realizada nos termos legais em vigor.
Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao recorrente.
Existiu na verdade um lapso na atribuição do recurso que foi atribuído ao Exmo. Senhor Juiz Desembargador Ricardo Cardoso, quando o primeiro recurso, julgado provido e os autos remetidos à primeira instância a fim de ser concedido novo prazo para apresentação do recurso pelo arguido, foi por nós relatado e não pelo referido Senhor Juiz Desembargador. Apenas. A distribuição foi realizada quando a interposição do recurso apresentado pelo arguido, tendo-se nessa data fixado a competência, desde logo porque os autos foram remetidos à primeira instância apenas para que o arguido pudesse beneficiar do prazo de que, defendia, não tinha beneficiado, mantendo-se para apreciação do demais de que discordou, como se extrai do art.º 426.º, n.º 4 do CPP.
Termos em que se julga improcedente a invocada falta de disposição e incompetência do tribunal.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
No presente recurso há, assim, que conhecer se:
- Se se verifica a nulidade consistente na realização na ausência do arguido fora das condições previstas na lei;
- Inconstitucionalidade dos artigos 332º nº 1, 333º nºs 1, 2 e 4 e 334º nºs 1 e 2 – e da norma do artigo 196º nº 3 alínea d), por violação do direito a processo equitativo garantido pelo artigo 20º nº 4 e das garantias de defesa e do contraditório, consagradas no artigo 32º nºs 1 e 5;
- Se ser verifica erro de julgamento;
- Se se verificam os vícios de julgamento, mais concretamente, insuficiência de factos para a decisão e erro notório na apreciação da prova;
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III - Fundamentação:
A - A decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte:
2 - FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- Matéria de facto provada:
1. Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 22 de Junho de 2009, o arguido formulou o propósito de obter para si um veículo automóvel, da marca "Jaguar", modelo "X Type Diesel", sem que para tal tivesse de proceder ao respectivo pagamento.
2. Assim, nessa altura, o arguido entrou em contacto telefónico com o Director - Geral do stand "B.”, sito na Av. ... Lisboa, C, a quem manifestou o seu desejo de adquirir o referido automóvel, com recurso ao crédito.
3. Os financiamentos das aquisições a crédito dos bens vendidos pelo stand "B" eram assegurados pelo "BBVA Instituição Financeira de Crédito, S.A.".
4. Com base nas indicações dadas pelo BBVA, C indicou ao arguido todos os elementos que eram necessários para efectuar o contrato de financiamento para aquisição a crédito, bem como os documentos cujas cópias era necessário juntar ao mesmo.
5. Bem sabendo que não tinha rendimentos suficientes para solicitar crédito Junto de instituição financeira, em data e local não determinados, mas em momento anterior ao dia 22 de Junho de 2009, o arguido elaborou ou solicitou a alguém que elaborasse um extracto bancário do Finibanco, reportado aos meses de Abril a Maio de 2009, referente a uma suposta conta por si titulada, de onde resulta dispor a mesma de um saldo médio de € 7.000.
6. Na posse do referido documento, bem como de cópia de um comprovativo de entrega de declaração modelo 3 de IRS, nos termos da qual o arguido declarou ter obtido, no ano de 2008, um rendimento líquido de € 142.451,50, o arguido remeteu-os, entre os dias 17 e 19 de Junho de 2009, por via e-mail, para C.
7. C entregou a referida documentado junto do BBVA, para análise e apreciação sobre a viabilidade da concessão do crédito.
8. Sucede porém que, o arguido nunca teve um saldo bancário de € 7.000 junto do Finibanco, sendo o seu saldo bancário, entre Abril e Maio de 2008, de cerca de €2,00.
9. Tendo o crédito sido aprovado pelo BBVA, no dia 29 de Junho de 2009 foi celebrado entre o BBVA, por um lado, e o arguido, por outro, o contrato de mútuo nº 6110457, pelo montante de € 19.000,00, a ser pago em 72 prestações mensais de € 322,75.
10. O referido veículo foi entregue ao arguido, em data não apurada do ano de 2009, fazendo o arguido do mesmo coisa sua.
11. No cumprimento desse contrato, o BBVA entregou à sociedade "B" o montante de €18.636,00 para pagamento do veículo de marca "Jaguar", modelo "X- Tvpe Diesel", matrícula 80-AB-51, adquirido relo arguido.
12.Nenhuma das prestações do contrato de financiamento foi paga, não tendo providenciado o arguido pelo pagamento das prestações mensais devidas pelo financiamento concedido, como sempre foi seu propósito, bem sabendo que não iria ser demandado para o seu pagamento.
13. Em toda a actuação supra descrita agiu o arguido movido pelo propósito de obter si um benefício económico a que sabia não ter direito, como seja, o de obter um financiamento junto do BBVA para a aquisição de um veículo automóvel, bem sabendo que a sua capacidade de endividamento era reduzida e que não teria possibilidades de pagar integralmente o empréstimo solicitado àquela entidade bancária.
14. Sabia o arguido que, com a sua actuação, provocava necessariamente uma diminuição no acervo patrimonial do BBVA.
15. Mais sabia o arguido que o extracto bancário do Finibanco era forjado e que o mesmo não tinha o referido saldo bancário junto desta instituição bancária e que ao forjá-lo, tinha perfeita consciência de que lhe estava vedado fabricar tais documentos.
16. Com a sua actuação procurou o arguido fazer crer perante terceiros que os elementos constantes pelo menos do extracto bancário acima referido eram verdadeiros e, consequentemente, colocou o arguido em causa a veracidade que revestem perante a generalidade das pessoas os elementos constantes de documentos emitidos por particulares, assim causando um prejuízo a terceiros. 17. Actuou o arguido com o propósito de induzir em erro os funcionários do BB VA, quanto à sua situação patrimonial, por forma a, por intermédio de tal artificio, lograr obter a concessão da quantia monetária mutuada, benefício económico que sabia não lhe ser devido caso não tivessem sido apresentados os acima referidos documentos.
18. Com a sua conduta, bem sabia o arguido que poderia causar um prejuízo patrimonial ao BBVA, no montante de €18.636,00, o que sucedeu.
19. Actuou o arguido de forma livre, deliberada e voluntária.
20. Bem sabendo que as suas condutas supra descritas eram proibidas e criminalmente punidas.
Mais se provou que:
21. Em virtude da actuação do demandado viu-se ainda a demandante desapossada da quantia de €4.592.00, que corresponderia ao seu "lucro", ou seja, valor das prestações contratadas, incluindo capital e juros, que deixou de receber.
22. Do certificado de registo criminal do arguido consta que foi condenado:
- por crime de emissão de cheque sem provisão na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €5, por decisão transitada em 11.07.2002.
2.2. Factos não provados:
Não se provou que:
1. Por força da actuação do demandado, a demandante teve o prejuízo de €2.500 decorrente de deslocações de funcionários e de dezenas de horas de trabalho dedicadas à tomada de declarações e depoimento como testemunhas.
Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.
***
2.3- Motivação da decisão de facto
O tribunal fundamentou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, a qual foi livremente apreciada segundo as regras da experiência, tendo designadamente em conta o seguinte:
 - os documentos juntos aos autos, assumindo particular relevância o contrato n.º 6110482 de fls. 7; cópia de BI de fls. 8, extracto bancário de fls. 9, a declaração de substituição de IRS de fls. 10-12, contrato de mútuo n.º 6110457 de fls. 14 e 15 celebrado entre o arguido e a BBVA; documentos de fls. 16, 17, 18 a 21, 37 e 53; prints de fls. 27, 28, 29; informação prestada pelo Finibanco de fls. 74 e 75; informação prestada pelas finanças de fls. 76; informação do Instituto dos Registo e Notariado de fls. 103-143;
- o depoimento da testemunha D, administrativa no BBYA, a qual esclarecendo a forma como se processava o financiamento e a concessão de crédito, referiu que o cliente apresenta uma proposta de crédito junto do concessionário, neste caso, a “Jaguar” e com ela os documentos necessários para a concessão do crédito, como sejam o BI, a declaração de IRS, comprovativo de morada, extractos bancários com vista a que sejam analisados tais dados por forma a concluir ou não se o cliente tem cariz económico para cumprir as prestações do crédito, sendo todos os elementos essenciais para se ponderar tal capacidade e o risco que pode ou não apresentar aquele cliente em concreto.
Em relação ao caso, referiu, que, como era habitual, os documentos foram entregues no stand da “Jaguar” que depois os remeteu ao BBVA para aprovação de crédito.
No mais confirmou os termos dos contratos juntos a fls. 7 e 14, muito em particular os valores neles constantes, afirmando ter sido liquidado pelo BBVA à “Jaguar” o montante de €18.636,00 (cfr. contratos referidos e documento de fls. 16 - €19.000-€364=€18,636,00) e ainda que, por força do incumprimento do contrato e do não pagamento de qualquer prestação para além do valor acima referido que pagou teve um prejuízo global de €23.228,00, correspondente ao valor que o BBVA iria auferir caso o contrato tivesse sido cumprido, o que se mostra corroborado pelo teor de fls. 14 e 15.
Referiu ainda com particular interesse que nunca conseguiram contactar o arguido, apesar de todas as diligências feitas, o qual ficou na posse da viatura, sem que tivesse pago qualquer prestação referente ao contrato de financiamento acima referido, o que se mostra reforçado pelo teor de fls. 17, 18-20 e, ainda fls. 37, donde decorre que o veículo em referência teve segurado no nome do arguido entre Agosto de 2009 e Novembro desse ano.
Por último, referiu ainda com relevância que caso não fossem os elementos apresentados, como sejam o extracto bancário de fls. 9 e a declaração de IRS de fls. 10- 12 o BBVA não teria concedido o crédito, deixando claro que ambos os documentos são determinantes para a concessão do crédito;
- o depoimento da testemunha B, à época Director Geral da “Jaguar”, o qual referiu ter sido contactado pelo arguido que pretendia um carro de serviço e que junta por aquele a documentação exigida pelo BBVA foi a mesma remetida para esta Instituição bancária, como era habitual, por forma a ser concedido ou não o crédito.
Confirmando basicamente o ponto 6) dos factos provados, não foi capaz de esclarecer cabalmente o teor da informação de fls. 21, o que, diga-se desde já, se mostra indiferente, já que, como resulta das mais elementares regras da experiência tendo o veículo sido entregue inequivocamente ao arguido e os contratos em causa celebrados por ele, terá sido este, ou alguém a seu mando e com o seu assentimento a entregar os documentos em referência nos autos, muito em particular a sua fotocópia de BI, extracto bancário em seu nome e a sua declaração de IRS.
Foi peremptório ao afirmar que a “Jaguar” é um mero intermediário entre o cliente e a financeira, pelo que os documentos que recebem do cliente são enviados para aquela por forma a habilita-la a decidir sobre a concessão ou não de crédito, o que se mostra perfeitamente compatível com as regras da normalidade e com as práticas comerciais comumente conhecidas.
Referindo ter sido entregue documentação em nome de uma empresa unipessoal, não deixou de confirmar que o extracto bancário e a declaração de IRS se reputavam unicamente ao arguido, como aliás resulta de tais documentos.
A semelhança da testemunha anterior, referiu que o cruzamento de todos os documentos enviados é que habilita a decidir sobre a concessão ou não de crédito.
Da prova produzida resulta, pois, designadamente dos depoimentos das duas primeiras testemunhas, que confirmaram com equidistância e coerência os factos dados como provados na parte em que deles tinham conhecimento directo e pessoal, conjugados com os contratos de fls. 7 e 14 e com a informação do Instituto de Registo e Notariado junto aos autos, que foi o arguido que, entretanto, mudou de n.º de BI, nome e data de nascimento, a pessoa que celebrou os referidos contratos.
Com efeito, os ditos contratos foram celebrados por A, portador do BI 106..493, que como se informa a fls. 103 foi eliminado sendo válido agora o n.º de BI 143..486 em nome de A, que, como se deriva de fls. 8 e 104-144 (mais precisamente de fls. 132 a 142) é inquestionavelmente a mesma pessoa.
Por outro lado, impõem-se que toda a prova - directa e indirecta - conjugada com a inteligência, a lógica e regras da experiência comum confirme os factos vertidos na acusação.
Na verdade, da articulação de toda a prova produzida com a conduta do arguido não pode deixar de se concluir que o arguido praticou os factos dados como provados e com a intenção referida na acusação e tal resulta à evidência desde logo da apresentação do extracto bancário de fls. 9 inequivocamente falso, conforme decorre da informação prestada pelo Finibanco a fls. 74, que não merece qualquer reserva ao tribunal quanto à sua veracidade e onde é expressamente afirmado que o referido extracto não foi emitido por essa Instituição bancária, sendo que nem sequer existia qualquer extracto com a data de 2.6.2009.
Ora resulta à saciedade da informação prestada por esta Instituição bancária e do extracto bancário que com ela foi junto a fls. 75 - donde decorre que o arguido era titular de uma conta com o saldo de €2,62 -, que este, ou alguém a seu mando (pois só ele tinha interesse e sabia o banco em que tinha conta), forjou o extracto bancário de fls. 3 e, fê-lo com a manifesta intenção, como se deriva da apresentação desse documento na “Jaguar”, para fazer crer à entidade financiadora de que tinha conta bancária e que a mesma tinha um saldo de € 10.823,80 (ou, como refere a acusação um saldo médio de €7.000), o que naturalmente, como facilmente se compreende, tem toda a relevância para uma entidade que concede créditos.
Nem se argumente em contrário, como parece ter pretendido a defesa, que perante a declaração de IRS donde consta como rendimento “de vendas de mercadorias e produtos” o montante de €142.451,50 não tinha qualquer importância o referido extracto bancário. É que, para além de a declaração de rendimentos ser uma declaração do próprio, que pode ou não corresponder à verdade, como referiram as testemunhas ouvidas todos os elementos solicitados pela financeira são cruzados e analisados no seu conjunto, todos determinantes para que aquela conceda ou não crédito, não sendo o extracto bancário de somenos importância até porque, entre os documentos entregues pelo arguido, na verdade era o único que oferecia garantias de maior fidelidade.
Acresce que a intenção do arguido descrita na acusação resulta reforçada pelo seu comportamento posterior, pois, este, não tendo pago qualquer prestação acordada no contrato que subscreveu, não mais se deixou contactar, deixando tal conduta, associada ao falso extracto bancário que fez juntar no processo de financiamento, à evidência que o arguido pretendeu enganar o BBVA, obter o crédito e não pagar a viatura que lhe foi entregue, como de resto fez, tudo fazendo de modo astucioso, levando aquela entidade a crer que iria cumprir o acordado, até porque a um elevado montante declarado de rendimentos juntou um extracto bancário que fazia induzir que não se tratava de um cliente de risco.
Para reforçar o que acima se deixou dito, a contrario, dir-se-á que tivesse entidade que concedeu o crédito, neste caso o BBVA, sabido, mesmo com a declaração de IRS apresentada - que, como já se disse, não passa disso mesmo, ou seja, de uma declaração do próprio que não comprova que efectivamente o mesmo tenha os rendimentos declarados, tudo levando a crer que assim não seria, dado que o arguido nada pagou apesar de o valor em causa comparado com esses rendimentos não ter praticamente expressão, o que induz que o mesmo não tinha a capacidade económica que pretendeu fazer crer, como resulta do seu real saldo bancário -, que o arguido ao invés de ter um saldo de €10.823,80 como consta do extracto apresentado (cfr. fls. 9) tinha um extracto de €2,68, não lhe teria certamente concedido o crédito, como deixou claramente antever a primeira testemunha ouvida.
Quanto aos antecedentes criminais, o tribunal considerou o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 144, uma vez, que como já se deixou dito, o arguido mudou alguns elementos da sua identidade, o que explica que o CRC actual não apresente as condenações que o CRC anterior apresentava.
Em relação aos factos como não provados, por nenhuma prova ter sido quanto aos mesmos produzida, sendo certo que nenhuma das testemunhas ouvidas os confirmou.
*
B - Do mérito do Recurso:
1 - Da realização da audiência na ausência do arguido:
No entender do arguido a audiência realizada na ausência do arguido fora das condições legalmente fixadas, tendo o tribunal cometido uma nulidade que inquina todo o processado posteriormente praticado.
Para conhecimento desta nulidade importa atentar nos seguintes factos constantes dos autos:
Como se verifica da consulta dos autos a audiência de julgamento foi marcada para os dias 5 e 11-06-2014, tendo a sentença sido lida em audiência designada e realizada no dia 2-07-2014.
No dia 5-06-2014 enviado requerimento subscrito pelo Sr. Dr. E, Advogado, que nesse mesmo dia juntou procuração forense passada a seu favor pelo arguido, datada do dia anterior, e onde requereu o adiamento da audiência para a segunda data que se encontrava designada, 11 de junho, pois o arguido o havia informado que se encontrava doente.
Na sessão desse mesmo dia, 5-06-2014, foi, em acta proferido o seguinte despacho:
Mediante o requerimento apresentado no dia de hoje, requereu o ilustre subscritor que fez juntar procuração o adiamento da audiência de discussão e julgamento com fundamento no facto de só no dia de ontem o arguido o ter contactado para assegurar a sua defesa e não ser possível obter a viagem de avião do Porto para Lisboa.
Nos termos do Art.º 330 do C.P.Penal a falta de mandatário não é motivo para adiamento da audiência de discussão e julgamento, o qual sempre poderá substabelecer, sendo certo que o tribunal é completamente alheio ao facto do arguido o ter contactado apenas no dia de ontem, circunstância, aliás, tendo em conta a data designada para a audiência de discussão e julgamento, que só dele se pode queixar.
Em face ao exposto, indefere-se o requerido.
Face à comunicação referida no ponto 4 do aludido requerimento em relação à ausência do arguido à presente audiência de julgamento, para a qual se encontra devidamente notificado, aguarde o prazo legal para a justificação da falta. Tendo em conta o disposto no art.º 333º, nº 2 do C.P.P. e afigurando-se também que a presença do arguido não é absolutamente indispensável desde o início da audiência de discussão e julgamento, determina-se a realização da mesma ao abrigo do artº 333º, nºs 1 e 2 do C.P.Penal.
O despacho proferido não foi objeto de qualquer reclamação ou recurso, sendo que na sessão de julgamento do dia 11-06-2014 estive o seu advogado.
Não obstante, O recorrente entende ter-se verificado nulidade insanável do processo e concretamente do julgamento e da Sentença, nos termos da mesma norma, da alínea c) do artigo 119º, antes invocada, por ter sido julgado sem estar presente fora dos casos e das condições previstas na lei.
Não lhe assiste razão, como aliás bem nota o MP, quer na sua resposta quer no parecer emitido neste Tribunal.
Na verdade, a nulidade invocada pelo arguido consubstancia-se sempre que se verifique c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência. Isto é, quando seja praticado acto processual que exija a presença do arguido sem que este nela esteja presente, já que não está em causa a falta de defensor, que esteve presente.
O arguido comunicou, através do seu advogado, que se encontrava doente e que não iria comparecer à audiência designada para o dia 5-06-2014, tendo-se decidido que a sua presença não era essencial e nessa conformidade iniciaram-se os trabalhos inerentes à audiência de julgamento, a qual continuou na segunda data que já se encontrava designada e que era do conhecimento do arguido.
E bem. Na verdade, a audiência de julgamento é gravada, por força de lei, o arguido estava devidamente representado por defensor que lhe foi nomeado, o arguido estava regularmente notificado para estar presente, pelo que em nada foi afetado o seu direito à defesa. A audiência iniciou-se e bem.
Dispõe o art.º 333.º do CPP que:
1 - Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2 - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º
3 - No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.º.
3 - No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.º
4 - O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do n.º 2 do artigo 334.º
5 - No caso previsto nos n.ºs 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença.
No caso, como se verifica da leitura do despacho proferido, transitado em julgado, entendeu-se que a presença do arguido não era indispensável.
Além disso, o arguido invocou como causa da sua ausência a circunstância de estar doente. Ora, quando o motivo da falta do arguido seja doença (v. art.º 117.º, n.ºs 2 a 4 do mesmo CPP), a audiência não é adiada, sendo inquiridas as testemunhas nos exatos termos referidos na norma transcrita.
O arguido será ouvido antes do encerramento da audiência, na primeira ou na segunda data, como se verifica do 3 do transcrito art.º 333.º, prevendo a lei expressamente que o arguido não seja ouvido quando haja faltado por doença, como se verifica do n.º 5, que expressamente se refere às situações reguladas nos n.ºs 2 e 3, mas que impõe a notificação pessoal da sentença e as informações que devem constar desta notificação (V., entre outro, Ac. TRE de 8-01-2008, CJ, 2008, T1, pág. 259; Ac. STJ de 31-01-2008, Proc. 07P3272, disponível in www.dgsi.pt).
Esquece o arguido que ao prestar TIR se compromete a apresentar-se em juízo sempre que para tanto seja notificado. O estar presente em audiência não constitui apenas um direito do arguido, renunciável, como igualmente se extrai da norma acima citada, art.º 333.º, desta feita o n.º 4, do CPP, mas também um dever, como expressamente consagra nos art.ºs 61.º, n.º 6, al. a), e 196.º, n.º 3, al. a), sendo que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º, cf. art.º 196.º, n.º 3, al. d). De outro modo, o sistema de justiça ficaria refém da vontade do arguido.
Como se pode ler no Ac. do STJ de 31-01-2008, Proc. 07P3272, acima indicado, (N)no que se refere ao julgamento, é de considerar que esteve legitimamente representado na audiência pelo seu defensor oficioso, sendo do seu conhecimento, a partir da prestação do TIR, que tal eventualidade poderia ocorrer, caso não desse cumprimento às obrigações constantes do mesmo TIR, como acabou por acontecer (arts. 196.º, alínea d) e 333.º do CPP).
(…) O julgamento na ausência, nessas condições, estando o arguido representado por defensor oficioso e sendo respeitadas as demais exigências legais impostas pelos números 1, 2 e 3 do art. 333.º do CPP, garantindo-se, além disso, o direito ao recurso com a exigência de notificação pessoal do arguido (pela sua voluntária apresentação ou através da sua detenção), não viola o essencial dos direitos de defesa, de presença e de audição, como se ponderou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 206/2006, de 22/3, Proc. n.º 676/2005 e no Acórdão n.º 465/2004, de 23/6, Proc. n.º 249/2004.
Termos em que improcede a nulidade invocada.
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2 - Da Inconstitucionalidade dos artigos 332º nº 1, 333º nºs 1, 2 e 4 e 334º nºs 1 e 2 – e da norma do artigo 196º nº 3 alínea d), por violação do direito a processo equitativo garantido pelo artigo 20º nº 4 e das garantias de defesa e do contraditório, consagradas no artigo 32º nºs 1 e 5 da CRP.
Na sequência do que se decidiu, torna-se imperioso concluir que não foram violados quaisquer direitos de defesa do arguido, que se mostrou sempre representado por defensor, nomeado e na segunda sessão de audiência constituído, o qual, seguindo os trabalhos, pode exercer de forma plena os direitos de defesa do arguido, sendo que estando a prova gravada, como foi (basta consultar-se o sistema CITIUS), sempre o arguido pode diligenciar pela audição da mesma e apresentar-se na segunda data, tal como havia requerido, para exercer o contraditório ou requerer o que tivesse por conveniente, o que não fez, apesar de, repita-se estar representado por advogado por si escolhido.
O nosso sistema processual penal, ao prever a possibilidade do julgamento na ausência encontrou um equilíbrio entre os direitos e deveres do arguido e a necessidade do Estado em exercer a ação penal, repondo, se verificada violação de bens protegidos pelo direito penal, a validade das normas jurídicas, assegurando um processo justo e equitativo, como aliás o TC já salientou, a título exemplificativo do Acórdão referido no Ac. do STJ, supra referido e identificado.
Deste modo, não se verifica qualquer inconstitucionalidade e muito menos a invocada pelo arguido no seu recurso: artigos 332º nº 1, 333º nºs 1, 2 e 4 e 334º nºs 1 e 2 – e da norma do artigo 196º nº 3 alínea d), por violação do direito a processo equitativo garantido pelo artigo 20º nº 4 e das garantias de defesa e do contraditório, consagradas no artigo 32º nºs 1 e 5 –, na interpretação normativa que permita ao Tribunal considerar prestado o consentimento do arguido, previsto e exigido nos citados nº 4 do artigo 333º e nº 2 do artigo 334º, por o respetivo defensor nada ter dito e não ter deduzido oposição expressa à realização e conclusão do julgamento sem a sua presença, designadamente quando – como era o caso – o defensor não tem poderes “especialíssimos” e nem sequer especiais para esse efeito de prestar o consentimento do arguido para o julgamento na sua ausência.
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3 - Do erro de julgamento:
O recorrente considera, além disso, que a decisão sobre a matéria de facto enferma de erro notório na apreciação da prova, defendendo que a não foi produzida prova que suporte os factos considerados provados, por não resultar da prova documental e testemunhal examinada, lida ou produzida em audiência e mesmo fora dela, ou seja, da demais prova constante dos autos.
O Arguido indica os factos que considera erradamente julgados provados, transcreve os depoimentos prestados em audiência e analisa os documentos que foram valorados, apresentando a sua avaliação e valoração da prova.
Contudo, o arguido, não obstante transcrever os depoimentos das testemunhas, não indica minutos donde consta o que, na sua opinião, consta o que foi afirmado e que foi erradamente entendido pelo tribunal a quo consubstanciando o erro de julgamento. Transcreveu, afirma, os depoimentos integrais. Mas o recurso de impugnação da matéria de facto não se destina a repetir o julgamento; não se destina a substituir uma convicção por outra. Destina-se apenas a reparar erros de julgamento resultantes de um erro incidente sobre o meio de prova em si como seja fundar-se em algo não afirmado por uma testemunha e que lhe é atribuído, em documento que não contenha o facto que se lhe atribui, ou em perícia que não tenha incidido ou não demonstre o que com base nela se considere provado.
Quando a prova produzida permita mais do que uma convicção, a convicção do tribunal, desde que se mostre conforme com as regras da experiência e da lógica é válida e inatacável.
O recurso da matéria de facto não se destina, assim, a afastar o princípio da livre apreciação da prova, com consagração expressa no artigo 127º do C. Processo Penal.
A livre apreciação da prova pressupõe e está intimamente ligada à oralidade e imediação com que decorre o julgamento em primeira instância, tendo por limites as regras da experiência comum e a obediência à lógica, sendo que, se face à prova produzida, for possível mais do que uma conclusão, a decisão do Tribunal a quo, devidamente fundamentada, se se basear numa das possíveis, é válida.
Ora, o erro de julgamento lato sensu pode suscitar dois tipos de recurso, embora com alcances diferentes e não confundíveis[2]:
- um com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art.º 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido estrito);
- e outro que visa a reapreciação da prova produzida, ao abrigo do art.º 412º/3 do C.P.P (impugnação em sentido lato).
O recorrente indica expressamente o vício de julgamento previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) não obstante indicar e transcrever os depoimentos e documentos, indicar os factos que considera erradamente julgados e como o deveriam ser.
Dispõe o nº 3 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, relativo à impugnação em sentido lato “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas.
Da análise deste preceito legal resulta que o recorrente, quando impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art.º 412º do C.P.P, tem que especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como indicar as provas que, no seu entendimento, impunham decisão diversa da recorrida e aquelas que devem ser renovadas.
O n.º 4 do citado art.º 412.º determina que: 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens[3] em que se funda a impugnação.
E o art.º 364.º, n.º 3 - Quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual devem ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número anterior.
Como se disse o arguido não cumpre com as legais exigências, desde logo porque não indica os minutos onde se encontra demonstrado o erro de julgamento, antes pugna, ao transcrever os depoimentos e indicar todos os documentos, por uma repetição da audiência o que é expressamente contrário à intenção do legislador e aos fins visados pelo recurso de impugnação de facto, que visa reparar erros de julgamento e não repetir julgamentos e substituir convicções do julgador.
O que o arguido faz é uma interpretação parcial e subjetiva da prova produzida, tentando através deste recurso fazer vingar a sua visão da prova, a sua própria convicção. Ora, desde que a prova produzida suporte as duas interpretações e valorações em confronto – a do arguido e a do tribunal a quo, esta é inatacável. É que não obstante este Tribunal de Recurso tenha poderes para suprir os erros e vícios de julgamento (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, 428.º e 431.º, al. b) do CPP, esse poder não inclui o de substituir a convicção do tribunal a quo pela sua, já que  não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[4],[5],[6] (Ac. TRL, de 11-03-2021, proc. 179/19.8JDLSB.L1-9, Relator Abrunhosa de Carvalho)
*
4 - Dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP:
Resulta da letra do art.º 410.º do CPP que, qualquer dos vícios a que alude o seu nº 2, tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, sendo que, por regras da experiência comum deverá entender-se as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.
“A insuficiência para a decisão, da matéria de facto, a que se reporta a alínea a) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P é um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa. Ou seja, esta insuficiência só existe quando a matéria de facto não é suficiente para a decisão de direito encontrada.
O vício só ocorre quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação, por faltarem elementos necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição (cf. Acórdão do S.T.J de 15.1.98 processo 1075/97 acessível em www.dgsi.pt).
Por outras palavras, os factos provados são insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada, sendo que no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o Tribunal poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa (cf. Acs. do S.T.J de 20.4.2006 no proc. nº 06P363 e de 16.4.1999 em www.dgsi.pt e Ac. do S.T.J de 2.6.99, proc.288/99, acessível em www.dgsi.pt).
Ou seja, a “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, ocorre quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito alcançada pelo tribunal a quo e ainda o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão, podendo fazê-lo. Esta falta de investigação de factos com relevância para a decisão não se pode confundir com insuficiência da prova para a matéria de facto provada que apenas pode ser atacada por via da impugnação de facto, através dos competentes recursos. Assim, para que se verifique este vício é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pag.339/340).
Como se verifica da decisão recorrida a mesma não enferma desta nulidade.
O que na verdade o arguido defende, sempre, é que não foi produzida prova que permitisse dar como provados os factos assim julgados. Ora, como se disse, insuficiência de factos para a decisão não se confunde com insuficiência de prova para o julgamento dos factos provados.
Aliás, o arguido nem sequer concretiza porque razão invoca a insuficiência de factos para a decisão, sendo que tendo em conta a matéria de facto apurada e definitivamente assente é imperioso concluir que estão preenchidos todos os elementos constitutivos dos tipos legais em causa nos autos e por cuja prática o arguido foi condenado.
- Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão
Por sua vez o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [al. b)], consiste na incompatibilidade entre os factos provados e os não provados, ou entre eles e a fundamentação, ou entre esta e a decisão, isto é quando o mesmo facto é julgado provado e não provado, ou julgados provados factos incompatíveis entre si, e ainda quando o facto considerado provado ou não provado estiver em contradição ou incompatível com a sua fundamentação. Dito de outro modo, como se decidiu no Ac. do STJ de 18/03/2004, Proc. nº 03P3566, citado por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, págs. 914/915, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum” (Ac. Relação de Lisboa, de 30-10-2018, Proc. 672/17.7IDLSB.L1-5, Relator Artur Vargues, disponível in http://www.dgsi.pt).
Analisada a decisão, não se vislumbra qualquer contradição entre os factos provados e não provados, entre qualquer destes e a fundamentação ou entre os factos provados e as conclusões ou apreciações de direito, nem tão pouco o arguido a invocou.
- Do erro notório na apreciação da prova, art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP
Debrucemo-nos agora, mais em pormenor, dado que a sua invocação, apesar de com indicação de normas diversas das aplicáveis, é transversal a todo o recurso do arguido, sobre o vício previsto no artº 410º/2/c) do C.P.P. de erro notório na apreciação da prova.
Tal vício, configura-se quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum. E tem, pois, que resultar impreterivelmente do próprio teor da sentença; existindo este erro, quando considerado o texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal.
Ocorre este vício quando se dão por provados factos que face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzem uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorreta, quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dúbio” (cfr Ac. do S.T.J de 24.3.2004 proferido no processo nº 03P4043 em www.dgsi.pt, Ac. do S.T.J 3.3.1999 in proc. 98P930 e Ac. da Rel. Guimarães de 27.4.2006 in proc. 625/06) ou quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” (cfr Ac. da Rel. Porto de 2.2.2005 no proc.0413844 e da Rel. Guimarães de 27.6.2005 no proc. 895/05-1ª).
Da leitura atenta do texto da sentença recorrida em especial da matéria de facto provada e não provada que aí é descrita, bem como da parte relativa à respetiva fundamentação, o que se pode constatar com clareza e desde já, é que a análise crítica da prova e a decisão de facto constante da decisão e a sua motivação/justificação está bem assente nas regras da experiência comum e da lógica.
Não houve da parte do Tribunal a quo qualquer falha ou desrespeito das regras legais e dos princípios gerais de direito na valoração da prova, não padecendo, por isso, a decisão de qualquer erro na apreciação da prova.
Os factos resultaram provados porque o Tribunal, analisando a prova produzida de harmonia com a lei se convenceu que eles assim ocorreram.
Deste modo, a convicção do Tribunal a quo afigura-se-nos ter sido uma convicção racional, que foi formada de acordo com os critérios lógicos e objetivos, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do C.P.P – ao abrigo do qual toda a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Dito de outro modo, o Tribunal ao valorar como valorou a prova produzida em audiência, mais concretamente os depoimentos das testemunhas em conjugação com todos os documentos expressamente indicados na motivação de facto, não violou qualquer regra da experiência ou da lógica. Valorou livremente os depoimentos, revelando que lhe mereceram credibilidade e porquê. E está tudo conforme com o princípio da livre convicção do julgador consagrado no art.º 127.º do CPP, uma vez que o valor da prova não depende da sua natureza, mas sobretudo da credibilidade que se confere às mesmas, credibilidade que, no caso, está conforme com a prova objetiva dos autos – os documentos.
Como se disse já, e resulta claramente da leitura das motivações do recurso do arguido e das suas conclusões, que este no fundo, tal como já acima se disse, discorda é da convicção do Tribunal a quo e pretende fazer vingar a sua visão sobre a prova produzida e os factos que se devem dar como provados e como não provados.
De acordo com o princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório.
Nessa medida a atribuição de maior força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum.
O Tribunal a quo é sempre o que se encontra mais apto para apreciar a prova, pois é este que ouve e vê as testemunhas, as suas reações, as suas pausas, os seus gestos.
O local e o momento onde por excelência se aferem e podem ser apreciadas valorativa e criticamente as provas, é a audiência e julgamento em que o julgador dispõe de melhores condições para apreciar de perto a prova que se vai produzindo (princípio da imediação da prova), ou a falta dessa prova.
No caso em apreço, dissemos já, porque assim consideramos, a decisão recorrida, encontra-se, apesar de sucintamente, bem fundamentada, oferecendo um raciocínio linear, lógico e percetível, não se vislumbrando qualquer incorreta apreciação da prova, nomeadamente quanto à medida e extensão da credibilidade que lhe mereceram as declarações e depoimentos prestados em conjugação com a análise das demais provas e regras da experiência comum.
Como é do conhecimento geral e já acima ficou dito, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consignado no art.º 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Estamos pois em sede de um certo poder discricionário do Juiz, que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não existem.
Nada, pois, a apontar ao processo de valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, já que o mesmo não se baseou em provas proibidas ou a métodos proibidos de prova, violando qualquer das regras que disciplinam esta matéria nos artigos 124º a 139º do C.P.P e conduzindo por essa via a uma prova ilegal.
Não padece, pois, a decisão recorrida do vício previsto na alínea c) do nº 2 do artº 410º do C. P. Penal (erro notório na apreciação da prova).
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IV - Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em:
Julgar não provido o recurso interposto por A, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.
b) Custas pelo arguido fixando-se em 3,5 UC’s a taxa de justiça.

Lisboa, 12 de janeiro de 2023
Processado e revisto pela relatora, (art.º 94º, nº 2 do CPP).
Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Cristina Luísa da Encarnação Santana
Simone Abrantes de Almeida Pereira

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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451º - 279 e 453º - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de  Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363. 

[2] Como se esclareceu no Ac. STJ de 15/09/2010, proc. n.º 173/05.6GBSTC.E1.S1, Relator Fernando Fróis: O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então, o inverso e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova, constante do art. 127.º do CPP.
XII - Os vícios do nº 2 do art.º 410.º do CPP são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Os vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo – art.º 127.º do CPP.
XIII - Não incidindo o recurso sobre prova documentada nem se estando perante prova legal ou tarifada, não se pode sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, esquecendo a citada regra. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
XIV - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
[3] Sublinhado nosso.
[4] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art.º 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art.º 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art.º 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[5] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[6] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.