Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2010/16.7T8BRR.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
ANALOGIA
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: 1 – Não integra a contraordenação p.p. pelo Artº 25º/1-b) da Lei 27/2010 de 30/08 a não apresentação, pelo motorista, do formulário a que se reporta a Decisão da Comissão de 12/04/2007.
2 – Em matéria de qualificação contraordenacional não é permitido o recurso à analogia ou à interpretação extensiva sempre que desta resultem violadas as garantias de segurança, certeza, confiança e previsibilidade.

(Elaborado pela relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
TEXTO INTEGRAL:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

AAA, SA, com sede …, veio interpor recurso da sentença que, negando provimento à impugnação que interpusera, manteve a coima que lhe fora aplicada pela Autoridade para as Condições de Trabalho.

Motivou o recurso, concluindo, a final que:

- A sentença evidencia uma errada aplicação do direito ao caso concreto e uma incorreta interpretação das normas jurídicas aplicáveis;

- Apesar de considerar que o condutor não estava obrigado a apresentar as folhas de registo utilizadas e qualquer registo manual e impressão efetuados, a sentença considerou que o condutor estava obrigado a apresentar o formulário constante do anexo a que se refere a Decisão 2007/230/CE, assumindo que a lei é omissa quanto às co sequências da falta de apresentação do mesmo;

- Os motoristas não são obrigados a fazer-se acompanhar do aludido formulário, já que o Regulamento Europeu não estabelece a obrigatoriedade de acompanhamento do mesmo;

- O formulário a que a sentença se refere encontra-se anexo a uma Decisão, instrumento comunitário que não tem aplicabilidade direta nos termos do Artº 279º do Tratado que institui a Comunidade Europeia, necessitando de ser transposto por qualquer ato jurídico interno para que passe a fazer parte integrante do ordenamento jurídico português;

- Como resulta da sentença tal obrigação não foi transposta, inexistindo qualquer norma punitiva pela ausência de utilização do aludido formulário/declaração de atividade;

- Em obediência ao princípio da legalidade (Artº 2º do RGCO) impõe-se a existência de uma norma jurídica anterior à data da prática do facto que preveja a infração, bem como a consequência da mesma, o que não sucede no caso em apreço.

- Não podendo proceder o entendimento plasmado na sentença recorrida de proceder a uma interpretação extensiva numa situação de verdadeira lacuna da lei;

- Resulta à saciedade que não se retira – nem se pode retirar- da leitura do Artº 25º/1-a3) da Lei 27/2010 a obrigatoriedade dos motoristas se fazerem acompanhar do formulário, nem mesmo por interpretação extensiva que é manifesta e legalmente inadmissível;

- Pelo que se impõe a revogação da sentença.

O MINISTÉRIO PÚBLICO contra-alegou defendendo que a sentença não merece reparo.

Já nesta Relação o MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu extenso parecer concluindo que a sentença deve ser confirmada, negando-se provimento ao recurso.

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Das conclusões apresentadas extrai-se a seguinte questão a decidir:

- Não se retira – nem se pode retirar- da leitura do Artº 25º/1-a) da Lei 27/2010 a obrigatoriedade dos motoristas se fazerem acompanhar do formulário, nem mesmo por interpretação extensiva que é manifesta e legalmente inadmissível?

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OS FACTOS:

Com relevo para a decisão da causa, a 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
No dia 07/07/2015, pelas 09:50 horas foi realizada uma ação de fiscalização pela Guarda Nacional Republicana, na Estrada das Praias, Costa da Caparica, Setúbal.
No decurso da referida ação foi identificado o condutor …, ao serviço da aqui arguida, o qual conduzia um veículo pesado de passageiros com a matrícula …, equipado com tacógrafo analógico.
Solicitados os discos/diagramas relativos aos 28 dias anteriores ao dia da fiscalização, foi detetado que o condutor não se fazia acompanhar dos discos/diagramas referentes aos dias 10, 22, 23, 24, 25, 26 e 30 de Junho de 2015 e 01 e 02 de Julho de 2015.
Nos dias 22 e 26 de Junho de 2015, o condutor conduziu um veículo equipado com tacógrafo digital.
No dia 10 de Junho o condutor gozou o dia de feriado nacional.
Os dias 23, 24, 25 e 30 de Junho de 2015 e dias 1 e 2 de Julho de 2015 correspondem a dias úteis de calendário.
A arguida não forneceu qualquer declaração de atividade, conforme anexo da Decisão 230/CE/2007, relativa aos dias em que o trabalhador alegadamente não exerceu a atividade de condução e identificados no ponto anterior.
A arguida forneceu formação ao condutor em matéria de tacógrafos.
A arguida não organizou o trabalho de modo a que o seu condutor pudesse, por ocasião da fiscalização, justificar os dias em que não exerceu a atividade de condução.
A arguida atuou da forma descrita não procedendo com o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
O Motorista da Recorrente em causa — Sr. … — no dia da fiscalização, detinha e exibiu todos os discos que possuía, e que correspondem aos serviços de condução efetivamente por si prestados, não podendo objetivamente ser portador de qualquer outro disco.
Nos 28 dias anteriores à data da fiscalização, este havia conduzido viaturas equipadas com tacógrafo digital, tendo ainda gozado, nos termos da lei, dias de folga e tendo estado ainda de reserva (oficina).
O Motorista da Recorrente não conduz exclusivamente veículos equipados com aparelho de tacógrafo analógico, tendo, nos 28 dias anteriores à fiscalização, conduzido também veículos equipados com aparelho de tacógrafo digital.
O Motorista, nos dias 21/06, 22/06, 26/06 e 28/06 conduziu veículo equipado com aparelho de tacógrafo digital.
O Motorista da Recorrente exibiu e entregou ao Agente Autuante o seu cartão de condutor, para que este o pudesse verificar, tendo-lhe dito expressamente que possuía registos tacográficos no cartão.
Por outro lado, o Motorista da Arguida, além de ter conduzido, naqueles 28 dias, veículos equipados com aparelho de tacógrafo digital e veículos equipados com aparelho de tacógrafo analógico, gozou ainda, necessariamente, dias de folga.
E esteve ainda de Reserva (Oficina), não tendo, igualmente, nestes dias efetuado qualquer serviço de condução.
Assim é que
a) No dia 10/06, o Motorista gozou dia de feriado, não tendo prestado qualquer atividade de condução;
b) Nos dias 24/06 e 25/06, o Motorista da Recorrente gozou dias de folga, não tendo prestado qualquer atividade de condução;
c) Nos dias 23/06, 30/06, 01/07 e 02/07, o Motorista da Recorrente esteve de Reserva (Oficina), não tendo prestado qualquer atividade de condução.
A Recorrente ministra aos seus trabalhadores formação referente à utilização dos aparelhos de tacógrafo e seus registos, sendo o Trabalhador em causa conhecedor da obrigação que sobre si recai de deter os discos dos 28 dias anteriores.
A Empresa Recorrente entrega mensalmente a todos os seus trabalhadores flashes informativos alusivos a várias matérias relacionadas com a condução, nomeadamente manuseamento dos aparelhos de tacógrafo e respetivos registos.
Assim é que, todos os Trabalhadores da Recorrente conhecem a obrigação que sobre eles impende de circularem com os discos referentes aos 28 dias anteriores.
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O DIREITO:
Foi aplicada à Arguida a coima de € 2.856,00, assim como uma sanção acessória de publicidade, imputando-se-lhe a comissão de uma contraordenação prevista e punível pelos arts. 25.º n.º 1 al. b) da Lei n.º 27/2010 de 30 de Agosto conjugada com o n.º 7 do art. 15.º do Regulamento (CE) n.º 3821/85 de 20 de Dezembro, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 561/06 de 15 de Março.
A conduta imputada cingia-se à circunstância de o veículo pesado de mercadorias com a matrícula .., ao serviço da Arguida, no dia 07 de Julho de 2015, não dispor dos discos/diagramas referentes aos últimos 28 dias, nem de qualquer declaração da entidade patronal.
Veio a considerar-se na sentença que “o art. 25.º n.º 1 al b) da Lei n.º 27/2010 de 30 de Agosto… prevê que constitui contraordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, (i) das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, (ii) que o condutor esteja obrigado a apresentar”.
Prosseguiu-se afirmando que o condutor do veículo inspecionado não estava obrigado a apresentar as folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, pois “provou-se que o condutor conduzia um veículo isento de tal obrigação.”
Mais se ponderou que “o condutor do veículo inspecionado estava obrigado a apresentar o formulário constante do anexo a que se refere a Decisão 2007/230/CE ao agente autuante quando solicitado”, porquanto “só assim é que o agente autuante tem a possibilidade de apurar, de acordo com os critérios estabelecidos na lei, sobre qual a real situação do veículo e do seu condutor.
Porém, a lei é de todo omissa (pelo menos em sede de aparência) quanto às consequências da falta de apresentação do anexo a que se refere a Decisão 2007/230/CE. Não prevê qualquer sanção ou responsabilidade contraordenacional.
Ocorre que “O legislador ao não punir de forma expressa a omissão de apresentação do formulário anexo à Decisão 200/230/CE perante os agentes fiscalizadores criou uma lacuna legal” a qual pode ser integrada, cabendo “chamar à colação o artº 9 do Código Civil…
Veio, assim, a concluir-se que “o exposto no art. 25.º n.º 1 al b) da Lei n.º 27/2010 de 30 de Agosto só faz sentido se abranger também a obrigação de apresentação do formulário constante do anexo mencionado supra pois, caso contrário, bastava a qualquer motorista afirmar que o veículo em causa estava isento, não cumprindo o dever de apresentação de um documento definido pela lei como o próprio para provar o regime de excecionalidade a que aqui a Arguida procura alcançar.
Vejamos!
Comecemos pela conduta imputada á arguida – o seu motorista não possuía as últimas 28 folhas de registo do tacógrafo nem qualquer declaração.
O Artº 15º/7 do Regulamento (CEE) nº 3821/85, na redação introduzida em virtude do Regulamento (CE) nº 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/03/2006, dispõe que sempre que o condutor conduza um veículo equipado com um aparelho de controlo em conformidade com o anexo I, deve apresentar, a pedido dos agentes encarregados do controlo (i) as folhas de registo da semana em curso e as utilizadas pelo condutor nos 28 dias anteriores, (ii) o cartão de condutor, se o possuir e (iii) qualquer registo manual e impressão efetuados durante a semana em curso e nos 28 dias anteriores.
Contudo, assumiu-se na sentença que, por força do Artº 2º/g) da Portaria 222/2008 de 5/03, o veículo descrito nos autos estava isento das obrigações ali mencionadas.
Ora, a contraordenação imputada à Arguida foi a prevista no Artº 25º/1-b) da Lei 27/2010 de 30/08, lei esta que estabelece o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Directiva n.º 2006/22/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, alterada pelas Directivas n.os 2009/4/CE, da Comissão, de 23 de Janeiro, e 2009/5/CE, da Comissão, de 30 de Janeiro.
De acordo com a norma tipificadora, constitui contraordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, (b) de cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar.
Vigora em matéria contraordenacional o princípio da legalidade de acordo com o qual só será punido como contraordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática (Artº 2º do DL 433/82 de 27/10, aplicável ex vi Artº 549º do CT).
Por outro lado, constitui contraordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima (Artº 548º do CT).
Ora, evidenciando a sentença que o veículo reportado nos autos estava isento das obrigações cujo incumprimento é pressuposto do facto típico, não vemos como, sem mácula para o indicado princípio da legalidade, sancionar a arguida pela contraordenação que lhe foi imputada.
Refere a sentença que uma Decisão da Comissão de 12/04/2007 previu a obrigação de um formulário relativo às disposições em matéria social no domínio das atividades de transporte rodoviário, a qual no seu considerando (1) consigna que, “Nos termos da Directiva 2006/22/CE, a Comissão elaborará um formulário eletrónico, que possa ser imprimido, destinado a ser utilizado quando o condutor tiver estado em situação de baixa por doença ou de gozo de férias anuais, ou quando tiver conduzido outro veículo, isento da aplicação do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, que altera os Regulamentos (CEE) n.º 3821/85 e (CE) n.o 2135/98 do Conselho e revoga o Regulamento (CEE) n.º 3820/85 do Conselho”. E conclui que o condutor estava obrigado a apresentar o formulário a que se reporta tal Decisão por ser essa a única forma de o agente autuante poder apurar qual a real situação do veículo e do seu condutor.
Discordamos de uma tal conclusão.
Efetivamente a referida Decisão estabeleceu, tendo como destinatários os Estados Membros, um formulário a preencher pelo empregador nos casos de condução de veículo não abrangido pelo Regulamento (CE) nº 561/2006. Tal instrumento é obrigatório para os Estados Membros conforme emerge de quanto se dispõe no Artº 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Contudo, da existência do formulário a preencher para estes específicos casos não decorre diretamente a instituição de uma qualquer contraordenação, situação que carece de lei instituidora.
É, aliás, a própria sentença que assume que a lei é omissa quanto às consequências de não apresentação do anexo a que se refere a Decisão, visto não prever qualquer sanção ou responsabilidade contraordenacional.
Todavia, vem a concluir que não estando punida a omissão em causa, há uma lacuna que tem que ser integrada por via interpretativa.
Cumpre antes de mais salientar que a interpretação extensiva não serve a integração de lacunas. Esta é regulada pela analogia. E, em matéria de qualificação criminal ou contraordenacional não é permitido o recurso à analogia (Artº 1º/3 do CP), situação que constituiria violação expressa do já mencionado princípio da legalidade.
Na verdade, em matéria de direito sancionatório público aplicam-se, no essencial, as garantias vigentes no direito penal, especialmente aquelas que se prendem com a segurança, certeza, confiança e previsibilidade, estando fora de causa a interpretação analógica e, bem assim, a extensiva sempre que da mesma resultem questionadas aquelas garantias.
Assim, se do Artº 25º/1-b) da Lei 27/2010 – norma tipificadora- não consta a menção à obrigação de apresentação do formulário referido na citada Decisão, não pode o intérprete decidir pela respetiva inclusão no tipo legal ou partir do pressuposto que é intenção do legislador a respetiva inclusão.
Por outro lado, e contrariamente ao que se diz na sentença, não basta a qualquer motorista afirmar que o veículo está isento do cumprimento das obrigações reportadas no Artº 15º/7 do Regulamento Europeu. Necessário é que se verifiquem os pressupostos de aplicação da isenção.
Concluindo, subscreve-se a motivação apresentada pela Recrte. quando afirma que inexistindo qualquer norma que imponha ao condutor a obrigação de apresentação do formulário e qualquer norma punitiva da ausência de utilização do mesmo, não se pode ter como obrigatória a utilização de um tal documento e, muito menos, como verificada a prática de uma contraordenação.
Por outras palavras, não estando a conduta tipificada pelo mencionado Artº 25º/1-b) – que, repete-se, traduz a contraordenação imputada ab initio-, não há contraordenação, devendo, pois, a Arguida ser absolvida.

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Em conformidade com o exposto, acorda-se em revogar a sentença recorrida, absolvendo a arguida da prática da contraordenação que lhe foi imputada.
Notifique.

Lisboa, 2017.06.14

MANUELA BENTO FIALHO
SÉRGIO ALMEIDA