Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4072/12.7TDPRT.L1-9
Relator: MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
COMUNICAÇÃO
DIREITO DE DEFESA DO ARGUIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDOS
Sumário: I- A alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou na pronúncia, não pode ser de tal molde que altere o destino a dar pelo julgador aos factos inicialmente articulados, de forma a que a acusação ou a pronúncia, sem a introdução dessa alteração, fosse o da improcedência, pelo que, a) a alteração, para ser admissível, tem de resultar da linha de defesa do arguido, b) mas não pode anular a defesa do arguido. Dito de outro modo: só podem ser aditados factos que concretizem a actividade imputada ao arguido, sem repercussões agravativas;
II- Sendo a linha ténue de distinção de ser feita entre a procedência ou a improcedência do libelo acusatório, então a alteração introduzida, resulte esta, ou não da defesa, não poderá ser considerada como meramente concretizante e inócua, traduzindo-se ao invés, numa agravação da situação do arguido, pois o arguido ao ser notificado do libelo acusatório, delineia uma determinada linha de defesa, com uma determinada estratégia, a qual não tem evidentemente como pressuposto a sua auto incriminação;
III- Se dessa linha de defesa o Tribunal, face ao acervo da prova produzida retira a conclusão de que esses factos são relevantes como meio de concretizar a actividade atribuída ao arguido na acusação, então este tem necessariamente de ter direito a rever a análise desses factos, agora sob a perspectiva acusatória, e de exercer o seu direito de defesa em relação aos mesmos, e à perspectiva acusatória que o Tribunal tem dos mesmos;
IV- O Tribunal, à medida que se foi desenrolando o julgamento, se foi sendo confrontado com insuficiências do libelo acusatório, que entendeu ir colmatando sucessivamente com a introdução das chamadas alterações não substanciais, e sem que concedesse aos arguidos um prazo para reexaminarem a sua estratégia de defesa em relação a esses mesmos factos, agora na perspectiva de que tais factos passaram a concretizar a acusação, aos arguidos têm que lhe ser proporcionado o direito a exercer o seu direito de defesa face aos sucessivos novos factos que foram comunicados nos ternos do artº 358 nº 1 do CPP, pelo Tribunal “ a quo”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:
AA, BB, e CC.. vieram interpor o presente recurso da decisão que os condenou
- o AA.. pela prática, em co-autoria material, de 16 (dezasseis) crimes de falsificação, na forma consumada, previstos e punidos nos termos do disposto no artigo 256, n.º 1, alíneas a), d), e e) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um; pela prática, em co-autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, na founa consumada, previsto e punido nos termos do disposto no artigos 217, n.º 1 e 218, n.*. 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão; pela prática, em co-autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido nos termos do disposto no artigos 22, 23, 73, 217, n.º 1 e 218, n.º. 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 9 (nove) anos de prisão;
- a arguida BB.. pela prática, em co-autoria material, de 16 (dezasseis) crimes de falsificação, na forma consumada, previstos e punidos nos termos do disposto no artigo 256, n.º 1, alíneas a), d), o.. e) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão por cada um; pela prática, em co-autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, na fornia consumada, previsto e punido nos termos do disposto no artigos 217, n.º 1 e 218, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; pela prática, em co-autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido nos termos do disposto no artigos 22, 23, 73, 217, n.° 1 e 218, n.°. 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão; em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, a qual se suspende na sua execução, por igual período, mediante regime de prova;
- o arguido CC.. pela prática, em co-autoria material, de 1 (um) crime de falsificação, na forma consumada, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 256, n.° 1, alíneas a), d), e e) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão; pela prática, em co-autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, na forma consumada, previsto e punido nos termos do disposto no artigos 217, n.° 1 e 218, n.°. 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; pela prática, em co-autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido nos termos do disposto no artigos 22, 23, 73, 217, n.° 1 e 218, n.°. 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 3 (três) anos de prisão, a qual se suspende na sua execução, por igual período, mediante regime de prova;
Pedem os arguidos que a decisão recorrida seja revogada e sejam absolvidos dos crimes em que foram condenados.
Em síntese, os arguidos invocam erro na valoração da prova indiciária pelo Tribunal, erro de julgamento nos termos do art. 412.°, n.° 3, als. A) e b), do CPP, invocam ainda que o Tribunal "a quo" violou o principio da livre apreciação da prova e o principio "in dubio pro reo".
Os arguidos mantêm ainda interesse nos recursos intercalares :
a) interposto a 25 de Junho de 2018 no qual requerem a revogação do despacho do Tribunal a quo proferido na sessão de Audiência e Julgamento ocorrida em 25 de Maio de 2018, o qual indeferiu a produção da prova requerida pelos arguidos quanto aos factos novos aditados à Acusação por despacho que antecede e proferido nos termos do artigo 358° CPP, substituindo-o por outro que ordene a produção de prova nos termos que foram requeridos pelos aqui Recorrentes.
b) interposto a 6 de Setembro de 2018 no qual requerem a revogação do despacho do Tribunal a quo proferido na sessão de Audiência e Julgamento ocorrida em 7 de Junho de 2018, o qual indeferiu a produção da prova requerida pelos Arguidos quanto aos factos novos aditados à Acusação por despacho que antecede e proferido nos termos do artigo 358° CPP, substituindo-o por outro que ordene a produção de prova nos termos que foram requeridos pelos aqui Recorrentes.
O M°P° na resposta ao recurso defende que o douto Acórdão recorrido não violou qualquer norma jurídica, e deve ser mantido e, em consequência, deve ser negado provimento ao presente recurso, apresentado para tal:
I) Quanto à invocada nulidade do acórdão por omissão de factos do elenco dos factos provados (cfr. arts. 374.°, n.° 2, e 379.°, n.° 1, alínea a), ambos do C.P.P.). o Tribunal Coletivo elaborou um minucioso exame crítico das provas, raiando a perfeição, escalpelizando ao pormenor os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse.
II) Quanto ao invocado erro de julgamento (errou na valoração da prova indiciária; erro de julgamento nos termos do art.412°, n°3, als.a) e b), do C.P.P.; violação do princípio da livre apreciação da prova), concluiu que o Tribunal "a quo" apreciou a prova de modo racional, objetivo e motivado, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo ao Tribunal "ad quem" censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal dos recorrentes sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127° do C.P.P., do qual decorre que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
III) Quanto à alegada violação do princípio "in dubio pro reo", concluiu que pela conferência do texto da decisão recorrida, não se vislumbra que o julgador tenha tido dúvidas sobre a verificação dos factos que considerou assentes. Ao invés, a motivação da decisão de facto é bem esclarecedora quer quanto aos meios de prova que sustentaram a convicção formada, quer quanto ao percurso lógico seguido na sua formação, nenhuma falha ou incorreção se detetando no exame crítico da prova. De facto, aí vêm explicadas, de forma minuciosa e inteiramente congruente e plausível, as razões pelas quais cada elemento probatório mereceu credibilidade, e a conjugação respetiva compondo um todo lógico, não se extraindo minimamente da fundamentação da decisão recorrida que o julgador tenha tido dúvidas sérias e razoáveis sobre a prova de qualquer dos factos que considerou assentes.
IV) Quanto à alegada valoração negativa, contra os arguidos, do silêncio a que estes se remeteram após a produção de prova testemunhal, violando-se, não só o artigo 127.° do Código do Processo Penal, como ainda o fundamental artigo 32.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa conclui que a circunstância de o arguido em julgamento se haver remetido ao silêncio não pode ser valorada em seu desfavor, na medida em que exerce um direito seu (art.343°, n°1, do C.P.P.), mas a opção pelo silêncio pode, todavia, ter consequências que não passam pela sua valorização indevida: com efeito, optando pelo silêncio o arguido prescinde de dar a sua visão pessoal dos factos e de, eventualmente, esclarecer determinados pontos de que tem conhecimento pessoal, ficando arredadas a confissão espontânea e o arrependimento, circunstâncias que são especialmente relevantes na medida da pena.
V) Quanto à pretendida violação dos arts.2.° e 29.°, n.°5, da Constituição da República Portuguesa, e dos arts.30.°, n.°1, 217.°, e 218.°, do C.P. conclui que A conduta dos arguidos é ilícita, formal e materialmente, porque traduz desrespeito de disposições legais e ofensa do interesse penalmente protegido — o património, globalmente considerado.
Porque, no caso em apreço, não ficou provada nenhuma causa de justificação ou circunstância que dirima a culpa dos arguidos, nem nenhuma causa de exclusão da ilicitude, estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de burla qualificada, quer na forma consumada, quer na forma tentada, pelos arguidos, nos termos previstos e puníveis pelos artigos 217, n.° 1 e 218, n.° 2, alínea a), ambos do Código Penal.
VI) Quanto à medida da pena e à suspensão da sua execução conclui que a factualidade apurada reflete com rigor e de forma inequívoca a prova produzida em julgamento sem nulidade ou vício de que padeça, e que a mesma integra os elementos típicos dos crimes pela prática dos quais foram condenados os arguidos, ora recorrentes, seus autores nos termos da factualidade em causa, e não existindo causas de justificação da ilicitude nem causas de exclusão da culpa, os arguidos são jurídico-penalmente responsáveis pelos crimes em referência, in casu, foram fixadas as penas concretas, como justas e adequadas.
Os arguidos, tendo conhecimento da resposta do M°P°, apresentaram requerimento aos autos no qual concluem pela absoluta falta de fundamento racional da resposta apresentada pelo Ministério Público, e por salientar que o mesmo Digníssimo Magistrado, da fase de julgamento para a fase de recurso mudou diametralmente de opinião.
Neste Tribunal de 2.a Instância pronunciou-se o Exmo. Procurador Geral Adjunto pela improcedência de cada um dos recursos com a consequente confirmação das decisões impugnadas mostrando-se dispiciendo o aditamento de quaisquer outros elementos em defesa do decidido.
Apreciando:
Cumpre tomar conhecimento das questões pela precedência das questões suscitadas, determinando-se a referida ordem pela natureza, e efeitos das questões suscitadas, na tramitação do processo.
Logo, cumpre apreciar primeiro as questões suscitadas em sede de recursos intercalares, a saber, se devia, ou não, ter sido concedido direito de defesa aos arguidos, relativamente às comunicações dos factos aditados à acusação, logo, sobre a alteração da matéria de facto inicialmente contida no libelo acusatório.
Tem sido entendimento pacífico o de que se os factos aditados tiverem resultado de factos alegados pela defesa não há lugar à concessão de prazo para preparação da defesa em relação a esses novos factos.
É necessário salientar que ..." o instituto da alteração dos factos descritos na acusação, ou na pronúncia, visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente, com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente de se defender..." in Código Processo Penal Comentado, nota ao art° 358° do mesmo diploma da autoria do Exmo Conselheiro Oliveira Mendes.
Como se pode ler no Ac STJ de 09.09.2017, rec ° 169/07.3GCBNV.S1, ibidem, anotações ao art° 358°, ...para ocorrer uma alteração de factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem, ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles..."
É certo que o mesmo Venerando Tribunal tem como entendimento corrente o de que ..."inexiste alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia quando na sentença se concretizam os factos ali descritos, ou seja, quando os factos aditados se traduzem em meros factos concretizantes da actividade imputada, sem repercussões agravativas ou diminuição das garantias de defesa do arguido..." ibidem, pág 1086.
Aqui chegados, temos como linhas norteadoras duas, a saber, a) a alteração, para ser admissível, tem de resultar da linha de defesa do arguido, b) mas não pode anular a defesa do arguido.
Temos como consequência, então, que a alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou na pronúncia, não pode ser de tal molde que altere o destino a dar pelo julgador aos factos inicialmente articulados, de forma a que a acusação ou a pronúncia, sem a introdução dessa alteração, fosse o da improcedência.
Dito de outro modo: só podem ser aditados factos que concretizem a actividade imputada ao arguido, sem repercussões agravativas.
Se a linha ténue de distinção for entre a procedência ou a improcedência do libelo acusatório, então a alteração introduzida, resulte, ou não da defesa, não é meramente concretizante e inócua, traduz-se numa agravação da situação do arguido.
Acresce que o arguido notificado do libelo acusatório, delineia uma determinada linha de defesa, com uma determinada estratégia, que não tem como pressuposto auto incriminar-se.
Se dessa linha de defesa o Tribunal, face ao acervo da prova produzida retira a conclusão de que esses factos são relevantes como meio de concretizar a actividade atribuída ao arguido na acusação, então este tem necessariamente de ter direito a rever a análise desses factos, agora sob a perspectiva acusatória, e de exercer o seu direito de defesa em relação aos mesmos, e à perspectiva acusatória que o Tribunal tem dos mesmos.
É o caso dos autos.
O Tribunal, à medida que se foi desenrolando o julgamento, foi sendo confrontado com insuficiências do libelo acusatório que foi colmatando com a introdução das chamadas alterações não substanciais, e sem que concedesse aos arguidos um prazo para reexaminarem a sua estratégia de defesa em relação a esses mesmos factos, agora na perspectiva de que tais factos passaram a concretizar a acusação.
Assiste, pois, razão aos recorrentes quando pugnam pela revogação dos dois despachos intercalares oportunamente impugnados, e em cuja decisão mantêm o interesse.
A procedência do(s) recurso(s) intercalares, sob a mesma questão, prejudica o conhecimento do recurso da decisão final, e determina a anulação da decisão proferida com consequente reabertura da audiência, e concessão de prazo para defesa em relação aos factos aditados.
Decisão:
Termos em que acordam, após vistos legais e conferência, em julgar procedentes ambos os recursos intercalares interpostos sobre a mesma questão em duas sessões diferentes da audiência de discussão e julgamento, revogando os referidos despachos, e determinando a sua substituição por outro que conceda prazo aos recorrentes para exercício do  direito de defesa em relação aos factos aditados naquelas mesmas sessões de  julgamento, proferindo-se, após, nova decisão.
E em considerar prejudicado o conhecimento do recurso da decisão final proferida, que se anula.
Não é devida taxa de justiça.
Registe e notifique, nos termos legais.

Lisboa, 16 de Maio 2019

Margarida Vieira de Almeida (Relatora)
Maria da Luz Batista (Adjunta)
António Trigo Mesquita (Presidente de Secção)